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TRATADO
D E
INFLAMMAÇÃO, FERIDAS, E ULCERAS
EXTRAHIDO
DA NOSOGRAPHIA CIRÚRGICA
D E
J1NTHELMO MICHEM^UYID ,
Deu or y Cirurgião em Chefe adjunto do Hospital de
S. Luiz , Cirurgião Mor da Guarda de Paris ,
Professor de Cirurgia , Memoro da Sociedade, da
Escolla de Medecina de Paris.
OFFERECIDO
A O
príncipe regente
NOSSO SENHOR
POR
JOAQUIM DA ROCHA MAZAREM;
Cavalleiro na Ordem de Christo , Lente da Regia
Cadeira de Medicina Operatória , Primeiro Cirurgiã»
do Numero da Armada Real , e Cirurgião da Primei-
ra e Segunda Enfermaria do Hospital Real dos Exert
eitos , e Armadas. /2&^
M-
MM4M4
RIO DE JANEIRO
1810.
NA IMPRESSÃO REGIA.
Por Ordem de S. A. R,
SENHOR-
M,
Orneado Lente de huma das Cadeiras Medico-Ci-
rurgicas , que V. A. R. mandou estabelecer no Hospi-
tal Real Militar desta Ctrte; incumbido juntamente do
tratamento das moléstias cirúrgicas dos enfermos das Reaes
Armadas no mesmo hospital , aonde concorrem os alum-
nos , que se dedicão d arte de curar ; vi a falta que
ha de autjres , e de livros desta sciencia no nosso idio-
ma , por onde elles se podessem applicar.
O* meu% limitados conhecimentos , não permittião o
poder formar huma doutrina , que lhes servisse de ins-
trucção y e me servi {par* fazer hum tratado de inflam-
?nação , feridas , e ulceras} da Nosographia de Rickerand.
Eis o pequeno frueto do meu trabalho ; seja o Au-
gusto Nome de V. A. R. quem lhe sirva de égide para
a m$rdaz critica.
Digne. se pois V. A. R. de acceitmr o insufficiente tri-
buto que offerece com o mais profundo respeito ,
O mais humilde , e fiel vassallo ,
yOA^UI M DA ROCHA MAZAREM.
ERRATAS.
Pa
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2
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19
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29
147
21
173
17
169
2
Erres,
levada
an th roas
thermometricas
que , em huma
gólbos
Naquella inflammação
lanror
muito excessiva
externo
roro
atacáo
com as partes
seja
primeiros estimulados
he boa
setto
perpendicularmente a
■ agulha
atravessa
phogoze
as quaes ciruigiiío
judiciosos críticos
destas
empalhados
obcejar
excito
exentao
fuaso
por que conduz
a extrahio
nas seguidas
veteronario
tem as pernas
dos absorventes
tartarito
limnihatico
o metal
em que pudor
Emendas*
levado
anthraz
thermometras
o que em huma"
lobos
Aquella inflammação
languor.
tão excessiva
esternon
íosto
unem
com os quaes as partes
se be
primeiro estimulados
he de boa \
septo
perpendicularmente com a
agulha
a travessão,
phlqgcrzc
-ás quaes este cirurgiãs
judiciosas criticas
destes
espalhados
affastar
êxito
extenção
fusão
que conduz
a extrahi
não são seguidas
veterinário
os que tem as pernas
das absorventes
tartrito
limphatico
este metal
em que o pudor.
à . t»tt<
DO ESTADO INFLAMMATORIO,
E DOS
SEUS DIVERSOS MODOS.
Inflaminaçoes Idiopalkicas , Sympathica,s , Specifaas ,
e Gangreno sas.
'JL UITOS gráos conduzem a este estado de exalta-
ção das propriedades vkaes , que constituem essencial-
mente a inflammação. A vida pôde ser augmentada.
em todas as partes sem que o augmento da sua
actividade seja levada até o estado inrlammatorio. A
simples esfregação da pelle, produzindo o excitamen-
to 3 attrahe o sangue para esta membrana , determina a
sua vermelhidão , assim como também hum ligeiro de-
senvolvimento de calórico ; a mesma causa applicada a
certos órgãos , taes como o membro viril , o bico do
peito , produz nelies a erecção. Este ultimo estado he
numa verdadeira phlogoze do tecido , que a sente. ( a )
A O
(i) A inflammação pôde ser defínada : o augir.ento dá
todas as propriedades vilães na parte que he o assento delia.
A sensibilidade alii se torna mais viva , a mobilidade maior ;
e deste augmento de sensibilidade , e de movimento, nas-
cem todos os symptomas , que denotão o estado inflamma-
torio : por isso, a dôr , a tumefacção f o rubor, o calor, a
mudança de secreções , indicão na parte inflammada huma
vida mais enérgica, e mais activa. Riclier. Elémens de Phy-
siologie pag 91.
O excitamento só, embaraça o sangue na parte inflam-
Hiada, por quanto na morte, a qual destróe todos os exci-
2
O excitamento inflammatorio he sempre acompanha-
do de quatro simptomas , que vem a ser; a dor sem a
qual quasi que náo ha inflammaçáo , por quanto o aug-
mento da sensibilidade , he a causa immediata , ou pró-
xima delia ; a inchação maior , ou menor , segundo o
tecido aríèctado - 7 porém a mais considerável he nas in-
flammaçóes cellulares ; a vermelhidão , dependente da
maior quantidade de sangue , que o excitamento chama
á parte inflammada ; e ultimamente o calor , cujo aug-
mento parece ligeiro , quando se avalia com o termó-
metro , mas que algumas vezes he muito vivo , quando
se consulta pela sensação. Entremos pois em alguns de-
talhes sobre cada hum destes quatro ifenomenos cara-
cterísticos da inflammaçáo.
A dor náo he hum simptoma constante , quando
se entende por ella huma sensação desagradável. O pru- n
rido , que precede , e acompanha certas erupções cutâ-
neas , bem longe de ser doloroso , tem alguma cousa
de agradável , e só no momento , onde a exaltação da
sen-
tamentos , que faz cessar todos os espasmos ( mors spasmos
solvit. Hipp. ) quando , torno a dizer , a morte sobrevem ,
as ligeiras inflammaçóes se dissipão , &c.
A contractilidade , a sensibilidade nos vazos capiliares ,
e sorosos he então maior , do que nas vêas , e nas artérias :
a vida deve ahi ser necessariamente mais activa ; porque a
quantidade do movimento imprimido ao sangue peias contrac-
ções do coração , achando-se esgotado este fluido fora di es-
fera da actividade deste órgão , não pode circular, senão pe-
la acção vascular. A mesma Obra pag. 515.
O calórico oceulto , ou combinado nos corpos , se de-
senvolve deli es todas as vezes , que estes corpos passão de
hum a outro estado, &c. A mesma Obra pag. 569.
Huma inflammação de qualquer glândula que seja , pro-
duz a mudança de secreção no or^ão affectado. Huma porção
de tecido gorduroso tocado de inflammação fleimonosa secre-
ta , em lugar de gordura hum fluido esbranquiçado conheci-
do debaixo do nome de puz. A mesma Obra pag. 427.
Nota do Traductor.
5
sensibilidade he levada além de hum certo termo , he que
este praser se torna doloroso. Ultimamente huma e outra
destas sensações , de que se acompanha o estado inflam-
matorio , offèrecem dtíferenças relativas ao tecido affecta-
do , e ao modo da inflammaçáo. Na inflammaçáo fleimo-
nosa , o sentimento de hum pezo incómmodo se junta ao
soffrimento das dores gravativas ; na erisipella , estas são
ardentes, &c. Sua vivacidade se mede pela intensidade da
moléstia , e pela dirficuldade , que a extructura do ór-
gão oppôe ao inchaço inflammarorio.
A tumefacçáo das partes inflammadas he devida í
quantidade considerável dos suecos que ahi afluem : Ubi
stimultts , ibi fluxtts. Chamados peio excitamento , os
humores afluem no órgão, cujas propriedades vitaes são»
augmenradas , as moléculas rubras do sangue se compri-
mem nos vazos capilares , e manifestáo nelles sua cor.
Se a inflammaçáo he viva , o liquido rransunda a través
das porosidades dos vazos ; a infiltração sanguínea do
tecido inflammado he devida a esta hemorragia interna;
em fim , quando o augmento das propriedades vitaes he
levado ao ultimo gráo , os pequenos vazos se despeda-
çáo. Hum fieimão agudo , aberto nesta época , appre-
senta huma substancia análoga ao paranchyma do
baço.
As mesmas razões , que explicáo a inchação de
huma parte inflammada fazem igualmente conhecer as
cansas de sua vermelhidão , sempre devida a agglome-
ração das moléculas rubras do sangue nos vazos , ' qué
antes da inflammaçáo eráò enfiados por estas moléculas
muito divididas ; e pot isso não reflectiáo tanto a sua
cor; e como pela extructura diversa dos tecidos inflam-
mados seus vazos ofFerecem aos líquidos hum accesso
mais , ou menos fácil, o rubor he geralmente menor
nas inflammaçóes dos orgáos mais ^consistentes ; sendo
também mais escura nas inflammaçócs , que tendem &
gangrena , seja por excesso do mal , seja pela falta de
energia dos poderes circulatórios. He por isto que se
desenvolve a cor de roza na erisipela , o rubor vivo nd
A i» fiei*
4
Jleimáo agudo , o rubor escuro , e mesmo negro no an-
throax , &c.
As experiências thermometricas feitas por Hunter ,
tem provado , que o augmento real do calor he pouco
considerável nos tecidos inílammados , posto* que seja
vivamente sentido pelos enfermos. Temos mostrado ,
tratando do calor animal , qual he a razão fisiológica
(i) deste fenómeno. O augmento do calor corresponde
ao agmento da sensibilidade , e por mais pequeno que
seja o augmento do calórico , onde pela abundância , e
movimento rápido do sangue este principio se desenvol-
ve em maior quantidade do que costuma , este augmen-
to he vivamente resentido pelos órgãos , que se achão
dotados de hum sentimento mais exquisito. Das varie-
dades , que oíFerece o calor , dependem igualmente as
modificações da sensibilidade nas differentes partes ; dis-
to resulta o calor, acre, e ardente das inflammaçóes cu-
tâneas , cr calor brando , e halituoso dos rleimóes ,
&c.
Huma parte infíammada he como hum novo ór-
gão , no qual a vida se encontra augmentada , e to-
das as funções se executão com mais rapidez , e ener-
gia ; á excepção com tudo daquellas , em que o cúmu-
lo considerável dos líquidos as estorva. He por isso que
na peripneumonia a respiração he' custosa pelo efFeito
mecânico, que resulta da presença da maior quantidade
de sangue no paranchima pulmonar ; as contracções do
tecido de hum musculo infiammado , são embaraçadas
pela mesma causa ; a função visual se não pode com-
ple-
(i) ,, A parte infíammada, se torna mais quente, psr-
,, que em hum determinado tempo, passa a traves de seu te-
„ eido Junna maior porção de sangue arterial , o qual deixa
„ desenvolver huma maior quantidade de calórico , e porque
„ os effeitos continuados da respiração pulmonar ahi.sâo
„ mais sensíveis do que em qualquer outro órgão. „ Prol.'-
gomenos pag. 94. Nouveaux Elemens de Plrysiòlogie tom. I.
Nota do Traduetor.
/
9
pletnr pela opacidade , que contrahem as partes transpareci
tes do olho ophthalmico.
Não somente o orgáo inflammado offerece huma
excitabilidade mais viva 5 huma contracrilidade maior ,
huma circulação mais activa , hum movimento mais rá-
pido , mas ainda as suas funções ordinárias são suspen-
didas , ou alteradas. As secreções offerecem novos pro-
ductos : as laminas do tecido adiposo deixão transudar
em lugar da gordura , hum licor albuminoso , esbran-
quiçado , conhecido debaixo do nome de puz (i). Ca-
da lamina deste tecido pôde ser considerada como huma
superfície exhalante , semelhante á pleura , ou ao peri-
toneo ■■, a dififerença não existe, senão na extensão ; e a
secieção do puz no tecido celluloso inflammado pôde
ser comparado á secreção albuminosa , mais , ou menos
espessa que fornecem as membranas sorosas. No pleu-
riz pouco agudo , a sorosidade lactescente se acumula
nos saccos das pleuras : o puz do fleimão deposto nas
ceílulas do recido adipozo , ahi se encontra primeiro in-
filtrado j depois se reúne , e se acumula em hum só foco
a favor das communicaçóes que as ceílulas tem entre si.
A inflammação deve ser contada nas lezóes das
propriedades vitaes ; por quanto pôde ser definida o
augmento de todas estas propriedades. Igualmente per-
tence ás alterações orgânicas ; porque o afluxo conside-
rável dos líquidos bem depressa desarranja o tecido dos
sólidos. A alteração da cstructura , não he quasi nada ,
em quanto o sangue está encerrado nos seus vazos ca-
pilares. He maior , quando se infiltra ; em fim au-
gmenta , quando os capilares se rompem , os sólidos
se dilacerão pelos movimentos , que executão , e pela
quantidade mui considerável dos líquidos , que ahi afluem >
a irsflammaçáo pôde ser então facilmente levada até a
desorganização , que torna a gangrena inevitável.
Porém exige-seaqui mais , o estudar a inflammação
como practico , do que como fisiológico.
A
<j) Vede Riche. Nosograf. Chirur. abscès , tome III.
A inflammaçáo se appresenta frequentemente no
estudo , e tratamento das moléstias , constitue hum
grande número delias , seja como affecção essen-
cial , seja como complicação ? ou mesmo como meio
curativo ; merece da parte do Pratico huma attençáo
mui particular pela difhculdade de profundar sua natu-
reza , e sobre tudo , de determinar ; seja as diversas for-
mas de que se pôde revestir , seja pelos tratamen-
tos variados , que requer. As phlegmazias oceupáo
hum lugar importante em todas as Nosologias ; forman-
do huma divisão particular de moléstias ; < porém está
a sua clacificação estabelecida sobre fundamentos úteis,
e sólidos í O Professor Pinei tomou por base desra
distineçáo a difFerença dos tecidos , e as distribuio em
cinco ordens , debaixo dos nomes de Phlegmazias das
membranas mucosas , das membranas sorosas , do teci-
do cellular , e dos órgãos paranchimatosos , dos múscu-
los , e da pelle. Este arranjamento he , sem dúvida , o
melhor de todos os que se tem proposto até hoje. < Po-
rém se elle reúne huma multidão de objectos análogos ,
não reúne também muitas cousas disparatadas, e não
he mais fisiológico , do que pratico ?
A angina ahi se encontra comprchendida na ordem das
phlegmazias musculares -, com tudo a inflammaçáo co-
messa quasi sempre pela membrana mucosa , depois se
estende aos músculos da pharinge , com mais justo ti-
tulo pertenceria esta phlegmazia as mucosas , e mesmo
seria mais vizinha das phlegmazias do tecido cellular , e
dos órgãos paranchimatosos , ( pois que a inflammaçáo
das amygdalas he o simptoma mais ordinário delia.
< Que importa além disto que a inflammaçáo tenha o
seu assento na membrana , nos músculos , e no tecido ,
que os une; ou que se encontre na sua visinhança í A
natureza não cede a estas rigorosas distincçóes , e já
mais as inflammações são tão exactamente limitadas
nos tecidos ligados por huma multidão de vazos , meios
fáceis de huma communicação rápida , quanto são distin-
guidas nas classificações. Esta consideração anathomica
dos
dos tecidos affectados , posto que útil , não he , senão
de huma importância secundaria ; he mais vantajosa ao
Alumno , qne ao Pratico : que , em huma inflammação
da garganta , por exemplo , se occupa primeiro da cau-
sa da enfermidade ; applica os antiphlogisticos nas angi-
nas idiopaticas ; faz vomitar , nos casos , onde a enfer-
midade he devida ao excitamento simpático do estôma-
go , e dos orgáos biliares ; administra os mercuriaes , se
a angina he venérea j e os tónicos , quando he gan-
grenosa.
As inflammações do peito fornecem matéria ás
mesmas observações. A analyse anathomica do tecido
pulmonar , dá na verdade justas idéas da natureza das
phlegmazias de que o pulmão pôde ser assaltado. O ,
cacarro consiste na inflammação da membrana mucosa ,
que forra os duccos aéreos ; a peripneumonia tem seu
assento no paranchima do órgão , e no tecido cellular ,
que une os diversos globos do pulmão ; o pleuriz re-
side na pleura ; porém além de que he difficil o distin-
guir certos catarros agudos da peripneumonia, podendo
depender o escarro de sangue da rotura dos pequenos
vazos bronqueaes ; todos concordão que o pleuriz não
se limita unicamente á pleura ; porém se estende ás ca-
madas superficiaes da substancia pulmonar. Em fim , o
mesmo tratamento convém a estas três inflammações
agudas , quando acontecem a hum sujeito robusto j em
quanto que em dois catarros , a hum pôde ser indi-
cada a sangria , o outro exige o emprego dos tóni-
cos , como acontece no catarro , que sobrevem frequen-
temente ás pessoas avançadas em idade.
Huma distincçáo de phlegmazias , fundada sobre a
sua natureza , seria pois mais útil , e mais immediata-
mente applicavel á pratica. Esta idéa nos obriga a compre-
hender todas as inflammações de que os órgãos são
susceptíveis em quatro ordens. As mais frequentes são,
as inflammações idiopathicas. Estas são caracterizadas
i. c pela acção de sua causa , que se exerce no lugar
mesmo, onde a inflammação se desenvolvei 2.° pelo
seu
seu fim , que he sempre saudável sem que seu resulta-*
do ò seja constantemente. Náo existe algum orgáo no
corpo , á excepção das partes epideimoicas , e de cer-
tos tendões delgados , e secos , que não possáo vir a ser
o assento destas reacções vitaes , pelas quaes a nature-
za procura expellir hum agente incómmodo.
Seguem-se as inRzmmzçóes sytnpathicas , caracteriza-
das , i. a pela acção de sua causa, que existe em hum
orgáo distante do lugar inflammado ; z.° porque são
sem utilidade. Taes são as erisipellas biliosas , produzidas ,
ou entretidas pelo excitamento das primeiras vias, &c.
As inflammações specifrcâs se distinguem eminente-
mente das precedentes ; porque dependem de huma cau-
sa sui generis- , e são devidas a huma disposição parti-
cular , que se combate com certos remédios , de que a
experiência tem verificado as virtudes. Nesta ordem se
arranjão as inflammações venéreas , impetiginosas , va-
riolicas , vaccinal , <S.c.
Em fim , ha huma ordem de inflammações , que
he preciso chamar gangrenosas ; porque a gangrena he
a terminação essencial , e como inevitável delias. Se es-
tas inflammações não são exclusivamente gangrenosas ,
o são necessariamente. A morte de hum órgão pôde
ser com eíFeito a consequência de sua inchação infíam-
matoria levada além de todo o limite. He deste modo ,
que a vida se extingue em hum membro violentamen-
te inchado em consequência de huma contusão excessi-
va , na qual as partes molles tem sido despedaçadas ,
e os ossos reduzidos em esquirolas ; o excesso do mo-
vimento o conduz á sua anniquilação.
Nas inflammações gangrenosas , taes como a pústu-
la maligna, o anthrax, &Ç: , a gangrena he devida á
debilidade ; he o resultado da falta de harmonia en-
tre o estado geral das forças , e o estado da parte
aíFectada. Para que huma intlammação corra felizmen-
te seus diversos períodos , ' e se encaminhe a huma
terminação vantajosa 5 he indispensável qtre a exci-
tação local seja mais 3 ou menos dividida pelo sys-
te-
9
rema circulatório ; o apparelho inflammatorio , se se pode
assim dizer , se compõe do movimento local , e da reac-
ção geral , necessária para suster o trabalho , de que a
parte inflammada vem a ser o assento. Este concurso
das forças geraes falta em todas as inrlammaçóes gan-
grenosas , ou malignas dos authores- Em quanto que hum
carbúnculo maligno destróe com ardentes dores o orgáo ,
que affecta , o pulso existe fraco , e lento , ahi ha pros-
tração ; prova que o resto da economia não participa da
infiammação. Faltando esta harmonia , a gangrena esten-
de ao longe o seu estrago , e não se suspende se não
no momento , em que as forças circulatórias reanima-
das vem pôr por hum circulo inflammatorio a linha
de demarcação, que deve separar as partes mortas, da-
quellas onde subsiste ainda a vida.
I. As inrlammaçóes idiopathicas , sejão agudas ,
sejáo crónicas , são submettidas a dois methodos geraes
de tratamento : o orgáo aífectado he pouco essencial a vi-
da , abandona-se á natureza o cuidado de seu curativo.
Se o orgáo preenche funções importantes ; se o seu tecido
muito delicado pôde ser facilmente desorganizado pelo aflu-
xo de huma grande quantidade de sangue ; a medicina
expectante deve ceder o lugar á medicina activa; he preciso
combater o estado inflammatorio , fazer abortar , se he
possível , este esforço , pelo qual a existência do enlermo
está compromettida.
Huma pessoa , sahindo de hum lugar quente , e
passando a huma atmosfera mui fria , de repente a
transpiração pulmonar se acha suspendida pela impres-
são viva que resulta da introducção. de hum ar glacial
nos pulmões ; a membrana mucosa dos duetos aéreos
^excitada , se infiamma , a secreção do muco , que foi
suspendido , se restabelece mais abundante , e mais li-
quido , que no estado ordinário ; depois torna pouco a
pouco a adquirir suas qualidades primitivas; o descan-
so , hum ar temperado , o uso de algumas bebidas quen-
tes, e diluentes, he bastante para spcegar a tece vio-
lenta j e conduzir a enfermidade até a sua cura , cuja
hon-
IO
honra pertence unicamente á natureza. Chamáo-se natu-
racs estes methodo;? de tratamento , nos quaes s; aban-
dona á natureza a si mesma , limitando-se sò ao cuida-
do de afTastar os obstáculos , que poderiáo retardar hu-
ma feliz terminação.
Se em lugar de huma simples inflammação da mem-
brana mucosa dos bronchios , o tecido pulmonar he in-
flammado pela impressão viva , que sente huma pessoa ,
que he mais excitavel com a mudança precipitada na
temperatura ; o sangue , que faz erupção no pulmão
excitado , despedaça o seu tecido mui delicado , deprime
as celluhs aéreas , e converte sua substancia espongiosa
em huma espécie de carne análoga ao paranchima do
fígado, como indica o termo de hepatizacáq, pelo qual
se tem designado este effeito da inflammação pulmonar.
Esta desorganização do pulmão traz promptamente a
morte, porque o ar não podendo ser admittido em seu
tecido engorgitado , as combinações respiratórias , in-
dispensáveis ao entretenimento da vida , cessão de se ef-
fectuar ; além disto , o sangue não pôde passar li-
vremente das cavidades direitas do coração , «ás cavida-
des esquerdas a través dos pulmões tornados duros , e
compactos ; he preciso pois perturbar a natureza na
reacção , que suscita , parar , ou ao menos moderar
seus esforços por copiosas , e repetidas sangrias , &c.
Este methodo se chama perturbador , á excepção dos
catarros pouco agudos ; todas as mais inflammaçóes in-
ternas, sejão agudas , sejão chronicas exigem o mesmo
tratamento : a inflammação lenta do peritoneo o recla-
ma , como a inflammação aguda da pleura , &c.
Estes dois methodos são igualmente applicaveis nas
inflammaçóes exteriores , ou cirúrgicas. Trata-se segun-
do o methodo natural os fleimóes situados em huma
parte , onde a suppuração não arrasta algum perigo : fa-
vorece-se esta terminação pela dieta , e cataplasmas emo-
lientes. Basta dirigir a marcha da natureza , moderan-
do-a quando he excessiva ; estimulando-a quando he vaga-
rosa , respeitando sua tendência , e favorecendo seus es-
for-
ri
forços. O fleimáo tendo o seu assento em hum lugar,
onde a suppuraçáo pôde occasionar huma ruina funesta,
como nas circumferencias do anus; ou em huma par-
te , cuja extructura he tal , que occasiona dores exces-
sivas , como acontece nos panarícios ; e a causa , que o
desenvolve , pôde ser tirada j enciza-se o tumor no mo-
mento mesmo em que começa a apparecer , sem espe-
rar seus progressos ulteriores , faz-se abortar a infiam-
maçáo para prevenir maiores desordens.
Os suecessos nos tratamentos , correspondem á prom-
ptidáo , com que se administráo osseccorros. A sangria
dada no momento, em que a dor, e o escarro de sangue
annunciáo estabelecer-se na peripneumonia o engorgiramen-
to inflammatorio , na época , onde o despedaçamento
dos vazos não he ainda o resultado da errupçáo dos líqui-
dos ; a inflammaçáo se modera sem perigo futuro , a qual
he mortal , se se espera pela desorganização do paranchi-
mi. Do mesmo modo hum fleimáo na margem do anus ,
sendo logo incizado , o tecido cellular, que rodea a extre-
midade inferior do recto , náo vem a ser destruída peia
suppuraçáo , o intestino náo he descuberto ; huma fistula
náo vem a ser a sua consequência , &c.
Assim pois , para nos resumirmos sobre as infiamma-
çóes idiopathicas ; ellas exigem o tratamento debilitante ,
impropriamente chamado antiphlogistico, e deve ser appli-
cado , seguindo dois methodos , natural , ou perturbador ,
segundo o perigo que a inflammaçáo comsigo traz.
II. As inflammaçóes simpathicas ; isto he , depen-
dentes de huma causa remota da parte donde ellas exis-
tem , sáo devidas quasi sempre ao estado saborroso do
estômago , ou bem ao excitamento dos orgáos bilia-
res ; taes sáo as erisipelas , e os furúnculos. He pelos
evacuantes , que se fazem cessar. A administração de
hum vomitório , ou emético em lavaeem , sáo os re-
médios ordinários da erisipela , sendo a applicaçáo
dos tópicos quasi inútil. Os purgantes repetidos des-
troem a disposição gástrica , que parece dar nascimen-
to aos furúnculos. Os mesmos remédios convém em
cer-
12
-certos fluxos do peito , verdadeiramente chamados bi-
liosos , &o
Nas inflammaçóes idioparhicas , o fim da natureza
he evidentemente .saudável 5 ella se oppóe á acçáo de
hum agente nocivo , desenvolvendo huma força vital
mais sensível ; posto que o effeito desta sorte de luta
seja muitas vezes mortal , quando se desenvolve em hu-
ma viscera , com tudo sua evidente utilidade não deve
ser negada. Somente o perigo , que as acompanha,
prova assaz , quanto he grande o erro dos animalistas ,
quando suppóe todas 2s acções vitaes regidas por hum
principio intelligente , encarregado de vigiar a conserva-
ção úo corpo , seja na saúde , seja no progresso das
moléstias. Nas inflammaçóes simpathicas , pelo, contra-
rio , a natureza parec- descuidar-se dos meios de fazer
cessar os embaraços , pois que el!a desenvolve as suas
forças em hum ponto alFastado daquelie , onde reside o
agente , que a opprime.
III. As inflamrnaçóes idiopathicas , e simpathi-
cas se prestão aos methodos racionaes do tratamen-
to. O das inflammaçóes especificas he ao contrario
quasi inteiramente entregue ao emperismo. A experiência
só mostrando as virtudes de certas substancias , ou de
certas praticas , tem ensinado a combater a enfermida-
de venérea pelo mercúrio , e alguns outros remédios ; só
ella tem feito conhecer as vantagens da inoculação , e
as inestimáveis beneficências da vaccina. Estas inflam-
rnaçóes rcclamáo methodos especiaes , e não cedem ,
senão a certos remédios. He por isso que a inílamma-
ção venérea da garganta subsiste , e reincide , se r.os
limitamos a combatella pela sangria , ou evacuantes ,
e não desapparece inteiramente , se não pelo curativo
da svphiles.
As phlegmazias especificas todas dependem da ac-
çáo de cercos princípios contagiosos , susceptíveis de se
misturarem com os nossos líquidos; Com tudo , já mais
o sangue oíFerece qualidades virulentas ; os diversos ví-
rus exercem seus' estragos sobre o systema linfático ,
q[ue
I ">
1
que os absorve. He também sobre este systema que obráô
principalmente os. remédios com que se combatem.O sangue
dos syphiiiticos , dos hydrophobos , dos pestíferos , náo
pôde servir para a inoculação destas moléstias, o que muitos
factos atteodo. A linfa alterada pela mistura dos princípios
heterogéneos , os leva com tudo á massa do sangue , po-
rem bem depressa ahi são alterados , neutralizados , ou
■ destruídos , náo pela rapidez do movimento circulatório ,
nem pela viva agitação do liquido , nem peio choque de
suas moléculas , mas sim pela oxidação , porque passáo
no pulmão , no momento mesmo em que acabáo de ser
misturados com o sangue.
O oxigénio parece ser a substancia mais capaz
de denaturalizar os venenos j a cauterização das fe-
ridas venenosas por meio do fogo , e dos cáusticos,
náo faz senão combinar o oxigénio com o veneno J a
quem embota a actividade. Ôs melhores cáusticos sSo
os que cedem mais fácil , e promptamente huma
grande quantidade deste principio , taes são o muria-
to de mercúrio oxigenado , e o acido nitrico. O aci-
do muriatico oxigenado he o melhor antídoto contra to-
da a espécie de mephitismo , extingue a actividade do
viras syphiiitico , triturando-o com o oxido de mercú-
rio ; o* virus variolico , e vaccihal , expostos ao ar,
perdem suas qualidades contagiosas ; náo se pôde ino-
cular a vaccina , logo que a ponta da lanceta he oxi-
dada. A ventilação he o melhor meio de purificar o
vestuário , de que se tem servido os empestados. Tudo
nos obriga a acreditar que o oxigénio absorvido pela
respiração , corrige , ou anniquilla o virus que a linfa
introduz no systema dos vazos circulatórios. He por te-
rem posto no sangue as diversas alterações dos líquidos ,
que os partidistas 1 eh medicina humoral tem succumbido
nas suas disputas contta os solidistas: por quanto estes-
lhe náo tem sido difficil provar , que o sangue era izento ed
toda a acrimonia , quando os humores linfáticos estavao
evidentemente alterados. Póde-se dizer que os humoris-
tas forâo vencidos por haverem escolhicjp hum mio cam-
po
H
po de batalha. Terminemos esta digressão , e passemos
successivamente ás inflammações gangrenosas.
IV- Nós as temos já distinguido daquellas em
que a morte sobrevem pelo excesso de inflammação ;
porque , como todas podem ser excessivas , todas se
podem terminar pela gangrena. Porem as que ten-
dem a esta terminação , merecem formar huma or-
dem particular , e distincta. A gangrena sobrevem nas
primeiras por excesso das forças : nas de que vamos a
tratar, dependem do excesso de fraqueza; os debilitan-
tes , a sangria , podem só impedir a gangrena no pri-
meiro caso ; náo se previne , senão moderando a inflam-
maçáo ; ao contrario no segundo caso he preciso exci-
talla com a administração dos tónicos , e applicaçáo dos
excitantes. He por isto que no tratamento do anthrax ,
e da pústula maligna , o Cirurgião experimentado se não
deixa seduzir pela apparencia enganadora de huma in-
flammação de vigor; não applica a sangria , mortal em
semelhante caso ; náo cobte o tumor de huma relaxan-
te cataplasma , que náo faria senão augmentar-lhe a
fraqueza ; porém applica os cardíacos os mais enérgicos ,
e topicamente os excitantes , ou mesmo os cáusticos.
Esta causterisação por meio do fogo , do muriato de an-
timonio liquido , ou do acido sulfúreo , he indispensável
no tratamento do carbúnculo , e da pústula maligna.
Os remédios fortificantes , as cataplasmas feitas com
substancias acres, e excitantes náo bastão para acordar
a acção vital entorpecida. He preciso causterizar a par-
te assaltada da inflammação gangrenosa , único meio de
limitar seus estragos. Deve-se sacrificar huma parte pa-
ra a conservação do todo. Tenho muitas vezes sus-
pendido , pela applicaçáo do muriato de antimonio liqui-
quido os progressos da gangrena nos anthrazes da face ,
muito communs no Hospital de S. Luiz , aonde nos
primeiros tempos de minha assistência, ss mandaváo os
enfermos assaltados das affecçóes carbunculosas.
Nestes casos a administração do vinho , dado por
bebida ordinária , os julepos canforados , as bebidas cor-
diacs
«5
diaes devem ser combinadas com a applicaçáo dos cáus-
ticos : deve-se mesmo multiplicar os soccorros , quando
o perigo lie extremo.
Naqueila inflammaçáo , em que o langor das for-
ças circulatórias , he annunciado pela fraqueza do pul-
so , entra na ordem das inflammaçóes gangrenosas ; pois
que são caracterizadas pela co-existencia da adyna-
mia geral , e do excitamento local ; todas reclamáo o
tratamento fortificante. Eu tenho visto a gangrena assal-
tar o membro viril em dois indivíduos atacados de hu-
ma febre adynamica , durante o curso de huma blennor-
ragia. Quando pois a prostração das forças se vem com-
plicar com huma inflammaçáo , qualc.uer que seja o
seu assento , náo se deve temer o seu augmento com a
applicaçáo dos tónicos.
Náo he somente pela fraqueza do pulso , e pela
prostração de forças , que se reconhecem as inflamma-
çóes gangrenosas , taes como , o anthrax , e a pústula
maligna ; o aspecto da parte affectada , as causas , á
influencia das quaes os enfermos tem sido submettidos ,
servem a fazella distinguir das outras inflammaçóes. As-
sim, a cor do carbúnculo hc livida , o rubor ínflam-
matorio , exactamente limitado , náo se dissipa insensi-
velmente hindo do centro para a circumferencia ; na
pústula maligna huma phlictena se forma , a pelle se co-
ra de hum rubor pálido , a inchação parece tanto ede-
matosa , como inflammatoria j em fira a parte affectada
ofTerece hum aspecto cadavérico , que os Latinos tem
exprimido pelo termo de carnes lúridas-.
DA
i6
DA GANGRENA, E DO CANCRO.
."|Q>
JL Assar do estudo da inflammaçáo , ao da gangre-
na , he considerar successi vãmente os dois extremos da
acção vital , e descer , como a natureza , do grão mi is
elevado , onde esta acção possa ser levada , ao termo-
mais? baixo , onde ella he susceptível de descer. Se a
inflammaçáo consiste no augmento das propriedades vi-
taes , a gangrena pôde ser derinida ; a extincção das suas
propriedades ; a abolição dos movimentos orgânicos ; a
morte local da parte que a soíFre. ; Quanto são nume-
rosas as causas capazes de produzilía ! A gangrena não
só succede ás excessivas inflammaçóes , como também
áquellas , onde a reacção geral não he suffíciente : pôde
depender também da debilidade gradual das propriedades ■
vitaes pelos progressos da idade ; de hum vicio orgâni-
co nos instrumentos da circulação , ou da compressão
do-? vazos ; resultar da commoçáo , ou de huma contu-
zão excessiva ; sobrevir á acção destruidora de hum prin-
cfojio interno , ou de hum cáustico applicado aos ór-
gãos : a accumulação , ou privação do calórico , são ain-
da capazes de a produzir.
i.° A gangrena por excesso de acção , sobrevem
ás excessivas in^nmmaçóes : as sangrias, os deb ; litanres ,
tudo o que he òãpaz de moderar a reacção in amma-
toria , deve ser empregado para a prevenir; deve-se te-
mer a gangrena nos casos , onde a causa que produz a
in^ammaçáo , determina por sua presença hum excita-
mento , que se augmenta : he por isto que a gangrena
sobrevem nos abséssos de matérias feçaes e ourinosos ,
quando a quantidade das matérias fecaes, ou ourinas infiltra-
das no tecido cdlular se augmenta com excesso ; o mes-
mo acontece nas fracturas com esquirolas ; os apertos
produzidos pela reacção elástica das apenevrozes , con-
tri- '
'7
tribuem para isso : entáo a evacuação da causa se faz
indispensável , e deve preceder á applicaçáo dos meios
antiphlogisticos.
2--° A gangrena por falta de acção termina todas
as inflammações , onde a reacção geral não está em
correspondência com a reacção local : sobrevem não so-
mente a toda a inflammaçáo essencialmente gangreno-
sa , como á pústula maligna , e o anthrax , porém ain*
da em todas que â adynamia vem complicar , quan-
do o abatimento he excessivo. Os tónicos , os for-
tificantes são os únicos remédios , que podem prevenir ,
e limitar seus estragos.
3. A gangrena senil assemelha-se á por fal-
ta de acção , em que ella depende do abatimento
gradual , depois da extincçáo total das propriedades vi-
taes , consumidas por hum longo exercício , e porque
reclama a applicaçáo dos tónicos ; porém differen-
ça-se , em que não he muitas vezes precedida se não
por huma sensação de dor ardente ; a parte que a
soffre não oíFerece tumefacção alguma , e a sua cór he
algumas vezes rubro-pálida e lívida. Além de que cons-
tantemente toca as partes as mais affastadas do centro
circulatório , estabelece-se nos dedos dos pés , e raras
vezes ataca os dedos das mãos , onde a vida he mais
enérgica.
4-° Aproxima-se da gangrena senil , a que de-
pende de hum vicio orgânico nos instrumentos da circu-
culação , como a dilatação do ventrículo esquerdo do
eoração , a ossificaçao das principaes artérias. Huma
gangrena espontânea sobrevem aos dedos , ou mesmo ao
pé de hum enfermo ; os Cirurgiões de hum grande
Hospital lhe cortão a perna , sem esperar que os pro-
gressos da enfermidade sejão limitados, e que hum cir-
culo inflammatorio annuncie sua terminação. Isto era
faltar ás regras da arte as mais úteis , e melhor conhe-
cidas. (1)
B. A
(1) Se os Cirurgiões dos grandes Hospitaes de França
i8
A gangrena assalta o coto como se deveria prever i
o enfermo morre , e a abertura cie seu corpo faz ver
huma dilatação considerável no ventrículo esquerdo. Es-
ta observação se tem muitas vezes repetido , de sorte
que se pôde olhar o aneurisma do coraçío como huma
causa assaz frequente da gangrena. Concebe-se facilmen-
te de que modo a debilidade da cavidade , cujas con-
tracções impellem o sangue nas diversas partes do cor-
po , pôde produzir este accidente. O mesmo acontece
nas ossificações das principaes artérias ; nos aneurismas
antigos quando a maça da febrina , formada no sac-
co he táo grande , que a continuidade do canal se
acha quasi inteiramente interceptada ; pôde a gan-
grena também sobrevir á laqueaçáo de huma arté-
ria , quando as collateraes não Bastão ao restabelecimen-
to da circulação ; e ultimamente se pede desenvolver
em consequência de huma compressão , que impessa o
curso do" sangue , e a distribuição dos humores neces-
sários á nutrição das partes.
5. A ' gangrena dependente da viva cotvmoção
imprimida nos nossos órgãos , he precedida peio estu-
^ l por;
procedião deste modo , não acontecia o mesmo aos Cirur-
giões , que dirigião o tratamento dos enfermos nas enferma-
rias do Hospital Real de S. José em Lisboa : era huma re-
gra geral o nunca fazer-se a mutilação de hum membro ca-
hido em mortificação total , sem que se manifestasse o cir-
culo inflammatorio, que distingue as partes vivas das mortas,-
Na enfermaria de S. Lourenço do sobredito Hospital, houve
hum caso de huma gangrena sobrevinda espontaneamente á
perna de hum alfaiate , que julgando-se ser necessária a mu-
tilação, esta se não praticou, porque o sobredito circulo se-
não estabelecia, e só appareceo , quando se lhe fe» a appli-
caçao do cáustico de papel logo acima da mortificação : foi
então , que a mutilação se operou , porém passados dias o
enfermo suecumbio. No Hospital da Misericórdia desta Corte ,
em huma conferencia que tive com o Cirurgião Lu/z de Santa
Anna Gomes, e outros facultativos sobre hum caso de espha-
celo vi que estavão possuidos desta mesma doutrina.
Nota do Traductor.
lo
por j isto he , pela perda completa da excitabilidade da
parte affectada. (O A que se estabelece muito facilmente
nos membros infiltrados , he vizivelmente devida á
extrema relaxação dos .sólidos. (2)
6.° A gangrena por huma contuzão excessiva , he
o resultado necessário da desorganisaçáo das partes , por-
que a vida não pôde subsistir quando seus instrumentos
são destruídos. (3)
7. A gangrena pela acção de hum principio des-
truidor , seja interna , ou externamente applicado. j Por-
que são tocados da morte os dedos dos pés , quando
se faz uso de certos alimentos , como he o páo de cen-
teio ? < Donde depende a gangrena que se apodera dos
-bubóes pesrilentes , nesta variedade de pestes ; em que
a reacção das forças circulatórias he evidentemente sen-
sível , senáo de hum principio , que se depõe sobre
certos órgãos , e consome com sua actividade destruido-
ra a excitabilidade delles , determinando-lhes a gangrena?
8.° A gangrena por queimadura , seja que re-
sulte da acção dos cáusticos , ou que seja produzida
pelo fogo j he sempre devida á desorganização das car-
nes , pela sua combinação com o oxigénio , e o desen-
volvimento de huma grande quantidade de calórico. Es-
te principio he hum poderoso excitante para todas as
partes aonde se applica , se o calórico ne moderado ,
não resulta mais que huma branda reacção , mais favo-
rável que destruidora no estado da perfeita saúde ; porém
sendo muito abundante tende a penetrar os nossos órgãos ,
eaugmentar sua temperatura, porém elles resistem á hv
troducção de hum calor excedente incompatível com a
vida. Desta reacção , nasce huma infiammação tanto
mais profunda , e mais viva quanto o corpo quente,
tendo huma maior capacidade de calórico , lho de-
posita. He assim que os metaes derretidos determinão
B ii le-
(1) Vede Ordem I. Género V.
(2) Vede Nosographie Chirurgicale Tom. III. Classe VII.
($) Vede Ordem I. Género IV".
ÍO
lézóes rftais graves que os olcos ferventes ; eque, es-
tes últimos queimáo mais profundamente , do que a agoa
cm eboiiçáo.
Porem nem sempre a queimadura vai até determi-
nar a gangrena ; o seu effeito mais ordinário he a in-
flammaçáo ; a desorganizçáo dos tecidos he o seu ulti-
mo termo. Estas inflammaçóes por queimadura sáo sem-
pre mui dolorosas , porque atacáo o orgáo cutâneo ,
parte mui sensível ; termináo-se pela resolução , ou
por ulceração , segundo a intensidade da affecçáo.
Em fim nos casos de combustão completa dos tecidos
submettidos á acção do calórico , a destruição não exis-
te , senáo nas partes as mais superficiaes , e que pr.mei-
ro tem supportado a introducçáo mui rápida deste prin-
cipio ; por baixo fica existindo sempre bum excitamen-
to muito vivo , ■ e de que a inílammaçáo deve ser a
consequência.
Do mesmo modo que a queimadura offèrece três
gráos •, no seu tratamento se exigem três modificações
essenciaes. i.° A prolongada applicaçáo dos refrigeran-
tes , e dos repercussivos , basta , quando a queimadura
he ligeira e superficial. Deste modo he que se faz abor-
tar de alguma sorte a reacção inflammatoria em hum
membro sobre o qual o óleo , ou agoa fervendo cahio
mergulhando por algumas horas em hum banho de gel-
io. 2. Quando a pesar da applicaçáo deste meio a in-
iíammaçáo se desenvolve , trata-se então por todos os
meios antiphlogisticos» 3. Em fim as copiosas sangras,
a dieta restricta , bebidas refrigerantes , applicaçóes emo-
lientes , devem ser empregadas em todos os casos de
queimaduras extensas , ou profundas. As partes reduzi-
das em escaras se despegáo dos órgãos , subjacentes pe-
lo meio da suppuração. Sua queda os descobre , feri-
das enormes são a sua consequência : a cicatrização
delias , he tanto mais diffieil , quanto a destruição da
pelle. he mais extensa ; o abatimento dos lábios , e os
seus alongamentos para o centro da ferida são quasi
nulos ; a cicatriz tem sempre huma largura considerável ,
e por consequência pouca solidez. Hu-
2r
• Huma rapariga de vinte e oito annos estando dor-
mindo ao lado da chaminé , no inverno do anno XI. a
chamma se lhe ateou nos vestidos , è no momento da
maior lavareda he que acordou : o sobresalto com que
esperta ., pela dor que lhe causava a queimadura , o
estar so , e sem quem a soccorra , tudo coopera para que
com presteza se náo possa desembaraçar dos vestidos
abrazados. Toda a superEcie do corpo foi queimada. Ac-
codem os visinhos , c a conduzem neste estado verda-
deiramente deplorável ao Hospital de S. Luiz. O Cirur-
gião de semana a envolveo em pannos embebidos em
huma dissolução de acetito de chumbo em agoa fria ;
houve o cuidado de os ter constantemente humedecidos
com o mesmo licor , e se lhe praticou huma larga san-
gria. Com tudo, náo tardou a manifestar-se a inchação
que se lhe distendeo por todo o systema cutâneo ; as
fíictenas se augmentárão , o epiderme se despegou quasi in-
teiro ; o das máos , e pés se assemelhava a luvas . e botins.
Quando o dermes foi descuberto se desenvolverão acer-
bas dores ; as porções queimadas ; e reduzidas em esca-
ras , se distinguiáo das que erão simplesmente in-
ilammadas. Cobrio-se-lhe todo o corpo de pannos unta-
dos de ceroto : envolveo-se em compressas molhadas em
cozimentos emolientes ; porém ao quinto dia a enferma
succumbio á violência das dores , e da inflammação.
Convém mostrar hum erro todos os dias commet-
tido^ no tratamento *das queimaduras. Muitos práticos
sepárão o epidermes elevado pela sorosidade das flicte-
nas , pondo assim o chovion descuberto , que causa ter-
ríveis dores. Basta o dar sahida á sorosidade , e deixar
o epidermes despegado , até que huma nova cobertura
se tenha formado , e ponha ao abrigo as papillas ner-
vosas da pelle.
A emissão dos líquidos para a superfície, do cor-
po , he o único meio pelo qual a natureza pôde repel-
lir o calórico ; consome pela transpiração augmentada
a porção deste principio que tende a introduzir-se. Po-
rém sendo a sua chegada totalmente precipitada , a
quarl-
22
quantidade muito excessiva , que sua evaporizaçáo he
impossível , então se formão estas collecçóes que despegáo
o epidermes , e o eleváo depois de ter despedaçado esta
multidão de entrelaçamentos cellulosos , e vasculares , que
o unem á pelle. A evacuação do humor das flictenas he
útil , não para prevenir a corrozão ulcerosa do dermes , da
que este liquido soroso he incapaz , mas sim para em-
baraçar que resultem feridas crustosas do seu espessa-
mento , e para favorecer a formação do vovó epider-
mes.
9. A subtracção do calórico não he menos per-
niciosa aos nossos órgãos , que a accumnlaçáo do mes-
mo principio ; e , o que não surprehenderá os que
conhecem as leis da vida , estas duas causas oppostas
produzem quasi 03 mesmos effeitos. Tanto a congela-
ção , como a queimadura , offerecem diversos gráos des-
de a inflammação dos tecidos esfriados até á morte da-
quelles , nos quaes hum rigoroso frio tem suspendido
o exercício das propriedades vitaes. Os dois primeiros
gráos da congelação determinão as frieiras , com , ou sem
ulceração. (1) Não trataremos aqui senão do terceiro
grão ; isto he , da verdadeira congelação de nossos ór-
gãos. Depois de ter lutado alguns tempos contra a in-
fluencia destructiva de hum frio excessivo , o homem
fatigado cessa de reobrar , e goza das doçuras enga-
nadoras do somno , ( 2 ) as propriedades vitaes são
en-
(1) As frieiras, ou inchação inflammaíoria dos dedos dos
pés , e mãos occasionadas pelo frio não se observão , se não
nas crianças , e nos moços , que são de numa fraca consti-
tuição , assim como nas mulheres. As pessoas robustas , os
adultos, e os velhos raramente são affectados delias. Nosoph.
Chir. Tom. I. pag. 411»
(2) He por hum augmento de actividade da parte dos
órgãos , que augmentando-lhe a somma das combinações ,
produz o desenvolvimento do calórico , que nós chegamos a
compensar este principio necessário ao entretenimento da nossa
entorpecidas , os movimentos orgânicos cessão , as combi-
nações nutritivas , donde nasce o desenvolvimento do calor
interno , não se fazem já mais. A suspensão das pro-
priedades vitaes faz entrar o corpo inteiramente debaixo
do império das leis fysicas ; então o equilíbrio da tem-
peratura se estabelece entre elle , e os corpos , que o
rodeáo ; a congelação dos líquidos se eíFectua. Observai
que este effeito não he immediato: os líquidos não se
solidificão , senão no momento , onde a extincçáo das
propriedades vitaes he completa ; em quanto o movi-
mento vital subsiste , a congelação he embaraçada.
No inverno do anno segundo muitos corpos do
exercito dos Alpes bycacavão (i) sobre o cume das
msntanhas , nas visinhanças do Monte-Cénis , e do de
S. Bernardo, os Hospitaes receberão huma grande par-
te de indivíduos , cujos pés tinhão gelado. O maior nú-
mero era surprendido , quando acordava , de sentir o
entorpecimento o mais absoluto nestas partes , tornadas
insensíveis durante o somno ; outros tinhão sentido os
progressos do entorpecimento , e tinhão dado em vão
muitos movimentos para o prevenir. A tezura succedia.
a perda do calórico , e das acções vitaes.
Hum marinheiro foi lançado em hum rochedo no
Báltico , na força do inverno , o qual he mui in-
tenso nestes paizes Septentrionaes ; o frio o accommet-
teo : esgotado pelo trabajho , e pela necessidade cede
ao somno ; hum navio o recolheo sem movimento , e
sem
existência, j Porque acontece ser a digestão mais activa
( Hiane vero ventres sunt calldiores Hipp. ) o pulso mais
ibrte , e mais frequente, a energia vital maior? He que o
calor nasce das mesmas origens , produz-se pelo mesmo me-
canismo , que a nutrição dos órgãos ; e porque seu desenvol-
vimento augmenta , he preciso que as secreções , a nutrição ,
ein huma palavra, todas as funeçues vitaes soffrão hum aug-
mento proporcionado. Elem. de Physiol. Tom. I. pag. 418.
Nota do Teaductor.
(1) Termo militar , que exprime dormir hum exercito
sobre as armas. Nota do Traductor.
Tl
24
sem vida , tendo o corpo tezo , e gelado ; o mesmo co-
ração tinha cessado de obrar; a região prccordial estava
sem calor. O s felizes cuidados , pelos cuaes o chama-
rão á vida , podem ser citados como numa regra de
-conducta , que se deve ter em todos os casos desta es-
pécie ; foi primeito no centro , que se procurou o acor-
dar as propriedades vitaes entorpecidas ; evitou-se expor
o corpo ao calor ; deixou-se em huma atmosfera , cuja
temperatura era abaixo de zero ; restabeleceo-se-lhe a acção
<lo coração por fricções feitas sobre a região desta vís-
cera ; estendèrão-se ás outras partes do corpo , á propor-
ção ., que a circulação despertada chamava ahi a vida ;
acabou-se pelas extremidades a.s mais afíàstadas do cen-
tro , que por consequência deviáo sentir mais tarde a
influencia favorável destas irradiacçóes. He pois , des-
pertando a acção do coração , dirigindo , e favorecendo
a tornada da circulação geral ; isto he , empregando as
mesmas forças ^da economia, que se alcança o dissipar
a asphyxia , que a acção do frio occasiona. Reanimão-
se suas propriedades vitaes , e o exercício faz cessar a
congelação , resultado de sua interrupção.
Deve-se seguir o mesmo nas congelações parciaes ;
esquecei-vos do adagio mui conhecido , e mui falso ,
que todo o mal se cura pela applicação do remédio de
natureza opposto , não deveis expor os pés gelados a
acção do calor , porém augm,entai pelos cordiaes as for-
ças circulatórias enfraquecidas ; no mesmo tempo rea-
nimai as propriedades vitaes entorpecidas , com fricções
fetas com neve , ou com pannos molhados em agoa
fria.
O calor actuai applicado ao membro gelado o pe-
netra sem obstáculo , por quanto he pelo exercicio das
propriedades vitaes neste estado suspendidas , que nossos
t)r?áos repellem o calórico excedente, ou combatem a
refrigeração ; em summa o calor liquirkando os humores
solidificados pela congelação, lhes dá huma força de es-
pançáo considerável , os vazos se rompem , os tecidos se
despedacão ; a desorganização nasce da rotura dos sólidos ,
e
25
c da extravazação dos suecos , a morte he certa. No mesmo
tempo que os humores teriáo retomado sua fluidez , sem que
resultasse huma alteração na extruetura do órgão , ca-
ri iria em gangrena , se fosse abandonado ás suas únicas
forças , e se o coração não fizesse ahi renascer , ou en-
treter a vida , enviando-lhe o fluido indispensável a seu
exercício. Assim pois no tempo mesmo , onde hum só
membro he gelado , faz-se necessário , que nelle se res-
tabeleça o calor , começando pelo ponto o mais visi-
nho do centro circulatório , e acabando pela extremida-
de a mais afFastada.
A gangrena não existe nas partes geladas , pois
que ha a possibilidade de as retornar á vida ; somente
alli estio dispostas eminentemente a ella. He preciso
em fim distinguir a gangrena , ou a extineçáo totai das
propriedades vitaes em huma parte ; da podridão , ou
putrefacçáo local , consequência inevitável desta perda
das propriedades. O orgáo gangrenado entra debaixo do
império absoluto das aífinidades chymicas , e se decom-
põe tanto mais rapidamente , quanto são mais voláteis
os seus elementos , e mais dessemelhantes.
Tratando das variedades da gangrena , determinadas
todas por suas causas, nós temos omittido de propósito,
a distineçáo da gangrena secca , e da gangrena húmi-
da , á qual os authores tem unido muita importância:
Não existe separação bem mostrada entre estes dois es-
tados da parte gangrenada , he mais ou menos secca ,
mais ou menos húmida , segundo a quantidade dos sue-
cos que ihe afluem : assim desde a necrezes , verdadei-
ra gangrena secca do tecido ósseo , até á gangrena do
tecido cellular do escroto , e do perineo , se encontra a
gangrena senil , que tocando os corpos exhaustos de
suecos , os dedos das mãos , ou os dos pés descarnados ,
e quasi inteiramente reduzidos a seus elementos sólidos,
he seguida por huma putrefacçáo vagarosa a se estabe-
lecer ; em quanto que os Jambos do tecido cellular
gangrenados em huma pessoa muito gorda , se decom-
põe, e liquificáo com rapidez pelo movimento putrefa-
cti-
26
crivo. He por isto que de dois cadáveres , aquelle de
hum homem magro , que tem sido reduzido ao maras-
me por huma longa enfermidade , gasta muito tempo
a se putrificar, em quanto que aquelle de hum outro indi-
viduo , que a morte surprendeo no momento , que cheio
de suecos , gozava huma saúde vigorosa , e excessiva
gordura , entra em putrefacçáo em vinte e quatro ho-
ras ; he mais lenta , ou mais prompta a se estabe-
lecer, mas sempre he patrefacção. Todos os Anatho-
rnicos tem observado que se conserváo muito tempo
nos amfitheatros de dissecção os cadáveres diseccados
em consequência de huma longa abstinência , em quanto
que aquelles dos justiçados , e de pessoas mortas em
duelio , ou mortas de huma queda , exhalão bem de-
pressa hum cheiro infectador. Todos os corpos organi-
zados appresentáo a mesma difFerença. He por esta ra-
zão que os fruetos , cuja polpa he quebradiça , se con-
serváo muito tempo sem se alterarem ; em quanto que
os fruetos liquifactivos ; isto he , nos que a pro-
porção dos líquidos com os sólidos he maior , apodre-
cem ao fim de alguns dias. Pela mesma causa , hum
principio de podridão torna certos fruetos melhores, em
quanto que os fruetos aquozos , logo que são apodre-
cidos tem hum gosto insupportavel. Applicação fysica
do axioma moral corruptio optimi péssima.
Depois de ter distinguido a gangrena da podridão ;
examinemos os seus flenomenos: muitos são ossinaes,
que a indicáo ; a falta de excitabilidade absoluta da
parte , a alteração da sua cor , a diminuição da sua
temperatura , em fim o cheiro particular , que exhal-
la. As porções tocadas da gangrena , podem ser impu-
nemente expedaçadas , o enfermo não sente dor alguma ,
sua cor primeiramente lívida , bem depressa passa a
hum pardo esemo ; o murchamento , e o abatimento
dos tecidos , annuncião muito mais a mortificação , do
que a cor do cinzento azulado. Em fim hum cheiro sui
generis não tarda a desenvolver-se dás partes gangrena-
das : he totalmente o característico , que a seu favor , e
por
27
por este único symptoma , se descobre a existência da
gangrena em huma ferida , cjue náo está descoberta.
Annuncia de longe este estado , nas longas enfermarias
de nossos Hospitaes. j Qual he o Cirurgião, que quan-
do entra pela manhã na enfermaria náo he tocado do
cheiro da gangrena , se ella ahi existe i O cheiro indi-
ca a podridão já adiantada no órgão privado da vida.
Náo nos demorareremos na distincçáo puramen-
te escolástica da gangrena , e do sphassello. Empre-
ga-se mais particularmente esze ultimo termo , para ex-
primir huma gangrena profunda , ou que comprehende
toda a espessura do membro.
A putrefacçáo gangrenosa náo difFere essencialmen-
te da que decompõe os cadáveres dos indivíduos , qne
hum accidente os privou da vida no momento , em que
os suecos abundaváo no tecido de seus orgáos. A gan-
grena raramente he huma affecção saudável , e só o
poderá ser nos casos , onde , produzida pela accumnla-
çáo de hum principio interno destruidor , consome sua
actividade , destruindo huma parte pouco importante á
vida , e que náo ameaça os orgáos internos. A destrui-
ção gangrenosa he sempre temível , e frequentemente
mortal.
Favorece-se somente nas inflammaçóes essencial-
mente gangrenosas, taes, como a pústula maligna , o
anthrax , e também nas affecçôes pestilentes , onde he
útil fixar pelos cáusticos o principio da enfermidade ^
nas glândulas ou bubôes , sobre quem esgota sua acti-
vidade malfazeja. Fora destas circunstancias , he pre-
ciso sempre procurar o combatella , atacando suas cau-
sas , como o dissemos nas suas enumerações.
Assim pois , para resumir tudo que he relativo ao
estado gangrenoso , directamente opposto ao estado in-
flammatorio ; algumas vezes he determinado pelo de-
senvolvimento excessivo da acção vital ; porém depen-
de mais frequentemente da falta desta acção ; algumas
vezes também he devido a influencia destruidora de hum
principio particnlar. Donde se segue, que se o trata-
men »
28
mento antiphlogistico raras vezes pôde prevenir a mor-
tificação de nossas partes , os fortificantes , e os tonicos-
sáo quasi sempre os remédios mais efficazes.
He preciso limitar os estragos da gangrena huma
vez qne esteja decidida , e reconhecida pelos symptomas
descritos. Isto se obtém insistindo na applicaçáo dos to-
ncos tanto interna , como externamente. Seria vá a
applicaçáo dos tópicos os mais excitantes sobre o mem-
bro sphasselado ; rodos os remédios obráo pelo inter-
médio das propriedades vitaes , náo podendo servir de
utilidade alguma sobre huma parte , cuja vida está com-
pletamente extincta. Nas simples gangrenas superficiaes
os tópicos são inúteis , náo sendo applicados sobre par-
tes visínhas a mortificação , ou se, para acordar a acção
dos órgãos subjacentes , senão praticão algumas incizóes
na espessura das escaras. Então a applicaçáo dos pós
da quina , e das plantas aromáticas deseccadis , embe.
bendo-se dos suecos pútridos , ao mesmo tempo que
excitáo os sólidos , favorecem a deterzáo , e provocáo
a separação das escaras ; a agoa ardente canforada , o
unguento de storax , os fios seccos , e os pós absor-
ventes devem ser empregados nos curativos.
Quando a gangrena affècta toda a espessura do mem-
bro , he preciso antes de decidir a amputação, esperar
que ella tenha limitado os seus estragos ; diversos si-
naes o annuuciáo ; o pulso se levanta , as forças se rea-
nimão , huma vermelhidão viva traça o circulo inrlam-
matorio , verdadeiro limite entre o vivo , e o morto.
Distingue-se facilmente esta vermelhidão , frueto de hu-
ma reacção saudável , da cor de roza pálida , e lívi-
da precursora da destruição. Se se mutila antes* da
existência do eirculo inflammatorio , corre-se o risco de
ver a gangrena continuar seus progressos , e apoderar-se
do coto. Deve-se igualmente esperar que esteja bem de-
cidida ; isto he, que a vida esteja completamente ex-
tincta no -membro ; a este respeito he bom o observar-
se , que os sinaes da morte local são táo duvidosos ,
como os da morte geral , e . da mesma forma que a
fer-
29
fermentação séptica , a lividez das carnes , e o fétiao
cadavérico , que exhalão ,' sáo os únicos symptomas de
huma morte certa : estes sinaes mostráo decididamente ,
que o membro gangrenado já mais he susceptível de ser
chamado á vida. (i)
.Cancro. A gangrena , e o Cancro tem sinaes de
semelhança , que talvez os antigos tinháo já advertido ;
porque muitos tem indifTerentemente chamado com estes
dois nomes a morte dos órgãos. Com effeito , a parte
cancerosa , assim como aquella , que a gangrena tem to-
cado , oíFerece a extincçáo absoluta das propriedades vi-
taes i porém a pesar desta analogia essencial , resta huma
differença característica ; a organização se conserva na
parte gangrenada , até que a putrefacçáo se apodera del-
ia para a destruir ; em quanto que no cancro existe
sempre a desorganização completa do tecido affectado ;
he o sinal pathognomonico , ou certo da enfermidade.
Os Pathologistas terião concebido mais justas ideas
do cancro , se tivessem indagado antes a natureza delle
nos desarranjamentos orgânicos , que occasiona , do que
nos symptomas , pelos quaes manifesta a sua existência.
Todos os nossos órgãos , sem excepção , são susceptíveis
da afFecção cancerosa ; qualquer que seja o assento do
cancro , a inspecção anathomica appresenta sempre o
mesmo género de alteração ; sempre a parte afFectada
©frerece huma massa cinzenta de huma consistência tou-
cinhosa , e homogénea ; os sólidos espessados se con-
fundem totalmente com os líquidos , que he impossível
distinguillos. Quando esta desorganização completa , ou
cancerosa sobrevem ; hum movimento interno fermenta-
tivo se apodera da massa affectada , que por gráos se
amollece , e se fluidifica. Neste estado , o orgÁo enfer-
mo pôde ser considerado como huma espécie de cor-
po estranho ; cuja presença no meio das partes vivas
determina a in^ammaçáo.
(i) VedeNosog cie Riche. Tom. IH. Historia dos Aneu-
rismas , e das amputações.
3*
O cancro ordinariamente tem o seu assento nos ór-
gãos glandulosos , no peito , por exemplo ; o tumor pri-
meiro indolente, e no qual as dores senão tem feito sen-
tir , senão no momento , onde a dissolução cancerosa
sobrevem ; inflamma-se , a pelle se ulcera, e a natu-
reza se esforça por separar a parte desorganizada das
cjue tem conservado a organização , e a vida. Es-
tes esforços , quasi sempre insufficientes , são algumas
vezes felizes. Huma mulher de quarenta e oito annos ,
pouco mais , ou menos de huma constituição forte , ti-
nha vindo ao Hospital de S. Luiz com hum engorgita-
mento canceroso na mama direita. A massa mui dura
se amollece, dores lancinantes annuncião sua decomposi-
ção pútrida ; huma inflammação violenta se apodera da
pelle do peito , e todo o tecido cellular que o cerca ; a
gangrena foi a consequência disto. Toda a massa engor-
gitada se despegou com a escara enorme , que resultou
da mortificação ; huma larga ulcera , e de hum bom as-
pecto , succedeo a esta perda de substancia ; obteve-se a
cicatrização em menos de dois mezes.
As mais das vezes o niovimento" inflammatorio que
a natureza suscita á roda da massa cancerosa não pro-
duz o bom êxito de separar as partes desorganizadas ,
das que ainda estão vivas , a pelle se rompe no apse do
tumor, hum ichor pútrido corre delle; he a substancia
do mesmo órgão canceroso , liquificada pelo movimento
putrefactivo. O producto desta putrefacção interna ef-
fectuado nomeio das partes ainda vivas, tem qualidades
particulares, e nocivas; excita tudo, que toca, e deter-
mina huma inflammação de má natureza : os lábios da
ulcera sevoltão, e isto lhe dá hum aspecto horrendo ; as
vêas se tornão varicosas , a matéria absorvida produz o en-
gogitamento das glândulas linfáticas situadas perto ; além
disto , infecta a massa inteira dos humores , e produz
esta diathese cancerosa geral , tão fácil a reconhecer ,
não somente por ter todos os symptomas da febre ética ,
taes como a acceleraçáo habitual do pulso , o calor da
palma das mãos , e do rosto 3 a magreza progressiva ,
os
«s suores das partes do corpo existentes acima do dia-
fragma , a diarrèa , em fiiu o esgotamento completo das
forças com a magreza extrema , porém ainda por ter cer-
tos sinaes. distinctivos , como numa cor lívida , e a
chumbada da pelle , huma pequena tosse secca , com o
sentimento de hum excitamento incómmodo posterior ao
externo.
Nos cancros das glândulas , a ulceração cancerosa
segue a desorganização do orgáo afFectado ; nas carci-
nomatosas ao contrario , a desorganização he a conse-
quência da inflammação ulcerosa. He por isto que na
dissecção do rosto em indivíduos mortos com cancros
corrossivos da face se nora o endurecimento , e a de-
sorganização começada nas partes , que formão o fun-
do , e os lábios da ulceração ; acontece o mesmo nos
scirros , e cancros do útero. O Hospital de S. Luiz ten-
do-nos fornecido numerosas occasióes de os observar
melhor , do que senão tem feito até aqui , temos
traçado huma historia mais circunstanciada tratando das
enfermidades do apparelho genital da mulher. Ver-se-ha
ahi como os praseres do amor prematuros , o aborto
tornado tão familiar. pelas imprudências de nossos cos-
tumes , a extrema sensibilidade do útero , a mesma es-
terilidade , que depende frequentemente deste excesso de
excitabilidade , as enfermidades venéreas tão communs
hoje , o uso immoderado de injecções excitantes , e re-
percmsivas , &c. determináo por gráos o endurecimento
do útero , depois a decomposição de seu tecido , decom-
posição tanto mais fácil , quanto no estado de vacuida-
de os lineamentos de sua organização são difficeis a
desenvolver , e que appresentão hnm tecido quasi homo-
géneo. De quarenta esete mulheres aírectadas deste mal
rerrivel , "onze tinháo gozado do commercio dos ho-
mens antes da puberdade , sete na época desta revolução
critica ; o maior número tinha sido estéril , outras ti-
nháo soffrido muitos abortos , e quasi todas violentas
paixões.
O cancro consiste na desorganização essencialmen-
he
te completa do tecido affectado , qualquer, que seja a
parte , que elle ataca. A semelhança de todos os cancros
he tal , que seria impossível o distinguir , se huma por-
ção tirada da massa cancerosa , pertenceo ao cérebro ,
aos testículos , ás mamas , aos ossos , ou á pelle } o
tecido primitivo do órgão desapparece inteiramente , em
quanto que a differença da extructura modifica outras
affecçóes , o cancro torna semelhantes e s tecidos menos
análogos, (i) Os órgãos de hum tecido lynfatico são os
mais expostos ao cancro pela fraqueza de sua extructu-
ra ; he por isso que as glândulas postas na passagem
dos absorventes , as mamas , e os testículos são partiular-
mente sujeitos a elle. Seguem-se depois outras partes ,
nas quaes hnma extrema excitabilidade se acha reunida
a huma textura delicada ; taes são o útero , a pelle do
rosro , e certas porções das membranas mucosas.
Em fim o cancro he sempre precedido pelo endu-
recimento scirroso do órgão ; as glândulas iynfaticas , en-
chidas pelos suecos espessados , podem permanecer mui-
to tempo neste estado de obstrucçáo caracterizado pela
atonia completa , e dilatação extrema dos vazos que
enchem a matéria accumulada, e endurecida. Não sendo
acompanhada ainda de dor a enfermidade ; neste penedo
tem recebido diversos nomes, como o de scirro , de can-
cro oceulto , ou de cancro benigno. O que dizemos das
glândulas Iynfaticas se applica igualmente ás mamas , e
aos testículos ; com tudo hum movimento interno nasce
na massa engorgitada , e a decompõe , dores lancinan-
tes
(i) Depois da publicação destas idéas sobre o cancro na
segunda edição des Noveatix Elemens de Phisiologie no anno
X os Authores de muitas Memorias , Notas , Dissertações ,
Considerações, Golpes de vista, Reflexões, Ensaios, Ob-
servações, &c. tem feito delias uso, sem 1 lie indicar a origem.
Devo com tudo exceptuar o Doutor Bordel , cuja excel-
lente these inaugural sobre o cancro das mammas tem me-
recido o ser citada pelo Professor Pinél na sua. Nosog. Phi-
losofica.
tes se desenvolvem annunciando a transformação (k
enfermidade , e a desorganização cancerosa do tecido.
Nenhum remédio pode corrigir a desordem : he então
que se faz indispensável que huma operação cirúrgica
desembarace a economia de huma parte na qual a des-
organisaçáo está destruída com a vida.
A extirpação das partes cancerosas he tanto mais
urgente quanto mais depressa os lymphaticos tem ab-
sorvido o ichor pútrido , que resulta da d ssoluçáo do
órgão , por quanto a sua mistura com os humores lym-
phaticos infecta toda a massa. Esta diathese cancert sa
rira toda a esperança da melhora. Nasce , como se vè ,
do vicio local , sendo devida á reabsorção da matera
formada no cancro ; e não presiste a esta affecção. Tem
sido hum erro ter hum grande numero de authores ac-
cusado o vicio canceroso á formaçío dos cancros pri-
mitivos.
A decomposição cancerosa não segue- sempre a obs-
trucçáo , ou mesmo a desorganisação dos tecidos. Te-
nho visto enfartes mamários , os mais duros e os mais
dolorosos , dissolverem-se pela suppuraçáo , em raparigas
de dezoito a vinte annos ; igualmente tenho observado
velhas decrépitas e emmagrecidas pelos progressos da
idade , trazerem muito tempo , sem perigo , cancros nas
mamas ; existirem muito tempo duros e indolentes ;
não se ulcerarem , senão mui tarde , poucos sucos cor»
rerem delles , e constantemente ter quasi sempre bom
exito a sua extirpação. He pois entre estes dois extre-
mos , a mocidade , e a velhice , que a desorganisação
cancerosa he mais a temer ; e he na época da cessação
das regras, que as mulheres são sobre tudo ameaçadas
delles. As glândulas escrophulozas se dissolvem , e sua
substancia corre debaixo da forma de hum puz espesso,
sem que esta destruição espontânea tome ao menos nas
pessoas moças o caracter canceroso ; porque , tenho
observado no hospital de S. Luiz , que muitas vezes os
engorgiramentos escrophulosos , nos adultos , oíFerecem
esta degeneração. < Deve-se pois considerar huma glandu-*
• *4
Ia escrophulosa onde a vida he extincta pelo excesso
da obstrução, como huma parte gangrenada? e se ap-
proxiraa destas affecçóes , o forunculo , no qual huma
porção do tecido cellular ( o borbulbão ) he tocado da
morte , e deve ser necessariamente separado pela suppu-
raçáo , que nasce á roda delle , e algumas outras gan-
grenas locaes e espontâneas , não terão a prova da ana-
logia existente entre a gangrena e o cancro ? < A appro*
ximação destas duas affecçóes , ambas caracterizadas
pela extincçáo das propriedades viiaes no tecido affec-
tado, que ambas reclamaváo a separação das partes
que atacáo , servirá isto a dar as mais justas idéas sobre
a sua natureza?
No piogresso destas idéas geraes sobre a exaltação
e a extincção das propriedades vitaes , conviria talvez
tra r ar de hum modo igualmente geral e abstrato do en-
fraquecimento, edas aberrações destas mesmas proprie-
dades. Todas as suas lezóes podem , como o temos
dito , trazer-se a estes quatro modos geraes : em todas
as enfermidades, que constituem essencialmente o des-
arranjamento destas propriedades , são augmentadas , di-
minuídas , extinctas , ou pervertidas ; há augmento , di-
minuição , abolição , ou perturbação em seu exercício.
O estudo das aberrações de que são susceptíveis , con-
duziria a noções mais exactas sobre este estado , ainda
assaz mal determinado, que se chama Malignidade,
porém estas considerações perteneem mais particular-
mente ao foro Physiologico , e Medico.
OR.
ORDEM PRIMEIRA.
Feridas em geral.
A-se o nome de ferida a toda a solução de con-
tinuidade feira nas partes do corpo por huma causa ex-
terna. Náo se fazem entrar nesta definição os termos de
divisão recente e sanguinolenta , como o tem feito ou-
tros autores ; porque huma ferida cuja cura he demo-
rada, e cujos lábios suppuráo , náo reúne alguma destas
duas condições. Por isso , os autores que as exigem ,
tem sido obrigados a chamar ulcera toda a ferida com
suppuraçáo , náo tendo mais que três dias de antiguida-
de, o que he evidentemente absurdo. O epitheto de
sanguinolenta náo convém a huma definição geral de
feridas , pois que as de armas de fogo , náo sáo ordina-
riamente seguidas da sahida do sangue das partes dividi-
das; nunca se tem ajuntado a maneira de obrar das
causas vulnerantes , dizendo-se somente , que obráo
alongando as partes além de sua extensibilidade natural ;
não se podendo applicar esta proposição as feridas por
queimadura , etc.
GÉNERO PRIMEIRO.
Feridas simples.
Solução de continuidade com, ou sem
perda de substancia, susceptível
da immediata reunião.
E
_ Stas feridas , quasi sempre produzidas por hum
instrumento cortante, são as mais das vezes sem perda
de substancia ; em alguns cazos , com tudo , huma quan-
tidade mais ou menos considerável de partes molle, he
C ii &
tf
levada: não obstante a ferida reune-se, cicatriza-se por'
primeira intensáo , ou sem suppurar. A cufa do lábio
leporino , depois do corte de suas bordas , nos fornece a
prova disto.
Quando hum instrumento cortante he applicado á
superricie do corpo , com hum certo gráo de força se-
ja que corce somente depremindo , ou que obre depre-
mindo e serrando (i) ao mesmo tempo, o que he o
mais ordinário penetra a huma profundidade mais ou
menos considerável, e produz huma divisão, que se ma-
nifesta pela separação de seus lábios , dependente da elas-
ticidade e da contractilidade das partes divididas , pela
sahida de humá certa quantidade de sangue proveniente
da secção dos pequenos vazos , e por huma dor que
occasiona a lezáo da pelle e dos nervos.
A presença do instrumento vulnerante poderia ser
contada no numero das causas que produzem a separa-
ção dos lábios da ferida ; porém esta c;:usa he muito
fraca , se se compara á elasticidade , e sobre tudo á con-
tractilidade dos órgãos a que se estende a div ; sáo. He im
possível determinar com exactidão , porque parte a elas-
ticidade concorre á separação dos lábios de huma feri-
da ; as partes que tornáo sobre si mesmo , em virtude
desta propriedade fizica, sendo ao mesmo tempo dota-
das de contractilidade, seja que esta faculdade vital ahi
se manifeste por movimentos tónicos e obscuros , ou
por contracções fortes e inviziveis ; com tudo , não he
du-
(1) Todos os instrumentos cortantes são verdadeiras serras.
O mais afiado corte de huma navalha de barba , examinado
com o microscópio , apprezenta huma serie de pequenas den-
raçóes semelhantes ás deste instrumento. Concebe-se então
facilmente porque he tão difficil o corrar-se , ainda mesma
com huma hca afiada de novo, quando se carrega bem per-
pendicularmente sobre a palma da mão. Igualmente se co«
nhece a razão deste preceito tão importante a observar na
pratica das operações chirurgicas : fazer sempre obrar mais
serrando t quc carregando, es instrumentos que dividem.
V7
duvidozo que não contribua á separação , pois que se
vè apartarem-se os lábios de huma ferida feita no ca-
dáver ; e que além disto ; o estado da tensão ou do rela-
xamento , em que nossas partes se acháo no momento
da solução de continuidade, influa sobre a extensão da
separação. Se a pelle da parte anterior da coxa está ten-
sa peia flexão da perna , e que , neste estado , hum ins-
trumento cortante a corte transversalmente , a separa-
ção he muito mais considerável do que nos cazos em
que as partes molles estivessem em relaxamento por hu-
ma posição contraria do membro.
Quando hum ou muitos músculos se acháo corta-
dos transversalmente na espessura dos lábios de huma
ferida , ve-se seus extremos apartarem-se com força ,
arrastando a pelle que os cobre , os vazos e os nervos
divididos ao mesmo tempo que elles. Esta contractili-
dade muscular he a causa a mais poderosa da separa-
ção , e para julgar de rodo o seu valor , deve-se attender
que seus eífeitos se não limitáo ao apartamento primiti-
vo dos lábios da ferida ; porém que as carnes palpitan-
tes se apartáo ainda durante alguns dias , se nada se
oppôe a est i retracção tanto mais considerável , quanto
as fibras dos músculos divididos tem mais comprimen-
to , quanto o excitamento he mais vivo na ferida , e
quanto o tecido cellular contem menos gordura. Por isso ,
nenhum musculo he suscepcivel de huma retracção maior
que o sertorio , e o recto anterior da coxa ; jamais ,
depois âx amputação deste membro , os músculos , tor-
nando consecutivamente sobre si mesmo, não tendem
mais a abandonar o osso , se não nos casos em que a
superfície da ferida he excitada por curativos pouco
methodicos, e quando o enfermo que tinha sido gordo ,
passa repentinamente a huma extrema magreza. He pre-
cizo destinguir a extensão da separação da força que-
a opera ; esta he relativa ao numero das fibras dividi-
das. Cada huma destas fibras obra independentemente
das outras , e pôde ser considerada como hum poder
separado.
■ He
?8
He preciso reunir logo os lábios da ferida simples,
e mantellos reunidos todo o tempo que a natureza em-
prega na sua agglutinaçáo. Para obter esta feliz termi-
nação, he indespensavel que os lábios da ferida estejáo
cm contacto immediato , que nenhum intervallo , nem
corpo extranho os separe. He porque , se a lama ou a
poeira os tivesse sujado , se deveriáo lavar com agua
tépida. He ainda necessário que estes lábios estejáo san-
guinolentos, pouco infhmmados , e pouco contuzos ; e
em fim , que ambos estejáo vivos , isto he , que recebáo
a sangue necessário para participarem da vida que ani-
ma todos os órgãos.
Tem-se ha muito tempo , inda que váamente agi-
tado a questão de saber se huma parte inteiramente se-
parada do corpo , pôde ahi reunir-se quando he immedia-
tamente tornada a applicar. Garengeot cita em prova des-
ta possibilidade, huma observação cuja veracidade tem
sido singularmente contestada. Hum soldado he mordi-
do por seu camarada , que lhe arranca a ponta do nariz ,
lança-a na lama de hum regato , e a piza aos pés pa-
ra a esmagar; o ferido furioso toma a porção de seu
nariz , lança-a na loja de hum barbeiro , e prosegue seu
adversário ; torna a vir , o barbeiro lhe põe o nariz que
tinha lavado e fomentado com vinho tépido , mantem-
lho no seu lugar por meio dos emplastros agglutinati-
vos e de huma ligadura; passados dois dias a reunião
estava operadi , e o mesmo Garengeot , que o curou ,
cjuatro dias depois do accidente , achou a cura perfeita.
Hunter e outros muitos , depois delle , tem experi-
mentado que os testículos de hum gallo , postos no
ventre de huma gallinha , se atacáo a superfície das vís-
ceras , e contrahem adherencias com alguma de entre
ellas. Este facto de nenhuma sorte prova a possibilida-
de de reunir huma parte inteiramente separada do cor-
po. Os testículos introduzidos na cavidade abdominal ,
sáo verdadeiros corpos extranhos cuja presensa excita o
peritoneo : deste excitamento mecânico nasce huma in-
flamação seguida de huma exsudaçáo lymfatica que os
une
19
une fracamente. O órgão seminal ainda que encerrado
em hum ser vivo , inda que aquecido pelo calor vital ,
náo deixa de morrer privado dos sucos ; diminue , mur-
cha-se , seu interior se decompõe , e para ao diante se
torna huma fonte pútrida que pode vir a ser fatal ao
animal , objecto da experiência. A transplantação de
hum dente sáo em hum alvéolo vazio , náo he hura
facto mais concluente ; ahi náo toma verdadeira raiz ,
como o acredita o vulgo , somente ahi se acha mecani*
camente fétido pela uniáo das gengivas que lhe abração
o pescoço , e pelo aperto do alvéolo que se amolda so-
bre o corpo introduzido. A adherencia do ovo humano
a hum ponto qualquer que seja do peritoneo , no caso
de concepção extra-utrina abdominal , náo fornece argu-
mento mais decisivo. Vivificado pelo acto da fecunda-
daçáo , este ovo fornece seu contingente de vitalidade ,
e quando sua prezença tem deste modo excitado hum
ponto do peritoneo e produz neste lugar o desenvolvi-
mento da rede vascular, faz-se igualmente nelle hum
trabalho próprio á estabelecer a adherencia.
Tenho tentado de rezolver, peio caminho experi-
mental , o problema que nos occupa , e continuados en-
saios me náo tem podido conduzir a esta solução. Cor-
tei a ponta do nariz a hum cão , e a tornei logo a ap-
plicar á superfície sanguinolenta; quatros pontos de su-
tura lha fixarão ; foi impossível ahi ajuntar o soccoro
das ligaduras e emplastros agglutinativos ; o animal
bem depressa se desembaraçou deste apparelho incom-
modo : o sangue correo primeiro em abundância., por-
que muitos vazos assaz consideráveis, e que se acháo
na uniáo das cartilagens , foráo cortados. Com tudo a
hemorragia cessou depois da reuniáo ; a ponta do foci-
nho inchou , e pelo meio desta tumefacçáo , a porção
reapplicada se achava estreitamente collada a superfície
de que tinha sido separada ; o cáo limpava a ferida com
sua língua. Ao quarto dia , a porção separada na qual
se náo tinha feito trabalho algum , ofFereceu indicies de
mortificação; cortaráo^-se as ligaduras , e a ferida com
per-
40
perda de substancia melhorou em alguns dias , continua-
damente lambida pelo animal que deste modo lhe ope-
rou a detersáo.
Todos sabem a experiência na qual se corta o es-
porão de hum gallo para o transplantar sobre a sua
cabeça; esta parte córnea bem depressa adhera ao crâ-
nio , quando se enxerta de alguma maneira , fazendo
hum pequeno golpe na superfície desta abobeda óssea.
Se a possibilidade da reunião existe nos casos onde hu-
mi parte he inteiramente separada do corpo , deve tam-
bém eíFectuar-se nos órgãos cuja extructura he ma»
simples, isto he, cuja substancia mais homogénea se
compóe da reunião de hum menor numero de tecidos
smples. As partes fibro-cartilaginozas da orelha , do
lobo do nariz e de suas azas , assemelhão-se aos vege-
taes pela simplicidade de sua organisação , e pelo pou-
co desenvolvimenso de su^s propriedades vitaes. A pu-
trefacção se apodera mais lentamente destes órgãos , que
menos sucos os regão , em quanto que altera e decom-
põe os outros , antes que a. natureza tenha podido tra-
balhar erRcazmente á sua reunião. Assim pois, a obser-
vação de Garengeot, ainda que se possa razoavelmente
duvidar de sua authenticidade , o exemplo do esporão
do gallo que se nutre e cresce sobre a cabeça deste
volátil , como os enxertos dos vegetaes , com as partes
cartila^inozas e epidermoicas dos corpos dos animaes
tem huma grande analogia debaixo da relação da nutri-
ção , autorizão a tentar a reunião de hum órgão desta
espécie , quando está totalmente separado. Poder-se-ia
mesmo reapplicar hum lambo de partes molles , Separa-
do por hum instrumento cortante; esta tentativa nao
faria correr risco algum ao enfermo : importa pouco o
top co com que se cobre a ferda para a sobtrahir ao
contacto do ar ; poder-se-^a sempre substituir com os
fio? , qúan Io ao fim de hum ou dois dias , a parte sepa-
rada , em lu^ar de se reunir , ameaça cahir em putrefac-
çáo.
He preciso constantemente reunir, quando hum
Iam-
41
lambo, quasi inteiramente separado , tem com tudo ainda
hum pedículo em que se acháo vazos - , ainda que este
pedículo seja delgado , os vazos que contém podem
fazer participar a vida ao lambo , e pollo nas disposi-
ções necessárias á reunião.
Em todos os casos onde se julga a reuniáo imme-
diata possível , he preciso cuidadosamente abster-se do
uzo de qualquer unguento nos cnrativos da ferida ; os
bálsamos líquidos de que os antigos faziáo correr algu-
mas gottas no intervallo de seus lábios apartados , to-
dos os vulnerários táo exagerados , o faboloso dicrame ,
com o qual sanaváo as feridas dos heroes curados pelos
Deozes , ou pelos mortaes privilegiados que conheci áo
as suas virtudes , não sáo próprios senão a excitar as
partes , e por consequência , a impedir a reuniáo imme-
diata , tornando-lhe a snppuraçáo inevitável. Diz-se
com tudo ainda , em hum sentido figurado , que as con-
solações prodigalizadas aos desgraçados , sáo como hum
bálsamo saudável lançado sobre suas feridas ; porém este
erro náo he o único que a linguagem methaforica tem
consagrado.
Para manter os lábios de huma ferida simples e
recente no contacto immediato necessário á sua promp-
ta agglutinação , a arte possue quatro meios que sáo a
situação, a ligadura unitiva, os emplastros aggluti-
nativos , e a sutura.
Todas as vezes que a poziçáo de huma parte pô-
de influir sobre o estado dos lábios de huma ferida ,
«leve-se usar deste meio para lhe favorecer a approxima-
çao. Ha bem poucos casos , se se-lhe exceptuáo as feri-
das de cabeça , onde náo seja útil o situar a parte en-
ferma de maneira a favorecer a reun>áo da ferida. Seja
que se estenda aos músculos , ou se limite á pelle , o
membro deve ser na extensão , se a ferida he transversa ;
será ao contrario em flexão, se he longitudinal. Sup-
ponhamos huma ferida transversa na parte anterior da
coxa, a extensão da perna, relaxando os lábios da fe-
rida, ^concorre a operar-lhc o approximamenro : he a
fe-
4*
ferida seguindo o comprimento do membro , deve-se
pôr em flexão a perna e em extensão a coxa sobre a
bacia , de maneira que seus lábios puxados como os la-
dos de huma ciza de abotoar de quem se puxão os ân-
gulos em sentido contrario , se toquem , se apertem mu-
tuamente , e sejão facilmente mantidos nesta relação
favorável pela acção da ligadura unitiva. Nas feridas
do tronco , he á direcção das fibras musculares cortadas
que he preciso principalmente attender : seja - por exem-
plo , huma ferida longitudinal na parte lateral e ante-
rior do peito, na qual o musculo grande peitoral se
acha transversalmente dividido , he preciso approximar
o braço ao tronco como o faria este musculo em ac-
ção ; se a ferida fosse , pelo contrario , no sentido de
suas fibras , seria preciso levar o memhro para aparte
externa e posterior , etc.
Entre estas duas principaes direcções das feridas,
ha huma multidão de direcções intermediarias. Ha hum
grande numero que não são nem perfeitamente transver-
sas , nem inteiramente longitudinacs , e exigem que a
posição dos membros deversifique e se accommode ás
«uas diverssas obliquidades ; em fim , a situação não he
em todos os cazos senão hum meio auxiliar : ella só
não basta á reunião de huma ferida ; deve-se ahi ajun-
tar a applicação de ham dos três outros meios que nos
restão a descrever.
A ligadura unitiva he o que mais frequentemente
se lhe associa. Esta ligadura, chamada táobem encar-
nativa , comprime e empurra os lábios da ferida hum pa-
ra o outro , com tanto que estes sejão móbeis , e te-
nháo além disso hum ponto de apoio fixo e solido:
conhece-se facilmente a necessidade destas duas condi-
ções. ' ( Como poderia huma ligadura levar os lábios de
huma ferida hum para o outro , se estes fossem immo-
veis por sua adherencia a hum osso , ou por outra qual-
quer causa? Esta ligadura não obra se náo comprimin-
do; nio pôde pois escusar-sc do ponto de apoio. Em
váo , depois da operação do lábio leporino , se empurra-
riáo
4?
ríão os lábios moveis da ferida hum para o outro , se
a falta dos dentes incizivos superiores os priva do am-
paro ; seráo afundados para a parte posterior , e cessa-
rão de se tocar por sua porção sanguinolenta, a única
susceptível da agglutinaráo.
A construcçáo e a applicação da ligadura unitiva
differem segundo adirecçáo da ferida , a que se quer ap-
plicar. He transversa ao comprimento de hum membro,
ou a direcção de hum musculo , á cio recto anterior da
coxa ; por exemplo ; tomáo-se duas tiras de huma lar-
gura relativa á extensío da ferida , e de hum compri-
mento igual ao do membro : huma delias será fendida
em huma das suas extremidades , e quasi até a ametade
de seu comprimento, em tantas cabeças como tem de
polegadas de largura , em quanto que a outra será fen-
dida no seu meio , em outras tantas cazas longitudi-
naes ; lança-se huma das duas tiras sobre o membro ,
acima da ferida , e fixa-se sua extremidade superior por
meio de huma atadura enrolada , cujas circulares podem
mesmo , para maior solidez , abraçar esta extremidade
voltada ; desce-se depois sobre a tira por voltas obliquas.
de atadura , até próximo da ferida ; então confiando o
rolo da atadura a hum ajudante , applica-se da mesma
maneira a segunda tira sobre a parte do membro que se
acha abaixo da ferida. O ajudante sendo encarregado
dos dois rolos, por meio dos quaes as tiras se achão
subjugadas , o cirurgião toma estas , faz entrar as cabe-
ças de huma nas cazas da outra , puxa-as com força
em direcção opposta , estende-as e deita-as seguindo o
comprimento do membro , de maneira que a que tem
primeiro sido fixada na parte superior , desce até a sua
parte inferior, et vice veria. Em quanto que hum se-
gundo ajudante as mantém neste estado , toma-se das
mãos do primeiro hum dos dois rolos , desce-se por
espiraes até a parte inferior do membro , depois se se-
gura igualmente a tira inferior subindo com o segun-
do rolo , ate aparte superior do membro.
Esta ligadura comprime e empurra os lábios da fe-
ri-
44
rida hum para o outro , que a posição pôz no relaxa-
mento ; basta para os conter approximados se a divizão
náo se estende além dos tegumentos ; porem nos casos
onde penetra até os músculos , os extenso-, es destes pri-
meiros estimulados , fogem bem depressa ao poder reu-
.niente da situação e da ligadura. À acção desta náo
se passa em huma direcção opposta , porem perpendi-
cular; além disto se relaxa ainda que seja de hum pa-
no de linho mui tocido , e que tenha sido applicada
mui exactamente , de sorte que a reunião das fibras mus-
culares já mais he immediata.
A ligadura unitiva das feridas longitudinaes se faz
com huma atadura enrolada a hum só rolo , tendo hu-
ma extremidade fendida em tantas cabeças , quantos fo-
rem os dedos transversos que tiver de largura. Alguma
cousa distante da terminação destas cabeças , que de-
vem ter des a doze polegadas de comprido , será prati-
cado hum igual numero de fendas ou cazas. O interval-
lo que as separa das cabeças , deve ser tanto mais con-
siderável , quanto maior for a grossura do me rbro ;
applica-se esta porção da atadura que se acha entre as
cabeças e as fendas , sobre o lugar diametralmente op-
posto á ferida ; conduz-se para esta o rolo e as cabe-
ças, passao-se estas ultimas pelas fendas, approximão-
se os lábios da ferida puxando se em sentido opposto ;
póe-se as cabeças sobre o membro , e depois se segu-
rão por circulares as quaes continuão até que o rolo
da atadura seja inteiramente desenrolado.
Como os nossos membros estão longe de offerecer
huma forma perfeitamente circular , e que os lábios
da ferida tem menos espessura na parte externa que na
interna , aconteceria que estes lábios desigualmente com-
primidos serião reunidos na superfície da ferida, e fica-
rião separados no seu fundo , senão se ajuntassem á liga-
dura unitiva compressas graduadas. Estas compressas ,
de hum comprimento igual ao da ferida , e tanto mais
espessas quanto esta for mais profunda , são feitas de
k*ai pedaço de pano de linho quadrado e dobrado so-
bre
45
bre si mesmo , de maneira que estas dobras graduadas
como os degráos de huma escada , diminuáo de largu-
ra á medida que a compressa se torne mais espessa, c
se termine em fim em huma de suas bordas a qual se
chama expesia. Applicáo-se estas compressas de manei-
ra que a borda espessa coresponda ao fundo da ferida,
em quanto que a borda delgada se avança p?.ra os lá-
bios da divisão i deste modo a forma natural do mem-
bro he mudada , e hum aperto maior he determinado
sobre os lugares onde o approximamento he mais diffi-
cil. Existem poucas feridas simples que náo exijão a
applicaçáo da ligadura que se acaba de descrever , mo-
dificada de huma infinidade de maneiras , segundo as
variedades da offensa , e o génio do artista.
Os emplastros agglutinativos náo sáo de huma uti-
lidade táo geral , estes meios náo convém senáo nas fe-
ridas superficiaes , quando a pelle somente se acha in-
teressada , ou com músculos pouco espessos gozando de
huma adherencia intima á sua face adipoza (i) : taes
seriáo as feridas do rosto , onde o occipito-frontal , o
superciliar, etc. teriáo sido divididos. Estes emplastros
s-áo feitos com huma substancia pegajoza, extendida
sobre hum pano de hum tecido apertado. O diachiláo
gomado, e o diapalma são os agglutinativos mais uza-
dos ; o encerado inglez que he a seda untada com
goma de peixe d qual se ajunta algum balsâmico , he
excellente nas feridas cuja exteníáo he pouco conside-
rável ; quando he boa qualidade , apprezenta as vanta-
gens de' se unir fortemente no epiderme , de se arran-
car facilmente com agua tépida , e de náo sujar os lá-
bios da ferida.
Como os emplastros agglutinativos náo obráo se-
não
(0 Faz-se 1120 delles nas vistas ainda de prevenir a gran-
de separação dos lábios de huma ferida com perda de subs-
tancia ; para conduzir a pelle sobre as carnes depois da am-
putação de hum membro ; depois da extirpação de hum
peito canceroso , etc.
tf
não em vittude da sua adhercncia ao epiderme, se de-
vem fazer tanto mais compridos, e dar-lhe huma lar-
gura tanto mais considerável , quanto a reunião appre-
zenta maiores difficuldades. Em quanto á forma a mais
vantajosa , he precizo , em todos os cazos , cortar o
emplastro em tiras separadas , cujo comprimento e lar-
gura deve variar segundo a força que he precizo em-
pregar para reunir. Estas tiras agglutinativas tem sido
substituídas com vantagem ao emplastro fendido ; como
elle , tem a vantagem de deixar nos seus intervallos
hum livre esgoto ao puz que pôde formar-se; de não
occultar aos olhos do cirurgião o estado da ferida: po-
rém são-lhe muito preferíveis, porque se podem, ncom-
modando sua íórma aos poderes da separação , pôr as
mais compridas nos lugares , onde a divisão tem m is
profundidade , e renovallas separadamente , quando huma
delias se relaxa , se despega , ou se altera. Logo que
se deve applicar huma ou muitas tiras agglutinativas ,
tem-se o cuidado de as cortar a fio direito ; de lavar
os redores da ferida ; de os raspar , se a parte he coberta
de cabellos ; de aquecer ligeiramente o emplastro para
o amollecer , sendo de diachilão gomado , como he o
mais ordinário ; de o humedecer hum pouco , se se em-
prega o de tafetá inglez : depois do que se colla a me-
tade da tira sobre hum dos lados da divisão , defronte
do lugar onde he mais profunda ; approximão-se com
os dedos de huma mão os lábios divididos, e conten-
do-os , de algum modo , neste estado de approximação ,
se applica a outra metade da tira sobre o lado opposto
da ferida. Quando se prezume a reunião operada , descol- -
lão-se successivamente as duas metades da tira com di-
recção para a ferida , depois sustentando-se os seus lá-
bios com o dedo polex e indicador , se levantáo na di-
recção da cicatriz ainda branda , prevenindo-se por este
modo o seu rompimento.
Estes preceitos sobre a applicação de huma tira ,
se estendem aos cazos que pedem muitas. O emplastro
agglutinativo com linhas , mais conhecido pelo nome
de
47
de sutura falsa ou «ecca , está hoje cahida em humà
proscripçáo táo justa como gerai; fazia-se atando fios
a huma das bordas dos dois pedaços do emplastro que
se punha seguindo o comprimento da ferida ; porém
além do inconveniente de obrar sobre todos os pontos?
com o mesmo gráo de força, e de náo poder ser reno-
vado senão em totalidade, tinha o de excitar a ferida,
quando os fios se cravaváo nas bordas entumecidas.
A sutura , ultimo meio que se emprega para obter
a reunião das feridas , sò convém em hum pequeno nu-
mero de circunstancias onde a consideração da dor que
esta operação sanguinolenta arrasta apôz si, e do ex-
ctamento que sentem os lábios da ferida pelas agulhas
e linhas com que se atravessão , cede ao motivo mais
poderoso de huma reunião exacta que seria impossível
por qualquer outro methodo. Estes cazos , que são fá-
ceis de determinar , se reduzem como diremos no seu
lugar, ás feridas a lambo do couro cabellozo, ás divi-
sões dos lábios , ás da parede anterior do abdómen , ás
feridas do tubo intestinal , e aos rompimentos do setto
recto-vaginal nas mtilheres.
Observai que hc menos para obter a reunião que
para prehencher huma indicação particular, que a sutura
he recomendada em todas estas circunstancias ; assim ,
nas feridas a lambo do couro cabellozo , e em todas as
desta espécie, qualquer que seja o seu lugar, he para
manter o lambo applicado á superfície de qus tem sido
despegado e que abandona , que a sutura se julga con-
veniente. Nas feridas do rosto , he para suster os lábios
moveis , conservar-lhes hum perfeito nivel e prevenir a
difformidade , que se decide a sua applicaçáo ; nas gran-
des feridas da parede anterior do abdómen , he com o
fim de obstar á sahida das vísceras abdominaes , como
na do tubo intestinal o derrame das matérias fecaes.
Não he que a sutura, limitada a reunir os lábios de
huma ferida que não interessaria mais que os tegumen-
tos , possa trazer apoz si consequências terríveis: o seu
principal inconveniente seria então sua inutilidade; mas
quan»
4«
quando se pratica em huma ferida em que o» músculos
se acháo divididos , as fibras estimuladas se contrariem ,
e exercem sobre as agulhas e as linhas huma tensão
dolorosa , o effeito se accrescenta á causa , a distensão
se torna mais considerável , e as fibras se dilacerão , di-
vididas pelo corpo extranho que as atravessa e provo-
ca suas contracções.
Não se pôde pois considerar a sutura como hum
meio que convém geralmente na reunião; e não he
sem admiração o ver principiar "Bell a sua grande obra
de cirurgia por huma espécie de apologia desta opera-
ção.
Quando , em huma ferida a lambo , a mobilidade
«ios lábios lhe embaraça a exacta reunião , e que se jul-
ga convenieute fixallos por alguns pontos de sutura ,
eisaqui qual he a maneira de praticar esta operação ;
chama-se então sutura simples , ou intercortada , e he
a única de que convém fallar neste artigo. Faz-se uzo
de huma agulha ou verga de aço , curva , achatada ,
e perfeitamente semicircular, cortante nos lados de sua
ponta , e penetrada na cabeça de huma abertura quadra-
da , em forma demalhete(i). Estas agulhas, que atra-
vessão a pelle causando a menor dilaceração possível ,
devem ser enfiadas de huma fita de muitos fios de linha
encerada achatadamente ; e seguras de tal sorte , que
o polex aperte sobre sua concavidade, em quanto que
o indicador e o mediano são applicados sobre sua con-
vexidade. Serão dirigidas de maneira que descreváo nas
partes huma curva cuja tangente seria huma linha recta
que se julgasse passar pelo fundo da ferida. O numero
dos pontos da sutura , sempre proporcionado á exten-
são dà divisão , não deverá ser muito multiplicado. Se-
ja que se penetre a pelle do externo para o interno
ou
(i) Vede Nosogr. de Riclier. T. III. As vantagens des-
ta sorte de agulhas comparadas GOm as antigas na historia
das enfermidades das artérias , no tratamento das quaes são
«xpecialmente utei».
4P
ou do interno para o externo , se deverá penetrar primei-
ro perpendicularmente a agulha a algumas linhas de dis-
tancia da parte sanguinolenta dos lábios , que , sem esta
precaução , serião bem depressa cortados pelos fios
com que se atravessa. Tendo o instrumento vulneranre
cortado assuslaiadamente , dever-se-ha penetrar mais
affastado da parte sanguinolenta o lambo mais delgado ;
e depois de se haver feito hum numero sufficiente de
pontos separados, hum ajudante approxima os lábios
da ferida , em quanto o cirurgião áta successivamenta
as linhas , tendo o cuidado de as não apertar mu to ,
receando que , pelo ligeiro entumecimento que deve suc-
ceder , senão torne doloroza a sua prezença , basta por
os lábios da ferida em hum contacto imm;d'a:o , sem
muito os comprimir hum contra o outro. Quando se
tem tirado da sutura toda a vantagem que se poderia
e>per ir delia , isto he , quando no fim de três ou qua-
tro d as se tem obt'do a reunião da ferida para a qual
S" prateou , convém tirar as Imhas que , dei adas por
mais termpo , entretém o excitamento e a suppuraçao
no seu caminho (i). Para isto, cortar-se-hão , passando
D por
(j) O autor quazi quer excluir a applicação da sutura,
e mesmo , nos casos em que a julga indispenssavel , reco-
menda que ao fim de três ou quatro dias, obtida a reunião,
se devem tirar as linhas , para que estas não determinem , pe-
la sua prezensa , o excitamento e a suppuraçao das partes
que tocáo. Algumas razões me fazem persuadir do contra-
rio.
Vejo que as nossas partes tem a propriedade de se acos-
tumar á prezença dos corpos extranhos , tornando-se-lhe iua-
zi insensíveis peio habito, como se observa na introducção
dos pessarios na vagina, das algalias na uretra , das cânulas
nas vias lacrimaes , das ligaduras nos pólipos nas foças na-
zaes , etc.
Vi que tendo-se cravado alfine f es nas feridas que rezul-
tarão da extirpação de três scirros ulcerados nos labies , hu-
ma na comissura esquerda da boca , e duas no lábio inferior ,
para lhe auxiliar a reunião op Hospital de todoí os Samso
50
por baixo delias as pontas de huma tizoura conduzias
a favor de huma tenta cânula , depois deitando-as cobre
a pelle , se puxão para sahirem da curva que descreviáo
nas carnes: evitar-se-ha por esta precaução o rompi-
mento possível de huma cicatriz ainda tenra , £ pouco
firme.
A cicatrização dehuma ferida simples , ou a reu-
nião de seus lábios , deve ser cuidadozamente dest : ngui-
da da sua approximação ; esta he a obra da arte , aquel-
la he divida ao trabalho da natureza.
Huma ligeira phogoze se apodera das superfícies
sanguinolentas ; contrahem huma adherencia semelhante
á que une a túnica vaginal ao testículo, em conse-
quência da operação do hydrccele por injecção. Para
que se opere esta reunião , he indispensável que a in-
fiammação seja contida em certos limites , e reduzida á
huma espécie 'de erizipsla superficial das superfícies divi-
didas : mais forte , a terminação suppuratoria seria a
sua
cie Lisboa, que estes se conservarão cravados por mais de oito
dias , sem que se desenvolvesse infiammação considerável ou
abundante suppuração.
Tendo eu empregado o methodo dos alfinetes para reu-
nir as feridas que rezultárão da operação feita a hum meni-
no de doze annos em Lisboa, do lábio leporino , lhos con-
servei por oito dias, sem que a infiammação excedesse ao gráo
da adheiiva.
Ultimamente n' huma semelhante operaçã hum igual
methodo empreguei para obter a reunião das feridas, no Hos-
pital Real dos Exércitos e Armadas desta Corte no dia 17
de Outubro de 1809 a Macário José Maria , official de car-
pinteiro ; os alfinetes estiveráo cravados nas carnes por nove
dias sem se lhe desenvolver simptoma algum de infiammação
ou suppuração excessiva , e quando lhe tirei os alfinetes , a
cicatriz estava completamente formada.
Estas razões e estes factos me induzem a não temer
o fazer uzo da sutura naquelles casos que julgar necessária,
e mesmo de a conservar por algum tempo , huma vez que-
as circunstancias exijão.
Not. do Traduct.
5«
sua consequência , e a reunião immediata se tornaria im-
possível i aconteceria entáo o que te cem observado 'depcis
de algumas injecções para a cura radical do hydrocelie ; a
inflammaçáo do testículo e da túnica vaginal , levada ao ex-
cesso , he terminada peia exudaçáo de hum liquido puri-
f orme , que lhe faz retardar consideravelmente a reunião
de suas superfícies. O mecanismo da cicatrização se tem
até o prezente oceultado ás indagações dos mais zelozos
investigadores. Hum véo celiulozo se organiza entre as
superfícies divididas , os vazos se anastomozão dos dois
lados , esta inosculação não parecerá impossível , se se
considera que o numero dos capillares sendo prodigiozo ,
e todos, estes pequenos vazos tendo quazi o mesmo ca-
libre , importa pouco que conservem nas suas reuniões
as correspondências que tinháo antes da solução de con-
tinuidade , e que os de hum lado encontrem preciza-
mente os capillares de que foráo separados pela feri-
da.
Seja como for, a organização da cicatriz he incon-
testável , c deve fazer regéicar a hypotese que attribuião
ao derrame de hum suco pegajozo entre os lábios da
ferida ; a passagem fácil da injecção atravez de seus
vazos , as dores de que he frequentemente assaltada , na
occasião de certas mudanças na atmosfera , são provas
menos seguras do que a experiência seguinte : separai
na cabeça de hum cão entre as duas orbitas , hum lam-
bo de carne triangular ; disseccai este triangulo até a
sua baze, depois reapplicai-o immediatamente ao osso,
e quando ahi esteja unido , separai hum outro lambo
triangular em opposição daquelle , de modo que as suas
bazes estejão unidas , reprezentando juntos hum lozanpe
perfeito ; reapplicai-o immediatamente á parte donde foi
separado pela dissecção , ahi se reunirá immediatamente
como o precedente. Ora , ; porque lugar este segundo
lambo poderia receber os sucos necessários á vida , se
as cicatrizes não estivessem organizadas, vascularizacias,
e permeáveis aos fluidos reparadores ?
As feridas susceptíveis da reunião immediata, são
D ii em.
5*
em maior numero do que não pensa o vulgar dos prá-
ticos , e náo se deve duvidar da. necessidade de tentar es-
ta reunião , ainda mesmo nos casos onde a divisão ,
por sua extensão e peia variedade das partes que inte-
ressa, parece menos susceptível delia. Os cuurgióss
Ingiezes , dos nossos dias , tratáo a reunião immed ata ,
em consequência de todas as amputações j e a obtém
em muitas qpsasióes. O Professor Dubois pôz em Fran-
ça esta pratica em voga •-, eu mesmo a uzo , em, al-
guns oizos:, com bom suecesso (i). Porém huma pre-
caução essencial , e cuja importância- tem sido demons-
trada por huma multidão de factos, consiste, depois de
haver enxugado cuidadozamente as superfícies sanguino-
lentas , e laqueado até os mais pequenos vazos , em
approximar as .partes semelhantes , isto he , á reunir
pelle com pelle , o tecido gordurozo de hum lado ao
do lado opposto , os músculos aos músculos , os vazos
aos vazos. Existe entre os ergãos da mesma natureza ,
huma analogia que facilita a reunião , como se este
phenomeno submetrido á força que se conhece debaixo
do nome de affinidade d'aggregaçáo , não tivesse lugar
senão entre partes ou moléculas semelhantes. Porém te-
remos occasiáo de desenvolver em outra parte este pon-
to
(0 Isnoro quaes sejáo es cazos , em que o author não
empregue a reunião immediata das feridas que retultão das
mutilações. Pois havendo tentado esta reunião r.as feridas
rezultadas de sete mutilações , que tenho praticado no Hos-
pital Real dos Exércitos e Armadas; cinco de cô\a, huma de
braço , e outra de perna por baixo da articulação femoro-tibia ;
tirei em todas , por este methodo , boas consequências; não
obstante terem morrido dois, no que nada influio ter-se ou não
reunido as partes , por quanto em hum se lhe desenvolveo
o tetenismo no decimo septivno dia , tornandõ-se infruetuo-
jras todas as aplicações : o outro foi em consequência da
adiantada idade, e abatimento em que se achava, desenvol-
vendo-se huma abundante suppuração , que ao decimo ter-
ceiro dia o fez succuiubir,
Not. do Traduc.
5S
to de doutrina que aqui não fizemos mais que indicallo.
Os cuidados gèraes que reclama huma fétida sim-
ples , se limitáo ao descanso e ás bebidas diluentes , du-
rante o curto espaço que a natureza emprega a operar-
lhe a reunião. Estes cuidados dictados peia prudência }
sáo raramente de huma indispensável necessidade , e po-
der-se-hiáo desprezar sem temor , se se tratasse de hum
ligeiro golpe em huma parte sobre o estado da qual os
movimentos não teriáo alguma influencia. Se o enfer-
mo fosse forte, pletórico, c que a ferida tivesse huma
certa extensão, huma sangria moderaria a actividade da
inflamação, e a conservaria nos limites necessários á reu-
nião immediata. As bebidas espirituosas e tónicas conve-
riáo para dar nos sólidos hum certo grão de energia, se
o enfermo fosse de huma constituição cachetica e débil.
GÉNERO SEGUNDO.
Feridas que suppuráo.
Ara lhes-expor fielmente todos os phenomenos ,
observemos a marcha da natureza em "huma ferida com
perda de substancia ; tal , por exemplo , a que rezultaria
da extirpação de hum peito canceroso. Logo que se aca-
ba de fazer , a ferida he sanguinolenta , e o sangue que
goteja de todos os lados , corre mais abundante, dos mús-
culos que dos outros tecidos. Com tudo , o contacto
do ar , o excitamento que arrasta a ferida , produzem a
constricção das pequenas artérias capillares, seus orifí-
cios abertos se obliteráo , e a sabida do sangue se sus-
pende. Se as artérias de hum certo calibre tem sido cor-
tadas , e que se não tem laqueado , a cessação da he-
morragia não he senão instantânea: sendo a_enferma
posta na sua cama , o espasmo occasionado pela opera-
ção se dissipa , as forças circulatórias se reanimão , o
sangue corre de novo, e obriga a levantar o apparelho.
Se tem havido a precaução de laquear todas as artérias
hum pouco consideráveis , no momento mesmo de sua
- sec-
54
secção , póde-se ver sem inquietação imbeber-se o ap-
pozito de sangue : muitas vezes , e sobre tudo se a en-
ferma he hum tanto moça e robusta ; se tem perdido
pouco sangue durante a operação , ao momento em que
o pulso concentrado pela dor, se desenvolve e se altera,
faz-se em toda a superfície da ferida huma transudaçáo
sanguínea , que pára por si mesma pela concreção da
parte fibrinosa do fluido de que o apparelho está em-
bebido. Tenho tido muitas occasiôes de observar este
phenomeno nas pessoas moças e nos adultos a quem
tinha praticado a amputação de hum membro. A tran-
sudação sanguínea cessa ; he substituída por huma soro-
sidade sanguinolenta de que todas as pessas do appa-
relho se imbebem durante os dois ou três primeiros
dias.
Com tudo a dor subsistindo na parte ferida , ahi
chama os humores , a tumefacção sobrevem , o calor e
a vermelhidão augmentáo } todos os simptomas da im-
ílammaçáo se manifestão, e a febre traumática ou vul-
neraria j companheira inseparável de todas as feridas que
tem huma certa extensão , e se curão por suppuração ,
se apodera do enfermo. Esta febre he essencialmente
inflammatoria. A energia augmentada do systerna arte-
rial forma o, seu principal caracter. Pode , segundo as
disposições do individuo , e a natureza da constituição
reinante , complicar-se de simptomas gástricos , ady-
nammicos ou outros , complicações sempre perigozas
e algumas vezes funestas.
Do terceiro ao quinto dia , a suppuração se estabe-
lece nos diversos lugares da ferida > num fluido esbran-
quiçado , opaco , inodoro , conhecido debaixo do nome
de puz , corre delia. Primeiro sanioso e misturado' com
o sangue que conspurca a superfície da ferida , limpa-a
e separa delia o apposito que ahi estava adherente. A
quantidade da suppuração augmenta ; as partes entume-
cidas se desengorgitáo e se abatem ; a superneie da fe-
rida se cobre de granulações avermelhadas , a que se
tem dado o nome de borbulhas camozas. Os lábios se
aba-
55
abatem , a pelle se adianta da circumferencia para o
centro da (crida ; a largura desta diminue rapidamente
nos primeiros dias, depois do que caminha mais lenta-
mente para a cura. Quando em fim a pelle tem pres-
tado tudo quanio pôde , a parte da ferida sobre a qual
senáo pode extender se desecca e se cobre de huma pe-
lícula avermelhada que se avança dos lábios para o
centro , e não começa a apparecer senáo no momento
em que a pelle se escuza á hum novo alongamento.
O curso inteiro de huma ferida que suppura tem sido
dividido em quatro períodos ou stadios destinctos ; pri-
meiro o de excitamento ou inflammação , segundo o de
sup.puraçáo ou deterzão , terceiro o de regeneração ou
encarnação , quarto ultimamente o de deseccação cu
cicatrização. Estes quatro períodos a que correspondiáo
quatro espécies de remédios , existem , á excepção do
da encarnação. Observações modernas tem provado que
muito tempo dominarão falsas âpparencias sobre o mo-
do de como a natureza procede á cura das feridas com
perda de substancia , e que , em todos os casos , não
se faz regeneração alguma nas carnes. A descuberta
desta verdade , que tem simplificado muito a Therapeu-
tica das feridas , he devida a Fabre , membro distincto
na antiga Academia de Cirurgia. Como sua doutrina
destruia huma opinião anrga , e geralmente adoptada , en-
controu violentos contraditores. Por espaço de cinco an-
nos j disenssões , na apparencia intermináveis , se susci-
tarão no seio da Academia ; poucas sessões tinháo lugar ,
em que senáo propuzessem algumas objecções mais ou
menos especiosas , ás quaes cirurgião , pouco hábil a
manejar a palavra , não faltava a responder victoriaosa-
menre , e por escripto , na sessão seguinte (1).
No corpo do homem e dos animaes de sangue ver-
melho e quente, nada se regenera á excepção do epi-
der-
(i) Eu devo estas particularidades á amisade e ás conver-
sações instructivas do respeitável Mer. Lassus , Professor,
c membro da antiga Academia.
tf
derme e partes epidermoicas , como são os cabellos ,
as pennas , as escamas , e os cornos. Esta faculdade re-
productora , precioso attributo do reino vegetal e dos
an mães de sangue branco , existente ainda , posto que
em mais fraco gráo em certos animais de sangue ver-
melho e frio , como o carangueijo , etc. , he absoluta-
mente negado ao homem , ass m como aos animaes pró-
ximos a elle na organisação. Analisando as observações
onde se falia da regeneração das glândulas , escroto ,
lingua e outras partes que haviáo sido destruídas pela
gangrena , tem-se feito ver por judiciosos criticos que o
maravilhozo de semelhantes factos era devido á igno-
rância dos observadores. Nad.i he mais fácil do que
engana r-se sobre as partes de que se tem feito a expul-
sação. Quando , em certos engorgitamentos do membro
viril , o prepúcio he totalmente inchado , que a glande
tem desaparecido inteiramente , pòde-se julgar esta des-
truída , e mesmo cortarem-se grandes porções do prepú-
cio , sem tocar na glande que existe de alguma sorte
sepultada no tumor ; he por razões semelhantes , que
profundas scarificaçóes feitas no tecido da lingua incha-
da , se reduzem a simples arranhaduras , quando o orgáo
toma ao seu volume natural.
Se a ferida , com perda de substancia , se enchesse
de novas carnes , se o fundo se elevasse á altura dos lá-
bios , a cicatriz deveria ser tão larga como a ferida.
Ora , he o que a observação desmente e contradiz evi.
dentemente, pois que cada dia offerece estreitas cicatri-
zes, em consequência de feridas que tinháo muita ex-
tensão. Na hypoteze da regeneração das carnes , a cica-
triz deveria ser sempre ao nivel da pelle , em quanto
que vemos constantemente que he mais profunda. Isto
se deixa ver mais claramente nas cicatrizes adherentes
aos ossos. Vi em hum militar de hum temperamento
athletico , em consequência de huma ferida transversa
na parte superior e externa do braço , em que o deltói-
des tinha sido cortado em toda a sua espessura , a cica-
triz adherentc ao humerus , offereeer huma cavidade
qua~
57
quazi de duas polegadas. Huma ferida prompta a cica*
uizar-se , de repente se toma a abrir , e parece o pro-
fundar-se pela elevação de seus lábios , < que fim levou
neste caso a substancia regenerada ?
Os que tem acreditado a regeneração das carnes ,
assemelhão-se , diz Mer. Louis , á aquellas pessoas que ,
sentadas em hum barco , julgáo , lançando os olhos
sobre a praia , que esta lhe foge : he hum erro de seus
sentidos ; e assim como sendo o barco quem se affas-
ta , ficando immovel a praia , do mesmo modo , são
os lábios da fenda que se abatem , e não o fundo que
se eleva para vir por-se ao nivel dos lábios. He com
eíFeito no abatimento destas que suppuráo , na extensão
da pelie que se encaminha para o centro da ferida , qne
consiste todo o mecanismo da cura desta ultima : náo
ss adiantáo para esta terminação com hum passo tão
rapdo como nos prmeiros tempos da moléstia , porque
a suppuração que suecede ao inchaço inííammatorio ,
d- a s; j ngorgita os lábios da ferida. He táobem por esta
razão que as feridas das partes onde a pelle he muito
extensível , se curáo com mais facilidade , e sío segui-
das de cicatrizes que tem menos largura: em nenhum
lugar tem menos extensão que no cranco , porque suas
dimensões são invariavelmente determinadas por peças
ósseas. Isto explica igualmente porque gasta muito tem-
po a cura das feridas comhustas, nas quaes he destruí-
da huma quantidade considerável de pelle. Disto se ti-
ra esta regra importante «á observar nas operações ci-
rúrgicas ; conservar o possível de pelle > a fim de cobrir
inteiramente com ella , se se pode , as superjicies sangui-
nolentas.
Os botões carnozos com que se cobre a superfície
de huma ferida que suppura , não devem ser olhados
como huma producção nova. He hum simples desen-
volvimento da rede vascular cellulosa. Esta carne ver-
melha e granulosa he o produeto de huma vegetação
particular da rede capillar ; protege contra o conucro do
ar e dos outros corpos extranhos excitantes , os órgãos
des-
58
descubertos por effeito da ferida. Extendida debaixo da
forma de huma membrana na sua superfície , he o ver-
dadeiro orgáo secretorio do puz que deila corre. Sua
natureza he ccllulozu , sua infíammaçáo oilèrece os
mesmos productos que a do tecido adipozo , o único
susceptivei de fornecer hum verdadeiro puz. Cada hum
dos botões carnosos , tem-se dito , pôde ser considera-
do como hum pequeno fleimão que passa por todos os
períodos da infíammaçáo , e fornece num liquido cujas
qualidades são análogas ao gráo desta affecçáo. Ke nes-
te sentido, que, seguindo Quesnay (i), do bom esta-
do das carnes dependem as qualidades louváveis do puz.
Se existe huma inrlammaçáo moderada , o puz he bran-
co , opaco , inodoro : se a inrlammaçáo he augmenta-
da , a superfície da ferida se desecca , a vermilhidão dos
botões augmenta , e seu contacto se toma mais dolo-
roso ■-, se pelo contrario a inflammação he languida , as
carnes perdem a sua cor vermelha e se fazem bavozas ,
molles e flácidas ; entáo o puz he soroso , sem con-
sistência , engrandece-se a ferida , e não dá passo algum
para a sua cicatrização.
Esta operação , pela qual a natureza cobre de
hum tegumento novo a porção da ferida sobre quem
a pelle se náo tem podido extender , começa pela cir-
Qumferencia , e a caba no centro ; da mesma maneira
que . em hum ajuntamento de aguas estagnadas , a eva-
poração commeç. 1 . a cesseccar a margem. Com tudo ,
ouando a ferida ofterece huma larga superfície , a cica-
triz se mostra , em diversos pontos de sua extensão ,
ao mesmo tempo que se forma nas suas bordas.
Os botões carnosos adherentes huns aos outros, se
evacuáo pela suppuraçáo dos sucos de que são cheios ,
apertáo-se sobre si mesmo , e formão , por esta reduc-
ção , assim como por sua mutua adherencia , huma mem-
brana ceilulosa , como o mostra a sua decomposição
pela agua , quando se submette á maceração. Bichat
vio
(i) Traité de la Suppuration in— 12.
59
vio muito bem e explicou este pbenomeno. Esta mem-
brana cellulosa , que se chama cicatriz , adhera á pelle
cuja natureza he a mesma. Comtudò , não he o assen-
to de alguma exhalaçáo; pelo menos, não he tão pres-
piravel como o resto do órgão cutâneo : a distincção
das partes náo re ahi estabelecida de hum modo táo
sensível ; ahi senáo encontra , como na pelle , borletes
nervozos , empalhados em papillas , e cubertos por hu-
ma rede mucoza. O seu epiderme he mais Jizo e mais
denso do que o que cobre o restante do corpo. O te-
cido destas cicatrizes goza táobem de huma menor ex-
tensibilidade que o da pelle ; isto explica sua rotura fá-
cil , principalmente quando sua extensão he considerá-
vel , e a precizáo que então tem de serem sustidas por
meios compressivos. Desta menor extens : bilidade depen-
dem ainda estas incommodas prizóes , eíFeitos de quei-
maduras , quando as partes se tem cicatrizado em huma
posição viciosa , que são depois obrigadas a conservar.
A cicatriz 3 rubra primeiro , se torna por gráos esbran-
quiçada , sua força e sua espessura augmenta; já mais
o seu aspecto se torna perfeitamente semelhante ao da
pelle.
A cicatriz tem precizáo , para se formar , que a
pelle que forma os lábios da ferida esteja perfeitamente
sá , e bem unida ás partes subjacentes : deve-se conti-
nuar com a pelle; e por isso já mais se vè partir de
huma porção de tegumento alterada pela enfermidade ,
ou despegada e separada das partes que deve cobrir.
Em fim , sendo a cicatriz huma membrana puramente
cellulosa , e resultante da vegetação e desenvolvimento
deste tecido , segue-se que se forma com mais facili-
dade nos lugares onde este existe em maior abundân-
cia. Sobre estas considerações , he fundado o preceito
de conservar a maior quantidade de tecido cellular pos-
sível nas operações cirr.rgicas , principalmente nas dissec-
ções dos tumores , e nas separações dos lambas com os
qttaes se propõe o cobrit-se as feridas qne resulúo das
operações.
Descrever o tratamento que convém ás feridas com
perda de substancia , he traçar as regras que se devem
seguir no tratamento das que sáo a consequência do
maior numero dai operações cirúrgicas ; e como o suc-
cesso destas ultimas depende mais do que se náo pen-
sa , dos cuidados que se prestáo ao seu tratamento ,
entraremos em todos os detalhes que exige a Therapeu-
tica das feridas que suppuráo. Huma ferida que suppura
tende por si mesma á cicatrizar-sé"; náo se trata pois
senão de obcejar os obstáculos que poderiáo retardar a
cura , ou mesmo tornalla impossível. Favorece-se o tra-
balho da natureza, pondo primeiro a ferida ao abrigo
do contacto do ar , o qual excita mui vivamente as par-
tes despidas do epiderme. He verdade que as feridas que
sobrevem fortuitamenre aos animaes , existem expostas ao
sen contacto, e náo obstante se curâo sem outro trata-
mento mais do que o que o animal lhe presta , lam-
bendo-as muitas vezes ; porém , os órgãos do homem ,
sendo dotados de huma maior excitabilidade , o ar os
excita mais vivamente , e caJa dia a experiência nos pro-
va , que as feridas descubertas , se dessecáo , se exci-
táo , se tornáo extremamente dolorosas , e que a violên-
cia da inílammaçáo se oppõe ao estabelecimento de hu-
ma boa suppuraçáo.
Cobrir-se-ha pois a ferida com pranchetas de fios :
esta substancia molle , e espongiosa , se embebe facil-
mente dos sucos que delia correm , ao mesmo tempo
que a p5e a abrigo da impressão excitante da atmosfe-
ra. Os fios feitos de hum pano de linho velho , são pre-
ferível náo só ao algodão , corno táobem á láa cardada.
As fibrias desta ultima substancia , menos brandas , que
as do linho, determinão huma mai -r inflammaçáo. Es-
tes fios seráo arranjados em pranchetas , de tamanho e
figura análogas ás dimenções da parte a que se appli-
ca ; por-se-háo brandamente , cobertas de muitas com-
pressas ; e todo o apparelho será mantido por algumas
voltas de atadura mediocremente apertadas , a fim de
que a fenda vindo á inchar-se pela inflammaçáo que
dei-
6i
delia se apodera , dores intoleraves não sejão o resulta*
do da viva pressão que exerceria a ligadura.
Não se deve tocar no primeiro apparelho senão ao
terceiro dia , e mesmo ao quarto , se a estação he fria ,
e a depravação dos fluidos menos prompta. Se se quer
curar ao rim de trinta e seis, ou quarenta e oito heras,
o apposito não humedecido se despega com cusro • ne-
cessita-se o dar-se puxões dolorosos , o excitamento se
lhe augmenta , e a suppuraçáo he retardada. Stra pre-
ciso imbeber o apparelho de agua tépida huma ou duas
horas , e nao hum ou dois dias antes do curativo ; por-
que esta humidade accelera a depuração do puz cujo
fétido incommoda sin ularmente os enfermos As com-
pressas e a atadura sendo tiradas, e aparte brandamen-
te sustida por «tentos ajudantes , levantáo-se docemente
os fios mais superíiciaes , conão-se com a tizoura a< ucl-
les cuja acfherencia he exgrema , e abandona-se o resto ,
tendo o cuidado de os cobrir com huma larga pranche-
ta untada de hum digestivo , tal como o ceroto , o ba-
zilicáo ou outro análogo. Estes corpos gordurosos d.rni-
ntuem a dor relaxando as partes , e retendo o puz que . '
corre da superfície ulcerada , facilitáo o despego dis
fios , que sua intima adherencia tinha embaraçado levan-
tar com o primeiro apposito.
Os curativos serão repetidos todas as vinte quatro
horas. Se a camará do enfermo he fria , será bom ter
hum brazido ao lado do apparelho , e de o não appli-
car , seja ás pranchetas , seja ás compressas , senão de-
pois de as haver ligeiramente aquecido. Toda a arte
dos curativos consiste em não os multiplicar sem necessi-
dade , em não imprimir á parte algum choque , em não
exercer algum puxão doloroso , em ajuntar em fim a abi-
lidade á celeridade ; porque , prolongando a impressão
do ar sobre as partes que suppurão , se lhe augmenta o
excitamento. Logo que a sahida do puz he bem esta-
belecida, que a ferida está, em plena suppuraçáo, co-
mo se diz , çobre-se a superfície cem pranchetas de fios
seccos j e se applicao tiras de ceroto sobre suas bordas.
Es-
6i
Esta ukima preeauçáo he sobre tudo indispensável no
tempo em que estas bordas começão a dessecar-sc , e
a cicatriz forrhando-se ahi , he preciso evitar-lhe o des-
pedaçamento.
A Academia de cirurgia exclamou com bom suc-
cesso contra o abuzo dos unguentos nas feridas que
suppuráo , e se deve datar a saudável reforma que se
tem operado neste objecto de Therapeutica , da época
errj que Fabre mostrou o absurdo das theorias recebidas
scbre a reproducção das carnes. A applicação dos un-
guentos extingue a inflammaçáo , relaxa os botões car-
nozos , diminue sua consistência , e es faz inchar , de
sorte que se preciza , para reprimir esta vegeraçáo vicio-
sa , tocaíios continuadamente com os cathereticos , taes
como o ahume calcinado, ou a pedra infernal ( sulfata
cie ahume , ou niterato de prata fundida ) ; não se un-
ta de hum digestivo as pranchetas , senão nos casos
onde a inflammaçáo he muito viva ; então mesmo se
lhe prerere huma Cataplasma einoiliente , applicada por
cima dos fios ou mesmo immediatamente sobre a ferida.
O principal fim que se deve propor no tratamento
de huma ferida que suppura , he manter o excitamento
n'hum grrío moderado ; muito brando ou muito vivo ,
em pede igualmente a cura. Se os botões carnozos que
cobrem a superfície da ferida , são mui pouco inflam-
mados , seu volume augmenta ao- mesmo tempo que
sua consistência diminue ; hum puz soroso corre des-
tas vegetações molles e descoradas , e bem longe de se
desengorgitar , a ferida sente huma sorte de infiltração ;
he o excitamento pelo contrario muito vivo, os botões
carnosos duros , rubros , sanguinolentos e dolorosos , a
secreção purulenta he empedida , e a ferida não faz.
algum progresso para a sua cicatrização. Conhcçe-se
facilmente que a condueta do pratico deve ser difFeren-
te nestes dois estados
He mais vezes necessário reanimar a acção langui-
da dos sólidos , do que conduzilia nos seus justos limi-
tes , e esta diminuição progressiva da acção orgânica
he
he huma consequência natural das leys vitaes. O habi-
to dos excitantes torna a ferida pouco excitavel. Os
fios seccos , que , nos primeiros tempos da moléstia , pro-
duz hum excitamento sufficiente , se torna por gráos
inhabil a entretello. Poder-se-hia então substituir com van-
tagem aos íios ordinários pranchetas feitas com algo-
dão Cardado e a láa lavada. Tenho , em muitas cir-
cunstancias, empregado com bom successo estas subs-
tancias , para operar a deterzão de antigas ulceras nas
quaes as carnes pcccavão por falta de tom. As obser-
vações microscópicas fazem ver que os corpos lanozos
e felpudos tem levantadas hum numero infinito de pe-
quenas pontas que tornáo seu tcque mais áspero do que
o dos fios feitos de pano de linho. Estas pontas se in-
troduzem no intervallo dos botões carnozos , e como
tantas pequenas agulhas , exercem sobre elles hum ex-
citamento mecânico mui considerável. Na pratica vul-
gar , se servem com não menos utilidade , dos fios
ordinários molhados no vinho melado, ou em hum co-
zimento das plantas deterzivas , taes como a flor do
sabugueiro-, o meliloio, o funcho ; porém neste géne-
ro de excitantes , nenhum me tem parecido mais erH-
caz que as folhas de nogueira. He conveniente reani-
mar a acção languida do systema vascular por meios
geraes tirados da ciasse dos „ fortificantes , ao mesmo
iempo que se desperta a excitabilidade da ferida por
remédios tópicos. Porém , na applicaçáo de huns e de
outros , não percais já mais de v ; sta que o excitamen-
to deve ser graduado , e que he preciso cada dia ac-
crescentar a doze dos medicamentos que o sustem ; o
habito diminue todos os dias suas virtudes.
A sangria , huma dieta restricta , os emoliientes so->
bre a ferida , taes são os meios de lhe moderar a in-
flammaçáo , quando he excessiva.
Algumas vezes o excitamento sendo moderado ,
os botões carnozos vegetáo com muita actividade , e
se eleváo acima das bordas da ferida de quem embara-
ça© a cicatrização. He quasi sempre para o fim do tra-
ta-
64
tamento que este estado se observa. He preciso então
diminuir a quantidade dos alimentos , e repremir as car-
nes, tocando as todos os dias com ligeiros cathereticcs.
A rerida que suppura deve ser considerada como
hum novo órgão secrctorio , cuja acção he libada á dos
outros órgãos da economia. Ora , o principio do sent -
mento e do movimento , geralmente espalhado nas di-
versas partes do corpo humano , náo pôde concentrar-
se sobre huma , sem que as outras sejão privadas deiie ,
e não soffiao , em consequência desta pivaçáo, hum
enfraquecimento proporcionado, ao crescimento da força -
e da acção que apprezenta o orgáo para o qual os mo-
vimentos se dirigem. ííe por isto , que a actividade do
estômago incommoda a do cérebro , e que a saúde de-
pende de hum justo equilíbrio na energia, dos principaes
órgãos da vida. A ferida suppurante precisa estar em
huma constance harmonia , com o resto do corpo. Hu-
ma forte appiicaçáo de espirito , pela qual os humores '
fossem chamados ao cérebro , a extrema repleção do
estômago , que fizesse desta víscera o centro, de huma
flucção viciosa , suspenderia o trabalho da suppurr ; çáo ,
e daria lugar aos acidentes os mais funestos. He deste
modo que se tem visto feridas dessecarem-se em con-
sequência" de huma contenção prolongada de espirito ,
e que , nos casos mais ordinários , a suppuraçáo, das fe-
ridas e das ulceras estanca em consequência de huma
indige&iQ. Em huma outra obra expuz factos desta na-
tureza , e reprehendi o costume em que estão ainda
alguns práticos , de levar sobre o peito os excitante?
que , nestas occasióes , devião ser applicados sobre a feri-
da. Huma dor punctoria sobre o lado , junta a huma extre-
ma difriculdade de respirar , e a huma febre a guda , indi-
cão, na verdade, aaíFecção do apparelho respiratório ; po-
rém se he verdade que os humores se dirigem para o>puI-
máo , e ameação suffocar o enfermo , < não he favo-
recer o afluxo , o augmentar o excitamento no lugar
onde este se manifesta, e náo he mais razoável o con-
tiuzillos para a ferida , produzindo ahi hum excitamen-
to
*5
superior ao que o pulmão sente sympathicamerite peio
estado de plenitude das vias digestivas ? Se he necessá-
rio acreditar a experiência , a escolha náo parecerá du-
vidoza. tenho visto constantemente en fermos succum-
bir depois da applicaçáo dos vesicatórios no lugar do-
loroso ; tenho visto salvar hum maior numero daquelles
para cjuem se tinha empregado o methodo opposto.
Náo omittirei nesta occasiáo o bservar quanto as
máximas muito exageradas "sáo perniciosas no exercí-
cio da nossa arte. He em consequência do famozo ada-
gio sobre a applicaçáo dos épispaticos loco dolemt , que
muitos práticos escolhem hum lugar arrastado da feri-
da , para por o visioatorio que deviáo applicar sobre
ella.
O mais ligeiro accesso febril basta para diminuir
ou suspender a secreção purulenta, eesta influencia no-
tável que experimenta a ferida da menor desordem da
economia , ia? que se possa olhar como hum excellen-
tc indicador desces desarranjamentos. Hum enrerroo do-
tado de espirito da observação , e que tem ha muitos
annoj huma ulcera em huma perna , entretida por hu-
ma necrozes na tibia , me tem commonicado huma
multidão de observações sobre as mudansas que expe-
rimentaváo as carnes pelos erros de regimen , pelos pra-
zeres da mesa e do amor , pelo uso de certos alimen-
tos, pelas paixões d' alma, e pela difterensa do paiz
cm que se demorava. O véo com que a natureza se co-
bre , e com que nos esconde suas operações , está ras-
gado pelo facto da ferida ; deve-nos oceultar jpenos os
segredos.
Náo se saberia prescrever hum grande repouso de
espirito e do corpo , huma grande regularidade no regi-
men , affasrar em huma palavra com cuidado o que pô-
de operar huma distracção muito considerável dns for-
cas , e evitar que ellas náo sejáo empregadas no cura-
tivo da ferida em suppuraçáo.
Os absorventes que nascem da sua superfície, chu-
pão sempre huma certa quantidade da matéria purulcn-
K ta
6b
fa; porem o transporte desta na torrente dos humores,
n?.o produz inconveniente algum , com tanto que o pu2
introduzido não seja em quantidade mui considerável ,
c que além disto náo tenha passado por alguma altera-
ção : levada na circulação , diversos emmonctorios des-
embaraçáo a economia ; náo seria mesmo impossível
que o puZ benigno, de natureza gilatino-albominoza ,
possa servir á nutrição; porém se he muito abundante,
se o seu contacto com o ar lhe comonica algum chei-
ro mais ou menos forte, qualidades excitantes, huma
febre hecnea nasce de sua absorção. Esta febre he fácil
a reconhecer pelas circunstancias de que tira a sua ou-
rigem , na pequenez e acceleração do pulso , na secura
da pelle , no calor habitual das palmas das mãos e das plan-
tas' dos pés, nos suores nocturnos, humas vezes parciaes
e limitados na cabeça , ou no peito , outras vezes ge-
raes, porém sempre debilitantes, e no em magreci-
mento rápido dó enfermo que as diarréas colliquoacti-
vas conduzem bem depressa ao marasme o mais completo.
Previnem-se os effeitos da reabsorção , combate-se a
diathese purulenta pelo uzo dos amargos , taes como
as infusões alkoolicas de genciana , os fortes cosimentos
de paciência e de almeirão , a kina administrada em
substancia , ou debaixo da forma de vinho ou de ex-
tracto , os remédios anti-scorbuticos , c\c.
A reabsorção muito considerável de puz pôde de-
pender da grandeza excessiva da ferida : pode tãoben*
depender do despego da pelle , dos sevos ou cavidades
nas quíés o puz se ajunta e demora, sobre tudo quan-
to aposição declive da parte favorece esta estagnação.
Nos últimos casos , dá-se ao membro huma posição tal
que favoreça a sahida do puz ; exerce-se sobre os focos
onde se demora , huma compressão expulsiva por meio
«te compressas graduadas em pirâmides , praticão-se in*
cizóes, c contra aberturas; em fim, repetem-se os cu-
rativos até duas ou três vezes por dia. Se os acciden-
tes persistem , a pezar destes cuidados locaes , e a ad-
ministração dos tónicos, nada pôde íalvar os dins do
cn-
*7
enfermo senão aprompta amputação da parte, quando
a situação da ferida permitte d'a hi recorrer.
Hum outro accidente não menos incommodo pôde
retardar a cura das feridas que suppurão : he conhecido
debaixo do nome de podridão ou gangrena do hospitai ,
termo impróprio , por quanto não existe mortificação
nos sólidos , mas simplesmente depravação de suas pro-
priedades vitaes , e por conseguinte necessária alteração
dos fluidos que a ferida fornece. Huma exaltação ma-
nifesta da excitabilidade precede e accompanha o esta-
belecimento da podridão do hospital»
A ferida cujus curativos não causavão senão peque-
nas dores, derepente se lhe tornáo vivas; seus lábios
se entumecem , sua extensão , sua profundidade augmen-
toã ; hum puz vicioso e. pegajoso cobre a sua superfí-
cie cinzenta -, não he raro ver os seus lábios entumeci-
dos sangrarem á cada curativo. Este estado dura alguns
dias , e algumas vezes mesmo se prolonga até a segun-
da ou terceira semana ; as propriedades vitaes se resta-
belecem no sen typo natural, o puz viciado se torna
benigno , os lábios se desengorgitáo e se abatem , a fe-
rida se diminue por gráos , e se reduz bem depressa
ás suas primitivas dimençóes.
Nada he mais obscuro que a éthiologia desta dege-
neração particular ás feridas que suppurão. Desauit ob-
servou , no hospital geral de Paris , que , nas enferma-
rias situadas sobre o rio , era mais commum do que
nas que estaváo menos próxima'- delle. Observa-se mais
frequentemente nos hospitaes onde estão juntos hum
grande numero de enfermos , do que na pratica parti-
cular. Raramente ataca alguns indivíduos : porem epi-
demica , se estende bem depressa a todos os enfermos
da mesma enfermaria , e algumas vezes aos de todo o
hospital. As enfermarias húmidas e pouco ventiladas ,
os tempos frios e chuvosos, parecem favorecer o seu
desenvolvimento. He muito ordinário o ver as feridas
tocadas de gangrena do hospital , quando o tempo he
tempestuoso e a tmosfera forremente eléctrica ; he huma
£ ii obser-
48
observação que tenho tido occasiáo de fazer nas visita^
da manhã j no hospital de S. Luis. quando, na noite
precedente , o repouzo dos enfermos tinha sido pertur-
bado pelos trovóej , e relâmpagos. Seria esta huma bel-
la occasiáo de dissertar muitos extensamente sobre ag
relações suspeitadas entre os nervos , o principio do sen-
timento , e o da electricidade.
A obscuridade de que se envolve a gangrena do
hospital , na maneira do operar de suas causas e sua
verdadeira natureza , se estende á escolha dos seus meios
curativos. Os soccorros tirados da hegiéne tem o pri-r
melro lugar. Facilitar a livre circulação de hum ar pu-
ro deseccar e temperar as enfermarias baixas e húmidas ,
corrigir os eífeitos funestos que sáo o rezulrado das
emanações animais , pelo emprego das fumigações com
vinagre, ou mesmo pe'o acido moriatico oxigenado,
como indica Guyton Morveau no seu tractado dos meios
de desinfectar o ar ; taes são as primeiras indicações a sa-
tisfazer. Se consultarmos os sentimentos dos authores ,
sobre os remédios externos qu? convém applicar , fica-
remos envolvidos em huma extranha perplexidade ; ex*
iste entre ellcs hum tal dessentlmento , que he preci-
zo eleger entre methodos absolutamente contrários. Huns
propõe os emollientes, es anodinos , cm banhos, ou
cm cathaplasmas ; outros lançáo mão dos anticepticos e
excitantes. Os primeiros dizem que estando manifesta-
mente augmentada o exciramento na ferida , he precizo
calmar e diminuir a excitabilidade exaltada ; os segundos
vendo , na pequenez do pulso , a prostração que accom-
panha , em muitos casos , a podridão do hospital , os
sinaes de huma debilidade evidente , aconselhão o levan-
tar as forças pelo uzo de hum vinho generozo , a kina ,
a cânfora , e outros tónicos. Querem que se pulverize
ao mesmo tempo a ferida com os pós astringentes , que
se lave com os cosimentos fortemente deterzives , como
a agua de sabão, o vinagre; que se cure com o storax
ou outras substancias balsâmicas. Cada hum delles cita
«uccessos em favor do ícu methodo , ou antes o pro~
lon-
6o
longamento da moléstia he quasí Igual , qualquer que
seja a maneira com que se trate. Posto que pareça qua-
si in.iifFercnte adoptar hum em casos semelhantes , pen-
so que os curativos repetidos , os banhos detersivos ,
hum regimen e remédios fortificantes são prcferiveis ,
com tanto que a extrema excitabilidade da renda , cor-
nando os curativos mui dolorosos , não obrigue a lan-
sar máo dos cmollientes e dos sedativos. Se huma féti-
da que suppura tem huma duração prolongada per al-
gum dos accidentes que temos demonstrado stm que
algum vicio inrerno ahi seja mistura io, não merece o
nome de ulcera , porque como odirenos em seu Lugar,
a dirferensa essencial entre a ferida e a ulcera he divi-
da a que huma causa interna entretém ou produz esta
ultima.
A cicatrização pôde ainda ser retardada pelo endu- .
recimento dos lábios da ferida. Não podendo a cicatriz
continuar-se senão com huma pelle sã , he impossível
que nasça na circunferência de huma ferida cercada d^
calosidades. Este estado dos lábios he mais ordinário nas
ulceras do que nas feridas ; he sempre a consequência às
huma prolongada inílammação , não muito viva papa
conduzir a suppuraçáo , porém que não pode com tudo
rezolver-se , o excitamento que a occasiana existindo
continuadamente e avocando sem cessar os humores na
parte. A theoria da formação das calozidades he sem-
pre a mesma , seja nas feridas , seja nas ulceras e nas
iistolas entretidas pela perfuração de hum condueto ex-
cretono. He assim que a passagem continuada das hu-
midades fecaes atravéz das fistolas vezinhas do anus,
entretém hum excitamento continuado no seu caminho ;
donde rezulta o endurecimento do tecido cellular : a
mesma cousa acontece nas fistolos ourinarias , pela fil-
tração da ourina atravéz do tecido do pirineo , ctc.
Quando òs lábios de huma ferida endurecem e se
tornão calozos , se devem a mollccer per meio^ de ca-
taplasmas , c se resistem aos emollientes , se farão sca-
rificaçóes , e mesmo levantar a porção a mais vezinha
da
7©
da ferida , se apelíe he secca , desorganisada , ou que
despegada náo possa contrahir adherencia : favorecer-sc*
ha esta exercendo sobre os lábios da ferida , huma com-
pressão ligeira , porém sustida , ao mesmo tempo que
se procura amollecellas com a applicaçáo dos emoli ien-
tes.
Em fim , náo se deve jamais esquecer que hum*
ferida que suppura tende por si mesma á cicatrização.
Esta se favorece enrretendo-lhe hum excitamento mode-
rado , e affhstando todos os obstáculos que podem in-
terceptar a marcha da natureza.
P.
GÉNERO TERCEIRO.
Picadas.
Osto que na sua accepção vulgar ^ ô termo pica-
das somente indica as lezões produzidas pela ponta de
huma agulha ou de outro qualquer instrumento igual-
mente aguçado , comprehencieremos , debaixo desta de-
nominação , todas as feridas que são feitas com instru-
mentos agudos, como huma espada, huma baioneta,
ou mesmo com a ponta mais ou menos aguçada de
hum instrumento cortante. Os práticos de todos ôs tem-
pos concordáo sobre agravidade que attribuem ás pica-
das; jamais, diz o maior numero, huma ferida iuflU
g'da por hum instrumento picante , pôde ser reputada
simples ; deve-se sempre esperar o desenvolvimento dos
accidentes os mais formidáveis , e empregar todos os
meios próprios a prevenillos. Esta opinião estabelecida
sobre a observação dos factos , he com tudo inuito ex-
agerada, como o provará õ muitos casos narrados neste
artigo. A imperfeita secção dos filetes nervozos era a
principal causa de que se fazia depender o perigo destas
sortes de feridas ; porém observai que a idea dos pu-
xões que nascião , dizia- se, desta divisão incompleta,
era evidentemente tirada nas theorias phiziologicas , ado-
ptadas então, e segundo as quaes os nervos eráo consi-
7 1
derados como cordas nabitualmenre tensas e vibrantes.
He verdade que o excitamehto hc menor , quando hum
nervo he cortado em totalidade , que he muitas vezes .
limitado nos labigs da divisão , em quanto que se esten-
de ao longo do nervo , quando só:nente alguns dos
seus filetes sáo orFendidos , e quo se diminue logo que
a arte acaba esta divisão.
Encontramos na maneira de obrar dos instrumentos
picantes , huma causa mais apparente do perigo que ar-
rastão as picadas. Huma navalha de barba applicada á
superfície de hum membro , pela menor pressão , en-
tráo na pelle as dentaçóes do seu corte ; se as partes
estão bem tensas , e que se limite a comprimir sobre o
dorço do instrumento , não corta senão com difficulda-
de , em quanto que o mais ligeiro roçamento opera hu-
ma divisão fácil. As laminas e as fibras dos tecidos or-
gânicos comprimida pela ponta de hum instrumendo pi-
cante , e sustidas pelas partes subjacentes , não se sepa-
rão senão depois que se tem alongado , tanto quanto
lhe permitte sua natureza; sua divisão se faz por huma
espécie de rompimento , e a contuzão a accompanha
tanto mais excessiva quanto a ponta do instrumento he
menos aguçada. As feridas feiras pela baioneta, appre-
zentão estas picadas com contuzão e rompimento ; sã©
táobem , igualmente em tudo mais graves do que as
que são produzidas pela ponta aguçada de huma espada ,
ou de hum instrumento cortante.
Hnm soldado da quinta companhia 4o primeiro ba-
talhão , do primeiro regimento da guarda de Paris , re-
cebeo , na parte superior da coxa direita , huma esto-
cada que attavessou obliquamente toda a espessura d»
membro •, c]irigia-se sobre a passagem ács vazos cururaes ,
e era difKcil o conceber como não tinhão sido offendi-
dos. Hum membro tão musculoso , penetrado na sua
porção mais cainoza , no lug.vr onde o envolvimento
apenevrotico tem muita espessura , a inevitável lezáo
de muitos riletes nervosos cururaes , o vigor do indivi-
duo , moço ainda , tudo fazia temei' a manifestação dos
simp-
simptomas os mais terríveis, com tudo , ná» sobreveio
aceidente algum , e no rim de três semanas sahio do
hospital fazendo o uso próprio do membro ; o cami-
nho do orifício estava tapado ; suas extremidades oíFe-
reciáo huma ligeira transudaçáo saniosa : no um de
hum mez , a cura se eíFectuou completamente, Todos
os cuidados se limparão a applicaçáo de huma pranche-
ta de fios nas extremidades da ferida.
M. de M. batendo-se em duello , foi ferido de hu-
ma estocada no braço direito ; tendo o antebraço em
meia flexão , a mão em huma forte pronaçáo , todo o
membro encolhido, e voltado para aparte externa na
posição que requer o estar em guarda. A espada era
triangular , do género dos verdugos. Penetrou a parte in-
terna e inferior do antebraço , raspou o lado radial do
cubitus , penetrou a artéria cubital , e tendo deste mo-
do atravessado o membro , por haver sido imprimida
com muita força veio penetrar de parte a parte as car-
nes da parte superior e externa do braço. Esta ultima
ierida só interessava o tegumento commum e o deltói-
des. A artéria cubital laqueo-se , a ferida do braço se
curou por primeira intensio. A do antebraço suppurou ,
demorando-se a sua cura mais algum tempo , porém
não, sendo embaraçada por algum accidenre.
Tenho frequentemente reunido por primeira inten-
sáo as picadas feitas com a ponta de hum traçado ou,
de huma espada , cobrindo os redores da ferida com
hum emplasao agghninativo , mui tenaz , e no maior
numero dos casos tenho obtido a reunião immediata.
De num outro lado , os livros dos observadores abun-
dáo em exemplos de picadas cujo excito tem sido fu-
nesto. ( O que devemos pois adoptar neste choque de
factos contraditórios? O seguinte. O perigo das picadas
um sido muito exagerado. He relativo á natureza das
partes interessadas ; e por isso tendo huma espada 4
atravessando a axilla , despedaçado muitos ramos do
plexo brachial , ou fendido o couto cabello^o , onde se
<le§tribuem filetes nervosos em grande quantidade, fará
hu-
1\
huma ofFensa muito mais grave do cjue a que interessa
a gordura e os músculos das partes carnozas dos nos-
sos membros. Quando ha motivo de pensar que os ac-
cidentes que sobrevem á huma picada , dependem da
secçáo imperfeita dos filetes nervosos 3 ou da infiltração
do sangue ao qual huma abertura exterior , muito es-
treita , náo permitte huma sahida fácil , ahi se remedia-
rá engrandecendo- se a ferida , por meio do instrumento
cortante , sempre preferível ao cáustico.
As picadas das sangrias , posto que praticadas para
hum fim saudável , algumas vezes são seguidas de fu-
nestas consequências; dores vivas e intuleraveis , se ma-
nifestáo depois da cizura ; as mais das vezes apenas
sensíveis , o braço se cngorgita e se entumece , algumas
vezes mesmo cahe em gangrena , e o enfermo morre.
Sendo o cirurgião consultado nestes casos nunca se es-
3ueça de dizer que a sangria he incapa:: por si mesma ,
e produzir iguaes consequências , que náo he jamais
senão a causa occasional dos accidentcs que ahi se ma-
nifestarão , e que he preciso attribmllos ás disposições
<3o individuo , e não a empericia ào operador. O en-
grandecimento da ferida pelo instrumento cortante, he
o melhor meio a empregar ; deve ser feito com a pre-
caução de não estender a secção alem da apenevroz ;
os sedativos teráó sido não obstante preliminarmente
administrados ; muitas vezes tornão a operação inútil ,
como aconteceo a Ambrozio Pare quando se preparava
a tocar com o óleo fervente , o fundo de huma san-
gria feita ao Rei Carlos IX.
Existe huma dirFerensa bem grande nesta dilatação
prudente ao horrorozo procedimento que se acha acon-
selhado na cirurgia de Benjamim Bell. Os accidentes
que sobrevem a sangria são violentos e insistem , cortai ,
diz este cirurgião , as carnes até o osso : hum tão revol-
r?.nte absurdo he digno de toda a refutação.
GE-
N.
?4
GÉNERO QUARTO.
Contuzoes.
AO deve admirar o encontrar-se a contuzáo en-
tre .as feridas , formando hum género separado nesta
ordem de enfermidades. Neste estado , existe constante-
mente solução de continuidade, apparente quando a
pelle he cortada , oceulta , quando a pelle tendo resis-
tido á causa vulnera nte , a divisão não he operada se-
não nas partes subjacentes. Para conceber o mecanismo
da contuzáo , basta o dar attensáo a extensibilidade da
pelle, membrana susceptível de se alongar debaixo do
corpo que a toca , em quanto que as pequenas artérias
que s: espalháo debaixo do tecido cellular subcutâneo ,
incapazes d: hum igual gráo de extensão , se despeda-
çao , e dão sahida ao sangue que contém. Este fluido
então estravasado nas areolas do tecido cellular, ahi for-
ma mesmo coileçócs assas consideráveis , logo que a
contuzáo he violenta , como as elevações do couro ca-
beilozo e da testa fornecem disto exemplos.
A extensão da contuzáo anda sempre em razão
directa da largura do corpo contundente , da velocida-
de , com que nos toca , ou da quantidade da força que
lhe he imprimida , c da resistência que lhe] oppóe nos-
sos orgáos. As pancadas impellidas pela expluzáo da
pólvora produzem as contuzoes as mais fortes ; porém
os accidentes que complicão estas sortes de feridas , úo
tão numerosos e tão particulares , que se tem sempre
tratado separadamente debaixo do nome de feridas de
armas de fogo , nos livros da nossa arte , e que julga-
mos dever fazer delias hum género diftetente das feri-
das contuzas ordinárias. A contuzáo accompanha qua-
zi inevitavelmente o maior numero das feridas. As que
faz o corte de hum traçado pouco aguçado , ou a
ponra romba d© huma baioneta e de hum florete par-
ricipáo tanto da contuzáo como da incizáo e da pica-
da;
75
da ; «sim a sua reunião immediata he táo difficil com©
as das feridas contuzas.
Em váo se tentaria reunir os lábios de huma feri-
da deste género , a aglutinação a onde poderá ter lu-
gar será no seu fundo , onde a contuzáo he menor ;
externamente , a suppuração he inevitável. Deve-se com
tudo tentar esta reunião, sem apertar muito os lábios
contundidos , porque a inchação iuflammatoria mais ou
menos considerável , que lhe deve sobrevir , faria todo
o aperto doloroso.
Se tratardes de hum homem que tenha recebido
algumas pancadas de páo sobre qualquer parte do cor-
po ; náo estando a pelle dividida , nem muito contuza ,
tratai só de cobrir o lugar aftectado , com compressas
molhadas em hum liquido rezolutivo ; renovai-lhe esta
applicação no rim de doze horas , e se a dor he viva ,
que a intlammaçao se annuncia pela inchaçãoe o ru-
bor , substituilhe as cathaplasmas emollientes aos cosi-
mentos rezolutivos Senão houver contraindicaçáo ; con-
vém logo sangrar o individuo que soífreo huma forte
contuzáo ; he hum dos melhores meios que a arte pos-
sue para prevenir-lhe as consequências.
Se a pelle he dividida , e as carnes separadas pela
violência da contuzáo , a sangria he então de huma
absoluta necessidade. A ferida deve ser curada com
brandos fios. Unta-se as pranchetas com huma camada
de ceroto , ou , o que he melhor , applica-se por cima
dos fios huma larga cathaplasma para cobrir os redores
da ferida. Os fios e a cathaplasma serão renovados ao
menos huma vez todos os dias; em huma palavra, o
tratamento será o mesmo que se applica nas feridas
que suppur.jo. A reunião se fará tanto mais vagarosa ,
quanto 'as partes contuzas terão sido mais dilaceradas
ou reduzidas cm hum estalo mais ou menos próximo
da desorganisaçáo. Os gráos da contuzáo são mui nu-
merosos , desde a extensão forçada dos tecidos , a ro-
tura de alguns capillares , e a ecehymozc ou nódoa res-
ultante da exti-avazaçào do sangue é até a attrjçáo com-
plc-
7<*
pleta ou a desorganização tor.il do tecido offendido.
Quando Tenon queria pintar , este gráo de contuzáo ex-
trema , onde os líquidos derramados estão confuzamente
misturados com os fragmentos dos sólidos , pizava huma
folha de couve , e com ella fazia a comparação desta
qualidede de contuzáo aos seus ouvintes.
Nas simple contuzóes , assim como nas feridas con-
tuzas , o sangue extravazado dá á pelie huma cor obscu-
ra que por çráos se vai exclarecendo , passa a cor viole-
te , depois á amarello , á proporção que a ecchymoze
augmenta deexentão. Neste estado de enfermidade , de-
ve-se lansar mão dos rezolutivos pela appiieaçáo dos
quaes a absorção dos sucos estagnados se torna fácil.
A contuzáo , no maior numero dos cazos , deve ser
considerada como hum accidentente , e não como huma
afFecção essencial ; he por isto que inseparável das fractu-
ras, pode ser olhada com hum simptoma constante des-
tas enfermidades. . Seus effeitos , relativamente ás vísceras
contidas nas grandes cavidades , são igualmente muito
variados e muito perigozos para que se possa fazer del-
les o assumpto de huma theze geral.
Quando , a acçáo dos corpos contumdentes se dis-
tende alem das partes molles até os ossos , e os despe-
daça ordinariamente fazendo-lhe esquirolas ; a ferida en-
tra então no género das facturas comminutivas.
A contuzáo dos músculos e dos nervos lhe parelyza
a acçáo , enfraquece as paredes dos vazos , e se torna
huma cauza fecunda de aneurismas e de varizes. v\ss:m
pois, considerada comoaccidente , ou como cauza da en-
fermidade , seoíFerecerá freq.u^ncemen te no progresso des-
te curso , e este artigo náo formará se náo a menor par-
te de sua historia.
Náo he sempre fácil o julgar da extensão , e da
gravidade de huma contuzáo que acaba de acontecer. M.
G. Thesoure : ro da guarda de Pariz , foi lançado fora
de sua carruagem , que se tombou ; huma das rodas lhe
cahio sobre a perna esquerda , onde termina o corpo
earnozo des gemei! o;- Sendo chamado meia hora de-
pois
7*
pois do accidente , observeis , entre outras feridas , hum*,
depressão obliqua na' pelle do lugar ind ; cado. Tinha afi-
gura de huma goteira na qual o dedo indicador podia fa-
cilmente caber ; a inchação inflamatória que sobreveio ,
elevou nesta parte a pelle ao nivel dos tegumentos , e
nada mostrava a morteficaçá , passados sete ou outo dias ,
dores vivas sobrevem espontaneamente , o inchaço infla-
matório se despertou , e duas pequenas escaras se forma-
rão aos lados da porção da pelle contuza. Tratada pelos
emollientes , depois pelos deterzivos 3 esta ferida se cica-
trizou assaz promptamente.
As dilacerações e r.s feridas feita por violentos pu-
xões podem s^r arranjadas no numero das feridas con-
tuzas. Elias são com rudo seguidas de hum maior pe-
rigo, em razão da distineção excessiva que as partes sof-
lrem A consecencia frequente destas feridas he o te-
tenismo ; simptoma quazi sempre mortal. Os indivíduos
de hum temperamento athiectico , os de menor idade ,
os adultos , e os habitantes dos paizes quentes são os
mais expostos a esta funesta complicação. Não he raro
nas Antilhas , ver os negros que tendo cravado hum
espinho na planta do pé, morrerem tetanos, a pezar
que a picada seja pouco profunda , e o despedaçamento
ligueiro.
As feridas feitas por distincçôes violentas , de que
a cirurgia de Lnmotte, as Memorias da Academia de
Cirurgia, e as Transacções Phylozcrficas nos fornecem
tres notáveis observações , mostráo isto desingukr , que
as grandes artérias despedaçadas , quando as partes tem
sido separadas do corpo , se apertão pelas pizaduras que
experimentáo , e que seja por este effeito espasmódico ,
cu seja pela compressão que exercem os músculos so-
bre ellas entre os quaes a artérias se retrahem , a he-
morragia não sobrevem. Não he :em admiração que se
vio Sàmnel Vcod izento deste accidente , depois da ro-
tura da axillar vazo de hum grande calibre , e muito
vezinho do coração , onde o movimento da projeçáo do
sangue ahi conserva toda a sua , força. Se se he cha-
ma,
7*
n»do em hum semelhante caso , o braço e honiopla-
ta estando inteiramente separados do tronco , dever-se-ha
procurar com cuidado o extremo da artéria rompida ,
a fim de prevenir eficazmente por sua ligadura huma
effusão de sangue que, em poucos instantes, seria mui-
to considerável e causaria a morte. Reunir os lambós dos
músculos e dos tegumentos , cobrir a ferida com pran-
chetas de brandos rios sem exercer alguma compressão ,
prevenir, por fortes sanarias, huma dieta severa, e os
antispasmodicos , os accidentes inrlammatorios e nervosos
que se devem temer ; tal he a conducta a seguir nestas
iferidas , que se não curáo jamais se não pela supura-
ção.
As feridas contusas ordinárias sendo assas muitas
vezes o resultado do choque cie hum corpo frágil , hu-
ma garrafa , por exemplo , podem apresentar íragmen-
tos destsá corpos cravados nas carnes , occultando-se al-
gumas vezes á vista do cirurgião , e causando hum ex-
citamento muito vive. He preciso indagar com cuidado
estes corpos estranhos , para fazer a sua extracção sem
demora. A dor , a ínrlammaçáo , o tetenismo náo sáo
os sos acedentes que possáo resultar de sua presença.
Tem se visto, em alguns casos, a supporaçáo prolon-
gar-se indifinidamente , entretida por hum corpo extra-
nho oceulto no seyo da ferida. Em outros casos porem
raros , cicatriza-se , e depois torna-se a abrir para dar
sahida ao fragmento de vidro, de quem se tinha des-
presado a indagação e a extracção.
GÉNERO QUINTO.
Feridas de armas de fogo.
Jf RODUZIDAS por corpos que póe em movimen?
to a expulsão da pólvora , estas feridas sáo caracterisa-
das pela desorganização de suas superfícies. A extremai
contusão ou antes a pizadura que se observa nas feri-
das de armas de fogo , depende da rapidez com que ho
mo-
movido o corpo ^ue' as produzio. As partes que toca sac
convertidas em huma escara negra , cuja cor tinha feito
penssar aos antigos , que os corpos expellidos pela pól-
vora , se aqueciáo e causaváo verdadeiras queimaduras.
A razão e a experiência tem mostrado que por maiot
que seja a presteza de hum projéctil , não adquire ca-
lor sensível no seu caminho. O gráo de calor que tor-
naria huma bala capaz de queimar nossas partes, ara-
ria entrar em fuáso.
As feridas de armas de fogo náo sáo sanguinolen-
tas á excepção de quando algum vaZo considerável for
offendido \ suas circunsferencíãs sáo Lívidas \ e o choque
de que sãô acompanhadas he tão vivo e táo prompto ,
que o membro affectado experimenta , em consequên-
cia desta commoção , huma espécie de estupor do qual
frequentemente toda a economia participa.
A historia e o tratamento das feridas de armas de
fogo erão infectados de idéas falsas , e de erros prejudi-
«liciaes, antes que Ambrozio Pare lhe tivesse estabele-
cido a verdadeira theoria. As balas de artelharia e de
mosquetaria produzem, algumas vezes, sem dividir &
peile , as mais graves lesões : tem-se visto partes molles
de hum membro reduzidas a huma espécie de massa ,
os mesmos ossos despedaçados , apesar que os tegumen-
tos estivessem intactos, e muito tempo se attribuio este
effeito á mudança do ar , pelosprojecris. Julgava-se que
este fluido elástico movido com presteza pelo choque
da bala , podia comprimir os corpos que nos rodeiáo
com assas violência para despedaçar o stecidos ■■, porem
como poderemos conceber huma pressão táo consi-
derável, nomeio do át livre; o effeito observado deve-
ria constantemente ter lugar , quando huma bala passa
perto , e vc-se iodos os dias levar o chapco , o pena-
cho , o vestido , e mesmo os cabellos dos nossos guer-
reiros sem que experimentem alguma outra offença.
A acção obliqua das balas sobre as nossas partes,
explica facilmente este effeito de huma contusão extre-
ma , sem divisão da peita Algumas vezes táobeav de-
pen*
8o
pinde da fraqueza com que estes corpos chocáo o nos-
so , tendo consumido toda a quantidade de movimento
que lhes tinha sido imprimida , não obráo senão em vir-
tude de seu pezo. Designa-se então com o nome de ba-
las mortas.
Quando estas contusões por armas de fogo sáo hum
pouco vivas , os músculos e tecido cellular pizados , e
redusidos á huma espécie de massa semelhante á lia do
vinho, os ossos expedaçados, ornais das vezes o mem-
bro está em hum estado de estupor por que conduz
quasi inevitavelmente a gangrena após si. .
A ferida de arma de fogo pôde ter huma ou duas
aberturas ; huma quando a bala tica mais ou menos pro-
fundamente na espessura da parte , duas , quando atra-
vessa inteiramente. Neste ultimo caso , as duas abertu-
ras sáo diametralmente oppostas no maior numero ; mui-
tas vezes , com tudo , a sahida não corresponde exacta-
mente á entrada ; rendo sido mudada a direcção da bala
pela opposiçáo de hum osso , de huma cartilagem , ou
mesmo de huma apenevroz. He deste modo que se tem
visto huma bala que tinha penetrado a pelle da perna
junto ao maleolo tjbia! , ensinuar-se entre a tíbia , e a
mesma pelle, sobir e sahir junto ao joelho ; outras ve-
zes , tendo ferido o rosto , sahir pela região temporal ,
etc. Os livros citáo em multidão exemplos destas <leviar
çóes singulares.
As feridas de armas de fogo, e he sobre tudo das
produzidas pelas balas , que aqui se trata , porque são
estas as mais communs , tem geralmente a forma do
corpo que as produz ; sáo redondas , quadradas , ou
oblongas como elles ; porém quando as feridas tem duas
aberturas , a da entrada he constantemente mais peque-
na que a da sahida : seus lábios são depremidos , ahi
ha depressão na entrada , em quanto que as partes são
como elevadas, e formão tumor na sahida. Esta difiè-
rença depende de que no momento em que a bala en-
.conrra o membro , o fere com toda a sua força , que
perde á proporção que se crava na espessura das par-
tes,
8i
tes , vencendo a sua resistência. A pelíe , no lugar d»
sntrada , he sustida por toda a espessura do membro i
este ponto de apoio favorece a solução de continuidade ,
e previne o despedaçamento ; a contusão he táobem ,
pela mesma razão , maior na entrada da bala , e quan-
do o inchaço , sempre proporcionado á contusão , so-
brevem , a diflerença entre as duas aberturas he mais
demonstrada , a entrada he mais estreita que a sahida.
As explicações que acabamos de dar são totalmente
fundadas, que seguindo a observação deLedran nas feri-
das de armas de fogo no craneo , ahi náo ha alguma
difterença entre as abertutas da entrada e da sahida , sen-
do o ponto de apoio o mesmo para a bala que entra ou
que sahe.
A cor amarella e lívida das circumferencias de huma
ferida de arma de fogo , depende da infiltração do san-
gue pisado violentamente: a escara cppondo-se á sahi-
da dos humores , estes infiltráo a parte e augmentáo
muito a gravidade da ferida. A parte ofFendida he ador-
mecida , pisada , e neste estado de assombro e de estu-
por , mal se defende contra o afluxo dos líquidos ; a
actividade orgânica sendo quasi totalmente extintea, lhe
sobrevem a gangrena , e faz os mais rápidos progressos.
Este estado de estupor e de insensibilidade he sobre tu-
do funesto quando todo o corpo o experimenta, e isto
acontece em consequência das commoçóes violentas ,
quando hum osso tem sido tocado por huma biscainha
(i), huma bala de maior calibre, hum outro corpo de
maior calibre , ou hum outro corpo de hum certo vo-
lume. He v neste estado que morreu o Chevau- leger de
quem falia Quesnay ; o estado de estupidez neste indi-
viduo era tal , que propondo-se-lhe a amputação da per-
na, respondeu que esse náo era o seu negocio.
Ve-se a amarelidáo sobrevir derepente nas feridas
de armas de fogo, a horripilação , as sincopes, e ou-
F tros
f O Espingarda de maior alcance , do que as ordinaiiM.
' - Not. do Tradwc.
82
íros accidentes «ervozos que faziáo pensar aos antigos
ãue a pólvora levava ás feridas algum veneno o cculto ; po-
rém basta a attriçáo que experimentáo os orgáos , o cho-
que violento de que participa mais ou menos toda a ma-
quina , para explicar as suas consequências as mais terríveis.
Não ha feridas , que sejáo mais sujeitas a occul-
tar sua causa , do que as de armas de fogo , isto he ,
que a complicação dos corpos extranhos ex stc muitas
vezes neste género de feridas. Estes corpos ou são a
mesma bala , ou porções de fato que ella crava nas car-
nes. Quando a ferida náo tem mais que huma abertu-
ra , he provável que encerre hum corpo extranho: isto
náo he com tudo certo ; citáo-se casos em que a bala
que tinha feito huma ferida de algumas polegadas de
profundidade , tem sido achada na camiza do fer do.
Então, o vestido náo está rasgado, somente tem sido
cravado na ferida.
Quando esta tem duas aberturas , póde-se conjectu-
rar , que a bala sahio ; porém então porções do vestido
podem ter restado no caminho , e isto he tanto mais
fácil , quanto estes corpos mais ligeiros e empurrados
por huma menor força que a bala , náo podem divagar o
mesmo espaço que ella.
Assim pois , a primeira indicação que aprezenta
huma ferida de armas de fogo , he de proceder a inda-
gação dos corpos extranhos de que pode estar compli-
c.da. Nada pôde contraindicar esta indagação , senão
o peri o de causar, despegando alguma escara, huma
hemorragia que senão poderia suspender. Diversos meios
tem sido empregados tanto para o reconhecimento dos
corpos extranhos , como para a extracção das balas e
outras substancias que podem conter a ferida: o saca*
bàlas , em forma de colher , a-; pinsas de anneis ou de
tira fundos, tem vogado; porém os dedos lhes-sáo pre-
feríveis , quando estes bastão para aicansar o corpo ex-
tranho , porque a resistência que offerecem os ossos ,
e os tendões que podem existir no caminho da ferida,
farão persuadir a existência destes corpos.
Con-
8?
Convém, na indagação dos corpos extranhos de
que se complicão as feridas de armas de fogo , o situar
o enrermo na mesma atitude em que estava no momen-
to da ferida. Foi a favor desta precaução , pelo cuida-
do de apalpar as circumferencias da ferida , que Ambro-
zio Pare encontrou no Marechal de Brissac huma bala
collocada entre o homoplata , e a columna vertebral ,
que tinha escapado ás indagações , que tinháo feito
muitos cirurgiões com a sonda (i).
Não deve esquecer , que as balas podem soffrer
deviaçóes muito singulares. Para cjue experimentem esta
mudança de direcções, não he necessário que encon-
trem sempre ossos , cartilagem ou tendões na sua pas-
sagem. A única differença dos meios , como o observa
judie iozamente Levacher , em huma memoria imprimi-
da depois da de Lamartiniere , no principio do quarto
volume da Academia de Cirurgia, deve operar huma
sorte de refracçáo ; e pois que a agua basta para desviar
a bala da linha recta , as partes molles do corpo pro-
duzirão este eífeito de hum modo tanto mais manifes-
to , quanto sua densidade excede mais sobre a de hum
simples liquido.
Estas deviaçóes das balas podem fazer crer a sua pe-
netração nas cavidades , de quem tem semente divagado a
superricie. Tal foi certamente o caso de hum rapaz
tambor das guardas Suissas , que recebeu , a dez de
Agosto , hum tiro na espádua. A bala tinha ferido a^a-
xo da clavícula , e se tinha dirigido por baixo do an-
gulo inferior do homoplata. M. Boyer a fez sahir ,
praticando ahi huma contraabertura. < Como teria po-
dido atravessar aparte superior do peito , sem oíFender
alguns dos órgãos importantes que se teriáo offerecidp
no seu caminho ? Alem disto apresentava asper.dades
que provavão evidentemente que tinha roçado contra
partes ósseas.
Em certas occasióes, apezar das pesquisaçóes as
F ii mais-
(0 (Suvrw XI. livre.
84
mais exactas , senão pode obter o reconhecerem-se as ba-
las ; per haverem estas descripto hum caminho total-
mente tortuozo j peia opposiçáo das partes duras, que
rem encontrado , fazendo-lhe totalmente mudar a sua
direcção , e se faz impossível então alcançarem-se. En-
tão , explorando atientamente os redores da ferida , exa-
minando sobre tudo o lugar diametralmente opposto ,
se pode sentir o corpo extranho ativ.vez de huma es-
pessura mais ou menos considerável das partes , que hs
preciso cortar para se fazer a extracção delle. Deve-
mo nos decidir a praticar esta centraabertura , logo que
tendo feito todas as diligencias para o exrrahir pelo ca-
minho que franqueou, o não \ odemos obter; cu que
para fazermos estas diligencias , produzimos ao enfermo
dores insupporiaveis. Além disto , a nova abertura faci-
lita a sahida do puz , c abrevia singularmente a enfer-
midade , quando esta se prolonga pela stagnaçáo deste
humor , se a ferida he protunda , e não tem mais que
huma só abertura.
He preciso não poupar nem seu tempo nem seus
cuidados para fazer a extracção dos corpos extranhos j
sua presensa he huma causa de excitamento sempre
subsistente , figgravao os accldentes das feridas , e as fa-
zem as mais cks vezes degenerar em fistulas , muitas
vezes , comtudo , as balas restão a ninhadas nes ossos
durante huma longa serie de annós, e isto sem perigo
e sem dor. Em certos casos, correm longos caminhos
por baixo da pelle, dirigindo-se atravez do tecido cellu-r
lar sem causar inftammaçao. Tem-se visto balis , depois
de se demorarem no corpo muito tempo , causarem em
fim o excicamento, e determinarem huma suppuraçio
que as arrasta com o seu produeto. Não se deve inssis-
tir na indagação dos corpos extranhos, esta obstinação
seria infinitamente prejudicial augmentando-lhe o excica-
mento ; quando he diGcil o ençóntrarem-se , vale mais
abandonar á natureza o cuidado cia sua cx pulsação.
• ( Precisa-se constantemente engrandecer as feridas
de armas de fogo ampliando as suas aberturas? Alguns
. auc-
8?
authores tem Feito do debriâamenio hum preceito ge-
ral nestas feridas. Esta operação , dizem elles , alem
de que facilita singularmente a indagação dos corpos
extranhos , previne o estrangulamento das partes, logq
que lhe sobrevenha s inchação inflammatoria. Outros
práticos mais timidos tem chegado até a fazer a pros-
cripçáo dos debridamentos em todos os caâos. Estais
'• :izóes, segundo elles, augmentáo a desordem local,
facilitáo a gangrena , e náo são sem perigo relativamen-
te aos tendões , aos vasos , e aos nervos que ahi po-
dem ser interessados. He verdade que a pratica do de-
bridamento tem sido levada ate ao excesso ; porém a
Eroscripçáo do abuzo se náo deve estender até ao uzo;
e pois indispensável o fixar os casos , nos quaes esu
precaução he indicada.
O debridamento he inútil nas feridas das parte> .
pouco carnozas , taes como o craneo , a parte inferior
da perna, o pé, o punho ,. e a mao. O grande numero
de ^ervos e de tendões que se encontrão nestas ultimas
partes , torna qualquer incizáo perigoza ; náo se deve te-
mer ahi a excessiva inchação dos músculos, excepto
na palma da mão onde estes orgáos são mais numero-
zos e ofFerecem alguma espessura. Em rim nas partes ,
que acabo de nomear , a extracção dos corpos extranhos
he sempre fácil. Hum soldado da guarda de Paris
fecebeo hnma bala no dorso da mão ; embaraçou-se
no intervallo do terceiro e quarto ossos meiacarpian-
nos ; peguei-liie com huma pinsa de disseccar e fa-
cilmente a extrahio ; náo engrandeci a ferida , porém
simplesmente a cobri com huma prancheta untada de
ceroto : curou-se sem accidentes. Póde-se olhar o de-
brijamenro como inútil nas partes pouco carnozas , onde
a inchação he por consequência muito limitada. He pe-
rigozo , qualquer que seja a parte ferida , quando ahi
ha estupor. Os sólidos cujas propriedade?; vitaes estão
enfraquecidas, cahiriáo em hum relaxamento total, e a
gangrena seria sua inevitável consequência.
O debridamento náo. he positivamente indicado ,
náo
8<S
não he indispensável senão nos casos onde hum mem-
bro he atravessado por huma bala na parte carnoza,
nos lugares , onde muitos músculos se acháo involvidos
por huma aponevroze mais ou menos espessa. Supponha-
mos que a coxa he atravessada na sua parte media,
sem que o fernur ou a artéria curúral sejáo ofTendidos.
A inchação inflammatoria que deve inevitavelmente so-
brevir, dobrará ao menos o volume das massas muscu-
lares , o envolvimento aponevrotico rezistirá á sua tu-
mefacçáo , e a dor que resultar da compressão , junta
ao engorgitamento humoral, conduzirá infalivelmente a
gangrena. O debridamento he indicado para prevenir
este estrangularmento incommodo ; devem- se engrande-
cer as aberturas da ferida , não para mudar sua forma
redonda que os antigos reputaváo excessivamente perni-
ciosa , mas para relaxar a aponevroze fascia-lstta.
Emprega-se para este debridamento hum bisturim
de botão ; o dedo index lhe serve de conducter. A mes-
ma aponevroze será fendida na extensão de muitas pole-
gadas , e , para que os músculos não ração hérnia a
favor de hum* simples incizão longitudinal , corta-se
atravez , e mesmo em outras direcções , se se julga con-
veniente. He preciso debridar profundamente em todo
o caminho da ferida , se isto he possível , aííastando-se
sempre dos lugares em que a anathomia ensina que ex-
istem os vasos e os nervos , cuja secção seria perigo-
za ; para isto servir-se-ha de hum bisturim de lamina
recta e comprida , terminada em botão semelhante ao
que alguns práticos empregáo para a incizão do annel
na operação da hérnia inguinal ; fazer-se-ha cortar car-
regando sobre o seu dorso, com o dedo indicador da
mão esquerda , que he preferível a qualquer outro con-
ductor j Quando se tem debridado assaz largamente
para que os musculos não sejáo opprimidos pela apo-
nevroze no inchaço que deve sobrevir , deve-se pôr
hum sedenho no caminho da ferida ?
Muitos práticos o aconselháo e empregáo para fa-
vorecer , dizem elles, a suppuraçáo e a separação das
8?
escaras. < Porém não se deve considerar antes o sede-
nho como hum corpo extranho , cuja presensa augmenta
o e citamento , e a inchação inflaimmatoria ? Náo se
muda já mais sem causar muitas dores , principalmente
quando hum cordão nervozo se comprehenàe na ferida.
Ás escaras se separáo , huma vez que a suppuraçáo esteia
bem estabelecida. O sedenho he pois perigozo em alguns
casos , e quando náo occasiona algum accidente , ao me-
nos póde-se olhar como inútil.
He ao acaso , e náo ao seu génio , que Ambrozio
Pare deveo a útil descuberta do verdadeiro methodo a
empregar no tratamento das feridas de armas de fogo.
Cruel , por ignorância , a Cirurgia de seu tempo , appli-
cava os e-.perituosos . e os cáusticos a estas feridas ;
Ambrozo Pare empregado no exercito Francez , no cer-
co de Turin , seguia esta rotina mortífera , e cauteriza-
va as feridas com óleo ds sabugueiro fervente, ao qual
misturava huma pouca de triaga , segundo o preceto
que dá João Devigo , no seu primeiro capitulo das fe-
ridas : c< Em fim, meu óleo me faltou, e fui obr;g;í-
„ do a applicar em seu lugar hum digestivo feito de
,, gema d' ovo , óleo rozado e terebentina. A noite,
)} a náo pude dormir a meu gosto , temendo , por lal-
„ ta de ter cauterizado , o encontrar os feridos , a quem
„ tinha faltado o deitar o dito óleo , mortos envene-
„ nados , que me fez levantar muito cedo para os vi-
„ zitar, onde, fora de minha esperança, encontrei os
„ em que tinha posto o medicamento digestivo , senti-
„ rem poucas dores , e suas feridas sem inflammaçáo ,
„ nem tumor , tendo passado bem a noite : os outros
„ a quem tinha applicado o dito óleo , os achei febre-
„ citantes com grandes dores , e tumores nas circumfe-
„ rendas das feridas. Entáo pois , me diliberei de já
„ mais queimar táo cruelmeute os pobres feridos por
„ arcabuzes (i). „ Era para destruir o veneno de que
suppunháo as feridas infectadas, que se empregaváo os
caus-
(1) Apologie, et Voyage».
cáusticos «xtemamente , em quanto que se prodigaliza-
vão internamente os cordiaes os mais enérgicos.
As feridas de armas de fogo , logo que se tem fei-
to a extracção dos corpos exrranhos , e praticado os de-
bridamentos convenientes, eugem o mesmo tratamento
que as feridas contuzas ordinárias , a applicaçáo de pran-
chetas , untadas de hum digestivo simples sobre a íeri-
da , banhos espirituosos e rezoiutivos sobre as partes ve-
zinhas , nas primeiras vinte e quatro heras , depois do
que se applicáo as cathaplasmas emollientes sobre as
pranchetas. Como se deve esperar numa inchação in-
iíammatoria , proporcionada á violência da conruzão ,
huma sangria copiosa he indicada , se o sugeiro he mo-
ço vigorozo , e que não tem experimentado huma for-
te commoçáo. Se se lhe notar estupor geral ou mesmo
local , dever-se-ha abster da sangria , e preferir os forti-
ficantes aos antiphlogisticos.
Todos os pr;ticos que tem escrito sobre o trata-
mento das feridas de armas de togo , prolessio a utili-
dade dos eméticos administrados no dia mesmo do acci-
dente , ou no ,dia immediato , antes do desenvolvimen-
to dos accidentes inflam matorios. Esta pratica he sobre
tudo vantajosa nos exércitos , onde pelo uzo dos mãos
alimentos e mesmo peta deboche do regimen , as vias
alimentares são sobrecarregadas das impurezas saburro-
zas (i). Lamartmiere , em huma Memoria enxerida en-
tre-
vi) Esta doutrina parece não ser applicavel nesta parte.
Hum soldado em campanha , que longas e irabalhozas mar-
chas o abatem e o debilitáo , fazendo uso de mãos alimen-
tes e pouco nutrientes , enfurecendo-se nos combates que o
debilitão indirectamente , o susto de que he possuído na occa-
sião do ferimento ; tudo conduz ao estado de hum abatimen-
to geral , devendo suppor-sc além disto que o grande estra-
jro deverá sobrevir huma grande suppuração. f * È será conve-
niente o dar nestes casos o emético , quj entra na ordem
dos debilitantes .da segunda classe ? Eu nunca o empregarei
ttn semelhantes casos , antes pelo contrario farei por con-
8o
tre as da Academia , tem parricularmente insistido sobre
a necessidade desta evacuação , para prevenir a degene-
ração biliosa , ou pútrida da lebre traumática ou vuine-
raira. Esta se acedera , a parte ferida se entumece , a
suppu ração se estabelece no caminho da ferida , despe-
ga e lança fora a escara , t|ue lhe cobre a superfície ;
depois da separação completa desta escara , a ferida he
reduzida ás condições de numa. ferida contuza ordinária ,
e requer hum tratamento análogo.
Temos supposto que a cura das feridas de armas
de fogo não he interceptada por algum acddente ; he
com tudo exposta a rodos os que podem retardar a ci-
catrização das feridas que suppurão. ( Feja-st géne-
ro II. ) Algumas veze; táobem a hemorragia sobre-
vem no tempo da separação da escara: o hábil cirur-
gião deve prever este accidente pela relação , que existe
entre o caminho da ferida , e a posição das pnneipaes
artérias do meml ro ; então terá post > perto do enfer-
mo hum ajudante imelligente encarregado de suspen-
dei- o sangue peia compressão do vazo , esperando que
se possáo trazer os soccorros mais efRoizes.
As feridas de armas de fogo , complicadas das frac-
turas d";s ossos, são muito mais graves do que as que
se tem tratado até aqui. Huma commoçáo mais ou me-
nos violenta accompanha sempre estas sortes de fractu-
ras , que se chamão comminutivns , porque o osso he
quebrado em es-juirolas mais ou menos numerosas. As
byscainhas , os estilhaços de bombas , as balas de ar-
tilheria , e outros corpos volumosos , produzem mais
facilmente estas desordens , do que as balas de mosque-
te. Nas batalhas navaes , quazi que não ha pequenas
feridas ; as balas de artilheria , desmastreando os navios ,
esmagáo òs marinheiros debaixo do pezo da mastrea-
ção , as lascas de páo , arrancadas do corpo do mesmo
navio, são lançadas com força sobre os combattentes ,
e ex-
servar as forças do enfermo por huma dieta regular.
Not. do Traduct.
c expectação seus membros, quando lhe náo efFectuáo
a sua separação. ; Que conducta he precizo ter em
circunstancias tão graves? ^ Convém a amputação, em
todos os casos de fracturas comminutivas com ferida e
contuzão excessiva das partes molles , qualquer que seja,
a causa que as tenha produzido ; porque aqui , o trata-
mento e a historia das fracturas comminutivas entrão
na historia e tratamento das feridas de armas de fogo ?
Houve huma época onde , nos exércitos estrangei-
ros se praticava hum menor numero de amputações do
que nos exércitos francezes : abandonavão-se a si mes-
mo todos os soldados mui gravemente feridos. Esta
conducta dictada por huma politica inhumana , o seria
táobem pela razão , se se acreditasse Biiguer , Cirurgião
mór dos exércitos do Rei de Prússia. Segundo este Cirur-
gião , a amputação he raramente indicada , e se não deve
quazi já mais recorrer a ella. A dissertação, em que des-
envolve estes princípios (i), traduzida por Tissot , foi
cm França o assumpto de hum tal escândalo , que La-
martiniére , chefe então da cirurgia franceza , pelo emi-
nente lugar que occupava , julgou dever refutallos em
huma Memoria que se acha no principio do quarto vo-
lume da Academia. Suspeitava-se que Biiguer, tinha
acommodado sua doutrina ás vistas do grande Frederi-
co , que , Rei de Hum paiz pobre , náo dezejava que
houvesse multiplicidade de inválidos que carregassem as
despezas do Estado. Lamartiniére não diz huma só pa-
lavra sobre esta imputação odioza", e sabiamente indi-
ca os casos que estabelecem a necessidade indispensável
da amputação.
Pareceria que nos casos em que a bala leva total-
mente o membro , seria inútil de lhe fazer huma segunda
amputação. Este caso he com tudo aquelle onde a ne-
cessidade de praticar esta operação he melhor demons-
trada. £ Como se curaria huma Ferida onde as carnes
estão
(i De membrorum amputalione rarissime ackninistrandà ,
aut quasi abroganda.
9*
estão rasgadas em lambós , os ossos espedaçados em
lascas , a desorganisação excessiva j quanto se íaria es-
perar a separação das escaras í j que enorme suppura-
çáo nasceria no seyo de huma tal desordem ? Os ossos
fracturados tem além disto soffrido hum choque que se
faz sentir ate a sua articulação ; podendo estender se
as suas lascas até perto delia. < Se o enfermo escapa
aos acidentes que se devem desenvolver, a cicatrisaç;o
de huma superncie tão desigual será possível , e que so-
lidez poderia ter suppondo-lhe o êxito mais feliz? To-
das estas considerações devem decidir a praticar logo a
amputação dos membros levados pela bala ou por ou-
tro qualquer corpo lançado com violência ; a operação
será feita acima da ferida muitos dedos transversos, se
se não suspeita que. a desordem se distende até a articu-
lação superior. Suppondo que huma bala levou o pc
d.Las polegadas acima dos maleolos , he melhor ampu-
tar pela coxa , do que cortar a perna no lugar de elei-
ção. Isto seria indispensável se este ultimo membro fos-
se ferido pelo meio de seu comprimento. O mesmo se
deve praticar no braço , pelo que diz respeito ao anre-
braço. Em quanto a este ultimo , separa-se da espádua ,
desarticulando o humerus. Far-se-hia o mesmo na coxa ,
relativamente á bacia, se, assustado da gravidade desta
u cima operação, se não preferisse prarcar simplesmen-
te o corte do osso e das carnes , o mais alto que for
possivel. O fim , porque nos decidimos a praticar imme-
diatamente a mutilação em hum membro totalmente se-
parado , he de substituir a huma ferida despedaçada ,
machucada, e horrivelmente' contuza , huma simples,
cuja superfície igual he susceptível de huma reunião mais
prompta e interceptada por menos accidentes.
Hum segundo caso de amputação nas feridas de
armas de fogo se appresenta , quando no membro ferido
se lhe notão tantas desordens, que annuciáo o sobrevir
a gangrena inevitavelmente. Quando o osso se acha
moido em huma infinidade de esquirolas, as carnes ex-
cessivamente pizadas pela contuzáo a huma espécie de
mas-
9 f -
massa , onde os sólidos são confundidos com os líquidos
extravazados , a mortificação do membro he certa ,
he preciso nmpurallo logo , antes que a tormenta dos
accidentes inílammatorios comece , e que huma febre
ardente se origine.
Se se perdeo o instante favorável , ou se váamen-
te julgada possivel a conservação do membro , as par-
tes feridas cahem em sphacello , o enfermo resiste aos
accidentes que o asnltáo , a gangrena termina seus es-
tragos ; he preciso amputar pela linha de demarcação ,
que se estabelece entre o vivo e o morto , esperando
sempre que seja bem mostrada.
Depois deste terceiro caso de amputação, he pre-
cizo collocar o que existe , quando o inchaço inílam-
matorio , da parte ferida , felizmente combatido pelas
sangrias e por hum reg ; men anti-phologistico , se termi-
na por huma suppuraçáo , totalmente prolongada , e tão
abundante que a febre hectica purulenta ameaça os alas
do enfermo.
As feridas de armas de fogo podem pois conduzir
■a necessidade da amputação nas quatro circunstancias ,
c o que aqui dizemos destas feridas se applica sem res-
tricçáo a todas que são excessivamente contuzas , e a
todos os casos de fracturas comminutivas. < Porém
quem poderá decidir da possibillidade de conservar hum
membro , ou da necessidade de o amputar ? ; qual he
o gráo de contuzáo que torna esta operação indispen-
sável ? Os livros não podem fornecer sobre isto hum
preceito fixo , nem huma regra certa ; he a experiên-
cia qcem decide: aqui, como em muitas occasió.s ,
o golp^ de vista do pratico he necessário. Ha immen-
sas observações de pessoas que não tendo querido sub-
mctter-se á amputação julgada indispensável , tem com
tudo, por sc.icorros assíduos eluminozos, conservado
o seu membro com a vida. ; Porem quantas tem sido
victimas de huma esperança sem fundamento , e tem
morrido , querendo tentar huma conservação impossi-
vel! E quando mesmo que o fim do tratamento não
te-
95
tenha sido táo Funesto , ; por quáo longa serie de do-
res cruéis e graves accidentes , não compráo ellcs mem-
bros anquilozados , atrophiados , informes, e algumas
vezes mesmo a tal ponto mcommodcs , que depois de
muitos annos, tem sido obrigados a reclamar a sua am-
putação !
A questão das amputações praticadas immediata-
mente tem ha 'muito tempo dividido a Academia de Ci-
rurgia ; esta sabia companhia pareceo inclinar-se para o
methodo da demora , quando no anno de 1756 , coroou
a memoria de Faure , sobre a questão seguinte : " A
,3 amputação sendo absolutamente necessária nas feridas
„ complicadas de lascas de ossos , e principalmente as
3 , que sáo feitas por armas de fogo j determinar os ca-
„ sos ,onde lie precizo fazer logo a operação , e aquel-
„ les onde convém differilla. ,, Lamarilnicre prefere
com tudo o methodo opposto , e pensa que a amputa-
ção deve ser feita logo depois do ferimento, antes de
desenvolvimento dos accidentes. Era este o parecer de
Boucher de Lilla , e as opiniões estão ainda divididas.
Parece-me que a necessidade de amputar imme-i ara men-
te he sobre tudo evidente , no campo da batalha quan-
do o ferido tem a ser transportado para hospítaes mais
arrastados. A dificuldade des transportes , a inccmmodi-
dade dos carros de mato , nos quaes es enlermos
amontoados , expostos' aos balanços os mais penozos ,
sáo mal defendidos contra as injurias do ar , tudo obri-
ga a desembaraçallos de hum, membro incommodo ; as
esquirolas cravadas nas carnes , ahi penetrão de mais
em mais pelo movimento da carroça -, o dilaceramento
e a contuzáo , já excessivos sáo levados ao ultimo ter-
mo , e os feridos espirão no meio das mais acerbas do-
res , antes de checarem ao asylo onde hiáo procurar
sua cura, As grandes incizóes que exigem as feridas , pa-
ra as quaes a amputação he proposta , são táo doloro-
zas como a mesma operação , e a sua consequência
náo.he táo certa. He verdade que a amputação pra-
ticada no momento. 4a commoçáo geral occasionada pe-
lo
94
lo ferimento , acerta menos que nos casos onde sua ne-
cessidade he conduzida pelos accidentes consecutivos.
< Porém quantos ind.vtduos náo termináo funestamen-
te por accidentes primitivos , taes como a febre, a
iniammaçao, e a gingrenaí E quando fosse verdade
que hum terço somente de operações praticadas logo
acertasse, não he seguro qae se salve o terço dos en-
fermos, dilfirindo-lhe a amputação.
< Que conducta se deve ter no tratamento das fe-
ridas di armas de fogo , onde a desordem náo he levada ao
ponto de fazer julgar a amputação logo indispensável ,
e nas quaes com tudo os ossos sao despedaçados , e a
desordem considerável í As incizóes convenientes para
debridar , para dar sahida aos fluidos derramados , assim
como para facilitar a indagação e a extracção dos cor-
pos exrranhos , sendo praticadas , como acima se disse ,
deve-se collocar o membro ferido sobre huma almofa-
da de ave a , hum pano de apparelho cobrirá a almofa-
da , e sobre este pano de apparelho serão arranjados
gualapos , depois hum certo numero de compressas lon-
gas. Embebe-se todo este apparelho em agua-ardente
canforada , ou em outro qualquer resolutivo. Cura-se a
ferida com brandas pranchetas untadas de hum corpo
relaxante , como o cereto ordinário. Por cima destas ,
se applicão as compressas , depois as cabeças separadas
do gualapo , como nos casos de fracturas comminuti-
vas produzidas por huma outra causa ; estendem-se ao
comprimento do membro três rolos de palha de aveia
e por cima destes se applicão três talas, huma ante-
rior e as duas outras lateraes ; estas duas ultimas teráo
sido preliminarmente enroladas no pano do apparelho
até os lados do membro , de mane ; ra que náo reste
entre ellas e elle senão o espaço necessário para ahi
pôr os rolos. Todo este apparelho será mediocremente
apertado por hum maior ou menor numero de nastros
que se teráo posto entre o pano do apparelho e a al-
mofada , sobre a qual toda a parte enferma repouza. He
preciso que esta almofada esteja posta dé maneira que
appre-
95
appresente ao membro ferido hum plano inclinado do
lado do corpo. Deste modo , o retrocesso dos humores ,
muitas vezes diiíicil pelo choque que arrasta a coramo-
çáo , he favorecido , e se teme menos a gangrena pelo
stase dos líquidos.
Praticar-se-ha logo ou immediatamente huma ou
duas sangrias, se o sugeito he moço, vigoroso; e se
tem perdido pouco sangue , o que he o mais ordinário ;
porque a superfície da ferida, reduzida em escara he
sècca , huma vêz que hum grosso vazo náo tenha sido
offendido. Nos casos de commoção e de estupor , he
preciso abster-se da sangria , pelo contrario administrar ,
por colheres , huma bebida cordial , e prescrever por
tizana hum vinho generoso c outros tónicos. He , co-
mo se tem dito , huma precaução muito útil no trata-
mento das feridos de armas de fogo ; todos os práticos ,
e sobie tudo os que tem exercido a cirurgia nos exér-
citos , attestáo a sua efRcacidade. Consiste na adminis-
tração de hum vomitório , antes do desenvolvimento
dos accidentes inftammatorios , e de ligeiros evacuantes
durante o tempo da suppuraçáo. Previnem-se por este
modo as febres biliosas , que nascem tão facilmente na
occasiáo de huma ferida de arma de fogo , nos guerrei-
ros , habituados a todas as privações. , e a todos os ex-
cessos. He raro que taes indivíduos náo tenháo as pri-
meiras vias sobrecarregadas de matérias saburrozas , pro-
venientes do uso de alimentos de má qualidade, e de-
pravações de regimen , ás quaes a vida da campanha os
obriga. A mesma necessidade existe nos trabalhadores , e
populaça , que são conduzidos aos nossos hospitaes com
fracturas comminutivas.
A febre , e a imlammaçáo comummente sobrevem ,
passadas vinte e quatro horas. Precisa-se então fazer uzo
das cathaplasmas emollientes applicadas sobre o mem-
bro , e substituir hum cozimento de malvaisco , ou ou-
tro qualquer emolliente , aos resolutivos , de que se tinháQ
ptimeiro embebido as compressas e gualapos. O enfer-
mo se adicu; deve-se ai mais das vezes prescrever-
lhe
y<5
lhe bebidas aciduladas , refrescos , e diluentes , variado se-
gundo o gosto do enfermo , e a estação em que se acha.
Devem-se renovar cada dia as cataplasmas , e se , apezar
destes cuidados , a inflammaçáo he levada ao ponto , que a
gangrena a termina , espera-se que a natureza tenha , por
hum circulo inrlammatorio , posto entre o vivo e o mor-
to , a linha de demarcação na qual se deve amputar.
Se ao contrario a inflammaçáo se termina pela sup-
puração , a quantidade do puz he proporcionada á enor-
midade da contuzáo, e da desordem. As escaras se des-
pegáo , o puz as separa , a ferida se moditica , as es-
quirolas se reúnem aos ossos , huma vez que tenhão
sido incompletamente separadas.
A enfermidade faz progressos rápidos para a sua
próxima cura ; porém , em hum grande numero de ca-
sos , o êxito não he tão favorável. A quantidade de
puz, bem longe de diminuir, augmenta ; corrompido
pelo contacco do ar , torna-se sanioso , íetido e a ver-
dengado , de branco e inodoro que antes era. Sua abun-
dância he tal que , apezar dos curativos os mais me-
thodi :os e os mais próximos , a compressão expuisiva
a melhor dirigida , he absorvido e levado na massa dos
humores , onde a sua presensa excita a lebre hetica pu-
rulenta. Os fragamentos ósseos banhados pelo puz , não
se consolidáo; os suores lociss, as diarreas colliquati-
vas , trazem o marasme e conduzem a morte , ao rim
de algumas semanas. Quando os primeiros simptomas
da diathese purulenta se manifestão , combatem-se pelo
uzo interno dos tónicos , como se disse no tratamento
das feridas que suppurão. Porém quando , náo obstante
a administração destes remédios , os accidentes da colli-
quação sobrevem , he preciso apressar-se de salvar a
vida do enfermo , amputando hum membro que náo
pôde conservar. O estado de fraqueza a que a suppura-
ção tem reduzido o enfermo , he , assim como observa
Bell , favorável ao suecesso da operação. Náo he preci-
20 com tudo esperar, como quer este author, que as
diarreas c os suores tenhão totalmente esgotado as força.
O tra-
P7
O tratamento das feridas de armas de fogo apr6*
sentáo algumas modificações relativas aos orgáos qutf
aífecráo ; he por isto que a solução de continuidade do
tubo intestinal , por huma causa deste género , requer -
methodos particulares para prevenir o derramamento das
matérias fecaes.
E
GÉNERO SEXTO.
Feridas venenosas.
Sus feridas differem essencialmente de todas as
outras enfermidades da mesma ordem , cm que a causa
vulnerante introduz na ferida huma matéria venenosa ,
ou a deposita na sua superfície. São as mais das vezes
contusas pela mordedura , complicadas da prezença de
hum principio excitante , cuja acção sobre as partes di-
vididas j se torna' a causa dos accidentes os mais graves
e os mais funestos. Todas as reridas deste género , se-
melhantes entre si por esta complicação , se assimelhão
ainda pelo methodo do seu tratamento , que se reduz
sempre e em todos os casos , á applicação local dos
cáusticos mais ou menos enérgicos , e a administração in-
terna dos cordiais e dos tónicos. As causas variadas das
feridas venenosas lhe estabelecem tantas espécies quan-
tas vamos suecessivamente expor.
A. As picadas feitas com a ponta de hum escalpe-
lo embebido de hum liquido venenoso , por exemplo ,
ás que são frequentemente expostos os estudantes que
se eritregão ás dissecções dos cadáveres cuja putrefac-
ção está mui r o adiantada , podem ser postas no nume-
mero das feridas venenosas. Muitas vezes com tudo ,
não seguidas de máos accidentes : quando o ferido he
muito vigoroso j huma pequena pústula inflammatoria
se desenvolve no lugar da mesma picada , a suppuração
que termina esta inflammação , desnaturaliza e leva com
sigo a matéria excitante , de que a ponta do escalpelo
esrava embebida i porém , nos casos em que a picada
G aco/i-
9»
a contece a hum moço debilitado por excessos de tra-
balhos , ou divertimentos , ou por huma enfermidade
antecedente , frequentemente náo se manifesta algum
simptoma local , porém ao fim de vinte e quatro ,' ou
trinta e seis horas , mais tarde ou mais cedo , as glân-
dulas da axilla se engorgitáo ; hum fleimáo doloroso
se desenvolve neste iugar. Consecutivamente a fenda se
torna a abrir, as circumíerencias são assaltadas de huma
inflammaçáo pouco activa , a mão offèrece huma incha-
ção menos inflammatoria que edematosa ; as náuseas
sobrevem com prostração de forças , o pulso se torna
pequeno e accelerado ; todos os sinaes da febre adyna-
mica se declaráo ; e se , long; de recorrer aos forti-
ficarttes , evidentemente indicados em semelhantes casos ,
se põe o methodo evacuante em uso , o enfermo mor-
re em hum curto espaço <>; tempo. O author (".esta
obra , emregando-se as preparações anathomicas , tem
dado impunemente muitas semelhantes peadas- Ncs in-
divíduos robustos, o movimento excêntrico domina, e
a natureza resiste com energia á introdueção dos vene-
nos.
As picadas feitas dsseccando os cadáveres de indi-
víduos mortos de moléstias .contagiosas , e nos quaes se
suspeita a existência de hum virus rezidenre na massa
dos humores , náo çommunicão a infecção. Sem dúvida
que, actividade destas sortes de venenos animaes a quem
a enfermidade venérea , e outras devem seu nascimento ,
se extinguem com a vida.
Em todas as picadas de que tratámos , he pruden-
te o cauterisar iogo a pequena ferida com hum grão de
potassa -cáustica, ou ae muriato de antimonio liquido';
juntando a esta precaução o uso cios tónicos , como o
bom vinho , e conservando a Inbr cidade nas primeiras
vias , se ha algum embaraço gástrico.
B. Nas picadas dos insecros reputados venenosos,
como a abelha , a vespa , a dor viva he consequência
náo do virus que ahi pôde introduzir , mas sim do
aguilháo que o animal crava, e deixa nas feridas. A ex-
trac-
99
fracção do aguilhão , os banhos com algumas gôtaí
d' agua de Luce e alkali volátil , misturados com o óleo
Gommum , bastão para diminuir a dor , acalmando o
excitamento local. He raro que phenomenos geraes re-
sultem de picadas tão ligeiras : quando são com tudo
muito numerosas , e produzidas por grandes vespas ,
assas cominuns em França , a febre se declara , porém
inflammatoria , e requerendo antes o tratamenro afiti-
phlogistico , do que os remédios fortificantes , e tónicos.
Quando o aguilháó destes insectos encontra hum
frete nervoso , resqltáo desta ferida dores insupportaveis.
Me. * * * foi picada por huma vespa no. dorso do dedo
mediano da mão esquerda. A dor foi tão viva , que
no mesmo instante, isto he, em menos de alguns se-
gundos , o corpo inteiro $e entumeceo , a pelle se tor-
nou geralmente vermelha e botonoza , huma ardente fe-
bre se desenvolveo. O professor Cabanis veio no meio
do temor que causava hum desenvolvimento tão rápido
de simptomas os mais terríveis ; fez mergulhar a mão
ferida em hum banho oleoso , em que se tinha dissol-
vido o ópio e a triaga , depois lha envolveo em com-
pressas molhadas n o mesmo licor ; administrou-lhe ao
mesmo tempo internamente a triaga. Passadas algumas
horas , a febre , a vermelhidão e a inchação desapare-
cerão ; a mão esquerda ficou algum tempo enferma :
com tudo , ao quarto dia , de tantas desordens nada
existia mais do que hum ponto negro no lugar da pi-
cada.
C. De todos os reptis venenosos da Europa , não
ha nenhum cuja mordedura seja tão perigosa como a
da víbora. A sua mandíbula superior he guarnecida de*
dois dentes moveis , muito agudos para a ponta , canel-
lados no seu comprimento , -e guarnecidos , na raiz , de
huma visicula cheia de hum\ licor venenoso. Este vene-
no corre ao longo da cânula dos dentes , quando o ani-
mal excitado os abre , e os crava na parte submettida
á sua mordedura. O perigo desta he relativo á cólera
<Je que o reptil está animado ; porque , aperrando com
G ii mais
100
mais força , exprime melhor o veneno , e destilla hu-
ma maior quantidade delle na ferida. He também maior
ou menor, segundo o tempo que tem passado depois
que o reptil náo tem vasado suas vesículas por alguma
outra mordedura. Se , algum tempo ou alguns dias an-
tes , esta evacuação tem tido lugar ; a quantidade do
veneno he menor , e igualmente menor sua actividade.
A grandeza do animal , que a sente , e o gráo do te-
mor que lhe causa esta ferida , a torna também mais
ou menos grave. As experiências de Fontana tem mos-
trado que a mordedura de huma só vibora basta para
matar hum rato , hum pombo , ou outro animal de hum
pequeno volume j seria preciso -muitas para causar a
morte de hum homem , e hum maior número ainda ,
para causar a de hum boy ; e qualquer que seja a mas-
sa do animal , o perigo he maior , se he atemorizado
pelo accomettimerito do reptil-, a debilidade , que este ter-
ror produz , facilita singularmente a acção do principio
v destruidor. Hum cão picado improvisamente , a ofFertsa
he menos grave, em dadas proporções, do que se se
tivesse batido com o reptil , cujo aspecto o assaltasse de
hum terror mais ou menos profundo.
A gravidade da mordedura da vibora depende me-
nos do despedaçamento que soffrem as partes , despe-
daçamento que a forma dos dentes torna assas 4 conside-
>rayel , do que da espécie de inoculação venenosa de.
que he acompanhado. Os accidentes que lhe resultãò, ,
se desenvolvem qnasi immediataniente. O fendo sente
huma dor viva , a inchação inflammatoria sobrevem ra-
pidamente , nódoas lívidas se lhe desenvolvem , indícios
da sua tendência á gangrena. Nauzeas , abatimentos e
vertigens , manirestão a impressão geral , consequência
da presença do vírus , náo que este coagule o sangue
nos vazos , como o estabelece Fontana , debaixo de ex-
periências illuzorias , porém pela acção especial de que
goza , assim como todos os outros venenos , sobre o
principio da excitabilidade. Fazer correr na ferida algu-
mas gotas de muriato de antimonio liquido ; levar ahi
es-
101
este cáustico á ajuda 'de hum pequeno pincel, quandci
lie hum pouco profunda ; engrandecer por incisões ,
quando a cauterisaçáo do fundo náo he fácil ; fomen-
tar os redores com huma mistura de óleo comum e
ammoniaco , ou mesmo ter a parte mergulhada em
hum banho oleoso 5 adminisrrar os cordiaes ; misturar
ás bebidas algumas gotas de amonhco , ul he o mc-
thodo mais seguro para prevenir os effeitos da picada
das víboras.
A separação da parte mordida he hum meio violen-
to , porém com tudo admissível , quando a mordedura
he feita nas extremidades dos dedos das máos , ou pés.
Sua h^.dura , uzada pelos antigos , he hum meio segu-
ro , porém muito doloroso , porque náo obsta a absor-
ção cio virus e a infecção geral, senão quando he aper-
tada ao ponto de suspender o curso dos líquidos. He
com tudo o meio que empregou Ambrozio Pare. Ac-
companhando a Montplier ao Rei Carlos IX. visitou
hum boticário , em cuja caza foi mordido por huma
vibora na extremidade do dedo index. A dor que sen-
tio logo foi extrema ; fez huma apertada ligadura aci-
ma da ferida , lavou esta com a triaga diiuida na agua-
ardente , e em poucos dias a cura se effectuou.
O essencial neste tratamento , he a prompta appli-
cação dos remédios. He preciso prevenir a introdi-cção
do veneno ; isto he muito mais seguro do que neutra-
lisar-lhe a acção , quando já os seus effeitos se desten-
dem á toda a economia.
A mordedura da vibora , despresada , he raramen-
te mortal , as consequências são nella somente mais gra-
ves e mais duráveis. O óleo commum , o alkali volá-
til , tem , em muitos casos , bastado sós a seu curati-
vo. A Sociedade Real de Londres , e o celebre Bernar-
do de Jussieu propuserão estes dous remédios como es-
pecíficos ; e entre os exemplos que attestão a sua effi-
cacia , se cita ainda o do contratador de viboras ^ que
zombava das suas mordeduras , contentando-se só de
fomentar a parte mordida cpm o óleo commum, be~
ben-
102
bendo ao mesmo tempo muitas onças deste licor ; e a
historia não menos interessante de Hum estudante em
botânica , que foi picado ena huma hérborizaçáo. Falto
de outro qualquer remédio ,' Jussieu deitou algumas go-
ras de agua cie Luce na ferida , e lhe fez beber huma
colher do mesmo liquido no vehicpio de hum copo
d' agua. Ora , a ágoa de Luce não he mais que o al-
ibi i volátil , ao qual se mistura liuma pequena quanti-
dade doleo d' alambre.
A vibora commum he o reptil o mais perigoso
das nossas províncias ; seu veneno perde sua forra du-
rante o estupor , que a assalta nos primeiros frios do in-
verno : torna-se igualmente menos, activo nos paizes
do norte, òua energia augmenta ao contrario durante
o verão e nos paizes mais quentes ; porem já mais es-
ta actividade venenosa iguala a das serpentes que habi-
ta o nos paizes ardentes da Africa. A prompta cauterisa-
ção da parte mordida , e a administração dos espirituo-
sos e do ammoniaco , a largas doses, são as únicas
ressursas contra as horríveis mordeduras. Na cauterisa-
çáo da parte mordida se deve evitar a profundidade ,
para poupar a ofíensa dos vazos e nervos cuja lesão se-
ria prejudicial: a manteiga de antimonio , ou mesmo o
cautério actual devem ser preferidos a todos os outros ;
Sua acção he mais rápida , mais enérgica ; são mais
próprios a decompor o veneno , e a prcvenir-lhe a in-
troducçáo.
D. Por muito terríveis que possáo ser as morde-
duras das serpeares da Africa } posto que em poucas
horas , e mesmo ao fim de alguns instantes , a parte
ferida seja tocada do estupor e da lividez , e que bem
depressa o frio da morte ganhe e se faça sentir na re-
gião do coração ; estas feridas devem ainda inspirar me-
nos temor do que as mordeduras dos animaes enraiva-
dos- Com efFeito , neste estado de estupor e de falta
da excitabilidade em que se achai submergido o indivi-
duo mordi .lo pelo reptil, os approches da morte são
menos dolorosos. He ao contrário no meio das dores
a>
as mais intoleráveis e das convulsões as mais horríveis,
he oíferecendo o espetaculo o rrisis triste e o mais ate-
morisante , que espira o homem , a. quem a mordedura
do animal tem communicado a raiva.
O principio desta enfermidade terrível rezide exclu-
sivamente na saliva ; sobrevem espontaneamente nos ani-
rmes , o cão , o lobo , o gato , sáo os mais expostos á ella
Muitos factos autênticos ( i ) permittem náo duvidar
que o homem náo seja igualmente susceptível da raiva
espontânea ; no maior número de cases , com tudo ,
lhe he communicada pela mordedura de hum cão , ou
de qualquer outro animal. Desenvolve-se nestes últimos ,
nes grandes calores do verão, ou durante os frios os
mais rigorosos; as mais das vezes parece ser produzi-
da pela falta de bebida ; he provável que nascesse tam-
bém no homem , do tormento da sede levada ao ulti-
mo gráo. O cão enraivado , primeiro inquieto e taci-
turno , olha de hum ar espantado aos que antes prodi-
galísàva caricias; recusa os alimentos, e o ( aspecto de
hum liquido o faz fugir precipitadamente. Bem depressa
se muda esta repugnância em hum verdadeiro horror
para as bebidas, para os corpos polidos e brilhantes,
que lhe podem acordar a idéa de hum fluido. Deixa
então a casa de seu dono , desconhece- o , morde-o ,
lança-se furioso sobre tudo que encontra , e semea de-
baixo de seus passos o espanto e a desolação. Suas
orelhas e sua cauda estão cabidas e pendentes , hum a ba-
ba escumosa inunda sua guella inflammada , e quando
se lhe não dá a morte , esgotado de forças , suecumbe
á raiva ao fim de dous ou três dias. O quadro da rai-
va confirmada no homem, se compõe de sinaes mui
análogos ; no principio triste e moroso , inquieto da
mordedura que sofTreo alguns dias antes , hum aperto
espasmódico da garganta lhe torna dolorosa a diglutina-
ção das bebidas, o desgosto dos líquidos se muda em
hor-
fi) Vede Mcmoires de la Société royale de Mcdecine
pour rannéVi7$3 , secoude partie.
104
horror, o desejo de morder se faz sentir, primeiro com
moderação; porque tenho visto enraivados aconselharem
que fujão delles nas aproximações da raiva. Porém bem
depressa, furiosos e completamente alienados, procuráo
cevarsua raiva sobre tudo o que se offerece á sua vista. Os
olhos sáo rubros e cintilantes , a figura animada , o suor
inunda seu rosto , todo o corpo he agitado peias con-
vulsões , e o enfermo morre na deligencia de se uespren-
der dos laços, em que o tem envolvido para o conter.
He preciso a união de todos esze, simptomas para
caracterisar a raiva ; unicamente o horror dos líquidos náô
basta para estabelecer sua existência ; com eííeite , ten-
se observado esta hydrofobia em certas afFecçóes nervo-
sas , e nas afFecçóes gangrenosas da garganta. O dese-
jo de morder não he também hum sinal pathognomi-
co ou essencial , por quanto esfaimados e maníacos sáo
atormentados por este desejo , e voitáo algumas vezes
contra si mesmo seus dentes homicidas. Porém i reu-
nião do horror dos líquidos e o desejo de morder ao
estado escamoso da boca, e á agitação convulsiva, não
deixáo alguma duvida sobrj a verdadeira natureza da
raiva. He muito importante o decidir com certesa em
huma enfermidade que requer a pronapta applicação de
remédios os mais activos e os mais dolorosos. Muitos
médicos tem pensado o haver acercado em prevenir , ou
mesmo obter a cura da raiva, no tempo em que se ha-
via declarado , mas he porque julgarão mui ligeiramen-
te a sua existência. Nenhum facto certo mostra com
tudo a possibilidade da cura na raiva bem confirmada.
A inspecção cadavérica das pessoas, que morrem da
raiva , não tem mostrado cousa alguma importante so-
bre o assento essencial da enfermidade ; a pharinge tem
sido encontrada , em alguns , n' hum estado de inflam-
mação ; em outros estava tocada da gangrena ; porém
em muitos nenhuma lesão oírbrecia. O mesmo acon-
tece no cérebro , na medulla espinhal , nos seus envolvi-
mentos membranosos , e em algumas outras partes , cu-
jo estado de pblogose ou de infiltração náo tem sido
obser-
105
observado em hum grande número de casos para que
se possáo notar estas alterações copio causa ou como
effeito constante da enfermidade. He na saliva que re-
side exclusivamente o veneno da raiva. ^ Ha homens
que sem algum perigo , se tem nutrido co'm a carne de
boys e porcos enraivados ; e quando hum animal mor-
de cm poucos minutos hum grande número de pessoas,
de forma que exgote a baba venenosa nos primeiros,
os últimos náo soffrem senão feridas contusas ordiná-
rias ; quando a mordedura acontece em huma parte co-
b^rra de espessos vestidos que o dente do animal náo
pôde completamente rasgar , na ferida se náo desenvol-
vem outros accidentes mais do que os inseparáveis de
huma contuzáo ou puxáo considerável. Nos casos em
que a pelle se náo rompe , o contagio náo tem lugar.
He com tudo provável, que o só contacto poderia ser
perigoso nos lugares aonde o epiderme he mais delga-
do e habitualmente humedecido, como nas bordas li-
vres dos lábios ; tal vez , como o veneno da víbora ,
a que excede com tudo muito em actividade o da rai-
va , poderia ser engolido impunemente : não he ultima-
mente seguro que o único interesse da curios'dade te-
nha obrigado algum á tentar esta perigosa experiência.
O principio da raiva huma vez introduzido nos
nossos humores , pôde muito tempo existir abafado ,
e náo manifestar sua presença por algum sinal. A mor-
dedura se cobre de huma cicatriz ; porém ao fim de oi-
to , dez, quinze, vinte dias, hum ou muites mezes,
dores na parte mordida annunciáo a presença deste hos-
pede formidável ; a este phenomeno local se ajunta hum
sentimento de fadiga e de anciadade , precursor certo
da enfermidade. Sauvages refere na sua dissertação so-
bre a raiva , huma historia que prova quanto o virus
hydrophobico pôde existir muito tempo sem manifes-
tar sua existência , e de que poder gozão as affecçoes
d'alma , para apressar ou mesmo produzir seu desenvol-
vimento. Dois irmãos que trabnlhaváo jnntos em hu-
ma vinha , foráo mordidos ; a ferida se cicatrizou ; hum
dei-
io6
delles parte para paizes distantes , ahi se demora mui-
tos annos , e torna para o seu. Alguns tempos depois
da sua chegada, sabe que a' morte de seu irmão tinha
acontecido depois da sua partida , e qfie havia sido cau-
sada pela raiva. Vivamente tocado do perigo que tinha
participado , este homem se torna inquieto e sombrio ;
sinaes da hydrophobia se declaráo no meio da profun-
da melancolia de que he possuído , e o desgraçado ex-
pira com todos os simptomas da raiva a mais comple-
ta.
Os actos da Academia das Sciencias de Copenha-
gue encerráo huma observação que renderia a provar
que , para a infecção , não he absolutamente rjecessa-
tio que a pelle seja dividida , e que o simples contacto
da saliva de hum animal enraivado basta a inoculação
do virus. Hum cão assaltado d? hydrophobia , porém
que não experimentava ainda o desejo de morder , lam-
beo os pes e as mãos de seu dono. Mo dia seguinte,
tendo-se declarado inteiramente a taiva no animal , o
homem se torna melancólico c triste; foi assaltado do
horror dos líquidos , e immediatamente da raiva a mais
declarada, j Este facto provará que o virus hydropho-
bico se introduz nos nossos humores pelo caminho da
absorção ? Muitos authores pensão que a virulência des-
te humor he táo activa , que lhe fecha as bocas inhá-
lantes , e que a transmissão de sua influencia tem lugar
ao longo dos nervos. Ke efectivamente ao longo dos
cordões nervosos que a dor se propaga , quando as do-
res intensas se fazem sentir no tecido das cicatrizes.
A Therapeutica das mordeduras feitas pelos ani-
maes enraivados he absolutamente a mesma que a das
outras feridas venenosas. ' Somente , como o veneno he
mais activo e mais temível , não se saberia muito apres-
sar-se o neutralizar pela cauterização as feridas , opera-
ção que convém praticar com o muriato de antimonio
liquido, e na qual convém queimar mais que menos,
deve-se cauterizando tanto quanto se julga necessário ,
queimar hum nervo ou hum vaso de hum certo calibte.
O pe~
O perigo he certo , a morre horrorosa ; j quem não
prefere á hydrophobia , a deformidade , e á mutilação
a queimadora ? Os antigos nestes casos empregavão o
cautério actual. Leroux de Dijon pensa que os cáusticos
líquidos lhe são preferíveis, porque atemorisão menos
os enfermos, e são mais fáceis a applicar. Quando pois,
vos-ccnduz ; rem huma pessoa mordida por hum animal
o^ue se suspeite enraivado , qualquer que seja o número ,
a situação , a extensão , e a profundidade das feridas ,
levai áhi ousadamente o muriato de antimomo liquido ,
reduzi em escaras suas superfícies sanguinolentas 4 e
combinando assim o sal cáustico com os fluídos e a
baba venenosa deposta na superfície da ferida, lhe neu-
traiizaes os seus efleitos ; ao mesmo tempo deveis ap-
plicar-lhe sobre a ferida assim cauterizada e sobre suas
circunferências , hum largo emplastro vesicatório , que
excite a ínHàmmaçáo , huma suppuraçáo pela qual a
escara seja lançada fora e a parte desengorgitada do
principio venenoso de que tirrha podido ser impregnado.
He preciso entreter esta suppuraçáo abundante, proion-
gando-lhe sua duração , pelo uso de emplastros suppura-
tivos , e 1 mesmo reiterando a applicaçáo dos cáusticos.
He no tratamento local que essencialmente consis-
tem es principaes meios da cura. São mesmo os úni-
cos de que muitos pi áticos fazem uso. Com tudo o
maior número ahi ajunta a administração interna do al-
kali volátil, e dos mercuriaes.
As sangrias aconselhads pelos que não viá.o na
raiva senão huma affecção inflammatoria , os aritipas-
moaicos louvados pelos que a consideráo como huma
afrecção nervosa , a immersáo precipitada e inesperada
do enraivado na agua fria , seja doce , ou salgada , são
outros tantos meios infiéis, e que devem ser igualmen-
te excluídos do tratamento prophylatico e curativo.
Sendo a cauterização das mordeduras o principal
remédio contra a raiva , e mesmo o meio único de
que se tenha obtido hum suecesso evidente e certo ,
quando se faz a tempo a applicaçáo delie , precisa-se
prés-
io8
prestar todos os cuidados. He necessário engrandecerem-
se as feridas profundas , enchellas de lichinos embebi-
dos no muriato de àntiraonio liquido , levar o lerro em
braza sobre a mordedura onde a applicaçáo dos cáusti-
cos seria perigosa , nos lábios , e na boca f por exem-
plo : o cautério actual he igualmente preferível para tor-
nar a abrir as cicatrizes.
Terminando este artigo ; he preciso trazer á lem-
brança que náo se possue memoria ou exemplo de cu-
ra da hydrophobia bem declarada ; he pois a prevenir ,
^ntes que a combater esta moléstia terrível , que deve-
mos prestar rodos os nossos cuidados.
K. As íeridas feitas por instrumentes envenena-
dos , pela ponta dos dardos ou das ílexas molhadas em
qualquer veneno , exigem absolutamente os mesmos
meios. He sempre a neutralisar o veneno no lugar em
que foi deposto , a prevenir sua iruroducção na massa
dos humores , que se deve principalmente estudar , e
quando se não tem sido assas feliz para obter este fim
desejável , pela prompra applicaçáo dos remédios , he
a suster as forças da natureza , pelo uso dos cordiaes
e dos tónicos os mais poderosos , que he preciso pôr
todos os seus cuidados. Os venenos misturados aos hu-
mores , ou levando simplesmente sua acçáo sobre o
principio da excitabilidade , a affectáo de numa manei-
ra estupefaciente e destruidora ■■, a reacção vital he imper-
feita , se senão provoca , e se senão sustenta por meio
dos excitantes os mais enérgicos. Hum dos remédios de
que se tira melhores consequências he o ammoniaco
misturado nas bebidas , augmenta as forças circulatórias ,
empurra-as vivamente ;-í pelle , e provoca suores abun-
dantes e saudáveis. Deve-se ter huma grande circunspec-
ção na quantidade do alkali volátil que se junta «-is be-
b das amargas , esperituosas ou aromáticas. Vinte ou
trinta gotas de alkali , bastão , para se lançarem em
huma canada de vehiculo : raramente haverá precisão
de dobrar a dose.
As feridas por dardos envenenados eráo^ frequentes ,
an-
109
antes do uso das armas de fogo e invenção da pólvora-
hoje , só sáo conhecidas entre os povos selvagens^ sem
commercio .com as nações civilisadas. Os Psyllas cura-
váo estas sortes de feridas , chupando-as no mesmo mo-
mento que acabaváo de acontecer , este chupamento
obrando á maneira das ventosas , atrahia eficazmente
o veneno para o externo , e as feridas reduzidas á con-
dição das simpleces , curaváo-se por suppuraçáo. Este
meti iodo poderia ser empregado ainda em muitas occa-
sióes , taes , por exemplo , nas mordeduras das víboras.
As experiências do abbade Fontana prováo que o vene-
no deste reptil sem acção sobre as membranas musco-
sas , não he perigoso senão nos casos que ahi ha rom-
pimento (i): porém este procedimento, o da ligadura
das partes mordidas , apertada até o ponto de impedir o
ascenso dos liquidos viciados pela sua mistura cor- o vene-
no > sáo menos seguros que a cauterização indicada. He a
mesma razão a respeito dos banhos de vinagre, d'agua
salgada , d'agua de sabão , aconselhados em todos os
casos de feridas venenosas. Conjura-se mais seguramen-
te o perigo , em recorrendo logo aos meios mais eflica-
zes , em quanto que se comprornetrem os dias do enfer-
mo , pendo em uso methodos duvidosos. Hum só meio
participa como a caucerisaçáo , a honra de ser olhado
como especifico nas feridas venenosas , quando a sua
applicaçáo he feita em tempo útil ; he a separação da
parfe ferida ; mas conhece-se facilmente qne hum tal
procedimento não he applicavcl senão nas mordeduras
feitas nas orelhas , na ponta des dedos , nos lábios , e
que pelas mutilações , ás quaes este methodo expõe ,
seu
(O Celso havia muito tempo tinha feito esta observação,
o exemplo dos Psyllas , diz elle bib. 5 , cap. 27 , prova
que se 'pôde chupar sem temor o veneno , com tanto que
senão tenha alguma greta nos beiços , alguma ulcera nas
gengivas , nem em outra qualquer parte da boca. ,, lllad
aiitem debet OtteirSere , ne ijuod In gir.gi-Jts , pahteve , alia'
ve Lfirtt oris uUus habeat.
IIO
seu uso convém mais a medecina veteronaria , no trata-
mento dos animaes domésticos.
ORDEM SEGUNDA.
Ulceras em geral.
lj A entre a ferida e a ulcera , esta diíFerença carac-
tiristica , e notável, que a primeira, produzida por nu-
ma causa externa , tende essencialmente á cura , e se ef-
fectua pela successáo natural de seus perlo dos , quando
nada lhe desaranja a marcha , e não lhe inverte o curso ,
he huma enfermidade aguda tendente a huma solução
feliz. A ulcera he ao contrario huma affecçáo crónica ,
produzida ou entretida por huma causa interna ; a solu-
ção de continuidade não he aqui a enfermidade princi-
pal ; não he senão o simptoma de huma affecçáo inter-
na , local , ou geral , disposição interior a que a ulce-
ra he devida , ou que impede a cicatrização.
Esta idéa sobre as ulceras differe muito da defini-
ção que dão delias todos os authores. Segundo elles ,
a ulcera he a solução de continuidade que fornece pus ,
de maneira que olháo como ulcera roda a ferida suppu-
rante, Bell , no seu tratado das Ulceras , trata debaixo
de nome de ulceras simpleces , feridas que s-aráo por sup-<
puração. Esta obra que adquirio a seu author huma re-
putação que não tem. augmentado seu tratado de Cirur-
gia , he ainda hoje , apezar de sua insufficiencia , a me-
lhor obra ex professo sobre esta matéria.
As classificações das ulceras , propostas até hoje ,
sáo tão deíFectuosas como sua nomenclatura. He humas
'vezes depois de hum simptoma, que a denominação he
imposta , e daqui procedem as ulceras phagdcnicxs , ou
corrosivas , porque se estendem , apezar dos remédios ,
e destroem ao longe as partes ulceradas ;■ tem também
recebido o nome de lupas , quando seu assento he nas
per-
Ill
pernas (i); ccmo ainda o chamarem -se cacoetas , e sor»
didas , quando hum puz abundante e sanioso corre del-
ias. Outras vezes , he de huma tradição fabulosa que
o nome he tirado ; he por isto que certas ulceras eráo
chamadas tbeUphianas , porque se pertendia que Tele-
pho , ferido por Achilles , teve huma ferida de má na-
tureza j cbhoniãnas , porque se julgava a habilidade de
Chiron , nqeessaria para as curar ; o nome podia ainda
ser tomado de hum accidente ou complicação de ulce-
ra , tal era o caso das ulceras verminosas ; ou da seme-
lhança grosseira que se julgava encontrar entre a ulce-
ra e hum animal , como num cancro , por exemplo.
Não nos demoraremos admonstrar os vicios de huma
nomenclatura , cujas bases são tão frívolas como varia-
das ; já mais indicaremos as divisões admettidas : eis-
aqui as que julgamos dever-lhes substituir. He preciso
primeiro excluir defuma divisão methodica de ulceras ,
todas as que sáo essencialmente s : mptomaticas , e de-
pendentes de huma outra enfermidade ; neste número
devem ser arranjadas todas as fistoías entretidas pela
perfuração de htm reservatório e de hum conduto ex-
cretorio qualquer que seja , taes sáo as fistoías lacri-
maes , salivares, estercoraes , ourinarias ; he o mesmo
ò?s aceras que a carie dos ossos entretém e produz ;
; com ) se ha de separar delias a historia das de que tem
carie ? As ulceras que restão a classificar são , na ver-
dade , o mais das vezes simpromapcas ; seu curativo exi-
ge sempre o tratamento da enfermidade principal : he
por isto que as ulceras venéreas cedem pela administra-
ção dos antisyphiliticos , que hum regimen fortificante,
e tónico acerta nas que entertem o escorbuto : porém es-
tas ulceras são frequentemente o só effeito destas enfer-
midades , que entráo então no domínio da cirurgia , ain-
da
( i~) Os antigos davão este nome as ulceras das pernas em
€jue havia anniquilamento de substancia ,• comparando-as aos
lobos devoi^g.010,
Not. do Traduc.
112
da que a medicina as tenha comprehendidas nas classi-
ficações das moléstias internas. Em fim ha ulceras que
dependem do relaxamento local dos sólidos, taes são
aquellas , a que damos o nome de atonicas.
As ulceras" , arranjadas segundo suas analogias ,
fórmáo oito géneros bem destinctos : vamos tratar del-
les suecessivamente debaixo dos nomes :
DE ULCERAS — Atonicas. ,
Escropbulosas.
■ Scorbiuicas.
. Venéreas.
' Herméticas.
■ ■ Carcinotnatosas.
, Tinhosas.
• ■ E Psorkú
GÉNERO PRIMEIRO.
Ulcetas Atonicas.
Este género se póe todas as ulceras, que náo são
complicadas de alguma affecçáo geral. Poder-sehiáo cha-
mar simpieces , se náo fosse melhor tirar a sua denomi-
nação do estado ' dos sólidos na parte aíFectada. Estas
ulceras dependem principalmente de hum estado de re-
laxamento local ; sáo ligadas a atonia da fibra , e pa-
recem entretidas por esta falta de tom. Seu assento he
espicialmente nas pernas , partes afastadas de centro cir-
culatório , por consequeucia , menos vivas que os ór-
gãos mais próximos dos principaes focos do calor e da
vida.
Das duas pernas , a esquerda he mais vezes ulcera-
da que a direita. Esta observação náo escapou a Pou-
teau : posto que a perna direita se aprezeme a primei-
ra, diz este Cirurgião, e que seja em consequência
mais
mais expostas ás injurias exteriores, com tudo obser-
va-se que , i\e dez ulceras nas pernas sete são na esquer-
da. Tenho tido frequentes occasióes de verificar esta ob-
servação -., as mais numerosas me tem sido fornecidas
pelo exame dos rapazes submettidos á conscripçáo mi-
litar. Tenho constantemente encontrado que as affec-
çóes crónicas por debilidade eráo mais frequentes so-
bre o lado esquerdo , do que sobre o direito. Pelas dis-
posições a nathomicas he que se pôde explicar a prefe-
rencia porque affectáo estas moléstias o lado esquerdo
do corpo: a compressão dos vasos espermaticos do la-
do esquerdo, que sobem pela parte posterior do S.
iliaco do cólon muitas "vezes cheio de matérias fecaes
endurecidas deve na verdade tornar mais frequentes os
varicoceles , cirscceles , hydroceles do lado esquerdo ;
' ( porém como daremos a razão da differença que exis-
te entre as duas extremidades inferiores , para a frequên-
cia de suas enfermidades ? Partes absolutamente seme-
lhantes entráo na sua formação ; não se pôde pois en-
contrar a causa da fraqueza relativa da perna esquerda ,
senão em sobindo a esta distineção acmittida por mui-
tos authores , do corpo do homem em duas metades se-
paradas por huma linha mediana (i), verdadeiro limi-
te entre o homem direito e esquerdo (2) na qual se termi-
náo certas aftècçóes , como a hemiplegia , algumas ic-
tericias , &. Ora , he da observação constante que a me-
tade esquerda do corpo he mais fraca que a direita , e
esta debilidade relativa , existente , ou no estado de saú-
de , ou no da enfermidade, he devida ao habito con-
trahido desde a infância , de exercerem* preferivelmente
o lado direito do corpo , e não á estruetura primitiva
dos órgãos. Este exercício , como o explicámos em ou-
tra parte (2), augmenta o volume dos órgãos, porque
H fa-
(1) Borcíeu.
(2) Dupuy. De homine dextro et senlstro. Lugduni Ba-
tav. , 1 i^c.
(O Nouveau.V Elcmens de Physilogie , tome 1.
H4
vorece a assemelhação dos sucos nutritivos , e dilata os
vasos chamando numa maior quantidade de sangue ás
partes.
A coxa , a perna , e o pé esquerdo tem , em quasi
todos nos homens , menos volume e menos força que as
mesmas partes do lado direito; igualmente, a artéria
curural direita , e as subclávias do mesmo lado , são de
hum calibre mais considerável que as do lado esquerdo:
a distribuição do sangue he pois desigual , e a desa-
vantagem he para o lado onde a vida he menos inteira , a
acção orgânica mais languida. Não sejamos pois surpre-
hendidos que as ulceras nas pernas existáo commumen-
te do lado esquerdo. A ulcera atonica deve afíèctar es-
pecialmente o membro donde a fraqueza faz o caracter.
Os indivíduos obrigados por sua profissão a estar
habituaLmente de pé , taes como os impressores ; os ceie
sobre tudo , além desta posição vertical , a qual raz das
pernas a parte do corpo a mais declive , e torna mais
difficil o ascenso da lympha e do sangue das vêas , tem
as pernas expostas á acção de hum forte calor , como
os cosinheiros; e mais ainda os que as tem continua-
damente mettidas na agua fria , como os lavandeiros , os
obreiros empregados nas conducçóes de madeiras , ofrere-
cem as mais das vezes ulceras atonicas. Os caminhantes
que fazem a pé longas viagens , são facilmente atacados
delias", principalmente se tem alguma cicatriz , cujo rom-
pimento dá sempre lugar a numa ulcera deste género.
Huma inflammação devida antes a erisipela do que
ao fleimão , precede seu estabelecimento ; a pele se tor-
na rubra e se entumece ligeiramente com huma dor hu-
mas' vezes viva , outras vezes pruriginosa , e então mais
agradável que incommoda. Por esta inflammação , que
Joã" Hunter chama ulcerativa , a acção dos vaso sab-
sorventes da parte se torna viciosamente augmentada ,
de sorte que estes vasos , err.rrregados como se sabe de
absorverem os mesmos sólidos , decompostos pelo movi-
mento nutritivo , destroem a pelle em huma extensão
mais ou menos considerável. Toda a ulcera produzida
por
"5
por huma causa interna , depende de huma' verdadeira
erupção da substancia organisada. Por isso Galeno , Am-
brozio Pare , Barbette , Etmuller , e todos os antigos pa-
thologistas , tem , com razão , feito entrar este modo de
destruição nas definições que tem dado da ulcera. Nes-
ta absorpção ulcerativa o enfermo experimenta huma dor
tanto mais viva , quanto a erupção he mais rápida , e
esta dor ardente , análoga á que produz a acção do bis-*
turim , acompanha a destruição da pelle em todas, as ulce-
ras herpeticas, venéreas, escorbuticas ; he muito fraca
nas ulceras escrofulosas , cuja formação he tãobera
muito lenta.
Estas idéas sobre a producçáo das ulceras será»
reconhecidas pelos que tem reflectido sobre o mecanis-
mo da absorpção. Esta função se exerce em todas as
partes da substancia organisada ; por ella o solido vi-
vo he incessantemente destruido e renovado. Gasta 019
sensivelmente o thimos, a membrana pupilar, os cor-
pos das vértebras na espécie de carie conhecida debaixo
do nome de mal de Pott , e nada resiste á decomposi-
ção nutritiva de que os absorventes são encarregados.
Nenhuma duvi h ha que estes vasos , excitados por
huma causa qualquer que seja , possáo voltar sua acti-
vidade contra a pelle, e dar lugar, destruindo-a , á for-
mação de huma ulcera. A erupção he accelerada , por-
que o enfermo acha algum alivio em coçar a parte on-
de sente huma cocega agradável.
O tecido cellular subcutâneo , descuberto pela des-
truição do dermes, se excita e suppura , botões carno-
sos se desenvolvem , a ulcera cresce e se alarga pela
destruição de suas bordas. Quaado se torna estaciona-
ria, estas bordas experimentão huma tumefacçáo mais
edematosa , do que inilammatom , visivelmente devida
ao relaxamento dos sólidos , assim como á difficuldade
com que os humores retornáo ao centro da circulação.
Este engorgitatnento subsiste durante fcum certo tempo ,
as bordas da ulcera se tornão calosas pela prolongada
inílammação , o mal se eternísa por falta de cuidados:
H ii o maior
ií6
d maibr fiurnero dos que são afFectados delias , dados
o penosos trabalhos , não os interrompem senão obriga-
dos ; por isso náo he raro ver nos hospitaes homens
trabalhadores com ulceras nas pernas , com antiguidade
de mezes , e ás vezes de annos ; os cuidados que lhes
prestáo he apenas mudarem todos os dias os pannos
em que as trazem envolvidas , vagão ás suas occupaçóes
e só no momento , em que excitada pela fadiga a ulce-
ra se inrlamma , ou cahe em gangrena , he que recla- 1
mão nossos cuidados. A ulcera he então babosa e lívi-
da , algumas vezes os vermes se ajuntáo ao tédio que
inspira seu aspecto ; esta complicação nasce da porca--
ria , e náo pede servir de fundamento para admitrir as
ulceras verminosãs , como o tem feito alguns authores ,
os insectos depõe sobre a ulcera os germes , de que es-
tes sahem ; curativos su Eficientemente repetidos, banhos
continuados , os destroem em poucos diaá.
O aspecto livido das ulceras nas pernas depende da
difficuldade do retrocesso do sangue que circula nos pe-
quenos vazos da superfície ulcerada. Ora , este flnido
se torna mais escuro na cor pela demora de seu curso ,
e todo o vagar , ou demora fazendo ahi predominar o
hydrogénio e o carbonato , lhe dá as qualidades vene-
nosas. Quando o excitamento he vivo na ulcera, a cir j
culaçáo he accelerada nos capilares , e as carnes sáo ru-
bras e vermelhas , porque o sangue conserva e marufes-
ta as propriedades do que corre nas artérias. Basta que
hum enfermo , com huma ulcera na perna , deixe por
hum momento a posição horisontal , e tenha o menv
bro pendente , ou se apoie sobre elle , para que os bo-
tões carnosos tomem a cor roxa, e livida-
Esta influencia da posição da perna sobre á ulce-
ra donde ella he o assento , vos faz facilmente pres-
sentir que he a dar sobre tudo a este membro hu-
ma situação vantajosa , e tal que favoreça o retrocesso
dos liquides , que he preciso especialmente ligar-se no
tratamento. Também, se tem dito bastantes vezes e não
se poderia repetir muitas, que o repouso e a posição
ho-
"7
horizontal da parte sáo os melhores remédios nas ulca-
ras das pernas , recentes ou inveteradas , sobre tudo
quando tem feito grandes progressos por huma longa
marcha ou qualquer outro exercício penoso.
A este meio hygienico he preciso ajuntar a appli-
cação de huma larga cataplasma sobre as circumteren-
cias da ulcera, a* rim de dissipar o excitamento e en-
gorgitamento inflammatorio que assalta suas bordas. Os
fíos seccos sáo o melhor tópico que se pôde applicar so-
bre a ulcera ; limpáo a matéria purulenta que cobre a
superfície ulcerada. He preciso puiverisar as pranche-
tas com a kina , ou untallas com unguento storaque ,
quando no fundo da ulcera estão formadas escaras gan-
grenosas. A cataplasma que se põe sobre as bordas r
penetra igualmente pelos fios de que a ulcera esta co-
berta. He útil applicar, durante alguns dias esta mesma
cataplasma imnieJiatamsnte sobre a ulcera, logo que a
dor e o excitamento seja excessivo.
As primeiras vias sáo ordinariamente embaraçadas ;
hum vomitório he as vezes bem indicado , fazendo-lhe
succeder o uso das bebidas laxativas ; a inflamrnação se
dessipa , as bordas duras e elevadas se embrandecem ,
desengorgitáo-se , abatem-se , e por este abatimento ,
sua extensão parece algumas vezes diminuída quasi me-
tade em dois dias. Reduzida a este estado de simplici-
dade , exige então o mesmo tratamento que as feri Jas ,
que suppnrão , e securáo como ellas , havendo as ligei-
ras differenças que vamos indicar.
O relaxamento local ou geral dos sólidos sendo a
causa pela qual a ulcera he entretida ou produzida , he
que se precisa combater , huma vez que os accidentes
inflammatorios estejáo dissipados. A administração inter-
na dos cosimentos amargos , de vinho , de kina , os pós
desta mesma casca , ou seu extracto ; o uso moderado
de hum vinho generoso; as preparações antiscorbuti-
cas ; a applicaçáo das pranchetas feitas de algodão, ou
de láa, ou bem de fios molhados em hum cosimento
detersivo ; banhar a ulcera com agua animada com al-
kool ,
n8
kool ; vinagre ou moriato de soda; o excit amento gal-
vanico da superfície ulcerada ; taes são os meios que se
devem por em uso p.ra dar a todo o systema dos sóli-
dos , e especialmente ao da parte enferma , o gráo de
tom e de energia , de que tem precisão para a melho-
ra.
Como as ulceras atonicas tem frequentemente hu-
jna extensa superfície, e se estendem a maior parte da
perna , de quem tem ccrroido a pel e , a natureza pro-
cede na sua cicatrização como na ossiíícação fios ossos
largos , e do mesmo modo que os núcleos os:;eos se
desenvolvem em muitas partes destes ossos , do mesmo
modo , a cicatriz começa ao mesmo tempo em diversos
lugares da ulcera, e se continua para as bordai. A so-
lidez da cicatriz exige que a sua formação não seja
mui prompta ;, vemos muitas vezes huma delgada peli-
cula .avermelhada formar-se sóUe largas ulcer s , nos
intrevalios dos curativos , e destruir-se com a mesma
rapidez.
Os curativos de huma ulcera não devem ser nem
muito frequentes , nem muito remotos. Talvez exis-
tão maiores inconvenientes em repetillos , que em di-
minuir-ihe o numero. Magatus cita o exemplo de hu-
ma npariga que curou de huma larga ulcera na coxa ,
cutando-a de três em três dias , quando o curativo ti-
nha r.ntes sido repetido duas vezes cada dia sem frueto.
Pare teve a mesma condueta , e obteve os mesmos re-
sultados no tratamento do Senhor Fandenil ; po* isso
não quer que se descubrão as ulceras muitas vezes.
Igualmente não adopta o methodo de limpar as ulceras
da matéria que as cobre.
Não se pode fixar positivamente o intervallo que
deve aparar cada curativo ; he verdade ser vantajoso
o curarem-se huma vez cada vinte e quatro horas ; po-
rém he evidente que os curativos devem ser mais fre-
quentes ou mais demorados , segundo a quantidade de
puz que corre da ulcera, suas qualidades, o gráo de
excitamento dos sólidos , a estação , e ò clima. Assim ,
cu-
curai meios vezes huma ulcera cuja superfície he ver-
melha e sanguinolenta, porque está mtii excitada 5 mul-
tiplicai os curativos, se fornece huma enorme quanti-
dade de puz , cuja reabsorpção he á temer , ou se o
calor da estação c do clima, apressando a depravação
'deste liquido, torna a presença do apparelho perigosa
ao enfermo , pelo horrível fétido que exhala. _
Náo enxugueis escrupulosamente os botões carno->
sos , senão nos casos onde a acção vital he Linguiça :
a demora prolongada da matéria purulenta extinguiria o
excitamento ; a esfregaçáo mecânica exercida sobre a
ulcera , quando se limpa , entretém além disto este ex-
citamento no gráo conveniente, quando "he sufticiente ;
lurr.a limpeza" muito exacta da parte, náo faria senão
augmentallo. Applicai tiras de panno de linho fino un-
tadas de ceroto á roda da ulcera , afim de que os fios
que se pegão ás suas bordas á medida que se desecão ,
náo obriguem á puxões dolorosos , e não arrastem comsigo
1 icatriz , que a natureza formaria em vão se o artis-
ta pouco hábil destruísse cada dia sua obra.
:istindo o' relaxamento dos sólidos ao mesmo
temp:> em todas as partes da perna , náo admira que
as veias subcutâneas se dilatem pela accumulação do
sangue , c que as ulceras atonicas sejão muitas vezes
complicadas do estado varicoso destes vazos. Esta com-
plicação forma huma variedade de ulcera atonica ; po-
rem náo estabelece huma espécie particular , como o
tem pensado os authores que as tem ilescripto debaixo
do nome de ulcera vaticosa. Havendo varizes com a
ulcera atonica , ensanguentáo algumas vezes sua super-
fície pela rotura dasveas dilatadas. Este accidente exi-
te que se ajunte aos meios curativos indicados o uso de
unia compressão moderada. Esta se faz com huma
atadura enrolando-a desde os dedos dos pés até a parte su-
perior da perna. Theden e Desault tirarão deste methodo
<*randes vantagens ; virão que fazendo uso da atadura nas
ulceras não so nas complicadas de varizes, como tão-
bem naauellas\ cujas bordas endurecidas e tornadas calo-
sas
120
sas por hum prolongado excitamento se desengorgitavão
com custo , ella lhe accelerava o cicatrizar-se. Esta com-
pressão, exercida sobre toda a extensão do membro,
deve com efrejto levar a pelle para a superfície ulcera-
da , depremir as bordas , e , por consequência , dimi-
nuir-lhe a extensão.
Hum cirurgião Inglez empregou com bom succes-
so os emplastros agglutinarivos na idéa de dirigir a pelle
para a superfície descuherta pela erosão ulcerosa. Fiz
uso do mesmo meio e observei em todos os casos que
avança evidentemente com muitos dias de antecipação
a inteira cicatriz < Porém esta terminação da moléstia
he sempre desejável, e póde-se tentar sem perigo o cu-
rativo de todos os géneros de ulceras ?
Estamos chegados a huma questão lia muito tem-
po e vãamente agitada ; porque participa ainda d'<\ opi-
nião dos pathologistas- < Devem-se curar tod.is as ulce-
ras ? Esta questão tem o inconveniente de orTerecer
hum sentido mal determinado , como o maio;* numero
das proposições geraes , e he á indeterminação que apre-
senta , que devem ser attribuidas as discordâncias dos au-
thores que tem emprehendido responder a ella. Seria
absurdo duvidar se se deve tentar a cura de huma ulce-
ra scorbutica , escrophulosa , venérea , dartrosa , carci-
nomatosa , psorica ; isto seria perguntar se se deve ,
rratar e curar o escorbuto , as escrophulas , a syphi-
les , &c. Por isso observai que trabalhando sobre a ques-
tão proposta , quasi todos os authores não tem fallado
senão de ulceras simplices sem complicações , unica-
menre dependentes de hum relaxamento geral ou local :
em huma palavra , das ulceras que comprehend mos
neste primeiro género, debaixo do nome de atonicas.
Distingui as espécies das enfermidades , e encontrareis
os methodos específicos* Sem huma boa classificação
de espécies , he impossível annunciar alguma cousa de
positivo sobre o modo de tratnmento : o verdadeiro ca-
racter das enrermin.ides se torna hum assumpto inex-
haurivel de disputas se..i fiirij e de indagações sem frue-
to
121
j Pócie-se curar inpunemente huma ulcera antiga *
da qual cada dia sahe huma quantidade considerável de
puz ? j não he para temer que a economia , habituada a
desembaraçar-se , por este emunctono , de h uma certa
quantidade de humores supérfluos , se sinta da sua su-
pressão ? Fabrício de Hilden , Heister , Sharp , Le-
dran , &c. citáo muitos exemplos de apoplexias , de
cephalalgias , de febres de toda a espécie, de dificul-
dades de respirar , e mesmo de suffocaçóes depois da
cura de certas ulceras. De outro lado , Camper e Bell
professão huma doutrina opposta. De qualquer peso ,
que possáo ser as auctoridades , náo consultemos senão
os factos ; ora , elles se ieunem para provar que os
mais graves inconvenientes podem resultar , em alguns
casos , da cicatrização das ulceras , e para estabelecer
ao mesmo tempo que , em algumas destas enfermida-
des , a cura não he seguida de alguma consequência tris-
te.
Quando huma ulcera subsiste há muitos annos , a
secreção que exerce , pôde ser considerada como huma
função natural , depois do longo habito que a econo-
mia tem contrahido com eíla , e he perigoso- o ensaiar-
se de interrompella. Seria difícil o usar de algumas pre*-
cauçóes para prevenir as metástases que sua supressão
poderia arrastar; assim pois quando huma ulcera deste
género methodicamente tratada , se aproxima da cicatri-
zação , he preciso purgar frequentemente o enfermo , e
submettello mesmo ao uso diário de laxantes , taes co-
mo o caldo d'hervas, o soro- de leite, estimulados com
o tartarito acidulo de potaça , as sulfatas de soda ou de
magnesia , a fim de dirigir para o tubo intestinal o ex-
cedente dos humores , cuja evacuação se fazia pela ul-
cera. Em fim , quando esta está perto a fechar-se , he
indispensável o estabelecer huma fonte na coxa do lado
affectado , náo tendo o enfermo razões para preferir que
seja esrabelec ; da no braço ; quando a fonte está em per-
feira actividade , quero dizer , que a suppuraçáo está alii
bem estabelecida , póde-se ver terminar a cicatriz sem
ten-
122
temor. Com tudo deve-se continuar o uso dos laxantes ,
durante ainda algum tempo.
Nestas tentativas , para a cura das ulceras antigas ,
he preciso seguir com cuidado os progressos do trata-
mento , afim de que , se o enfermo sente dores de ca-
beça , difKculdade na respiração , ou outro qualquer
symptoma que possa ser a consequência da supressão da
ulcera, suspende-se o progresso da cicatriz; se o enfsr-
mo he precipitadamente assaltado de huma apoplexia ,
huma teimosa desinteria , na occasiáo que a suppura-
ção ulcerosa diminue , applicai hum visicarorio sobre
a ulcera , e , quando tiverdes obtido a desejada revolu-
ção , continuai a entreter huma suppuraçáo abundante ,
curando-a com unguentos excitantes taes como o de
resina amarello , o unguento de la mere , &c.
Ha ulceras criticas , cuja existência , ligada ao esta-
do morbiíico de huma víscera , tal como o pulmão ou
o fígado , retarda os progressos destas affeiçóes , e con-
serva os dias do enfermo. Taes são as ulceras nas mar-
gens do ano em alguns thisicos ; estas ulceras devem
ser consideradas como esgotos saudáveis , estabelecido»
pela natureza , e que he preciso respeitar , tendo o acon-
tecimento sempre provado que , por sua supressão ,
qualquer que sejáo as precauções de que se use , a
enfermidade de que são o symptoma , faz progressos
mais rápidos , e arrasta em poucos dias os enfermos á
morte.
Em quanto ás ulceras simplices e recentes em in-
divíduos , principalmente moços , e bem constuidos ,
podem-se fechar sem temor , e despresar o restabeleci-
mento de huma fonte , com tanto que o enfermo dis-
sipe pelo continuado exercício , o supérfluo da nutri-
ção ; alguns purgantes , huma ou duas sangrias , podem
ainda prevenir os effeitos perniciosos que produzirião os
humores superabundantes.
Em fim , logo que se tem estabelecido huma fon-
te na coxa ou perna do lado enfermo ( lugar preferí-
vel , para não interromper precipitadamente a direcção
dos
I2«5
d os movimentos a que a nature2a se tinha habituado ),
e que este esgotadouro se torne incommodo para o en-
fermo, pôde se transportar para outro lugar, ao íim
c*e hum certo tempo , com tanto que se faça no mo-
mento em que a nova fonte aberta no braço , esteja
em plena suppuraçáo.
A ulcera de que tratamos he a moléstia mais su-
jeita ás reproducçóes. Para as prevenir , o enfermo de-
ve trazer continuadamente botins de pelle de cáo , ou
huma polaina de panno novo , 2tacada pela parte ex-
terior. Esta compressão sustem a cicatriz , sempre con-
tingente a romper-se pela chegada dos líquidos ; emba-
raça a estagnação do sangue no systema venoso da per-
na. A cor azulada nas cicatrizes das pernas he hum
indtcio certo de sua fraqueza ; esta cor he devida ao
sangue que , circulando custosamente nos seus pequenos
vasos , adquire em maior gráo todas as qualidades ve-
nosas.
Nas aproximações do inverno , he que se faz te-
mer a rotura das cicatrizes. O frio que assalta as per-
nas , entorpece as propriedades vitaes , e a vida. , já
pouco activa neste membro , mais se enfraquece. He
e v rio. que se faz necessário redobrar os cuidados para
pr< venir as recahidas , exercer continuadamente huma
cem pressão igual, entreter nas pernas hum moderado
calor, e abster-se de todo o trabalho excessivo. Todos
estes cuidados compatíveis com a vida civil não se con-
cilião nada com os deveres da guerra: por isso sendo
«mpregado no exame dos mancebos , que a lei chama
á defensa do estado , tenho sempre olhado as cicatrizes
das pernas como hum motivo suíHciente de exemp-
çáo : se ellas tem huma certa largura , que ameaça o
tornarem-se a abrir, o individuo deve ser declarado im-
próprio ao ministério das\armas ; por quanto he sobre
tudo no bom estado das extremidades inferiores , ver^
dadeirõs sustentáculos do corpo , que consiste a apddão-
do soldado para as marchas , como também para os
exercícios militares.
GE-
124.
I
GÉNERO SEGUNDO.
Ulceras scorbuticas.
Uma mudança quasi insensível conduz da ulcera
atonica ás comprehendidas neste segundo género. Com
e ire to , j qual he o caracter essencial desta ulcera ? O
xú xamento dos sólidos na parte aftèctada , o languor
nas proprieda-es vitaes. < Em que consiste principalmen-
* te o scorbuto ? todos os mo4ernos respondem com Mil-
man, que o relaxamento extremo do solido vivo , o
aífrox.imento da contractilidade forma o seu sinal mais
d stinctivo , e que esta diminuição da faculdade contrac-
til influe principalmente sobre a fibra muscular , e so-
bre os vasos circulatórios. Esta aaalogia entre as ulceras
aronicas e scorbuticas , se estende táobem á Therapeu-
tica destas moléstias ; os remédios fortificantes e tóni-
cos convém tanto em humas , como em outras ; sendo
o abatimento levado mais longe no scorbuto, os meios
próprios a reanimar as propriedades vitaes , devem en-
tão ser mais enérgicos. He permittido o olhar- se a ul-
cera por atonia , como o primeiro gráo da ulcera scor-
butica. Nesta ultima, o sangue se não demora somente
nos vasos capillares da superfície ulcerada , dando-lhe a
cor de hum roxo livido , mas ainda corre a travez dos
paredes vasculares , pelo excessivo relaxamento de seus
tecidos.
Isto h: fundado sobre a similhança que existe en-
tre dous géneros visinhos ; vejamos de que modo o
scorbuto entretém ou produz as ulceras scorbuticas. A
historia destas ulceras he essencialmente ligada á do
scorbuto , e não se pode separar a ella 3 assim como o
effeito da causa.
Ainda que não estejamos dispostos a olhar, como
Freind , o scorbuto como huma enfermidade nova ;
pensamos , como Lind , que os Médicos Gregos , Roma-
nos e Árabes , não tinháo sobre esta molestja senão no-
ções
I2 5
çóes muito imperfeitas. Devia-se apresentar raramente
debaixo do feliz clima da Grécia, e da Itália e nos
navios que , nas suas longas viagens , se náo afastaváo
da cesta : desprovidos do útil soccorro da bússola , ra-
ramente se arriscaváo nos altos mares. Vasco da Gama ,
na Pvelação de sua viagem ás índias Orientaes , e o Se-
nhor Joinville, na historia de S. Luiz, sáo os primei-
ros que nos apresenrao hum quadro fiel do scorbuto.
Tem-se distinguido três periodos no scorbuto ; po-
rém esta distineçáo escolástica , além de sua inexactidão ,
tem o inconveniente de consagrar as mais falsas idéas
sobre a marcha desta enfermidade. Infinitamente varia-
da , a natureza zomba das nossas divisões , e offerece
muitas vezes , desde o principio de huma aftecçáo , os
symptomas que os authores tem costume de assinar nos
seus últimos periodos. He assim que o scorbuto algumas
vezes se annuncia de repente por hemorrhagias , que es-
gotáo rapidamente o enfermo , por frequentes syncopes ,
e hum enfraquecimento tal, que o menor movimento
exige muitos esforços, e arrasta hum grande cançaço.
As mais das vezes com tudo estes symptomas funestos
sáo precedidos de accidentes menos graves , e experi-
menta-se na sua serie , a gradação de que falláo os au-
thores j porém seria bom notar de passagem esta diffe-
rença que apresenta a suecessáo real dos phenomenos
das moléstias , para que aquelle , que a observa pela
primeira vez, náo seja surprehendido de a encontrar di-
versa da que se acha descripta nos livros.
Hum sentimento de indolência levado em alguns
indivíduos até á aversão decidida para toda a espécie de
exercício , junta á palidez e algumas vezes mesmo á
inchação do rosto , annuncião o scorbuto : o enfermo
está triste , sente huma lassidão universal , acompanha-
da de fraqueza e de entorpecimento nos 'músculos ex-
tensores , e principalmente nos gemellos das pernas ; as
gengivas se inchão e se amollecem ; os dentes vacillão ,
a mastigação se torna dolorosa, o hálito fétido, a pelle
secca se cobre Je manchas , humas vezes largas e irre-
Su-
I2<5
guiares, outras vezes redondas e petechiaes , ou simi*
lhantes ás que resultáo da mordedura da pulga. As per-
nas sáo o assento principal destas nódoas , como dos
phenomenos principaes do scorbuto ; e ist® ptla razão
já exposta de huma menor vitalidade , que as torna
igualmente mais sugeitas ás ulceras atonicas. O pulso
enfraquece por gráos desde o principio ate o fim da en-
fermidade , a ponto que nos seus últimos períodos , a
artéria cede á mais ligeira pressão.
As feridas de que os scorbutjcos podem ser assaca-
dos accidentalmente , se tornáo ulcerosas ; e o sangue
trasudando á travez das paredes dos vazos capilares ,
as cobre nos intsrvallos de cada curativo ; outras vezes
as ulceras se formão espontaneamente da mesma ma-
neira que as do género precedente ; porém a effusão
continua de sua superfície, junta aos outros symptomas
do scorbuto , manifesta bem depressa sua verdadeira na-
tureza. Estas hemorrhagias passivas ou dependentes do
relaxamento dos capillares tem lugar, não só pilas su-
perfícies ulceradas , porém ainda em toda a extensão
das membranas mucosas. O enfermo perde seu sangue
pelo nariz , gengivas ; escarra-o , vomita-o , ou o lança
pelas dejecções : ém alguns casos mesmo , misturado
com as ourinas, dá á este liquido huma cor de verme-
lho escuro , de que falláo alguns authores , e que mui-
tas vezes tenho observado. Estas hemorrhagias^ que
sobrevem em toda a extensão das superfícies mucosas ,
não tem já mais lugar, posto que o tenha dito Boe-
rhaave, na superfície da pelle, huma vez que ahi não
haja rotura, j Com tudo as nódoas scorbuticas não cons-
tituem huma sorte de hemorrhagia subcutânea , e não
parece que a densidade da pelle , o epiderme espesso que
a cobre , sejão os únicos obstáculos para que as nódoas
scorbuticas constituáo verdadeiras hemorrhagias ? Conce-
be-se facilmente que todo o systema capillar sendo ao
mesmo tempo tocado de atonia , o sangue se deve
insinuar por toda a parte a travez das paredes relaxadas
de seus pequenos vazos , e que se este effeito he mais
fa-
"7
fácil e mais sensível nos lugares , onde as pequenas ar-
térias e vèas tem paredes menos espessas , e recebem
menos apoio, como nas superfícies mucosas, náo deve
acontecer menos em todos os órgãos , pois que todos
encerráo huma grande quantidade de capillares.
Tão bem os músculos e mesmo os ossos se tornáo
o assento de infiltrações sanguíneas scorbuticas : quan-
do se examina o estado dos órgãos sobre hum cadáver ,
encontráo-se os músculos gemellos das pernas tão de-
pressa decompostos e reduzidos á huma espécie de mas-
sa , similhante á borra do vinho ; outras vezes inchados ,
endurecidos , offerecem huma massa , na qual o langue
coagulado está misturado com os sólidos: os ossos dos
scorbuncos se amollecem , suas fracturas não fazem al-
gum progresso para a consolidação ; o mesmo calo se
destroe nos avançados períodos da moléstia.
Os desmaios , ao menor movimento , se tornáo de
mais em mais frequentes; a diíficuldade de respirar he
extrema , e vê-se que os enfermos se sufFocão e cahem
em syncope querendo mudar de lugar, ou mesmo le-
var alguma cousa á boca. Em alguns casos se desen-
volve hum movimento febril, análogo á febre adyna-
mica ou pútrida , com a qual o scorbuto tem . como
o demonstrou Milmann , a mais tocante similhança ;
huma febre , digo , com erupção de petechias , se des-
envolve nos últimos dias do enfermo , e parece apressar
o fim de sua existência.
Os poderes musculares, que concorrem para a di-
latação da cavidade do peito na inspiração, enfraque-
cendo-se tornáo esta dilatação incompleta ; o ar entra
em menos quantidades nos pulmões menos dilatados ;
as combinações do sangue com elle restáo imperfeiras,
este fluido náo recebe^ no gráo sufKciente as qualida-
des , que lhe são necessárias para excitar os órgãos e
entreter a vida. <c Este sangue menos excitante ( diz
o Doutor Fouré , em huma Dissertação sobre a febre
advnamica , apresentada no anno 10 á Escolla de Me-
dicina de Paris ) , " he lançado em hum órgão menos
ex-
128
3> excitavel , e o cxcitamento que resulta delle he enfra-
„ quecido dos dois lados ; o cérebro , como todas as
J3 outras partes , náo recebem este fluido na quantidade
„ e qualidade convenientes ; cahe no estupor , sua ac-
,, cão se enfraquece , excita menos as fibras musculares
,, já languidas ; a fraqueza geral augmenra , tudo , nes-
,, te circulo de eifeitos e causas , tende reciprocamente
„ a se entreter e a se aggravar ,, Cito com gosto esta
dissertação pouco conhecida em hum tempo em cine
para muita gente o volume de huma obra he a medida
de seu valor.
A existência de todos os phenomenos do scorbuto ,
sua suecessáo , seu perigo , a maneira , como condu-
zem á morte, tudo isto se explica rigorosamente pela
causa bem conhecida do mal ; quero dizer , pela notá-
vel diminuição da contractilidade em todos os músculos
e em todos os vazos. A inhabilidade aos menores ex-
ercícios , a respiração incommoda , as involuntárias dejec-
ções j são devidas á fraqueza dos músculos , cuja ac-
ção he dirigida pela vontade ; a fraqueza do pulso , as
Syncopes , a constipação , dependem da extrema dimi-
nuição , que experimenta a contractilidade involuntária
do coração e do tubo digestivo ; em fim , as infiltrações
sanguíneas nos tecidos orgânicos , as nodeas ou ecchy-
moses , que são mfiltiaçóes' bem reaes , os fluxos e he-
morrhagias de todas as espécies , a inchação do rosto ,
o edema das extremidades inferiores , não obstante o
descanço e a situação horisontal , reconhecem por cau-
sa a perda cia contractilidade oceulta , de que gozão
todos os vasos.
j Participáo os mesmos fluidos a alteração das pro-
priedades viraes , e são devidas as hemorrhagias ao
mesmo tempo á atonia dos capillares , e á inteira" liqui-
dação do sangue , cujas moléculas menos unidas se
abandonáo a hum disgregativo mais fácil? Póde-se dizer
que os fluidos participáo da affecção das propriedades
vitaes no gráo em que gozáo destas propriedades; ora,
como ahi são extremamente obscuras , as mudanças
que
120
que experimentão no scorbato são igualmente pouco no*
taveis.
O sangue he hurra? vezes fluido e negro, dificil-
mente coagulavel, e íornecendo huma grande porção
de soro; outras vezes se coagula frcWnte. e deixa
separar pouca serosuiace. A degustação ou prcva deste
liquido não deixa descobrir, em rlgtn a de suas partes
o sabor acre e salgado , que Boerhaave attribuia ao so-
ro , nem as outras acnmon^s ac ; das e alcalinas admit-
tidas por 'diversos authores como cansas do scorbuto.
j Em que circunstarcias se desenvolve esta afTec-
çáo , ou que causas conduzem ao enfraquecimento da
contractilidade , pois que a extrema diminu ç o desta
propriedade vital constitue o caracter essencial do scorbuto?
Basta ler com attençao as relações dos navegantes,
para ver que todas estas causas são debilitantes. As via-
gens á roda do mundo pelo Almirante Anson , Rir.'
Bougainville, o Capitão Cook , e Vancouver apresen-
táo factos os mais instructivos.. Podem se tãobem tirar
luzes na historia do scorbuto observado por Vandermye
durante o cerco de Breda , em 1625, e no exercito'
imperial, em Hungria no anno de 1720, por Kramer.
O professor Pinél igualmente descreveo hum scorbuto
endémico , que reina , todos os invernos , nos hcspitaes
de Bicetre e de Salpetriere. He útil comparar estas di-
versas obras , para ser plenamente convencido , que o
scorbuto de terra he absolutamente da mesma espécie
que o do mar, e que destroe toda atheoria de Méad
sobre a producção do scorbuto pelo uso dos alimentos
salgados , e sobre tudo pela respiração de hum ar carre-
gado de moléculas de sal marinho.
Eu mesmo t;nho tido frequentes cccasióes para
me convencer desta identidade ; porém nenhuma tem si-
do mais favorável que huma epedemia scorburica ob-
servada, durante o inverno do anno XII. iHo-j.), nos
soldados da guarda de Paris , e nos enfermos do hospital
de S. Luis , onde ha algumis enfermarias consagradas
especialmente á admissão e ao tratamento dos scorbuticos*
1 Es-
Este inverno , precedido por hum veráo , cuja se-
Cura e calor foráo muito notáveis tanto por sua inten-
sidade , como dnraçào , houverão chuvas quasi conti-
nuadas ; a temperatura foi constantemente fria e húmida.
A guarda de Paris , formada no curso do anno prece-
dente , foi , desde sua instituição , sujeita ao serviço o
mais trabalhoso; as fadigas se tornarão mais excessi-
vas , quando , no fim do inverno , pela prisão cie Geor-
ges necessitou fazer-se o bloqueio mais rigoroso da ca-
pital. Huma guarnição numerosa apenas chegava para
cercar hum tão vasto circuito ; o soldado , que durante
a maior parte do inverno , tinha dormido huma noite
no quartel e duas fora, teve então apenas duas noites
paia dormir fora do quartel em cada semana ; tornava
a fazer o serviço ainda fatigado , molhado até á pelle ,
e o seu vestuário não tinha tido tempo de se seccar ,
quando era obrigado a tornallo a vestir para entrar em
nova obrigação.
O número dos scorbuticos augmentou de tal forma
que a enfermidade podia ser olhada como epidemia ;
affèctava principalmente o batalhão do primeiro regi-
mento , aquartelado no antigo convento dos Bernardos ,
que existe nas faldas da montanha de Santa Genoveva ,
e perto das margens do Sena. Muitas causas concorre-
rão a favorecer os progressos do scorbuto nos soldados
deste corpo. Primeiro distinados para o serviço dos por-
tos , eráo postos nos corpos das guardas destribuidas
ao longo da ribeira : lá , o frio e a humidade era mais
sensível que em outras partes ; hum espesso nevoeiro
carregava toda a noite o ar que respirava© as sentine-
las , e só difHcilmente se dissipava pelo meio dia. A si-
tuação [do quartel submettia ás mesmas influencias os
que não estavão de serviço , de sorte que o frio e a
humidade os incommodava sem descanço ; acrescendo
que os alojamentos estabelecidos no meio das ruinas do
mosteito e da igreja , eráo a maior parte situados ao
nivel do chão , e por consequência pouco sadios em
hum quartel húmido. Em fim, a má disposição do pa-
teo
teo formava, ao pé do edifício, hum grande ajunta
mento de aguas estagnadas. Assim pois , o frio , as hu-
midades continuadas , a falta de dormir , os trabalhos
excessivos, taes são as suficientes Causas, a que se devem ,
attribuir os estragos exercidos pelo scorbuto nos solda-
dos deste aquartelamento.
Os do outro batalhão aquartelados na Ccurtilla f
fasto edifício construído sobre hum plano moderno ,
pua o destino que prehenche , eráo affectades em me-
nor numero do scorbuto. Os trabalhos erèo cem tudo
jguaes ; bem mais incommodado no serviço das barrei-
ras , rinha sempre este batalhão de fazer mais longos
caminhos , quando entrava ou gahia das guardas ; porém
os quartéis eráo espaçosos e bem arejados , o edifício
situado em hum lugar elevado , que domina a capital.
O scorbuto atacava com preferencia os indivíduos
débeis , os convalecentes , os que tinháo passado por
hum tratamento mercurial recente , tratamento muito
próprio a produzir o scorbuto; não poupava os homens
que se tinháo alistado, seduzidos pelo attractivo de hum
serviço sedentário , julgado pouco trabalhoso. Os sol*
dados aguerridos por muitas campanhas e combates ,
fesistião mais aos trabalhos, e por felicidade, . á guarda
era principalmente composta desta espécie de individues.
Em fim , os ofRciaes inferiores melhor alojados , con-
venientemente vestidos , e mudando com frequência de ca-
misas , não sendo obrigados a fazer sentinellas de noite
ao ar livre , raramente eráo accommettidos.
A enfermidade não podia ser imputada á necessida-
de, nem á má qualidade dos alimentos ; o soldado co-
mia , todos os dias , carne fresca , destribuia-se por elles
todas as manháas huma certa porção de a^ua-ardenté ,
durante o serviço extraordinário ; gozando de huma pa-
ga assaz boa , podia beber vinho , e o uso desta bebi-
da foi tal vez pouco útil pelo seu excesso. Os ír.ilita-
res cançados com o trabalho e descontentes de sua sor-
te procuraváo o esquecimento disto por meio do vinho 9
de sorte que o maior numero abusava delle. Os b p ha-
I ii dos
cos se tornarão quasi todos scorbuticos. Os officiaes fo-
jáo isentos desta afFecçáo. Não me demorarei a descre-
ver os symptomas observados nesta epedemia , he de-
pois delia que tenho traçado a historia geral do scorbu-
to* As destruições cessarão' com a tornada da boa sazão.
O numero dos scorbuticos augmentou consideravel-
mente na cidade, e as enfermarias do hospital de S.
Luiz , destinadas a seu tratamento , se tornarão insufi-
cientes para os admittir. O restabelecimento dos enfer-
mos era mais longo e mais difricii nas enfermarias ao
nivel do, chão, onde era impossivel de se preservarem
<le hum certo gráo de humidade. Todas as affecçóes
ulcerosas recebidas neste vasto, hospital , me tem for-
necido assumptos de observação tão variados , como
úteis , tâobem tenho de alguma sorte renunciado os
soccorros , que me podião fornecer os livros, e me te-
nho principalmente ligado a descrever segundo a natu-
reza , todos os géneros de ulceras.
O scorbuto he huma enfermidade muito frequntc
na Capital ; os artistas assistentes em lojas nas ruas ba-
xas e húmidas , visinhas do Sena , os porteiros , cujas
famílias habitão em huma pequena loja , em huma pala-
vra , todos os que ajuntão a huma vida sedentária , hu-
ma habitação pouco sadia , a privação habitual do vi-
nho e o uso raro , porém immoderado desta bebida ,
são particularmente sujeitos á elle. Não se pôde olhar
como huma moléstia contagiosa , pois que não se com-
munica , nem pela respiração do mesmo ar , nem pelo
contacto dos scorbuticos , e se se vò tão frequentemen-
te epidemica , affectando ao mesmo tempo hum grande
numero de indivíduos , he que todos são submettidos ao
mesmo tempo á influencia das causas que o produzem
Tem-se visto os officiaes inferiores, encarregados
de hum serviço menos trabalhoso , e qu^ , pelo maior
solc 1 ^ podião melhor que os soldados, procurar as com-
modidades da vida, e sobre tudo habitualmente bebe-
lem vinho , experimentarem raramente o scorbuto, que
epidemicameure reinava entre os simples soldados , não
oks-
obstante habitarem no mesmo aquartelamcnto , e vive»
rem com elles em habitual sociedade.
O scorbuto tem sido posto pelos Nosologistas , hií-
mas vezes no me!o das enfermidad-s nascidas de hum*
acrimonia , outras vezes no numero das aíFecçóes pú-
tridas , outros as tem arranjado na classe das lesões do
systema muscular. Haveria talvez mais razoes para.
classificallas entre as hemorrhagias , pois que o maior
numero dos symptomas denota a extrema diminuição
da contractilidade dos vazos capillares. Na historia de
seu tratamento , diremos as precauções com a ajuda das
qua s se pode prevenir os meios, cjue o curáo, reani-
mando a energia da força contractil ; depois indieãrèmos
os cuidados particulares que exige o curativo de alguns
de seus efFeitos , taes como as ulceras scorbuticas. For
este meio viremos ao nosso assumpto , no qual náo po-
deríamos mui cedo , e mui severamente circunscrever-
nos á vista da multidão de faccos de idéas e de rela-
ções , que se apresentáo', quando se quer traçar por
miúdo a historia do scorbuto , sobre o qual as obras de
Lind (i) , e de Milmann (2) , deixáo muito pouco a desejar.
O tratamento preservativo do scorbuto , consiste
no uso bem ordenado de seis comas, chamadas táo
impropriamente pelos antigos náonaturaes. Purificar o
ar dos navios , das enfermarias des hospitaes , das pri-
sões , em huma palavra , de todo» os lugares onde es-
te fluido he susceptível de se corromper pela respiração
de hum grande numero de homens juntos , e pelas ema-
nações animaes que se eleváo de seus corpos , tal he
o primeiro cuidado que se deve ter para prevenir a
moléstia. Os ventilantes , que renováo o ar privado de
oxigénio , e alterado pela mistura das exhalaçoes me-
phiticas, sáo insuficientes para corrigir a humidade.
Ora, como esta qualidade de atmosfera, relaxando o
te-
CO Traitc de Scorbut , 2 vol in-12.
(1) Recherchcs sur le Scorbut et les Fievres putndes ,
1 vol in-?. g
M4
tecido dos sólidos, he huma das causas as mais activas
do scorbuto , será preciso ajuntar cá ventilação o desec-
c.ir com fogo convenientemente disposto. A sala de di-
cjplina de hum aquarteiamento era huma espécie de ca-
va muito húmida. Quasi todos os soldados reclusos por
muitos dias , ahi se tornaváo. scorbuticos. Náo podendo
obter que se transportasse para outra parte, lhe fiz
abrir huma grande janella para o meio dia ; desde então
çontrahirão menos esta moléstia , de que náo estão com
tudo inteiramente isentos. A ociosidade em que adorme-
cem , quando estão assim encerrados , as tristes re.ie-
xóes, que esta situação lhes sugere, e o regimen a
pão e agua , a que são submettidos os mais insobordi-
nados , eis-ahi causas de debilidade bem suíiicientes pi-
la gerar o scorbuto.
O vestuário deve ser quente e secco , limpo por
frequentes lavagens, k. , os alimentos de faeil dig-.súo.
O pão fermentado , a carne fresca , os. vegetais herba-
ticos são preferíveis aos de massa , aos legumes fari-
nhosos , taes como as batatas , fbijáo , ao qilejo , e a
outras substancias mais ou- mornos rebeldes a acção de
nossos órgãos. As carnes sal »adas são preferíveis ás car-
nes frescas alteradas , e o muriato de soda , de que-
estáo empregnadas , não tem com a causa do scorbuto
a analogia , que suspeitáo os que fazem residir esta cau-
sa em huma acrirnonia muriatio?. No tempo, em que
a esquadra do Almirante Anson crusava no mar do Sul
no outono de 174 1 , as guarnições reduzidas somente
á esta nutrição , se conservarão sadias ; pelo contrario
foi dsstraida pelo scorbuto em hum tempo brando e
chuvoso, a pesar da doçura do clima, da abundância
d*agua doce , e das provisões frescas de toda a espécie.
As bebidas excitantes são hum excellente preserva-
tivo contra o scorbuto , pois que os remédios usados
nesta aíècçáo , são principalmente tirados desta classe.
O uso moderado de hum vinho generoso . o condimen-
to dos guisado? com vinagre , o sano do limão , o
a.lh.3 i a ceoolU , a pimenta, e outros aromáticos , tem
pre-
MS
prevenido efficazmente a enfermidade. Estou no uso de
prescrever o vinho puro , em pequena quantidade , a
todos os convalecentes , aos enfermos que numa fractu-
ra , huma ulcera , ou qualquer outra moléstia similhan-
te obriga a estar muito tempo na cama , quasi inmo-
veis. Tenho sempre visto que eia mais segura a conso-
lidação nos indivíduos que se punháo no uso do vinho
ou do charope anti-scorbutico aos quinze ou vinte dias
de huma fractura , do que aquelles , para quem se tinha
despresado esta útil precaução. No aspecto de huma
ulcera , qualquer indica a applicação destes meios ,
quando as carnes são molles, fungosas, descoradas ou
sanguinolentas , em huma palavra , cm todos os casos
de relaxamento.
O movimento e o descanço devem ser totalmente
ordenados com a precaução , que o primeiro não seja
levado até a extrema fadiga, e o segundo até ao en-
torpecimento.
Os scorbuticos admittidos em hum hospital devem-
se entregar ao passeio em pateos vastos e sombrios; a
cultura dos jardins lhe offerecem saudáveis distracções :
extimulados pelos encantos de hum módico salário , os
convalecentes empregados em diversos trabalhos no inte-
rior do hospital de S. Luiz se restabelecem mais promp-
tamente , que passando o dia na cama no meio do ar
das enfermarias sempre menos puro, que o ar exterior.
A introducçáo deste útil costume , assim como muitos
outros melhorameutos , são devidos á esclarecida philan-
rropia de Mr. Mourgues, adminisTrador deste hospi-
tal. , .
Não he indifterente o occupar os scorbuticos com
idéas alegres ou tristes , pois que as affecçóes do pri-
meiro género , taes como a alegria , a esperança são
mais ou menos excitantes , em quanto que as segundas
são huma canra poderosa do abatimento. Vandermye
conta que os Francezes , que faziáo parte da guarnição
de Breda, escapavão ao scorbuto por sua alegria natu-
ral; não os abandonava no meio" dos trabalhos e fadi-
gas,
gas de hum longo cerco , em quanto que a timidez e
a tristeza reinava entre os Inglezes , e Holandezes ;
multiplicando-lhe o numero dos enfermos.
Ter dito o que he necessário fazer para prevenir a
scorbuto , he ter traçado a historia do seu tracamento ;
porque os meios prophylacticos sáo ao mesmo tempo
curativos : somente a fraqueza extrema que reina no
scorbuto bem caracterisado exige a applicaçáo dos ex-
citantes mais en-írgcos , o vinho de qi^na , as infusões
alkoolicas amargas das razes de genciana , de paciên-
cia tkc. O vinho anti-scorbutico , resultado da macera-
ção das raizes frescas de rabãos selvagens , de bardana ,
de folhas de cochlearia, &c. em vinho branco, o qual
se sobrecarrega do aroma destas plantas , e dissolve nu-
ma parte da mucilagem , e do estracto ; o elixir anti-
scorbutico , o c'iarope , que não d.ftère das outras pre-
parações anti-scorbuticas , senão pelo assucar que se
lhe mistura , e que involvendo as partes medicamento-
sas do remédio lhe embota a actividade ; o uso de ali-
mentos que fáceis a digerir, contenhio debaixo de
hum pequeno volume huma grande porção de matéria
nutritiva , taes como as carnes assadas , o pão bem fer-
mentado &c. devem ser impregados ao mesmo tempo ,
successiva ou alternativamente em differentes doses ,
segundo a idade dos enfermos, e os gráos mais ou me-
nos avançados da enfermidade.
Em quanto aos cuidados locaes , que exige a ulce-
ra scorhutica , se limitão a curalla duas vezes por dia
para lhe alimpar a superfície do sangue fluido ou coa-
gulado , que fornecem os pequenos vasos ; a pulveri-
zalla de quina , havendo o cuidado , que estes pós desec-
cantes e tónicos não iormem , com a mistura dos hu-
mores huma 'massa dura e difficil a despegar-se , e por
isto será preciso lavar a ulcera com hum cosimento
vinhoso das plantas amargas ; em fim exercer sobre to-
do o membro huma compressão uniforme por meio de
huma atadura. Não se deve" temer o excitar a inflam-
mação nas ulceras deste género ; . hc *ò no momento ,
, em
M7
em que as forças se reanimáo , que começa sua super*
ficie a cobrir-se de hum bom pus.
As ulceras scorbuticas das gengivas e do iríterior
da boca devem ber frequentemente tocadas com hum
pincel molhado no acido muriatico enfraquecido ; os
enfermos usarão ao mesmo tempo dos gargarejos tóni-
cos , e aswingenr.es , táes como a limonada sulfurica ±
o cosimento amargo de quina, kc. , porém he dos tra-
tamentos internos que se deve esperar a cura destas ul-
ceras em qualquer parte do corpo que se formem , e
não dos remed.os locaes.
A entumecencia scorbutica das gengivas e das pa-
redes da boca se torna algumas vezes inflammátoria :
nesta reacção das forças vitaes contra a moléstia que as
opprime , a natureza suecumbe , a gangrena se senho-
rea das gengivas, da face, e destroe algumas vezes hu-
ma grande parte do rosro. Tenho visto no hospital de
S. Luiz muitos exsmplos destas espécies de anthrazes
Storbuticos , cujo estado gmgrenoso he bem evidente-
mente produzido , como o dissemos noutra parte, pela
debilidade das forças circulatórias ; porque a inflamou*
çáo se compõe de hum movimento local e de huma
reacção mais ou menos geral , que completando de algu-
ma sorte o apparelho da enfermidade , tende a condu-
zilla para huma solução feliz.
Algumas vezes , porém raramente , as ulceras scor-
buticas dão huma tal quantidade de sangue , que sua
sahida constitue huma verdadeira hemorrhagia. Nestes
fluxos passivos a acção do solido vivo esta totalmente
languida , que em vão se pulveriza a superfície sangui-
nolenta com a therebenthina ou qualquer outro absor-
vente e astringente ; em vão se advninistrão bebidas , que
gozáo ao mais alto gráo desta u/tima virtude , e se ex-
erce á compressão a miis methodica , o sangue corre
de toda a ulcera , ou ante:» sahe pelos narizes , pelas diar-
réas , pelas ourinas , e os enfermos morrem : prova in~
contestável da fraqueza da arte , quando he privada dos
soçcorros da nacureza.
GE-
GÉNERO TERCEIRO.
Ulceras escrofulosas.
TVT
__ l 4 Os dous géneros precedentes , o relaxamento do
solido vivo influe especialmente sobre a ribra contractil
e os vasos circulatonos. Aqui a debilidade se faz sentir
principalmente no systema Jymphatico , porem como os
órgãos da absorvencia , da mesma forma que os vasos
encarregados da circulação do sangue estão espalhados
por todas as partes do corpo , a força se acha dimi-
nuída em todos ; assim pois , as ulceras atonicas , scor-
buticas e escrofulosas, aproximadas por suas analogias,
poderião constituir huma ordem de enfermidades verda-
deiramente astetrcas , quero dizer 3 cuja fraqueza for-
maria o principal caracter.
j Vejamos se a debilidade do systema lymphatico
explica o ajuntamento e a geração dos symptomas , de
oue se compõe o diagnostico das escrófulas ? Esta fra-
queza existe ao mesmo tempo nos vasos e nas glându-
las , os primeiros espalhados em todos os tecidos , e
formando especialmente o cellular , unindo ao relaxa-
mento de suas paredes huma grande actividade em suas
bocas absorventes , se engorgitáo de huma quantidade
considerável de líquidos serosos;, seu volume augmenra ; os
tecidos que principalmente são formados elles se incháo e
se dilatáo ; a pelle elevada parece branca , tensa , e polida ;
as formas são redondas ; as elevações dos músculos se aba-
tem , as articulações se engorgitáo , o habito do escrofulo-
co se torna como o da mulher , e esta apparencia exterior ,
tanto nelle , como nelía , he determinada pelo desenvolvi-
mento e extrema repleção dos vasos lymphaticos. Seu ros-
to tem as feições redondas , indícios da infância , huma gor-
dura , que não he senão empolada , cores rosadas , que
se desenvolvem tanto mais resplandecentes , quanto a
pelle offerece hum melhor brilhante e hum branco mais
puro. Ajuntai a isto grandes olhos prominentes, bri-
lhan-
lhantes e muitas vezes húmidos. A espessura dos lábios»
e sobre tudo a do superior , he huma causa de diror-
midadej os narizes participáo desta espessura; os cabei-
los são de huma cór pálida , loura ou cinsenta , rara-
mente castanhos ou negros.
A gordura dos escrofulosos não he senão apparen-
te ; alguns dias de enfeimidade ou de abstinência a
diss.páo e reduzem os membros que , pareciáo robus-
tos , a formas delgadas-, indicio de sua debilidade. A
frescura do rosto desapparece desenvolvendo-se as feias
fugas de huma velhice prematura. Poucos dias táobem
bastão para reparar estes estragos tão promptos^ a re-
moçar estas feições tão rapidamente murchadas. A aífèc-
ção escrofulosa he de alguma sorte a exageração do-
temperamento lymphatico , levai ao excesso rodos os
caracteres attribuidos a esta constituição particular do
corpo , e tereis hum quadro fiel desm moléstia.
O temperamento caracterisado pela predominância
de hum órgão ou de hum systerna de órgãos , se affas»
ta deste termo ideal , onde todas as forças se abalançáo-
reciprocamente de maneira que a economia viva oífere-
ce a imagem do equilíbrio perfeito. Deste estado , que
pôde ser só exista na imaginação dos phisiologistas, e
que os antigos tem designado pelo nome de tempera-
mento temperado , temperametttum temperatnm , sendo
tomado pelo typo da saúde, resulta que o temperamen-
to he já hum passo feito para a moléstia. Com «ido
a acção do systema predominante não he totalmente
quem faz pender, para que todo o equilíbrio seja des-
truído , e para que o jogo da vida se encontre inter-
ceptado ; porém para que as disposições constitucionaes
sejáo engrandecidas , a moléstia existe , e esta passa-
gem tem lugar na conversão do temperamento lympha-
tico em escrofuloso. Na constituição escrofulosa ha ao mes-
mo tempo a actividade das bocas absorventes , grande fa-
cilidade de absorvencia , inércia dos vasos e das glândulas
lymphaticas , fraqueza dos absorventes ; epor consequên-
cia estagnação e espessamento dos líquidos ; absorvidos
a
140
a mesma cousa se observa nos temperamentos lympha-
ticos , caracterisados pela actividade das bocas inhalan-
tes , e a debilidade do systema lymphatico , como o mos-
trou Cabanis , quando refutou a opinião da quelles , que ía-
ziãoconsistir o temperamento lymphatico no excesso da ac-
tividade do systema absorvente , posto que a só porção
deste systema realmente excitada seja a que exerce im-
mediatame.nte absorvencia , em quanto que o resto he
tocado de huma atonia quasi completa. O que expomos
aqui tocante á afinidade, que existe entre as escrófulas
e o Temperamento lymphatico , póde-se applicar aos ou-
tros temperamentos ; he desta forma que o tempera-
mento sanguíneo predispõe ás affecçóes inrlammatorias ,
o biiioso áí gástricas , o nervoso aos vapores.
A repleção do systema lymphatico nos escrophu-
losos incommoda a actividade de sua nutrição ; seu cres-
cimento, se completa mais tarde, o endurecimento dos
ossos se faz com menos promptidáo , e esta particula-
ridade facilitando-lhe o desenvolvimento do cérebro ,
lhe torna a inteligência mais prematura; mas algumas
vezes lhe produz o idiotismo , se a ossificaçáo dos ossos
tarda a desenvolver-se , o cerebio adquire inormes di-
mensões , engorgita-se de humores serosos , cuja accu-
mulaçáo constitue o hydrocephalo.
Os effeitos resultantes da debilidade do systema
lymphatico não são menos notáveis nas glândulas , que
nos vasos ; mais fracas do que estes , aquellas fe engor-
gitão , a lympha ahi se endurece por sua demora; for-
mão tumores sobresahintes debaixo da pelle , a roda da
base da mandíbula inferior , no occiput , e em diversas
partes do pescoço , ao longo das vêas jugulares. Estes
tumores , que podem appaiecer , e mostrar-se em tcdos
os lugares , onde estão postas as glândulas lymphaticas ,
como na flexufa do braço , nas regiões inguinaes , nas
regiões poplitéas , nas axillas , &c. são as mais das
vezes indolentes ; são sujeitos a desapparecejem para se
formarem em outras partes , ou tornar a vir no fim de
hum tempo mais ou menos prolongado ; excirão-se ;
ou,
Hl
ou , para melhor dizer , a inflammação se apodera dei-
les i a dor ahi persiste , com tudo pouco viva , a infiam-
mação corre lentamente seus períodos , o calor he bran-
do , a tumefacçáo moderada , a vermelhidão pálida , e
tirando sobre o roxo ; em fim , a glândula se amoUe-
ce , a pelle se despedaça , e destes abscesso» corre hum
pus seroso , misturado de coalhos de albomino.
Ha moléstias dependentes das escrófulas , e que ,
nas classificações methodicas , não deveriáo ser separadas
delias ; taes são a thizica tuberculosa ,- a atrophia me-
senterica , ou opilação, o inchaço, e a carie da parte
espongiosa dos ossos , a rachires , ou a molleza destes
órgãos. Se o pulmão he atacado de huma fraqueza he-
reditária , ou adquirida , as glândulas bronqueaes se en-
gorgitáo , formão tubérculos , que suppuráo , e estabe-
lecem a thiz!ca escrofulosa. Se, pelo uso de huma má
nutrição , as glândulas mesentericas tem sido fatigadas ,
he nellas , que o engorgitamento escrofuloso se estabe-
lece , tanto mais remível , porque ataca a vida no seu
alimento , fechando a passagem ao chyllo reparador.
Os engeitados , aos quaes se necessita muitas vezes em-
pregar a mama artificial , morrem em grande numero
desta atrophia mesenterica , na qual o ventre está duro,
habitualmente inchado , a diarrhéa continua , e o ma-
rasmo extremo. Em fim , as partes espongiosas dos
ossos , muito abundantes em tecido cellular , e por*
consequência em vasos lymphaticos , se engorgitão es-
pontaneamente , ou em consequência da mais ligeira
contuzão ; a carie succede a entumecencia ; em fim , o
endurecimento dos ossos sendo retardado pela inércia
geral , e os lymphaticos absorvendo toda s via com acti-
vidade, o rachitismo sobrevem , e os ossos amolieci-
dos se curvão e cedem ao pezo do corpo ■, porém es-
ta decomposição do systema ósseo he felizmente o
symptoma o mais raro , assim como o mais incommodo
da affecção escrofulosa.
A mulher he mais sujeita , que o homem , a este
género de moléstia y assim como a infância o he em
pro-
142
proporção á idade adulta , e á velhice. Fsta influencia
do sexo , e à* idade , he fácil a explicar pela predo-
minância natural do systema lymphatico nas mulneres ,
e nas crianças.
Ha exemplos , de que homens adultos tem sido
atacados de escrófulas não tendo experimentado algum
sinptoma nos primeiros tempos de sua vida. Os prizio-
neiros longo tempo encerrados em enxovias húmidas ,
e obscuras crescem sem engroçar , como acontece ás
plantas , privadas do ar livre , e da luz do dia ; ora es-
te deseccamento dos vegetaes tem maior analogia com
a afFecçío escrofulosa , na qual a pelle he esbranquiça-
da, os líquidos descorados, serosos, e menos animili-
sados. Mandáo-se algumas vezes para o hospital de S.
Luiz enfermos tirados da Consiergerie (i), e que pelo
írio , e humidade constante desta prisão são accomet-
tidos de hum inchaço geral das glândulas lymphaticas ,
com todos os simptomas que denotão huma extrema la-
xidáo da fibra. Tenho constantemente observado que es-
tas escrófulas sobrevindas espontaneamente aos adultos ,
são de difficil cura , e quasi sempre mortaes ; testemu-
nho novo da verdade deste aphorismo , que as molés-
tias são tanto mais graves , quanto sáo menos análogas
á idade , assim como ao temperamento dos enfermos.
Hypp. sect. i Aph. 34.
A constituição escrofulosa estabelece huma verda-
deira degeneração da espécie humana. Se a inacção , e
as outras causas debilitantes que a determinão , leváo
sua influencia sobre o systema lymphatico , he porque
he aquelle , onde as propriedades viraes reináo em me-
nor gi ao , onde por consequência existe menos força
para reobrar contra os poderes morbificos.
Sáo sobre tudo frequentes as escrófulas nas grandes
Cidades. Tem-se multiplicado em nossos dias' nesta Capi-
tal de hum modo atemorisantc , a medida que a syphilis se
espalha mais, e se modifica na transmissão herediraria
Hum
(1) Prisão em Paris. Not. do Trad.
'4*
Hum grande numero de observações me authorisa a
affirmar que muicas vezes as crianças escrofulosas nas-
cem de pais syphiliticos , de maneira que a affecção
parece ser transformada passando dos pais aos filhos ,
victimas das suas devassidões. O tratamento mercurial
empregado contra a afFecçáo syphilitica , produz tal vez
menos o scorbuto , que hum estado análogo ás escrófu-
las. A acção do remédio , que obra especialmente nos
vasos , e glândulas lymphaticas , as fatiga , relaxando
sua textura, e não.he raro que seu engorgitamenro sub-
sista muito tempo depois que os symptomas venéreos
tem desapparecido , ou que mesmo se seja obrigado á
combater esta disposição escrofulosa pelos amargos , e
tónicos.
A abertura dos tumores escrofulosos não he a só
causa , que produz as ulceras escrofulosas , estas solu-
ções de continuidade se estabelecem algumas vezes es-
pontaneamente pela corrosão da pelle , seja que esta
membrana se affecte sobre huma porção do osso caria-
do , seja que as partes subjacentes a ella não oíFereção ,
se não a massa que caracterisa o estado escrofuloso.
A inflammaçáo lenta , que as entretém , e as pro-
duz , he notável pela vermelhidão pálida , e rouxa da
pelle , na circumferencia da ulcera , pela ausência quasi
completa das dores, e da sabida de hum puz seroso,
que transuda o-dinariamente da superfície ulcerada. A
preexistência dos tumores glandulosos , ou a existência
simultânea destes engorgitamentos , junto aos outros
phenomenos da moléstia , não permittem desconhecer a
verdadeira natureza destas ulceras ; seus lábios são du-
ros, desiguaes , e ordinariamente despegados.
Como a tendência dos humores existe nas partes
superiores , são as glândulas da cabeça , e do pescoço ,
que se engorgitão nas crianças escrofulosas ; ora , esta
enfermidade he a herança quasi exclusiva da infância ,
e ha o costume de se olhar como escrofuloso , todo o
engorgiramento das glândulas do pescoço , posto que
possa, não obstante, depender de muitas outras causas.
Quan-
144
Quando as escrófulas se manifestao depois da puberda-
de , he sobre o peito que leváo os seus estragos , a
tbizica tuberculosa , as caries do sternum , e das costel-
las sáo as suas consequências. Em fim, nos velhos,
as glândulas do mesenterio se obstruem ; a hidropesia
ascites lhe resulta , ou antes as affecçóes cutâneas , incurá-
veis as mais das vezes.
As escrófulas não dependem da ex'stenc;a de hum
vicio particular ; este virus escrofuloso só ex : ste na
imaginação dos part d stas da medicina humoral. Se este
vicio existisse, o pus que corre das ulceras escrofulo-
sas poderia communicar a infecção da mesma maneira ,
que o pus dos cancros vener: os applicado á suj erficie
da glande , transmitte a syphiles. A aífecçáo ' escrofu-
losa não he contagiosa, as crianças escrolulosas rece-
bidas no hospital de S. Lu ; z , se misturáo inpunemente
com os outros enfermos, parreipáó das recreações, e
comem cem as outras crianças , sem que esta cohabi-
taçáo , e os contactos repetidos propaguem a moléstia.
Mr. Hebreard Cirurgião da prisão efe Bicêtre tem váa-
mente ensaiado o inocular as escrófulas em muitos
caens , esfregando em diversas occasióes sua pelle gre-
tada , com a matéria , que fornecem as ulceras escrofu-
losas ; e mesmo curando-lhe as feridas, que lhes fazia
com pranchetas , embebidas neste pus.
Se a moléstia de que tratamos não he contagiosa ,
pôde ser hereditária. IVlil exemplos attestáo que cren-
ças nascidas de hum pai , e de huma mái escrofulosos
trazem , quando nascem , as desposiçóes para as escró-
fulas , náo obstante pareção estar cutados no momen-
to de seu casamento. Esta crença estabelecida sobre
factos , he tão geral em certas províncias , na em que
nasci , por exemplo , e na qual sáo os escrofulosos ra-
ros , que as familias , donde alguns indivíduos tem sido
atacados , sáo notadas como pouco sadias , e dificilmente
contraSem alianças conven'enres. As amas escrofulosa^
podem communicar a seus meninos o mal com seu leite ;
possuem-se muitos factos deste género.
As
14*
As escrófulas são endémicas em certas provindas ;'
•tormentáo os habitantes de alguns valles dos Alpes ,
e dos Pirineos , e dependem do ar húmido destes val-
les , das aguas estagnadas , de que fazem uzo os -habi-
tantes , e dos^ alimentos groceitos , e indigestos , de que,
se nutrem. Tenho observado que o maior numero dos
escrofulosos recebidos no hospital de S. Luiz vem dos
bairros de Halle (i), da Cidade, e do soburb : o de S.
Marçal, ajuntamento de ruas baixas}, e estreitas a on-
de es raios do sol apenas penetráo , humedecidas pela
visinhança do rio que as atravessa , estes bairros' apre-
sentão hum montão de casas mal constituidas , huma
população numerosa de obreiros muitas vezes submer-
gidos nos ^excessos da crápula sempre expiada por peno-
sas privações, e o uso obrigado de hum alimento pou-
co sadio , e pouco abundante. Recebem-se táobem mui-
tos de certas províncias ; porém a de Trqyes na Cbampa-
gne he a que fornece mais. Ignoro que causas locaes
ahi multipliquem a este ponto as affecçóes escrofulo-
sas.
As escrófulas se curão muitas vezes por si mesmo,
pelos únicos progressos da idade. He sobre tudo na épo-
ca da adolescência , que se observa esta desappariçáo
espontânea das escrófulas. A revolução que se opera en-
tão na acção de todos os órgãos, o augmento de ener-
gia notável em todos , a predominância do systema san-
guíneo sobre o systema limphatico , tudo deve fazer -
nesta época huma verdadeina crize , que termina a afTec*
çáo escrofulosa , como os movimentos criticos deci-
dem do maior numero de nossas moléstias. Esta feliz
influencia da puberdade se faz sentir igualmente nos
dous sexos. Tenho visto , em bastantes casos , engor-
gitamentos glandulosos , rebeldes até esta época , dissi-
parem-se em poucos dias , depois da primeira erupção
dos menstruos. O matrimonio tem posto termo algumas
K ve- ■
CO Pwça publica de Paris , a onde se faz a feira.
Not. do Trad.
V#?es á exteneia das escrófulas , pelo excitamento gp-
íal que o coito occasiona. Warthon observa que pelo
excesso da continência alguns rapazes se tem tornado
escrofulosos , os quaes espontaneamente se tem curado
peio gozo dos prazeres do consorcio. Juvencs celibas
stritmosi fixnt , postca vero matrhn&nw 'sponte curantur,
A mudança doclima e o passar do ar es.pe.sso e húmido
dos yalles , para o ar vivo \ e seceo das montanhas ,■■
tem sido bastante para certos escrofulosos serem livres
da -sua jnplestia.
O conhecimento do caracter essencial das escrófu-
las, e dos caminhos, de que se. serve a natureza para
lKç. -procurar o curativo, nos conduz á aqueile do me-
lhor i-nethodo a seguir , seja para as prevenir, seja pa-
ra, Jjhé leva?; o remédio. Estes meios prophiíacticos , e
curativos, indicados contra as escrófulas, são tiudos da
mesma classe d' aquelles de que temos aconselhado o uso
r>as ulcera^ a tónicas , e escorbuticas , e isto náo he hu-
ma das .menores provas da bondade de huma distribuição
methoJica das moléstias assim como a analogia do tra-
tamento nas .que se encontrão unidas no mesmo quadro.
Os escrofulosos devem habitar em quartos elevados,
espaçosos, ebem arejados, evitar a humidade, e o frio,
garantindp-se -delle pelos vestidos quentes , e seccos ,
usar de alimentos qu? contenháo debaixo de hum peque-
no volume , muitas moléculas nutritivas , com tanto que
sua digestão seja fácil. Deste género são o pão bem leve-
dado , carnes egrilhadas ; associa-se a isto o uso modera-
do de hum vinho generoso , que excite , e sustenha a
energia das forças circulatórias. Ao mesmo tempo favore-
ce-se a transpiração por fricções seccas , feitas , seja com
a. baeta embebida de algum vapor aromático , como o
que sa exhala da baga do zimbro , ou do incenso , seja
com escovas assaz brandas para que náo escureem a
peile , o que tudo produz hum excitamento graduado.
As fricções seccas feitas com as escovas de crina são
muito familiares entre os Inglezes, que tem tirado este
costume dos índios entre os. quaes he muito antigo.
A
147
A liberdade das outras secreções devem cuidado-
samente ser entretidas ; por isso todos os práticos per-
mutem os fructos , e as uvas bem maduras , e a con-
selháo purgantes repetido6 no tratamento da moléstia.
He igualmente importante entreter a alegria , afastan-
do da criança disposta às escrófulas , todas as idcas
tristes , e lúgubres. O Professor Pinél fez huma obser-
vação a este respeito , que nós temos tido occasião de
repetir muitas vezes. As crianças abandonadas á carida-
de publica , creadas em commum nos hospitaes , ou
confiadas a amas mercenárias , sentem bem cedo , quan-
to sua sorte he triste , e cahem desde a idade de sete ,
ou oiro anno$ çm huma melancolia, que lhes favorece
o desenvolvimento das escrófulas.
Porém supponhamos que vos he a presentado hum
escrofuloso , oíTerecendo todos os sinaes característicos
desta affecção , a fim de lhe determinardes com exacti-
dão as re,;ras a seguir no tratamento da moléstia. Os
remédios , que tendes a administrar , serão de duas sor-
tes: por huns vos-proporeis a dissipar a fraqueza geral,
e sobre tudo a atonia do systema lymnihatico , em
quanto que os outros serão concernentes à .variedade
dos sjmptomas. Estes podem com eíFeito exigir cuidados
particulares , como acontece na inchação , e carie dos
ossos, o engorgitamento das glândulas, e sua ulceração.
Quando a, ulcera escrofulosa não tem o seu assen-
to nas partes inerfiores, o descanço não he indicado
no seu curativo ; o enfermo , muito tempo entregue á
ca ma , perderia as forças , que o exercício conserva ,
e que são necessárias á terminação da moléstia.
No tratamento das escrófulas tudo deve tender a
reanimar a energia vital de todo o systema , e dos ór-
gãos principalmente afectados. A febre tem sido util-
mente, em muitos casos, excitada, e o tratamento de
todas as affecções escrofulosas locaes consiste em exci-
tallas , quero dizer , em lhe produzir huma inflamação ,
que destruindo o caracter crónico da moléstia, lhe ac-
celere a cura.
K ii Os
Os amargos , os fortificantes aconselhados no tra-
tamento tio escorbuto, çonvem sempre no das escrolu?
las, e estas duas aSccgóes poJeriáo , até hum certo
ponto, ser confundidas debaixo do ponto de vista The-
rapeutico. Por. isso , o vinho de quina , o vinho, e os
suecos anti-scorbuticos •, porém principalmente o elixir
obtido pela infusão aikooiica dx raiz de genciana, em
que se faz depois dissolver o carbonato de seda , pro-
duzem bom eííeito tanto n' huma , corno n' outra mo-
léstia. Neste elixir , os excitantes são felizmente asso-
ciados aos tónicos ; ora , esta mistura de substancias
fortificantes , e excitantes alkalinas , estabelece huma
diííerença notável entre os anti-escroíulosos, e os anti-
scorbuticos.
Com effeito , correi a extensa lista dos remédios
preconisados , em diversas épocas , para o tratamento
das escrqrulas , e olhados como especificos , ahi encon-
trareis as preparações saponaceas,, bebidas fortificadas
pelo amoníaco , a potaça , ou a soda , e todos 03 saes
alkalinos. Entre estes sáes deve-se pôr o muriato cal-
, cario, de cjue Mr. Fourcroy obteve felizes efieitos
na atrophia mesenterica , administrando na doze de do-
ze a vinte e quatro grãos , não dando mais de huma
oitava aos adultos ; t> muriato de baryta aconselhado
por Hnfeland, e que as experiências feitas pelo Profes-
sor Pinél, põem no numero dos melhores excitantes
do systema limphatico ; a mesma baryta reduzida á pó
fino , com que se pulverizáo as ulceras.
Esta efncacia dos alkalinos unidos aos tonices ,
tinha feito pensar que a causa das escrófulas poderia.
bem ser hum acido coagulando a lympha , á qual os
alkalis tornaváo sua fluidez. Sem admirei:- esta hy-
pothese chimica , contradicta pela impossibilidade de
demonstrar a existência de hum acico particular nos
humores de hum escrofuloso, e na qu?l hypothese se-
não tem além disso feito conta com a acção vital , não
se pôde negar , que os excitantes alkalinos paieçáo
obrar espicialmente sobre o systema dos vasos , e das
glan-
glah falas lyrnphaVcas-. Sua efecia nas escrófulas a-
cabaria. de provar , se houvesse precisão de provas ,
que hé na- inércia deste systema , que consiste essen-
cialmente a affeeçáo escrofulosa.
O. versos remédios tem sido empregados com vis-
tas de produzirem huma reacção febril saudável. Qua-
rin administrava o extracto da dedaleira , digitalis pur-
púrea, àugmenundõ gradualmente a doze desde hum
grão , até doze ; applicava também sobre as ulceras o
sueco fresco da mesma planta ; o qual produzia nellas
hum certo prori jo , e em alguns enfermos , huma ver-
dadeira febre seguida da cura. He reanimando as força s-
circulaícrias ,> qué as aguas thermaes sufpfiuiiicas , de
Bonne , e de Barégc tem moiras vezes acertado a
Bordeo no tratamento das escrófulas. Estas aguas aug-
mentáo a transpiração , e produzem huma ligeira febre.
Os marciaes unidos aos saponacios , obráo da mesma
maneira ; Lalouette dava do seu sabão marcial desde
quatro até doze grãos por dia. A febre considerada co-
mo meio de curar as escrófulas , só deve ser
excitada , ncs casos , em que não existem , senão
simplices engorgitamentos , ou que ao menos as ul-
cerações não fornèç-ãò huma grande quantidade de
pus Seria extremamente perigosa em certas car ; es escro-
fulosas: hé verdade, que se tem visto moderada , e
ligeira ; ; porém como se obtém justamente o effeito
desejado , pois que tal excitante administrado em fra-
ca cloze pôde produzir o mais yivo excitamento , se-
gundo a susceptibilidade do indivicV; í
Omercurio tçm sido posto na primeira ordem en-
tre os remédios chamados dissolventes da lympha ; não
he de admirar, que no tempo, em que tomando o
effeito pela causa , se olhava a coagulação deste humor
nas glândulas como a causa essencial das escrófulas,
se tenháo empregado as preparações mercuriaes no tra-
tamento desta moléstia. Sabe-se hoje que na verdade ,
este remédio hé hum estimulante assaz enérgico âcf
systema lymphatico , que o seu uso continuado , du-
rara
rante hum certo tempo dá nascimento a huma verda-
deira febre mercurial , causada principalmente pelo ex-
citamento dos absorventes ; porém náo se ignora, que
este excitamento somente he momentâneo, e que hum
estado de fraqueza , e de atonia he a sua consequência
ordenaria. Por isso tem-se tornado mui reservados na
applicaçáo do mercúrio contra as escrófulas ; emprega-sç
sobre tudo nesta variedade de moléstia conhecida debai-
xo do nome de oppilaçáo ou atrophia mesenterica. Da-se
entáo debaixo da forma de oxido amalgamado com su-
bstanc : as purgativas como nas pilolas de BelJosre (i),
ou do muriato mercurial, simplesmente unido á goma.
Estas pilolas de mercúrio doce sáo muito usadas no hos-
pital de S. Luiz , e a associação do elixir anti-scorbu-
tico ã seu uso , tem ahi produzido bons eífeitos.
A' applicaçáo dos remédios geraes indicados , se
devem ajuntar meios particulares segundo os sympto-
mas , pelos quaes as escrófulas se manifestáo, e apar-
te sobre a qual eltas exercem especialmente seus estra-
gos. Porisso , se applicará sobre as glândulas engor gi-
radas os emplastros dissolventes, ou resolventes, cães
como o de achyláo gomado , o emplastro de Vigo
aim mercúrio , o de sabáo , o de diabotanum , ou de
cicuta , kc. E se estas applicaçóes emplastricas , náo
produzem assaz promptamente a resolução dos tumo-
res
(i) A composição destas pilolas he a seguinte :
Tome-se : De azdgue no estado metálico S
t- Tartarito antimoniado de > ana' meia
potassa. J onça
lnture-se ate a total extineção dos dobes do mercú-
rio, e junte-sc
De diagrido "\
K. aná uhma onça
— Jalapa em pó J
Forme-se pilolas com qualquer charope de dous «rSos.
O autor adiante indica a dose. b
Not. do Traduc.
1*1
res, ou a sua supuração, por que ellas exercem estes
dous eífeitos, sígundo á disposição das partes affecta-
das, he preciso lardeir estas com o trociscos de mi-
ttimt. Este meio activo convém nos casos em que as
glândulas são extremamente duras , scirrosas , irnpermi-
aveis aos líquidos , estado de obstrução , que he pre-
ciso distinguir bem do simples engorgitamento da glân-
dula , pois que , neste ultimo caso , assim como o ex-
perimentou Soemmeringe , se deixa ainda penetrar pe-
las injecções mercuriaes.
Os meios tópicos , de que acabámos de fallar ,
são applicaveis ás glândulas postas debaixo da pelle ; j
porém como se hade supprir o seu uso nos engorgi-
tamentos glandulosos do pulmão , e do mesenterio í
Reid assegura que não há melhor remédio contra a
thisica escrofulosa, que a ipecacuanha administrada em
pequenas doses , todos os dias , e mesmo duas vezes
por dia ; as sacndiduras do vomito , o abalo , que re-
sulta -das simplices . náuseas (porque os eméticos em
pequenas doses produzem antes a disposição à vomi-
tar, do que operáo huma evacuação real), devem po-
derosamente concorrer a desengorgitar as glândulas
lymphaticas dos pulmões.
Em quanto ás glândulas engorgitadas do mesente-
rio, na oppilaçáo, os purgantes repetidos são o me-
lhor remédio; os purgantes mercuriaes, ou os purgan-
tes tónicos , taes como a agua de ruibarbo , diariamen-
te administrada , tem desobstruído estas glândulas , e
curado atrophias mesentericas , :aracteiisadas pela dure-
za e tumefacçáo do abdoméu , diarrheas serosas habi-
tuaes > e huma magrezr, tál , que todas as partes pa-
redão' atrophiadas. C riso provocado todos os dias pe-
las cócegas dos hypocundrios , não he menos vantajo-
so para a cura der.ta variedade da affecção escrofulosa.
Nas agitações repetidas e convulsões , que as acompa-
nhão, as glândulas sentem huma sacudidura muito fa-
vorável á sua desobstrução.
As ulceras escrofulosas > formadas espontaneamente,
ou
»5* .
ou resultantes da abertura das tumores escrofulosos a-
ppitemados , peccáo consta i: por falta de accáo ;
6uas -bordas são duras, calosas, e de hum rubor livi-
doj as suas superfícies descoradas, o puz , que delias
corra privado de consistência ; deve-se lhe excitar a
i^lammaçáo , ajuntando-se ao tratamento anti esc ror u-
loso o uso local dos excitantes. A labaça cozia a, e
applicada em forma de cataplasma , a barita ou terra
pesada , com que se pulverizão , os banhos saponacecs ,
ou aromáticos , servirão a animallas.
O desapego da pelle nos lábios retarda singular-
mente a melhora das ulceras escrofulosas , que suece-
dem à abertura dos abscessos deste género. Esta me-
lhora se faz sobre tudo muito tempo esperar , logo
que «c abrem muito cedo estes abscessos ; isto he ,
quando descobrindo de alguma sorte a supuração , se-
não rem ««perado pelo amollecirnenio da massa engor-
git»Ja. Porém além das durezas do fundo .da ulcera,
que a supuração liquida mais difficilrnente depois , que
anteí da abertura dos abscessos , os lábios ofterecem
ferquenr* fiirm endurecimento caloso , e tanto nestas
comr> fm outras , estas , calosidades , resultado de hu-
ma inflamação prolongada , porém pouco activa , não
se dissipáo , «enáo peia supuração, (i)
O galvansmo , c a electricidade tem silo applica-
dos com vantagem assim nos tumores , como nas ulce-
rações escrofulosas ; o vivo excitamento que por estes
meios se produz , accorda as propriedades vilães entor-
pecidas , e determínão huma inflammaçio necessária.
Pelo uso que fiz da pi.'a galvânica , me persuadi , que
não era necessário empregalla mui forte : huma vez
que o enfermo resenre abalos dolorosos na parte ulce-
rada , que entáo s? torna sanguinolenta , (o excitamento
he muito vivo, e excede o fim desejado.
Os
(i) Vede o artigo das feridas , que suppurao , como pela
compressão se fazem cessar este? diversos obstaculoso à forma-
ção da cicatriz.
'5*
Os outros effeitos da àffecçáo escrofulosa , taes
eomo a inchação , c a carie dos ossos esponjosos , o
engorgitamento das partes articulares , conhecido pelo
nome de tumores brancos das articulações ; a rachites ,
outra moléstia do tecido ósseo , que he constantemen-
te da natureza das escrófulas ; todas estas variedades
exigem , alem do tratamento geral descripto neste arti-
go , cuidados particulares , cuja importância merece ser
estudada em obras mais extensas.
â
GÉNERO QUARTO.
Ulceras Sypbiliticas.
ST" Osto que existáo , entre a enfermidade venérea e
a escrofulosa , sinaes de similhansa assaz sensíveis ;
que huma e outra destas moléstias afectando especial-
mente o sistema lymphatico , as membranas mucosas e
o tecido ósseo , determinem na primeira , engor..;itamen-
tos glanduiosos nas membranas , inRarnmaçóes e fluxos ,
( inda que a inchação e a carie dos ossos dependem tam-
bém muitas vezes tanto da syphiles , como das escró-
fulas ) a pesar da debilidade escrofulosa , na qual a aífec-
çáo syphilitica e os mercuriaes com que se combate ,
lançáo todo o.^ystema, e do estado escrofulosod os infan-
tes nascidos de pais infectados do vicio syphilitico ; com
tu io as ulceras deste género difFerem essencialmente
dos precedentes.
A debilidade náo lfre forma o carater . a syphiles:
se estabelece e propaga mesmo geralmente tanto mais
prompta quanto o individuo he mais forte e vigoroso.
Os remédios geraes. fortificantes e debilitantes náo sáo
empregados senão accessoriamente no seu curativo ; a
sua cura se obtém pe'a applicaçáo dos remédios parti-
culares apropriados à sua natureza , os quaes pela sua
efHcacia quasi constante tem sido olhados como especí-
ficos.
Em fim as ulceras venéreas sáo virolentas e con-
ta-
»54
tagiosas , o pus que delias corre , applicado ás partes
sáas , lhe transmite a enfermidade. Este ultimo caracter
estabelece huma differença essencial entre estas ulceras
e as que o escorbuto e as escrófulas entretém ou pro-
duzem. Em váo alguns autores tem admettido hum
vício escrofuloso, hum vírus escorbutico; toda a aftec-
ção virolenta he contagiosa : por isso a enfermidade ve-
nérea , as bexigas , a vaccina, a peste, etc. , são devi-
das á hum principio particular distincto dd resto dos
humores que infecta , próprio a comunicar a enfermi-
dade pela inoculação. Nada de similhante se vè no es-
corbuto e nas escrófulas ; o humor , que fornecem as
ulceras destas duas enfermidades he incapaz de as pro-
pagar.
Depois de haver estabelecido as relações c as dif-
ferenças desre género comparado aos precedentes , es-
tudemos a enfermidade venérea; fazer a sua historia
he expor a causa das ulceras syphiliticas que não são
com eífeito mais , do que hum simptoma desta affec-
çáo.
<A enfermidade venérea existe na Europa somente
depois da descoberta do novo mundo í Esta opin;áo ,
combatida por diversos autores , he a mais geralmente
adoptada. He verdade que os livros sagrados (Lívitiqne
chap. 15); Celso, liv. IV. chap. 21 ; Juvenal, s .tir.
ii; Marcial, no sétimo e nono livro dos seus epigra-
mas; Galeno e os Árabes; o Bispo Palladicus; os Mé-
dicos arabistas dos séculos treze e quatroze , taes como
Lanfranc , Salicet , Gordon , Arnaud de Ville neuve , e
Guy de Chauliac , fallão , em diversos lugares de suas
obras , de fluxos sanguíneos das partes genitaes , de
ulceras , de tumores , de gangrenas , de excrescências , e
ourros accidentes sobrevindos ás mesmas partes em
consequência de excessos de deboches ; j- porém estes.
simptomas , isoladamente descriptos e como indepen-
dentes huns de outros , erão realmente syphiliticos ?
Isto he o qne não promettemos decidir. A admiração
de que todos os Médicos foráo tocados, quando, no
155
fim do armo 1494 , depois que Christovão Colombo
tornou da sua primeira viagem ás Ilhas Caraibes, ap-
pareceo huma nova moléstia , contagiosa e mortífera ;
o temor que inspirou aos povos , victimas de seus es-
tragos ; o modo com que foi rransmittida pelos Hes-
panhoes aos Napolitanos , por estes ao exercito Francez
empregado no cerco de Nápoles , e pelos Frnnçezes as
aurras naçóos europeas as quaes lne chamarão mal
francez ; tudo nos obriga a acreditar que nós devemos
á America este funesto presente.
F.sta conjectura não he destruída pelo que tem
sabido a Sociedade Aziatica estabelecida em Calcutta
peias suas sabias indagações. A enfermidade venérea
era conhecida entre os Indianos desde hum tempo im-
memoravel , e deide a mais alta antiguidade os Bramene»
sab;r,o também o modo ce a curar. \ For que náo teria
a enfermidade venérea tomado nascimento nestes paizes
onde todas as tradições se concordão a por o berço da
espécie humana , e náo teria ella sido espalhada sobre
o resto da terra pelos mesmos homens nos quaes en-
contramos de hum modo táo evidente os fundamentos
de nossos cultos e das nossas leis?
No tempo da sua primeira apparição na Europa ,
a enfermidade venérea se embraveceo com tanta y. ; 0len-
cia , seu contagio era táo fácil , seus simptomas táo
rapidamente mortaes , que as auctondades publicas latv*
çaváo fora das cidades os indivíduos que eráo aíFscta-
gos delia. He porisso que o Parlamenro de Fariz orde-
nou aos galicados debaixo da pena de baraço ou de
Forca o sahirem da cidade no espaço de 24 horas. A
virulência da moléstia se tem gradualmente amorcecido ;
as gangrenas do penis , do escroto , da garganta , e ou-
tros effeitos familiares nos primeiros tempos da sua
appariçáo, já raramente se observáo. js; He aciso por
huma transmissão repetida , e por passar successivanr-"-
te hum táo grande numero de indivíduos , que o virns
venéreo terá experimentado huma alteração , que tem
diminuído sua violência í Similhante á huma torrente
cu-
i 5 6
cuja rápida carreira se enfraquece , logo que, do aper-
tado leito, em que suas ondas se achavào clausuradas,
espalhando-se por vastas campims, perde sua ferocida-
de á medida que estende seus estrabos ? Ou antes o
habito náo tem embotado a força de suas impressões ,
por se ter naturalizado ?
A enfermidade trazida da America passava de hum
paiz quente a hum oiifna- mais frio , e nada he mais
próprio a augmentar-lhe a violência. Os desgraçados
habitantes do porto de S. Paulo.no Canadá , acabáo de
ser viciimas desta triste experiência ; a moléstia levada
a esta colónia por marinheiros ínglezes ahi se mani-
festou por efreitos táo, cruéis como aquelles da sua in-
troducçáo na Europa , no rim do seculò qujnze. Sua
passagens de hum paiz frio ou temperado a hum mais.
quente , he ao contrario annunciada pelo adoçamcnto
de todos os seus simptomas. A continuada e abundante
transpiração debaixo áà zona tórrida , torna a enfermi-
dade venérea táo supportavel , e lhe enfraquece de tal
sorte os progressos , que os habitantes pouco se in-
quietáo , e vivem tranquillos com hum hospede tão
terrivel em outra parte. A enfermidade venérea he táo
commum na America , no Peru , nas Antilhas , nas
ilhas da Sociedade , que se poderia ahi olhar como en-
démica. Os navegantes que a contrahem nestes paizcs
Sao mui pouco incomodados em quanto ahi se dcmo-
ráo , e algumas vezes a enfermidade se lhe náo decla-
ra seraáo na volta quando chegão debaixo de latitudes me-
nos temperadas. Pelo contrario os simptomas da enfermi-
dade desapparecem ou se modificáo, quando passáo da
Europa para America. O mesmo acontece nos nossos
climas ; e a differença das tempeturas , segundo a va-
riedade das estações , náo tem menos influencia sobre
a intensidade da affecção syphilitica. Constantemente
he exasperada nos primeiros frios do invemo f em
quanto que os calores do verão lhe mitigão os simpto-
mas , e favorecem a acçáo dos remédios com que se
combate. Os sudoríficos tem em muitos casos sido bas-
tanr
*57
tante para a sua cura ; náo sejamos pois surpreendi-
dos que nos climas debaixo dos quaes a pelle vivámen--
te excitada se torna o assento de huma transpiração
abundante , tornem esta afrecção mais benigna.
As ulceras syph'lic ieas são o rezultado próximo de
hum contacto impuro , ou antes dependem da inrecçáo
geral , e se destinguem em secundarias e primitivas.
As primitivas sobrevem raramente alguma horas de-
pois do commerci.o impuro com mulher infectada , e
commum he sobrevirem dons , - trcs , até dez dias de-
pois i porém o coito não he o único caminho , pelo
qual se possáo contrahir : beijos lascivos , qualquer to-
que em huma parte da pelle escoriada , ou somente
coberta do epidermes vermelho e humecido , como o
dos lábios , da glande , sendo untados de algumas go-
tas do virus , são capazes de as produzir. Guilherme
Hunter contava nas suas lições sobre a arte cbstreticia ,
que huma parteira , muito procurada em Londres , foi
accomettida de huma ulcera syphilitica no dedo indica-
dor da máo "direita , por ter tocado huma mulher inífe-
ctada cotn este dedo , em que ella tinha huma lige'ra
escoriação. Antes de conhecer a verdadeira natureza des-
ta ulceração , a parteira iníTcctou mais de oitenta mu-
lheres prenhes sobre quem exerceo o tocar, (i) Huma
crennça de peito , que traz de seu« pais o género da
enfermidade venérea , bem depressa inlíecta sua ama ,
sobre tudo nos casos- , em que o bico do peto se acra
com alguma greta , etc. Há indivíduos que gozão do
fe'iz privilegio de frequentar impunemente, mulheres as
mais infectadas , estes são quasi todos homens robus-
tos , cujo prepúcio he tão curto , que a glande ex : ste
habitualmente descuberta : por quanto a continuada fric-
ção desta parte contra o calção tira aó epidermes sua
de-
(i) Certa indagação, que se faz com o dedo indicador,
introduzido na vagina , para conhecer da existência do fet-
to , ou da parte , que apprezenta.
Not. do Trad.
i 5 8
delicadeza , e toma a absorvencia menos fácil. Observai
tambr.n que aquellas pessoas que tem contrahido gali-
co são mais susceptíveis de huma nova infecção.
Conhece-se huma ulcera syphilitica primitiva, I. °
pelos sinaes commemorativos , tirados das circunstancias
antecedentes , como da cohabitaçáo com huma mulher
suspeita ; da existência de outros symptomas venéreos ,
donde a manifestação precede , accompanha , ou segue
de mui perto aquellas da ulcera. Taes seriáo huma blen-
norragia virulenta , com , ou sem inchaço da glande , e
do prepúcio , phymozes , e paraphymozes , engorgita-
mentos de glândulas lymphatieas inguinaes , ou bubóes j
2.° Por ser, o seu assento nas partes que tem so-
frido contacto impuro , taes como a glande , a superfice
interna do prepúcio , os lábios , a lingua , huma escu-
riação nos dedos, ou em outro qualquer lugar da pel-
le branca.
:$ . ° Pela forma com que ella se estabelece , e se
propaga, corroendo as partes, estendendo se mais em
largura do que em profundidade ; he precedida as mais
das vezes por huma pequena pústula, cuja rotura dá
sahida a hum humor acre , e límpido.
4. ° Em íim pelo seu aspecto , assim como do
estado das partes, que a rodeáo. Ella toma geralmente
huroa forma arredondada, seus lábios «íais ou menos
dentados , em lugar de ofrerecerem huma espécie de
scarpa , ou chanfradura , como a maior parte das ulce-
ras , sáo cortadas verticalmente sobre a sua espessura ;
a superfície da ulcera he coberta de huma sorte da pel-
le cinzenta, o humor., que ella fornece he viseozo ,
pouco abundante , espalhando hum cheiro sui generis ;
cm fim , seus redores , e as partes subjacentes sáo in-
flamadas , duras, e esta dureza com vermelhidão, e dor
ardente, fornece hum dos principaes sinaes da enfermi-
dade.
A ulcera syphilitica secundaria tem o seu assento
nas partes geniraes, na pharinge, na boca etc. Estabe-
lecem-se mais facilmente nas membranas mucosas, do
que
IS 9
que na pelle branca , e secca. No tegumento commum
sáo assaz raras , à excepção das que produzem as ca-
ries , e outras affecçóes venéreas. Tem assaz geralmen-
te hum a forma arredondada , outras vezes semelhante*
aos erpes corrozivos , ou phagedinicos , propagío-se de
huma a outra parte destruindo a pelle , e cicatrizando-
se de hum lado , em quanto que se estendem do ou-
tro. Eu tenho visto ulceras desta espécie destenderem-
se qaisi inteiramente pelo tcrpo dos enfermos , e não
fazer de toda a sua superflce mais que huma vasta ci-
catriz. Entre as variedades , que pôde offhrecer esta es-
pécie , notarei certas ulceras redondas , cuja cicatrização
commeça pelo cemro, de sorte que* no fim da eníer-
midade , a ulcera forma hum anel de ulceração , que
abraça huma cicatriz arredondada , e quando esta va-
riedade da enfermidade faz progressos, o circulo uice-
rozo se engrandesse , porém a cicatriz do centro aug-
menta de largura, á proporção, que a circumferencia
cresce.
As ulceras chamadas primitivas não são sempre os
primeiros symptomas da enfermidade venérea ; as que
chamámos secundarias podem igualmente sobrevir nos
primeiros tempos da enfermidade. He porisso que a
evacuação mucoza impropriamente designada pelo ter-
mo de gonnorrhéa ( a matéria , que a foima , provem
das glândulas da uretra , e differe essencialmente do li-
cor seminal ) , precede frequentemente os cancros , ou
ulceras syphiliticas da glande, ou do prepúcio. Outtas
vezes o enfermo contrahe o galico de assalto , isto he
sem se declarar algum symptoma nas partes, que fo-
rão expostas ao contagio , formando-se ulceras na gar-
ganta , pustullas na pelle, inchaços nos ossos, etc.
A suecessão admittida por hum grande numero de
autores , entre os phenomenos syphiliticos , não deve pois
ser ri ^orozamente concedida. He verdade que em con-
sequência de hum contacto impuro , a enfermidade se
manifesta nas partes submettidas a este contacto , que
a blennorragia , os cancros do peni*, os bubóes das
vi- ,
%6o
Virilhas se declaráo depois do coito com huma pessoa
infectada , que a estes symptomas desprezados , succe-
dem ulceras na garganta , e no véo do paladar , nódoas
na pelle, e.que em fim nos últimos períodos da afrec-
çáo , os mesmos ossos sáo atacados, as le2Óes das par-
tes genitaes , da.pelle, e das membranas mucozas se
tprnáo ao mesmo tempo mais graves ; porem tst.?s fi-
liações wp se observão constantemente; e se vem in-
diviJuos nííèct t ->dos de pústulas , e de exostozes syph líti-
cos , posto que as partes genitass náo tenh«o mostrado
algum sinal de iníecç?o.
Quando, a pezar da reunião dos s : nars commemo-
xativos, e diagnósticos , reste ainda alguma duvida so-
bre o verdadeiro caracter de huma uíceça julgada syph -
lírica , ha hum meio próprio a destruir, ou a con.rumir
as suspeitas ; este consiste na applicaçáo do unguento
mercurial , dos calamelanos , ou outra preparação se-
melhante , sobre a superfície ulcerada. O mercuro se
torna aqui por seus eíFeitos huma pedra de verdadeiro
toque ; ^ tiráo-se bons elieitos de sua applicaçáo, toma
a ulcera huma cor vermelha , sua grandeza dim nue , a
cicatriz começa a estabelecer se , e os redores da ulcera
a desengorgitarem-se ? Náo se pôde então duvidar da
natureza da enfermidade.
A principal cauza das dificuldades, que obscurecem
o diagnostico das ulcerações syphiliticas são devidas ao
caracter náo venéreo de certas ulceras das partes geni-
taes , na mesma occaziáo , em que ellas são a conse-
quência da copula. Concebe-se que toda a applicaçáo
excitante pôde dar lugar a escuriaçáo das partes geni-
taes ; que as flores brancas , quando contrahem hum
certo gráo de acrimonia devem produzir ulceras, ass ; m
como fluxos; quantas náo são geradas por falta de
cuidados , e de limpeza !
Só a experiência do mercúrio , para julgar das ul-
ceras duvidozas, he que decide. Fica-se privado deste
recurso nos fluxos blennorragicos , olhados pelos a -
ti&os como fluxos do sémen; qualquer excitante appli-
ca-
eanS a membrana da metia, determina estes fluxos,
que S2 declaráo doze horas, hum, ou muitos dias, e
<i 1 nas vezes huma , xxi muitas semanas depois. O
humor que fornecem as glândulas mucosas da uretra
nesta inflamação catarral de seu canal , he igualmente
verdoengo no principio , diminue em quantidade , es-
»se , torna-se brinco por gráos , até que recobra suas
qualidades naturaes , no fim da enfermidade, ou ella
dependa de hum excitamento venéreo, ou de outra qual-
quer cauza. Em fim a demora do fluxo , que se prolon-
ga mais que os outros catarros , porque a passagem das
ourinas renova continusdamente o excitamento , quan-
do , quero dizer , o fluxo dura muitos me? es , táo
violento , que todo o comprimento do canal he afTecta-
do delle , e forma huma corda , que embaraçando a
erecção do penis , torna esta extremamente doloroza ;
he ainda duvidozo que a ulcera seja verdadeiramente
sypMitica , pois que os autores , e Berjamin Bell entre
outros, sustentáo que o virus da gonofrhéa, inteira-
mente diferente do virus syphlitico , já mais communica
esta ultima afecção.
Com tudo a experienoia tem provado que se mui-
tas blennorrSa gias simplece3 , tratadas por bebidas cal-
mantes , e mucilaginozis , não tem tido consequências
algumas funestas, a infecção geral era sempre a temer,
quando sobre tudo a blennorrhéa tem sido terrivel ,
taes como aquellas , que na erecção o pénis fica cur-
vaJo, e o sangue sabe em mais ou menos quantidade
pelo orifício da uretra , e que se tem formado ulceras
sobre a glande , ou prepúcio , durante o curso do
fluxo.
Tem-se pensado, que ulceras syphiliticas se for-
maváo no canal da uretra , e fornecião a matéria dos
fluxos blennorrhagicos. Morgagni, e depois deste gran-
de Medico, huma multidão de aberturas cadavéricas
tem mostrado , que a ulceração da membrana interna
da uretra era excessivamente rara; que esta membrana
na blennorrhazia era somente mais espessa, e mais a-
L ver-
í6i
vermelhada, que no estado natur»l, e que em fim es-
te espessamento da membrana tornando^se maior por
en^orgitamentos repetidos , era a verdadeira cauza dos
apertos da uretra , cujos tem sido , ha muito tempo ,
tomados falsamente por prizóes formadas pelas cicatri-
zes das ulceras , de quem admittiáo a existência.
As ulceras syphliticas podem ser ingenitas. Swe-
diaur conta que a mulher de hum soldado drag«io deo
á luz hum menino , que trazia na garganta huma ul-
cera venérea no mesmo lugar , em que o pay tinha
huma.
As indagações de Mahon , e a observação diária
náo deixáo alguma incerteza a este respeito. He fora
de todo a duvida , que o feio sofre os funestos effeitos
da affecçáo syphlitica no seio materno. He pois sem
fundamento algum , que se tem querido attribuir os
symptomas venéreos, que offerecem as crianças, depois
do nascimento, ã infecção que tem adquirido esfregan-
do com sua pelle delicada as partes ulcerades da may
na acçáo do parto.
He com tudo verdade que independentemente do
contagio hereditário , de que o mesmo gérmen he vi-
ciado , muitas crianças contrahem o gaiico na occaziáo
da sahida do ventre materno , acontecendo isto tanto
mais facilmente , quanto a pelle he mais vermelha , de-
licada , e húmida , por quanto toda inteira está dispos-
ta á absorvencia , sendo por este medo análoga a
membrana , que forra os lábios , e as partes genitaes de
hum e outro sexo.
,Náo há em pathologia hum assumpto , que tenha
mais excitado a imaginação dos autores sistemáticos ,
do que a ethiologia da enfermidade venérea. J. Hunter ,
e outros mais explicáo a propagação do mal pelas leis
da sympathia , o maior numero admitte a existência de
hum virus , o qual , absorvido pelos vazos lymphaticos
corre os caminhos ordinários da lympha , altera , e ul-
cera os orifícios absorventes , determina o engorgitamen-
tOj e a supuração das glândulas desta natureza , e nos
es-
1*1
estragos , que r exerce sobre rodas as partes da econo-
mia, affecta principalmente os tecidos, em cuja* extro-
cturas entrão em grande porção os vazos lymphaticcs :
taes são os ossos , as membranas mucozas , e a pelle.
Não há duvida, que existe hum virus syphilitico.
Forma-se nas inflamações desta natureza, corrompe, e
vicia os humores , sem que o sangue , sua origem com-
irtufrt , p.iraça infectado delle. Este virus retido nas su-
perfices das ulceras syohiliticas, pôde communicar a en-
fermidade por inoculação ; triturado com hum oxido de
mercúrio, ou hum sal msrcurial, perde sua viroiencia,
e se torna incapaz de a propagar. Em huma palavra ,
a existência material deste ser he tão provada , como
a existência do vírus escorbutico , escrofulozo he c'ii-
merica. Observai como huma particularidade notável , que
o vicio syphilitico se não oppoem á reunião das feridas ,
como acontece nas dispoziçóes escorbuticas , e eescrofu-
losas , e que senão vè ulcera venérea nascer de huma
ferida acciclental , em quanto que . as de huma outra natu-
reza reconhecem frequentemente esta origem. Misturado
com a lympha , e acarretado pelo sistema dos vazos absor-
ventes , <não existem partes , sobre as quaes o viruS
syphlitico não possa levar seus estragos: humas vezes
os exerce sobre as membranas mucozas da urerra , da
boca, da garganta, das foças razars, sobre a conjun-
ctiva , sobre a membrana interna d.) recto, e determi-
na a blennorrhagia , as ulceras da glande , e do prepú-
cio , as da boca , da garganta , e do véo do paladar , a
ozena , a ophthalmia venérea , o engorgitamemo vené-
reo das paredes do recto ; outras vezes he á pelle , que
faz resentir seus effeitos , occazionando-lhe nódoas ,
pústulas , e ulceras. O tecido cellular não está ao abri-
go desta acção , tumores gommozos ahi se formão ,
sobre tudo junto ás articulações ; os ossos também são
o assento delle, sua membrana exterior, seu mesmo
tecido he afFectado na sua parte espongioza , rezulran-
do disro os periostozes , os exostozes , e caries vené-
reas. Em fim os cabellos, e as unhas cahern, os mus-
L ii cu-
164
culcs se athrophião , e os orgáos dos sentidos se tornão
paralíticos em certos Cazos, cm que a enfermidade está
inveterada. Esta extrema diversidade dos syrr.ptomas ,
pelos quaes o vírus venéreo declara sua existência , as
formas variadas , de que se pôde revestir , o 'tem íe to
com razão considerar como hum verdadeiro Frotheo ,
t:uja perigoza natureza escapa em muitas occaziões aos
olhos , os mais perspicazes. Felismente para a espécie
humana tem-se descuberto no mercúrio huma podcroza
arma contra este terrível inimigo 3 quazi tão variada
como elle nas diversas preparações , debaixo das quaes
o mercúrio pôde $es administrado , este metal o segue
em suas diversas transformações , descobre-o debaixo
dos véos os mais obscuros , e seguindo seu caminho
insidiozo , alcança-o , encadea-o , e o destroe.
A Therapeutica das ulceras syphiliticas se reduz
quazi totalmente aos diversos modos, com que se pô-
de applicar este remédio saudável. Não' formeis com
tudo de sua virtude huma oppiniáo muito exagerada ;
toda a exageração está longe da verdade. Ha ulceras ,
que rezistem teimozamente ao mercúrio , qualquer que
seja a forma , debaixo da qual se administra ; ainda
mais lhe aggrava consideravelmente os syrnptomas , se
se continua na sua applicação : ei-lo-aqui descaído da
qualidade especifica , que lhe tem sido muito .tempo
attribuida. ^ Qual será o remédio , a que nós devamos
dar esta denominação faustoza?
Logo que em consequência de hum eommercio
suspeito a huma uicera , ou cancro syphlitico se mani-
festa nas partes genitaes do homem , ou da mulher ,
ha práticos , que a olháo como huma enfermidade ab-
solutamente local no seu principio 5 e tratáo da sua
prompta cicatrização, e a obtém tocando-lhe a supetíi-
cie com pedra infernal , ou qualquer outro catheretico.
Éu tenho obtido por este modo a cura das ulceras sy-
philiticas sem empregar o. mercúrio , e sem que algum
svmptoma consecutivo tenha provado que não foi ra-
dical a cura. Porém devo na verdade declarar que mui-
tas
tas mais vezes ainda o successo saudável náo tem sido
senão apparenre , e que poucos dias , ou mesmo logo
depois do desaparecimento da ulcera , se tem manifes-
tado os symptomas , que denotáo a affecçáo syphilitica
geral , taes como as inflamações da garganta , como a
ulceração das amygdalas. Por isso , sem renunciar a
esta pratica , eu junto á cauterização o uzo interno do
mercúrio , e a applicaçáo local dos fios untados no un-
guento mercurial.
M. P. 5 Banqueiro Portuguez estabelecido em Lon-
dres , tinha vindo a Pariz , durante a curta paz , que
suspendeo hum momento as querellas sanguinolentas da
França , e da Inglaterra. Todo entregue aos entreteni-
meuos, que. esta' capital offerece , bem depressa colheo
os amargos fructos. Hum cancro venéreo da estensáo
de huma polegada de diâmetro pouco mais , ou menos ,
se formou em menos de quarenta , e oito horas. Sendo
eu chamado , e bem certificado pelas circunstancias
antecedentes , assim' como pelo aspecto da ulcera , da
sua natureza syphlitica , purguei o enfermo , e conse-
quentemente o puz no uzo do charope de Cuzinheiro ,
(1) no qual muriato de mercúrio oxigenado era dis-
sol-
vi) A este charope "se dá o nome de sudorífico. Faz-ie
d* maneira seguinte:
Tome-se de Salsa parrilha duas libras.
folha» de Sene limpas
aniz y anáhumaoutava
tolhas de rozas brancas
assucar - - -
aná três libras.'
mel brnco
Corta-se a salsa parrilha longitudinal, e transversalmen-
te, faz-se macerar, e infundir por doze horas; com o nro-
dueto desta maceração , e infuzão fas hum charope , que
.se clarifica, e* se lança fervendo sobre a sene, ai rozas , e
o aniz : depois de doze horas de infuiâo , eoa-se este charo-
pe. Code Pharmaccutioue pag. 3 8b. M. Aíiber junta > este
,5.
}
}
\66
solvido na dose de dez grãos por canada. Tomav*
delle huma colher de sopa cada noite no vehiculo d e
hum copo de leite quem» , entrava duas vezes na se-
mana em hum banho , purgava-se todos os oito dias
com seis pirolas de Belloste , tomando todas as ma-
nháas duas destas pirolas. Este tratamento durou pouco
mais ou menos seis semanas ; a ulcera se cicatrizou em o to
dias. Appliquei-lhe a pedra infernal repetindo-a por três
vezes , as duresas de que a ulcera estava cercada , se
dissiparão no meio do tratamenro. Eu observarei de
passagem, que em quanto existirem sinaes de cngorgi-
tamentos abaixo das cictrizes , de que se cobrem as
ulceras syphiliticas , a cura he incompleta.
Chegado o vigessimo dia , todos os simptomas
apparentes da affecçáo tinhão desaparecido; o enfermo
sentia todas as manháas hum gosto de cobre na boca ,
a saliva era viscoza , emais abundante dòque do costu-
me. Tudo annunciava que o ptialismo mercurial estava
prompto a estabelecer-se. Fiz cessar totalmente o uzo
do remédio, e terminei por dous purgantes ordinários
dados com hum dia de entrevallo. Desde entáo o en-
fermo, que tinha já passado em diversas épocas por
muitos tratamentos anti-syphiliticos , gozou de huma
perfeita saúde.
Eu bem sei que muitos práticos tem condemnado
este methodo , querendo que se deixem suppurar os
cancros , e que se abandone o seu curativo ao trata-
mento interno. - ( Porém para que devemos deixar subsis-
tir huma ulcera destruidora de nossas partes , e na qual
sf forma á cada instante o virus , cuja reabsorvencia
infecta toda a economia ? < Os cáusticas applicados á
ulcera venérea primittiva , náo destroem ou ao menos
não concorrem a enfraquecer, e a desnaturalizar o vi-
rus, e a sua applicaçáo não he aqui indicada pelos
mes-
charope dous grãos do muriato de mercúrio sobre oxigenado.
A dose ordinária he ce huma a duas onças.
Not. do Trad,
i*7
mesmos motivos que determináo a applicação dos caus^
ticos nas feridas venenozas í
Ha com tudo entre o tratamento das ulceras vené-
reas primirivas, C otra tamento das feridas venenozas ,
esta differença considerável, que a a^plicaçáo dos cáus-
ticos forma a parte essencial da Therapeutica destas fe-
ridas , em quanto que este náo he senáo hum meio
accessorio no curativo das ulceras : hé preciso sobre tu-
do esperar a cura pelo uso do mercúrio.
?Qual he apreparação mercurial de que se faz uso
com mais vantagem ? í Debaixo de que forma he mais
uril sua administração ? < O caminho das fricções he
preferível aos outros methodos de empregallo ? < Quaes
são os inconvenientes que podem sobrevir á sua appli-
cação ? ; Quaes sáo os meios , que a prudência indica
para prevenir seus esrragos ? < He conhecido o modo
de obrar do mercúrio ? ; Em fim quaes L sáo os outros
remédios , que se lhe podem associar , ou mesmo substi-
tuir-lhe quando sua acção he frouxa ou pernicioza?
Segundo Berenger de Carpi , ao qual he devida
a descuberta das propriedades do mercúrio no trata-
mento das enfermidades venéreas , sabe-se que este me-
tal puro, ou virgem hão goza absolutamente de alguma
virtude ; náo tem acção contra ellas senão no estado
de sal , ou oxido , e suas combinações náo tem o mes-
mo grão de cfRcacia.
Amais activa de todas he o muriaro oxigenado
de mercúrio , veneno violento , remédio heróico , mas
muitas vezes perigoso , ainda que se administre em pe-
quenas doses. Vanswieten foi o primeiro que fez uzo
desta preparação no tratamento do galico(i): 'dissolvia
(i) O Autor não faz menção de que o nosso Portu-
*uez o Doutor António Nunes Ribeiro Sanches foi quem
participou a Vanswieten a descuberta da applicação do su-
blimado nas moléstias syphiliticas.
" Foi então que eu communiquei os effeitos deste re-
médio a M. Barão Vauswieten , meu amigo , o qual por
i68
o mercúrio rio alkool dando esta dissolução por bebid a
em huma certa quantidade à' agua. He ainda debaixo
desta forma que este licor se administra, conhecido
cem o nome de seu autor. A dose he de hum quarto
de grão por dia , levanJo-se per grács até meio , e
mesmo até três quartos de grío ; de vinte a vinre e
cinco grãos be bastante no tratamenro ordinário. Iara
abrandar a actividade do licor de Vansvt ieten se mittu-.
ra com o leite quente , ou qualquer charope. O de co-
zinhe ro já mencionado he o sen vehicrlo mais ordiná-
rio. Esce charope, he incapaz de errar a syphiles ; po-
rém ajuda muito a acção do sublimado , e torna a
actividade deste remédio menos perigosa.
A pezar destes correctivos, senão deve jamais
dar a indivíduos , cujo peito he fraco , e delicado ; per
que hemophthyzes , e ihyzicás mortaes tem í>ido mui-
tas vezes produzidas por sua applicaçáo indiscreta. Este
remédio não convém dar senão a pessoas frites, pou-
co excitáveis , e doradas de robustez Hr.ma àis cinzas
que tem au D rnentaJo o uzo do muriato oxigenado he
a facilidade , com que se presta nos tratameuros occultos.
A quantidade necessária para a cura completa da syphi-
les , se pôde encerrar em hum pequeno vidro , que o
enfermo esconde facdrp^nf is vistas curiozas , e indis-
cretas ; pode misturalla ccultimente nas suas bebidas , e
inJa que o gosto seja acre , eíle só o percebe , e não
manifesta aos outros sua presença. Os vestidos senão
çujáo ; em fim a commodinade que se tem encontrado
em o tomar em pequenas doses , o tem feito adoptar
qua-
cartas me testemunhou seu reconhec/men^o, e ao depois pu-
blicamente no 5 . volume dos seus Conmentarios sobre os
Apriorismos de Poerliaave „. Des observationes sur les mala-
dies veneriemes par feu M Antonie Nunes etc. pa<*. 7.
Com tudo ja' hum Cirurgião Allemâo tinha feito uzo do
sublimado na Sibéria nas moléstias venéreas ; porém fazia se-
gredo da dose. Yejd-se a sokusdita Obra pa?. ?.
Not. doTraduc
\6(j
quazi gera'mente. • Qual he o remecKo além da sobre-
dito, que se pode propor nestas enfermidades , em que
pudor obsta o declarar o verdadeiro caracter, e que cu-*
ra muitas vezes fingindo ignorallásí
O muriato de mercúrio doce , ou os calomélanos
tem menos actividade; administra- se em pirolas , em
fricções , misturado com a banha de porco , ou mesmo
se cobrem com elle , depois de reduzido a pó subtil , as
superfícies das ulceras syphiliticas esfregando-se seus
redores. Clare o prescrevia em frcçóes na parte interna
dos lábios , nas gengivas , nas fauces , para obter a
cura completa. Porém não só tem o inconveniente de
se dífficultar o introduza huma quantidade de mercúrio
snFciente para exti^gUT o virus , mas ainda es r e me*
thodo expõem mais , que algum outro aos acc;dentes
da salivação, porque o mercúrio affecca mui facilmen-
te , e com tanta maior promptidáo as glândulas saiivan-
res , quanto se applica mais próximo destes corpos
glandulosos. O metSolo de Cb.re só he appliçaJo á
cura local das ulceras internas da boca , e do véo do
paladar.
O ox ; do cnzento de mercúrio , formando por sua
mistura com as gorduras , o remédio conhecido debaixo
do nome de unguento napolitano , he huma das prepa-
rações a mas uzàda no tratamento da afTecyáo syphili-
txa. Adm'nstra-se em frcçóes na dose de meia oura-
va , até duas de cada vèz : basta quatro onças pouco ■
mais, ou menos deste unguento no progresso do trata-
mento ord'nario. Untáo-se também as pranchetas com
este unguento , e com ellas se cobrem os cancros e
ulceras venéreas, sejio primitivas ou secundarias; em
fim, o oxido cinzento de mercúrio entra na compozi-
ção das.p'rolas mercuriaes , e das de Belloste , onde se
encontra associado as substancias purgantes.
A introducçáo do mercúrio por meio das fricções
he o methodo o mais antigo , e talvez o mais seguro
de administrar este remédio. D'spoem-se a pelle, ra-
pando os cabellos , que a cobrem , e aiimpando-a por al-
guns
i 7 o
guns banhos das impuridades , que a sujáo. Qualquer que
seja a quantidade do unguento , que ahi se empregue ,
antes^ de fazer a applicaçáo delie , praticáo-se algumas
fricções scccas sobre o lugar desta applicaçáo , na \
de augmentar a actividade das bocas absorventes (i) , c^-
pois do que estende-se o unguento ao longo do mem-
bro , e se esfrega com a máo guarnecida de huma luva
feita de huma bexiga de porco , pelo espaço de meia
hora pouco mais , ou menos. Se se servisse da máo sem
luva , esta absorveria huma certa quantidade de mercn-
rio. Tem-se visto pessoas empregadas nesta occupaçáo ,
faitando-lhe esta precaução , salivarem primeiro , que os
mesmos enfermos. A parte interna dos nossos membros ,
onde a Anathomia ensina que estão postos os fe ; xes
lymphaticos , os mais consideráveis , he o lugar qce se
escolhe para applicar as fricções Náo somente se deve
graduar a quantidade do unguento , que ahi se empre^i y
mas ainda affàstallas , ou approximallas segundo a épo-
ca do tratamento , e os efièitos que as fricções produzem.
Por isso , se começará por hnma fricção de ' meia
outava sobre a parte interna das pernas ; hum dia de
intervallo separará esta primeira fricção da segunda ,
que será praticada sobre o lado interno das coxas ; met-
ter-se-ha hum dia de intervallo entre esta , e a terceira,
para a qual se escolheráô as regiões inguinaes , e parte
inferior do abdómen ; a quarta será feita nos membros
su-
' 0) Nas fricções seccas , que o autor recommenda não
deve haver a imprudência de as levar até' hum ponto, que
estabeleça huma flogose , porque nestas circunstancias as bocas
dos absorv entes estimuladas não absorvem o mercúrio ; este.
se depozita na pereferia, e ahi se accumula com as repetidas
fricções , e quando os absorventes adquirem o grão , que lhe
he necessário para a absorvencia , esta se faz mui repentina-
mente, e em grande quantidade ; então se podem desenvolver
todjs os symptomas mãos ; que huma immoderada applica-
çáo do mercúrio produziriaé
Not. do Traduct
'7*
superiores , quando se não preferir o recomeçar pelas
pernas. Estas quatro primeiras fricções de meia outava
cada huma , e separadas por hum dia de descanso , se-
rão seguidas de hum banho quente , e de quatro outras
fricções de huma outava cada dia, sem intervallo. Ha-
verá o cuidado de alimpar bem a pelle , antes de lhe
reapphcar o novo unguento. Continua-se do mesmo mo-
do , entremeando as fricções de banhos, de dias de des-
canso , e de purgantes , segundo as indicações , que podem
offerecer-se. Esta gradação essencial a observar previne
huma mui prompta salivação. Pie bom que as gengivas
se amolleção , que o enfermo resinta pela manhãa hum
gosto a cobre na boca , e que experimente hum prin-
cipio de afFecção. Fica-se seguro por isto da acção do
mercúrio ; porém não he necessário , como se tem
muito tempo julgado, que a salivação se estabeleça ,
para que a cura seja completa. Além d isto es.te ptya-
lismo que esta a cima dos poderes da arte o suspendello ,
huma vez que elle está bem estabelecido , pôde por
sua abundância , e sua duração lançar os enfermos em
huma magreza mortal; tem-se ainda ma ; s observado
que , em certos cazos o mercúrio sahe mui facilmente
por esta salivação , e que em sua passagem rápida a-
rravez da ecanomia , não tem tempo de alrerar o virus.
Assim pois , bem longe de que estas salivações inmo-
deradas assegurem a cura radical , tornão algumas ve-
zes o tratamento inútil. Acontece o mesmo em certas
diarréas , e suores mercuriaes , observados sobre enfer-
mos excitáveis, aos quaes se tinha mui precipitadamen-
te administrado o mercúrio a grandes doses.
A impressão de hum ar frio e húmido , hum ca-
lor considerável , entretido pelos vestidos nas partes su-
periores provocão a salivação. He pois prudente conser-
var o enfermo em hum quarto , onde o ar quente seja
renovado cada dia , fazello dormir com o pescosso des-
cuberto , e a. cabeça ligeiramente coberta. Ao menos ,
que não haja huma necessidade urgente, o enfermo
náo deverá expor-se ao ar livre , sobre tudo quando
he
I 7 2
he frio , e húmido , e como estas duas qualidades sáo
sobre tudo dominantes , íogo que o sol tem deixado o
horizonte ; he principalmente durante a noite que o
enfermo o deve evitar (i)
Náo se poderia insistir muito sobre a necessidade
de huma recluzáo severa no tratamento das enfermida-
des venéreas. Os enfermos, que vagão a seus negócios,
estáo expostos a huma multidão de influencias , que corura-
riáo, neutralizão , ou tornáo pernicioza a acçáo do re-
médio. Inexactos a tomallos, contrahem novas enfermi-
dades , antes de serem curados daquellas , de que sáo
affectados. Eu eston persuadido , que he pela negligen-
cia , com a qual as prescripções se executáo pelas pes-
soas , que continuáo a vagar a seus negócios , que náo
tem bom êxito muitas vezes os tratamentos melhor
ordenados. He por esta cauza, que deve ser attrihuida
a inefficacia do muriato oxigenado de mercúrio, cu'|o
uzo náo cauza algum embaraço , e permirte aos enfer-
mos de se entregarem as suas oceupaçóes acostumadas.
He tanto mais importante de náo dar nos prjnci-
pios , o mercúrio a grandes doses no tratamento das
ulceras syphiliricas , por quanto cobertas com as pran-
chetas untadas do unguento mercurial, absorvem huma
grande quantidade desre remédio ; em nenhuma parte a
absorvencia he mais activa do que nas superfícies ulce-
radas , e isto explica a promptidão com a qual a sali-
vação mercurial sa tem estabelecido nos enfermos , aos
quaes se administraváo internamente fracas quantidades de
mercúrio. Este effeito tem sobre tudo lugar , quando a
ulceração he na vizinhansa das glândulas salivares.
Os
O) O nosso celebre Doutor Sanches , jà citado , diz no
seu tratado de moléstias venéreas , que elle observou no
Hospital de MOscow que dos doentes , que se achavão nas en-
fermarias , só salivavão. aquelles que estavão mais próximos
d;i- entradas d'ellas , porque a corrente do ar mais frio os í*
tacav?..
Noí. do Traduc.
17$
Os purgantes repetidos com as substancias rezino-
sas as mais excitantes, os disteis, os pediluvios , &c. ,
são fracos remédios contra a salivação inmoderada.
Hum meio , de que a expetiencia me tem demonscrado
a utilidade em casos similhantes , he a applicaçáo da
neve em circumíerencia da mandíbula inferior , combi-
nada com os gargarejos frios, e acidulados.
Taes são as preparações mercuriaes as mais usadas
no tratamento das moléstias syphiliticas. Todas as com-
binações , nas quaes entra o metal, taes como os óxi-
dos rubros, o acitito, o tartrito , o niterato , a snifata
de mercúrio, tem sido succes.si vãmente empregados, po-
rem nernuma iguala em e-fficacia as três que vimos de
indicar. O methodo das fricções , e as administrações
debaixo da forma de bebidas , excedem tãobem aos ba-
nhos , aos disteis , ás fumigações , e outros procedimen-
tos , com a ajuda , dos quaes se tem procutado introdu-
zi las.
Podem-se combinar os três remédios, associar, por
exemplo , o sublimado ás fricções , quando se trata de
obter hum prompto alivio, A acção do primeiro he
mais rápida , e he a este melhoramento quasi súbito
que a sua applicaçáo procura , que he preciso attribuir
a approvação de que elle goza. Pode-se ajuntar ás fric-
ções o uzo interno das pirolas mercuriaes de todo o
género. Porém em todas estas modificações do trata-
mento , seja que se empreguem ao mesmo tempo muitas
preparações mercuriaes , seja que se administre a mes-
ma preparação debaixo de diversas formas , deve-se
prudenciar em não exceder á doses , que o individuo pos-
sa supportar.
. Ignora-se ainda o modo de obrar do mercúrio no
curativo das affècçóes syphiliticas ; < une-se ao vinis
venéreo em virtude de huma afKnidade particular exis-
tente entre elle, e esta cauza da eufermidade ? neutra-
liza o virus combinando-se com elle da mesma forma ,
que a cal , a qual se une ao acido sulfúrico , e forma
hum sál neutro , que lhe extingue a acidez ? Esta opi-
nião
174
niáo nos parece mais verosímil. Tem-se com tudo sus-
peitado, que o mercúrio não abra, senão pelo oxigé-
nio, que leva com sigO, e que suas virtudes dependem
da grande quantidade deste principio de que se carrega ,
assim como da facilidade , com a qual elie o abandona.
Depois desta suspeita fundada sobre a inactividade com-
pleta do mercúrio no estado metálico , sobre sua revivi-
ficaçáo no corpo humano donde elle sahe (i) pela
transpiração insensível , branqueando os anéis , é outras
jóias de ouro , que com sigo trazem os enfermos , re-
ducçáo , que se opera ainda , quando se coagula o r.lbo-
mineo dos licores arrmaes com os sáes , ou oxides mer-
curiaes , M. Fourcroy pençou que ourras sursta-cas
igualmente oxigenadas , e susceptíveis de ceder este
principio com a mesma facilidade , poderiáo substitui-lo
na cura do gallico.
Em consequência desta idéa , alguns Médicos es-
trangeiros , e M. Aiyon , pharmaceutreo distinto , tem
intentado substituir ao mercúrio a limonada nítrica ,
a banha de porco oxigenada pela mistura cem o mes-
mo acido , que contem , assim como se sabe hum a
grande porção de oxigénio fracamente unido á sua base.
O acido nitrozo^ o acido cítrico, o acido muriati-
co oxigenado , ou anres agua saturada com este gaz
acido , e o muna to sobre-oxigenado de potassa tem sido
empregado por Cruiskank com vantagem , -como se po-
de ver na Obra de Rollo sobre a dinbetis saecharina ,
onde estas observações se achão consignadas. Se a em-
cacia destes remédios oxigenados fosse igual á das pre-
parações mercuriaes , rer-se-hiáo bem depressa abandona-
do estes ultimes , pois que es outros não expõem aos
tremores nervozos, e outros eífeitos funestos, de que
he
CO a Al?uma<? ve7es ahi Fca em hum a cerra quantidade.
.Autores respeitáveis assejjurão terem encontrado nas celludas
do tecido ósseo , e nas glândulas lvmphaticàs de pulmão , ele»
bos de mercúrio puro ? e reconhecível por seu resplendor me-
tálico.
175
He algumas vezes seguida a administração do mercúrio ;
porem he preciso que se possa conceder huma inteira
confiança ás virtudes do. oxigénio separado do metal.
Experiências confirmativas tem sido tentadas e se-
guidas , durante hum anno no hospital da escolla de
Medecina de Pariz , debaixo das vistas dos commissa-
rios nomeados para esta escolla. Muitos enfermos só
tem experimentado hum alivio momentâneo pela po-
mada oxiginada e a limonada nítrica ; hum mui pequeno
numero se cem curado ; alguns tem soffrido recahidas de-
pois de huma melhora apparente, de modo que comparan-
do estes resultados com aquelles , que cada dia se tem
obtido pelos methodos ordinários , vê-se que estes con-
serváo a sua superioridade. Ha pois alguma cousa de
inesplicavel no modo de obrar do mercúrio para a cura
da enfermidade syphilitica ; suas virtudes sáo devidas
evidentemenre a sua combinação com o oxigénio , po-
rém esta combinação he necessária , pois que a acção
separada dos dous princípios he nulla } ou menos eííi-
caz.
As ulceras syphiliticas secundarias sáo de huma
cura longa , e mais difficil que as primittivas , sobre
tudo quan lo ellas tem seu assento na pelle. Raras ve-
zes existem sós , e se complicáo bem depressa com pústu-
las a roda da fronte ( corona Veneris ) , e em diversas
outras partes do corpo , de periostozes , de exostozes
dos ossos do craneo ; da clavícula , da tibia , do ster-
num &c , inchaços do -tecido ósseo accompanhados de
dores osteocopus noctutnas , que o calor da cama aug-
menta , e que os sedativos ordinários não podem alli-
viar. Ora, como he raro que a affecçáo tenha chega-
do a este gráo sem que o enfetmo tenha alguma cou-
za intentado para o seu curativo, e que o mais ordi-
nário tenha feito já muitas fricções , tomado o s ubli-
mado , ou se tenha tratado de algum outro modo , a
enfermidade he mais grave , o virus mais difficil a
dezarreigar , que se não tivesse sido desnaturalizado pôr
tentativas mal dirigidas, e que fosse ainda virgem de
to*
iy6
todo o remédio , se esta expressão nos-póde ser permi-
tida. Seja como tor, commeca-se o tratamento por
fricções methodicamente dirigidas, juntando à isto o
uzo das tizar.as feitas com os cozimentos de squina i),
de salsa parrilha , de guaiaco , e outros ienhos sudo-
ríficos.
i^Jáo se deve ser surprehendldo de achar algumas
vezes estas ulceras rebeldes ao mercúrio , fazendo pro-
gressos mais rápidos, e tomando hum peor caracter
durante a administração deste remédio. Se o enfermo
se acha mal com os mercuraes , qualquer que seja a
forma debaixo da qual se administra, devêmo-nos Imi-
tar á applicaçáo dos sudoríficos , nos cazos desta espé-
cie se emprega com utilidade no hospital dos venéreos ,
três copos por dia de hum forte cozmento de guaiaco ;
pederi >se fazer ahi dissolver alguns grãos de potassa ,
ou de so_ J a , a fim de lhe augmentar a actividade.
Quando a ulcera he complicada de hum inchaço
doloroso nos ossos, se as dores são excessivas e cauzão
a vigilia , une-se ao emplastro de V\go cum mercúrio
cem que se cobrem estes rumores, numa dissolução de
duas , ou três cucavas de ópio gemozo ; adminisrra-se ,
cada noute , algumas gotas do laudano liquido. T-m se
visto esres meios socegar maravilhozamente as dores,
e em outros casos , diminuillas sensivelmente , o qee he
sempre huma grande vantagem.
A fraqueza do mercúrio no tratamento das afFecções
syphiliticas pôde ser devida a diversas causas ; a pr-
meira , sem duvida são os erros o regimen da
pine dos enfermos: sua inexactidão a tomar os re-
médios, sua repugnância aos continuar muiro tempo
ainda depois, oue os symptomas renháo desapparecido,
precaução indispensável pata estirpar até as ulrmas
rai/es do mal. A salivação indiscretamente provocada,
e muito tempo entterida , as diarréas , os suores , oc-
ca-
(0 Raáix Chi/iac. Ou Smilcx China de Linnoeus.
Not. do Trad.
«77
CflzionaJos por muito forces doses do remédio j o fin-
cão mui rapidamente fora da economia , passa su-
perficialmente sobre o mal, e não o pode curar. A
íteqtíérue repetiçio do tratamenro rnereurial habitua nos-
sos órgãos a elle , torn.mdo-os insensíveis á acção dj ;
remeiios; táobem se observa que se administráo con
tanto mais bom exitb , quanto o enfermo tem menoi
frequentemente uzado delle: em alguns casos he neces-
sário suspender por intervallos o uzo do mercúrio, a
fim ue que a economia se torne mais sensível á sua-
acçáo.
Não somente as ulceras, e outros symptomas sy-
phiiiticos sao algumas vezes rebeldes à acção do mer-
cúrio , e se prolonga váamente a sua applicaçáo ; po-
rém ainda este remédio pôde produzir eíf eitos táo fu-
nestos, como o mal, ao qual se applica. Quando se
insiste em administra-lo sem fructo , se torna de inútil
prejudicial , muda o caracter das ulcerações , augmánta,
as dores , occaziona movimentos convulsivos em diver-
sas partes do corpo , ou paralysias dolorosas. Ha autx>
res, que tem posto no numero dos eíFeitos prejudiciaes
do mercúrio a magreza , que seu uzo occaziona ; quan-
, do esta perda de gordura não he levada até o maras-
mo , que a pailidez da pelle se não muda em huma
cor livida e achumbada , deve-se olhar como huma pro-
va da acção do remédio. Elle não produz , como al-
guns dizem , huma febre indispensável ao successo da
cura ; mas espalhado em toda a economia , imprime aos
sólidos e aos fluidos huma alteração particular , na qual
a debilidade forma hum dos principaes caracteres.
Os adstringentes e os tónicos são os melhores re-
médios a empregar nas affecções que peoráo pelo uzo
continuado das preparações mercuriaesj os gargarejos,
os banhos com o cozimento da kina , a infuzáo feita
da casca de nogueira , o ar livre , hum regimen ana-
leptico , os remédios anti-escorbuticos , a limonada , e
outras bebidas aciduladas convém em todos estes casos :
sua applicaçáo repara a economia fatigada das mesmas
M «Hrí
i 7 8
impressões , levanta as forças dos órgãos abatidos , e
permitte ao fim de hum certo tempo de lançar mão
outra vez do mercúrio, se ainda existem vestígios da
enfermidade syphilitica , ou de lhe dissipar os restos pe-
lo uzo dos sudoríficos , do ópio , do alkali volátil , e
outras substancias que se tem proposto para lhe substi-
tuir no tratamento desta affecção.
As tizanas, os arrobes e charopes sudoríficos, ra-
ramente òccazionáo suores , os quaes se deveriáo espe-
rar , se se julgasse peio seu nome , as suas virtudes.
Tenho visto algumas circunstancias , ein que sem
augmentar a transpiração de huma maneira sensivel ,
estes remédios dissipaváo os males sypKilicrcos os mais
inveterados. Eu os tenho algumas vezes utilmente com-
binado com os tónicos, e muitas vezes faço uzo de
huma mistura de partes iguaes de charope de cozinhei-
ro com charope anti-escorbutico na dose de duas a três
onç?.s cada dia.
O ópio associado ao mercúrio , e administrado em
forma de pirolas , ou applicado sobre as ulceras syphi-
liticas , tem em certos cazos singularmente accelerado
a cura , porém he duvidozo que só elle procure a cu-
ia certa, quando o enfermo não tem efeito uzo al-
gum dos remédios mercuriaes.
Peyrilhe pertende ter curado galicados mesmo mui-
to antigos com o alkali volátil misturado nas bebidas.
Este artigo excederia os limites que lhe prescreve
a natureza desta Obra , se eu quizesse fallar dos inu-
meráveis remédios gabados, como especificos na enfer-
midade venérea: basta em -fim dizer, que todos os re-
médios , qualquer que seja o segredo com que cobrem
sua compozição , com qualquer arte , que o charlatanis-
mo lhe mascara a natureza debaixo dos títulos os mais
pompozos , não gozão de huma certa efricacia , se-
não por meio dos saes mercuriaes , que nelles se encon-
trão em dissolução. O arrobe anti-syphilico de Laffe-
cteur conserva ainda muita voga, para qne se possa
dispensar de se fallar nelfce. *Este «pzimento vegetal >
que
179
que se suspeita a cana da grama , ( arnndo pkragmites <h
Litin, ) ser a base , não he verdadeiramente efôcaz senão
pelaaddiçá© de seis a dez grãos do sublimado ou mu-
naco mercar;.'.! oxigenado em cada canada , e çjuantfò
tem bom eífeito sem esta mistura', de que seu autor
em muitos caso, táo faz hum mistério , he porque se
fepplica nas enfermidades já tratadas pelo mercúrio , ou
bem aos symptomas , que o uzo muito imprudente
ia ste metal tinha agravado.
GÉNERO QUINTO.
Ulceras Herpeticas.
Distancia que separa este género do precedente'"
náo . he táo grande como poderiáo julgar aquelles que
se contentariáo de examinar superficialmente suas relações.
O herpes venéreo he o rmis frequente de todos ; as
outras espécies nascem muitas vezes táobem da enfer-
midade \enerea degenerada , isto he , desnaturalizada
por tratamentos que náo tem tido o feliz successo ds
a destruir. O estudo de todas as aíFecçóes crónicas sus-
ceptíveis de occazionar as ulceras , me tem convencido
que ha huma sorte de aiHnidide entre estas enfermida-
des , e que ss poderia , em huma distribuição natural ,
considerallas como fazendo, todas parte da mesma famí-
lia. O hospital de S. Luiz , táo vantajozo para as ob-
servar em todos os seus períodos , debaixo das formas
numerozas de que se podem revestir , e sobre hum
grande numero de indivíduos juntos em hum mesmo
lugar , me tem fornecido provas multiplicadas desta
analogia. Náo he raro o ver erupções crustozas com-
plicar as ulceras atonicas 3 eseorbuticas , e escrofulosas ;
muitos svmptomas venéreos , taes como as manchas ,
as pústulas, &c. , são da natureza hetpetíca , ha huma
espécie de tinha que se poderia olhar como hum her-
pes do couro cabellozo ; em fim a similhansa he notá-
vel ate nos princípios do reatamento donde os tónicos,
M ii amar-
i8©
amargos , os saes mercuriaes , e alkalinos formão sem-
pre a base.
j Quem seria capaz de determinar as formas va-
riadas debaixo das quaes os herpes se podem manifes-
tar ? Existe hum herpes farnhozo , hum pustuiozo ,
hum miliar, hum herpes vivo corrozivo ou phagede-
mico ; porem enganar-se-hia extremamente querendo res-
tringir a estes quatro as peccos todos aquelles debaixo
cos quaes a afFecçáo herpetica se manifesta. Existe
hum herpes redondo , e hum crustozo , hum carcino-
matozo , e sylindroides ; &c. &c. e todas estas varieda-
des se encontrão fielmente deliniadas na grande Obra f
que prepara o Doutor Alibert, meu amigo, e meu
collega no hospital de S. Luiz. As figuras só podem
pintar , o que as palavras náo podem exprimir ; porém
não se deve prestar muita importância a esta varieda-
des de forma, com as quaes os herpes se apprezentão ;
qualquer diferensa, que tenháo estas erupções, o cara-
cter da enfermidade he o mais das vezes o mesmo , e
os methodos do tratamento absolutamente similhantes ;
as únicas apparencias exteriores , úteis a estudar são
aquellas, que fazem distinguir a origem venérea , ou
escroluloza do herpes. He depois de sua cauza , que
importa estabelecer as espécies desta affecçáo , por quan-
to he depo;s do conhecimento desta cauza , que se-
adoptáo os methodos curativos específicos, < Para que he
lazer dos herpes pustulozos, farinhozos, miliares , crus-
tozos, &c. , tantas especes separadas? ^ O mesmo her-
pes , primeiro farinhozo , se náo torna elle crustozo , e
depois corrozivo ? náo he ellle susceptível de se reves-
tir succesivamente de todas eetas diversas formas duran-
te a existência do seu curso , da mesma forma que os
pássaros crescendo mudão muitas vezes de pennas í <
As bases do tratamento variáo a pezar da variedade dos
aspectos ? Náo reconheçamos pois outras especes d*
herpes, que aquellas que se fundáo sobre suas cauzas,
pois que o conhecimenro desta ultima fornece somente
as bases verdadeiras do tratamento. Se nós náo uzamos
des-
i8i
desta rezerva , plenamente encorremos na reprehenção
que a eicolU de Coós dirigia nos Médicos de Cnido.,
por multiplicarem com excesso o numero das eníerrrn-
dades , descrevendo cada symptoma , como huma afFec-
çáo particular.
Às pessoas , de quem a pelle he fina , delicada , e
de huma extrema sensibilidade , sáo totalmente dispos-
tas aos herpes , que certos autores tem julgado , que
em todas estas aífècçóes, a susceptibilidade nervoza da
membrana commum viciozamente se encontra augmen-
tada. Estas nódoas herpeticas se manifestáo sobre tudo
nas mulheres , nas partes do corpo que os vestidos co-
brem , raramente sobre as máos , ou sobre o rosto ; as
flores brancas, o habito da mastrupaçáo predispõem pa-
ra os herpes ; algumas vezes sobrevem ao parto naquel-
las mulheres que nao dão de mamar. Estas numerozas
nódoas , irregulares , de hjum rubor pálido , e semelhan-
te a cor de cobre , náo fazem sobre a pelle elevação
sensível , e se esta membrana he menos dura ao tocar ,
e menos polida nos lugares , onde esta coberta delias ,
isto he devido principalmente ao estado farinhozo das
nódoas , por sima das quaes o epidermes se despega eia
escamas , por que he ao herpes lareiaceo , que se de-
vem refferir. Como todas as affecçoes herpeticas , estas.
nódoas tem hum caracter de instabilida le notável ; de-
sapparecem (i) em huma parte para se mostrar em ou-
tra, ou bem, curadas em apparencia , se mostráo de
novo ao fim de hum tempo mais ou menos extenseu
O pronostico náo he triste ; com tudo ellns se mostra»
algumas vezes rebeldes a toda a espece de tratamento.
A primeira couza , á qual se deve fazer attençáo.
no seu tratamento , he à cauza de que ellas parecem,
depender. Se a excitabilidade da pelle he mais viva, o,
in-
(i) Neste transporte d' herpes errantes, ou ambulantes,,
os vazos lymphaticos obiáo. activamente ; seja que se car^
reguem de humor herpetico, seja que o deponha no lugar ,,,
a onde o chama hum exciíamonto mais vivo.
IS2
individuo rervozo ; os banhos quentes , que convém em
todas as affiscções herpeticas especialmente aqui devem
ser indicados : os enfermos se devem abster da mas-
trupação , logo que tenhão contra hido este habito vi-
ciozo Huma mulher, que levava este abuzo mui lon-
ge com sigo mesma , fatigada da abstinência , que eu
lhe tinha prescripto , de novo a elle. se entregou; as
nódoas tornarão a apparecer ; dissiparáo-se pelo regi-
riteri , e remédios apropriados ; porém se a sua vaidade
não fosse interessada a prevenir o retorno das nódoas ,
de que sua pelle muito branca se achava horrivelmen-
te disrBrrfífei as recahidas seriáo frequentes.
Existe entre o tcgumenro commum , e os órgãos
da geração, huma correspondência sympathica , depôs
d? milito tempo usada pelo deboxe. Conhece-sç a
arte de chamar o prazer pelo caminho da dor, de
acordir os sentidos embotados, e de provocar novos
prazeres ' peia flagelação, urtigaçio , e outros meios
desta espécie. O pequeno Tratado de Meibcmius, De
Hiu jlagrorv.m in re Fcncrea , encerra mais de hum
facto curiozo neste género. He deíicil de manter a or-
dem , e fazer observar as leis da decência nas enferma-
rias' dos herper'cos no hospital de S. Luiz. Em todas
as aííecçoes cutâneas , ■ os órgãos da geração se acháo
sympathica;?aente excitados ,' e os enfermos , sempre por
suas indecencias notáveis, são algumas vezes atormen-
tados de hrmta erecção sympthomatica (ih.
Os banhos quentes repetidos, o uzo das pirohs
saponaceas , huma t;zana feita com huma infuzão de
fél da terra , e de scabioza , misturada com o Soro de
leite; as fricções com a pomada feita com o oleO da
abcb;ra , ao qual se ajunta cera branca, ou acitito de
chumbo , podem ser administradas nos cazos , onde se
olhão as nódoas como hum simples augmento , ou de 1
huma aniquilação da excitabilidade da pelle. Convém
com
( ) Vede a excellente dissertação de 31. Duprcjt-Rony ■>
sobre a Sat^riasis.
eom tudo ajuntar ao uzo destas pomadas répereussivas
o uzo dos purgantes assaz repetidos, para pôr os en-
fermos ao abrigo das metastazes.
Ha pouca diferença no aspecto . entre as nó-
doas herpeticas furfuraceas , de que acabamos de fallar,
e que nós cons ; deramos como o grão o mais ligeiro
da affecçáo herpetica i e as nódoas sypkiiticas. Estas
igualmente sáo irregulares , de huma cor similhante' ao
cobre ; porem s?o hum pouco mais proeminentes , e
tem o meio , debaixo desta analogia entre as simpieces
nódoas , e as pústulas. He sobre tudo o exame do es-
tado anterior , que serve a estabelecer huma distinção-
muito mais necessária ; por quanto as nódoas venéreas,
symptoma do galico ccniirmado , não cedem , senão aa
tratamento anti-syphlitico.
Os herpes pustulozos , e crustozos sáo dous aspe-.
ctos , debaixo dos quaes hum herpes se offerece suecessiva-
mente á vista do observador A enfermidade começa
pela erupção de pústulas botonozas, cheias de hum
humor algumas vezes turvo , e espessado , o mais das
vezes fluido, e limpido ; a vessicula se rompe, o hu-
mor corre , e dessecando-se forma crosta de hum cin-
zento amarelhado ; estas crostas cahindo , deixáo tão
depreça a peile sáa abaixo delias , e outras vezes tam-
bém , depois de sua cabida a pelle parece ulcerada ;
sua errozáo , abaixo das crosras , faz sueceder ao her-
pes crostozo , o corrozivo , ou fagedenico. Estas codeas
herpeticas tem huma superfice desigual , huma circum-
ferencia irregular , a pelle he inflamada nas vezinhan-
ças e redores delias , porém o rubor , que denota esta
inflamação crónica , he arroxado , circunscripto , e aca-
ba repentinamente em lugar de diminuir por gradações, de
se confundir insensivelmente com a cor ordinária da pelle
oomo se observa nos tumores inflamatórios. Os enfermos
sentem neste lugar hnma comixáo , que os obriga a le-
var ahi a mão ; arranhão-se, escoreáo-se, e fazem passar
rapidamente o herpes do estado botonozo , ao estado
crostozo, depois à aquelle de ulceração ou herpes vivo.
Quan-"
I?4
Quando a ulcera herpetica está assim formada ,'
esterde-se corroendo a pelle , que fornia os seus lá-
bios , e ganha mais extensão , que profundidade. Vè-se
tíom effeito herpes corrozivos muito superticiaes cobri-
rem huma superike muito extensa ; as dores que se Jhe
manifestão humas vezes sáo moderr.das , e outras vezes
agudas , e ardentes ; a superfíce he de huma cor rubra ,
e viva, e os redores rubros, escamozos, ou botonozos.
Os herpes venéreos , escrorulozos , e escorbuticos
se reconhecem , não por seus caracteres particulares ,
mas sim por suas conexões com os outros simptomas
da aífecçáo principal, ou que estes symntomas exiâvirj-
do ao mesmo tempo que o herpes , dependão óa mes-
ma cauza, ou que esta lhe tenha succedido. Com ef-
feito as variedades da ligura , debaixo das quaes , as
erupções herpeticas se podem offerecer, sáo totalmente
riumerozas , que esta forma tão variável não pôde
fornecer luzes certas sobre a cauza , e a natureza de
suas diversas espécies.
Confundem-ss frequentemente as pústulas venéreas
com os herpes produzidos pela mesma moléstia , e a
diferença he na verdade 'mui pouco considerável. Posto
que estas afFecçóes cutâneas syphliticas possáo sobrevir
em diversas partes do corpo , a resta , o rosto , assim
como as mãos, sáo o seu assento o mais ordinário.
Formão na testa a coroa de Vénus ; no rosto , e no
msntu este herpes (meutagra , ) que parece ter sido co-
nhecido dos antigos , e que se communicava petos
beijos.
Os herpes, assim como todas as enfermidades da
pelle , sáo mais commum nos paizes quentes , do que
debaixo dos climas temperados , ou nas regiões Sep-
temptrionaes. O orgáo cutâneo, mais vivamente excita-
do pelo calor e a luz solar, mus sensível e fatigado
por huma transpiração mais abundante se torna o
assento de exanthemas de toda a espécie : as afFecçóes
leprosas, a eiephantiazes , o mal rubro, o yauWSf; o
pian , &c. , sáo desconhecidas nos paizes do Norte , e
rei-
reináo endemicamente no Egypto , na Cayanna , na
Java, <*;c. Nos paizes , em que nós vivemos he duran-
te o verão que estas aflecçóes herpeticas se ceclaráo.
Os primeiros frios do inverno fazendo na pelle hunu
sorte de repercuçáo , curáo hum grande numero destas
aífecções , e tornáo outras estacionarias. Eu conheço
muitos indivíduos sujeitos a estes herpes periódicos , que
desapparec áo nas estações frias, para tornarem a appa-
recer nos primeiros calores. Aquelles , em os quaçs sua
evis r enc ; a náo he tão essencialmente subordinada à in-
fluencia das estações , esperimenráo hum melhoramento
notável nas approximaçóes do inverno.
As partes da pelle, onde a excitabilidade he maior
sá<% '-tamberíi mais sujeitas ás erupções herpeticr.s, he
por esta razão , qne tão frequentemente se desenvolvem
no rosto . assim como nos tegumentos do penis , e no
escroto. : Existe hum virus herperco capaz de infectar
a massa dos humores, e de transmettir a enfermidade
por via da inoculação í ; Os herpes sáo contagiosos pe-
lo simples contacto? Se acreditasse-mos alguns autoras ,
não se hesitaria em responder a todas estas perguntas
pela afirmativa ; porém , logo que se queira examinar
com algum cuidado , fica-se embaraçado para as resol-
ver.
Com effeito , se a causa do herpes reside em hum
virus , l porque náo he esta affecçáo sempre contagio-
sa ? E só o contagio tem lugar no herpes vivo , corro-
sivo , ou ulcerado , em que o puz fornecido pelas par-
tes affectadns , he capaz de transmittir o excitamento
as que toca, e de lhe fazer nascer hurjía inflamação
análoga áquella , ds que he o produeto. Supurações
herpeticas tem acontecido na membrana mucosa da ure-
tra em consequência de certos herpes imprudentemente
repercutidos. Pode-se pois admittir a existência de hum
vicio herpetico , menos activo , que o venéreo , e .so-
mente contagioso nos últimos períodos da enfermidade.
A lepra, tão viYnha ao herpes, ainda que o nío
digão os Nosologistas , mais desejosos de multipli-
car
car as espécies das d Azs , que de lhe procura-,
rem os remédios, hç | ; osa pelo simples contacto.
Sabc-se quaes eráo as precauções , que uzaváo os Ju-.
deos para lhe impedir a propagação ; quantos lazaretos,
forão constituídos , quando os Cruzados a trouxeráo da
Terra Sancta ; porém , se o mal não lançou em nossas
regiões raízes mais profundas , e n£o produzio ma-»
iores estragos, faz-se necessário saber,; se he pelo ek
feito destes bons estabelecimentos , ou antes , se como
huma planta exótica , que enfraquece deba'xo de hum,
céo estranho , náo pôde a lepra subsistir debaixo de
hum clima tão diferente daquelle da Palestina ? Póde-r
se de alguma sorte olhar este paiz como a terra natal
desta enfermidade. Hum herpes , qualquer que seja ,
não pôde ser considerado como huma enfermidade ab-
solutamente local , de que se pôde tentar sem perigo a
cura radical. E por isso, quando o mesmo herpes seja.
simplesmente farináceo , será necessário fazer combinar
no seu tratamento os tópicos repercussivos com es pur-
gantes repetidos. O estabelecimento de huma fonte , ne?
cessaria na cura dos herpes crostozos', e corrosivos ,
náo seria huma precuaçáo inucii naquella do herpes
furfuraceo.
Entre os remédios , que se oppoé ás diversas eru-
pções herpèticas , existem geraes , em quanto que ou-
tros sáo particularmente accommodados , á causa da
enfremidade , e ditferem como ella. He por sua indaga-
ção , que he preciso commeçar o tratamento. Se o
herpes tem huma origem venérea, só o tratamento
antisyphilitico he capaz de curallo , applicando-se na
forma prescripta no género precedente. Se he dependen-
te da supressão do fluxo hemorroidal , da retensáo dos
menstruos , ou de qualquer outra evacuação , o restabe-
lecimento da secreção suprimida, he , o que he preci-
so preieminarmente promover.
Como a pelle aflectadi dos herpes se acha em hura
estado de excitamento , e de eretismo bem sensi-vel, os
banhos quentes repetidos tem a primeira ordem entre os re-
me-
1*7
médio? geraes usados nestas enfermidades; diminuem a ten-
sío restabelecem a excitabilidade no seu tipo ordinário ,
terna a dar á pelle a sua fíe\.b : lidaáe , e facilita a ca-
hida das crestas nos herpes , que são cobertos delias.
Lm quanto aos outros remédios síío extermamente te-
merosos. Nác julgueis com tucio por sua multiplicidade,
es recursos da arte no tratamento dos herpes; vè-se a-
qui nascer a pc breza do seyo da abundância , e que
em váo se rrecura hum remédio efficaz no meio de
mil sem vrtude. Poderia se calcular com justiça a fra-
queza da arte no tratamento de huma enfermidade pelo
numero dos meios , que emprega no seu curativo. Se
se tem suecessivamente ensaiado muitos , conclui com
certeza que seus ensaios tem sido desgraçados , e que
ainda se procura hum methodo mais eftícaz.
A permanência des herpes , a extrema difficuldade ,
e mu : tas vezes mesmo a impossibilidade , que se en-<
contra no seu curativo , permittem de fazer o ensaio
de hum grande numero de remédios no seu tràfaméh-
ro. Depois dos banhos quentes, e as tizanas amargas,
as pilolas dissolventes de sabão , e de mercúrio doce
tem a primeira ordem. Elias entretém o ventre lúbrico
pelo excitamento que suscitão na membrana mucosa do
tubo intestinal ; estes remédios afTastão os humores da
superfície exterior , e previnem o perigo da repercução.
As preparações antimeniaes , as infuzóes sudoríficas
tem sido administradas com bom suecesso. Boeriíaave
prescreveo a hum homem coberto de herpes , o retirar-
se ao campo , pondo-o no uso da dieta branca , isto
he que se alimentaria com lacticínios, com pão, e com
ovos frescos. Não se tem observado o mesmo êxito
em iguaes aífecções , apezar de se haver seguido este
mesmo tratamento. A habitação no campo, o exercí-
cio, os passeios em hum ar livre e puro, o regimen
vegetal , a vida socegada e tranquilla , o uzo cos ba-
nhos , e das aguas rhermaes , são com tudo os melho-
res meies a oppôr ás aífecções herpeticas. A applicaçáo
de hum vezicatorio - 9 ou de hum cautério concorre para
o
t«8
seu curativo , ajudando-se ainda com os laxantes repeti-
dos , assim como com a applicaçáo tópica dos corpos
gordurentos relaxantes , e ligeiramente repercussives. He
por isso que uzamos de huma pomada feita de partes
jguaes do ceroto simples e flores de enxofre, e que em
dous casos de herpes sobre o dorso das duas rnáos ,
temos ultimamente empregado os banhos locaes de co-
zimento de sêmeas , e applicando compressas embebidas
em huma forte dissolução de ópio durante a noute.
Esra applicaçáo sedativa convém sobre tudo nos casos ,
onde o herpes faz soíírer huma dor ardente , e total-
mente insuportável , que causa a vigília.
Ha hum meio violento , porem erfiaz , e de que se tem
tal vez muito tempo abandonado a sua applicaçáo no cu-
rativo dos herpes , quero dizer , os vezicatorios applica-
dos sobre a erupção herpetica. Este remédio convém
sobre tudo , quando os progressos da enfermidade são
suspendidos pelos remédios geraes , e que a desorgani-
zação da pelle embaraça o estabelecimento de huma
boa cicatriz. Eu o tenho empregado muitas vezes , e
tirado dellc sempre bom êxito. Huma observação de
Ambrozio Pare me animou , para pôr em pratica hum
methodo, de que todos os autores tem exagerado o
perigo. Este pai da Cyrurgia conta que huma rapariga
veio a Pariz tendo a figura totalmente deforme, que
p povo , julgando-a afíecrada da lepra , quiz embaraçar-
Ihe a entrada na Igreja ; Pare lhe applicou hum vezi-
catorio sobre toda a face , ec e três ou quatro horas
,, depois , teve ella hum calor exces-sivo ria
,, bexiga , e grande tumor no collo do útero com gran-
,, des picadas : vomitava , ourinava , e obrava inces-
„ santemenre , lançava-se sobre hum e outro lado , co-
», mo se estivesse em hum fogo , e estava inteiramen-
„ te variada , e febrecitante . . . . ; decidi-me que se
3 , lhe daria leite a beber em grande quantidade , e tam-
j, bem em disteis e em injecções, tanto no collo da
„ bexiga como na madre. Similhantemente ella foi
j, mettida em hum banho moderadamente quente , no
qual
i8j>
„ qual se tinha fervido semente de linhaça , a raiz <?
-, folhas de malvas , flores de viollas , meimendro , bel-
35 droegas , conservando-se nelle algum tempo , para
„ lhe dissipar as dores; depois sendo conduzida á ca-
5) ma e enxugada, se lhe applicou sobre a regiáo lom-
oar e á roda das pattes genitaes, o unguento rozado
e popolião , encorporados com oxicrato , a fim de
., moderar a intemperança de suas partes , e por estes
5 , meios , os outros accidentes forão accalmados , e em
„ quanto ao seu rosto foi inteiramente veziculado , e
,, lançou huma quantidade de sania purulenta, e por
,, este meio perdeo esta grande deformidade da pelle
,, qne antes linha , e depois ele ser curada , nós lhe
3 , demos attestação de que ella náo estava iníi-
„ ciônada da lepra; e pouco depois da tornada pa-
„ ra a sua caza , se cazou e teve lilhos perfeitos, e
3, ainda vive sem que se ihe perceba ter tido a face
„ escuriada. „ (2)
O vezicatorio applicado a huma ulcera herpetica
muda o modo de excitamento existente na porção da
pelle enferma , substitue á inflamação herpetica , que he
de sua natureza crónica e ulcerosa , huma iníhmmação
activa donde nasce hum puz benigno, e se lhe segue
huma cicatriz solida. Náo he só neste caso onde se
substirue hum excitamento a hum outro mais pe.iigo-
so , 0^ sem rallar da applicaçáo dos cáusticos rias feri-
das venenosas , < como operáo estes remédios a cura das
ulceras carcinomatozas ? ; Como a injecção no canal
da uretra com huma dissolução da sulfata de zinco ,
pouco tempo depois que se tem exposto a infecção
olennotragica , previne a evacuação mucoza ? < Náo he
em desnaturalizado o effeito do. virus , em substituindo
a phlogosis que este remédio tende a produzir por hu-
ma inflammação benigna , cujo curso he limitado pas"
sados alguns dias ?
Nos herpes corrozivos, tiráo-se excellentes erfeitos
dos
£1) Des Veneris , liv. 21 , chap. $5.
19®
dos banhos «quentes. O Professor Boyer tratava hunn
enrermft» cujo dorso estava coberto' da herpes corrozi-
vos e mui dolorozos ; gemente o banho a podia, alli-
viar, e por isso se demorava naiie três a quatro horas
cada dia. He preciso tentar o tr.ram no ant' sypbililico
em t^dos os herpes rebeldes. Estas enfermidades, a sim
como nós o temos já dito , nascem frequen emente da
enfermidade venérea degenerada, e cedem ao mercuro,
que só pode então fazer r:can'vee?r sua verdalera ori-
gem. Se sé repugna o<submetter>o enfermo ao tratamento
mêrcurial, he preciso ao menos tentir os sudoríficos.
Os herpes complicados com as escrófulas, e reco-
nhecíveis pelos sinaes reunidos das duas aíFecçóes , par-
ticjpão do estado dedebhj-de geral, e precisão ser
excitados pela applieaçáo dos metaes. Aquentáo-se as
erupções desta espécie approximando delias , em huma
certa distancia , hum ferro em brasa ou escandecido.
Esta applieaçáo do fogo no tratamento dos herpes tem
sido seguida de alguma vantagem na pratica do hospi-
tal de S. Luiz.'
Em fim ha ulceras herpeticas , e sobre tudo as
crostosas , que he perigoso curar , porque sua causa ,
que senão pôde destruir, repellida na pelle , leva á
outra parte seus estragos , e não deixa o exterior senão
para aíFectar com violência os órgãos do interior os
mais importantes á vida. O Doutor Raymond , no seu
'Tratado das enfermidades , que he perigoso curar falia
dos inconvenientes unidos á desappariçáo dós herpes, <
Porém em muitos casos , estes funestos errekos não de-
pendem da ausência de huma evacuação a costumada ? Se
se tem desprezado o restabelecella , e que o enfermo
experimenta dlrRculdade na respiração , ou he assaltado
de outras incommodidades , será preciso promptanienee
repatar esta omissão, e nos casos em que os -accidentes
persistáo se deve cobrir com hum largo vezicatorio a
parte que foi o assento do .herpes , a fim de tornalo a
chamar para huma parte, onde sua presença he seguida
de menos prejuiso.
GE-
191
GÉNERO SEXTO.
• Ulceras Carcinomatosas.
1 §L Um tão pequeno inrervallo separa estas ulceras dos
herpes corrosivos ou fagedenicos , que he algumas ve-
zes dirficil dífrtiriguilo. Ha com eíreito pouca diíferen-
ça entre o herp.s vivo , e cercas ulceras corrosivas da
pílle. A ulceração se propaga pela destruição das par-
tes que ataca , o aspecto da ulcera , o estado de seus
fabros s^.o quasi os mesmos nos dous casos ; nada he
pois mais natural que pôr as ulceras carcinomatosas a-
poz das aríscçóes herpeticas.
O assento destas ulceras he as mais das vezes na
face ; podem com tudo existir nas diversas partes do
corpo. A pelle só he aíFectada no principio da enfermi-
dade ; porém bem depressa a cava , e depois de haver
destruído o dermes , corroe o tecido cellular , as carnes ,
e em huma palavra todas as partes subjacentes. A ul-
cera carcinomatosa dos lábios , das faces , do nariz , das
pálpebras , se annuncião com signaes de huma benigni-
dade enganadora; he ordinariamente por huma pequena
pustuia avermelhada , que principia ; a viva cummixáo
que o enfermo experimenta, o obriga ahi levar a moo
a cada instante; cossa-a , excita-a , e a escurea : a arra-
nhadura se cicatriza huma ou duas vezes; porém sem-
pre renovada , em lugar de se fechar , se engrandesse í
seus lábios são elevados , duros , rubros e dolorosos ,
assaz semelhantes ás ulceras syphiliticas ; porém a dor
he com tudo mais viva.
' No princípio da enfermidade esta dor parece 'pro-
duzida por agulhas, que atravessáo aparte enferma;
porém á medida que a ulcera se estende em profundi-
dade a supesncie , se torna pungente . isto he , que pare-
ce , como no cancro , resultar de hum expedaçamento.
As dores de que vimos de fallar , se fazem sentir por
comentos , porém seus intervailos sáo prehenchidos pe-
lo
Ip2
lo sentimento não menos incommodo de hum calor
acre , e ardente. Em certos cises ha a ausência
completa das, dores. Tenho muitas vezes observado no
hospital de S. Luiz esta iniolencia perfeita de ulceras
corrosivas, que tinhão destruiJo 'quasi a totalidade drs
partes moiles da face , e atacado os ossos. Fica-se sem-
pre surprehendido quando os desgraçados , cujo aspecto
he amedrontado, não são advertidos por alguma dor
da destruição a mais rápida , e a mais horrível. A ero-
záo dos tecidos vasculares dá lugar a diversas hemor-
ragias arteriaes , e veriozas, tanto mais consideráveis,
quanto as vêas , e artérias são sempre mais , ou menos
dilatadas ao redor da ulceração.
A ulcera carcinomatosa não segue sempre o ca-
minho que acabamos de indicar , muitas vezes sueced^
ás ulceras dos outros géneros , a hum herpes corrosi-
vo , a hum cancro venéreo , que se reveste do caracter
carcinomatoso , logo que substancias excitantes lhetem
sido muitas vezes applicadas sem frueto.
Os antigos, e os modernos, testemunhas dos prom-
ptos extragps da ulcera carcinomatosa , tem querido
oppor-lhe alguns remed ; os; porém mui tímidos na es-
colha delles , e na sua appíicação , todos os seus ensaios
tinhão s'do infruetuosos ; o mal era antes exasperado ,
que modificado: também desanimados por esces 'ensaios
inúteis , oihaváo a enfermidade como incurável , e lhe
daváo por nome o prece to de lhe não tocar : Nolli me
tangere , ficai espectador tranquillo da destruição. Mais
afrligidos que desanimados por huma denominação ,
que aceusava tão altamente a fraquesa da nossa arte ,
os práticos ousarão , no ultimo século tentar a cura
de hum mal reputado incurável , e foráo assaz felizes
em acertar ; le mbrarão-se que os cáusticos não erão
prejudiciaes, senão pela timidez, com a qual se fazia
a sua appíicação. Augmentarão-lhe a dose e a activida-
' de, que queimando completamente de? huma só vze as
partes atacadas , chegarão a obter a sua cura radical.
Tal foi o resultado dos ensaies de Rousselot , e do ip-
máo
\ 9 \
mão Cosme : huns pós compostos de huma onça de
sulfata cie mjrcurio oj situbrio , cie meia onça de san-
gue cie drago, de huma outava de oxido de arsénico ,
de huma outava de chinello queimado , e reduzido, a
pós Ihes-ssrviáo de cáustico. Cobrião a ulcera com hu-
mi camada destes pós da grossura de -meia linha pou-
co mais ou menos , reJuziáo assim a superfície a esca-
ra que a supuração despegava ao fim de alguns dias ;
debaixo desta escara achaváo huma cicatriz espessa , e
esbranquiçada , que bem de pressa tinha cuberto a tota-
lidade da ulceração
A possibilidade de obter a cura he subordinada á
de destruir a superfície ulcerada , em huma, ou quando
muito em duas applicaçóes ; assim pois este methodo
não convém senão nas ulceras corrosivas superíiciaes ,
limitadas á pelle, e ás. partes, que a tocão immediata-
mente: quando a enfermidade tem lançado raizes mais
profundas , não se faria senão apressar os progressos
por excitamentos inúteis. Se nas ulceras do nariz, os
ossos desta parte estivessem atacados , seria precizo ar-
rancar a superfície ulcerada com instrumento cortante ,
depois applicar o cáustico , a fim de destruir o mal até
ás suas raizes. He por náo haver distinguido os casos
em que os cáusticos são applicaveis , daquelles , em que
'o seu uzo náo faz , senão augmentar a actividade do
mal , que estes remeJios esúo cahidos no discredito ,
que jainda conservão. Os Charlatões incapazes de fazer
esta distincçáo , queimáo cegamente os cancros do pei-
to e das glândulas , enfermidades totalmente diiTerentes
do carcinoma , ou da ulcera corrosiva da pelle , elles
obtém a cura em cercos casos muito raros , em que a
massa cancerosa pouco espessa he destruída por huma
só applicaçáo ; porém psoráo o estado dos enfermos, c
lhe accelerão a morte , augmentando-lhe os soffrimen-
tos , < quando , como he o mais .ordinário , o cáustico
consome a penas a superfície do tumor:; porém qual
será o remédio saudável , que senão tome hum veneno
terrível nas máos de hum empírico !
N MM.
194
MM. Sabatier, Dubois, Boyer tem empregado
frequentemente e com bom successo os pós cáusticos ,
de que temos dado a formula. Nós temas feito uso
delles com não menos vantagem. As duas observações
seguintes fornecem o exemplo do acerto o mais feliz ,
c o mais completo.
Luiz Renand de idade de quatorze annos , trazia ,
havia quinze mezes , huma ulcera corrosiva no rosto. O
mal tinha começado por huma pequena borbulha no
lobo do nariz , e deste lugar se tinha pouco a pouco
estendido á maior parte da face. O nariz , a parte ante-
rior das faces estaváo corroídas; estendia-se desde as
pálpebras inferiores até o lábio superior. O aspecto do
individuo era horrível-, as dores supporraveis ; entrou
no hospital de S. Luiz no verão do anno IX. e eu
emprehendi o seu curativo.
Depois de o ter perparado com dous purgantes , lhe
appliquei os pós de Rousselot, compostos pela formu-
la acima dita , com esta ligeira diffèrença , que em lu-
gar dos pós de chinello queimado lhe misturei o ce-
roto , a rim de converter estes pós em huma espécie
de pomada , que era muito mais fácil de estender sobre
a ulcera. Cobri toda a sua superfície , com huma ca-
mada desta pomada, estendida em pranchetas da gros-
sura de huma linha pouco mais ou menos. No dia im-
mediáto á applicação , o enfermo disse ter sentido hu-»
rha cõmmixão mui viva na ulcera ; os seus redores es-
taváo vermelhos e inchados. Levantei o remédio , o
qual tinha convertido a superfície ulcerada em" huma
escara cinzenta : que cahio ao quarto dia. A ulcera
appareceo logo vermelha , granulada , e fornecendo em
pequena quantidade hum puz benigno ; a inflammaçáo
oe seus lábios estava dissipada , a cicatriz se cstabéle-
ceo rapidamente , em quinze dias náo existia mais de
hum' tão grande mal senão huma ligeira ulceração no
interno de cada nariz. Estas duas aberturas principiavão
a tapar-se; a refpiração commeçava a ser diffícil, e o
enfermo era obrigado a dormir com a boca aberta. Eu
in-
19*
introduzi dous pedaço* de sonda de goma elástica , e
quando a cicatrização foi completa lhe substitui doas
pedaços de esponja preparada : estas precauções tea»
conservado htwia grandeza surfictente nas abertuias,
por onde o ar entra e sahe livremente nas fossas na-
zaes.
Nada he mais difficil que obter o curativo de hu-
ma ulcera , cujo assento he no lobo do nariz , ou á
roda delle porque o enfermo a excita continuadamente ,
comprimindo-a nas escreçóes das mueuzklades nazaes.
Eu instrui a Renaud para fazer cahir estas mucosida-
des na garganta , e deitallas fora, quando tivessem es-
corregado ao longo do plano inclinado das forças na-
zaes pela posição voltada da cabeça : teve huma reca-
hida alguns mezes depois da sua sahida do hospital.
Tornou a entrar , e obteve pelo mesmo meio huma
cura mais solida.
Deíset, bombeiro do hospital de S. Luiz tinha
«pias: toda a face atacada por huma ulcera corrosiva,
cujo assento principal era no nariz , e no lábio supe-
rior. As pirolas de caiomelartos , e de estrato de cicuta ,
tos cozimentos amargos da bardana , da chicória selva-
gem, da paciensia, do fel da terra, a scabiosa, etc. , etc,
os banhos opiados , etc. tinháo sido váamente postos
em uzo pelos Médicos do hospital. Irrstruido elle dos
successos, que eu tinha obtido em alguns enfermos
pela applicaçáo dos cáusticos , veio pedir-me que lhe
fizesse a mesma applicaçáo. O exame do mal me con-
venceo que elle tinha o meio entre o herpes corrosivo ,
e a ulcera carcinomatosa. Posto que as ulcerações ná»
fossem mui profundas, a espessura inteira do lábio é
da face estava inchada e endurecida ; huma sania icho-
rosa corria em abundância. Eu lhe prescrevi o eotítr-
nuar nas pirulas dos calomelanos , e na sua tisana amar-
ga , e appliquei sobre cada numa de suas ulcerações a
pomada de que tinha feito uso no enfermo preceden-
te, depois de a ter com tudo enfraquecido pela misn-
ra ide huma maior quantidade de ceroto. Eia necessa-
N ii ria
iy6
rio que a suppuraçáo desengorgitasse as partes subja-
centes, inchadas e endurecidas ; por isso logo que a
escara mui delgada , que produzio a applicaçáo , foi
despegada , fiz curar a ulcera com huma mistura de
ceroto , e precipitado rubro , augmentando-lhe ou dimi-
nuindo-lhe a quantidade desta ultima substancia , segun-
do o gráo de excitamento ou de froxidáo , que lhe ob-
servava, Ao fim de vinte dias a cicatrizaçáo> foi com-
pleta. Eu tenho perdido o enfermo de vista no espaço
de dous annos , e tudo me obriga a creditar que a cu-
ra foi radical.
He assaz difficil o explicar a prompta formação
destas cicatrizes esbranquissadas , e espessas , de que se
cobrem as ulceras carcinomatosas , pela applicaçáo de
hum cáustico , que tem b nome impróprio de pós de
Rou-Srdot , pois que sua formula existe-' nos livros mais
antigos. Não he mui fácil ter idéas justas sobre a na-
tureza desta inflammaçáo cancerosa , que destroe nos-
sos órgãos. Sabe-se somente , que motiva huma impor-
tuna preferencia para as partes da pelle dotadas de ex-
citabilidade a mais delicada , e que as membranas mu*
cosas análogas aos tegumentos communs , por sua es-
tructura , são igualmente susceptíveis da mesma afFec-
çáo nos órgãos , onde o sentimento he mais particular.
Estes carcinomas internos , qualquer , que seja seu
assento , na membrana mucosa do estômago , do recto
ou do útero são constantemente mortaes, seja, pela.
impossibilidade de levar ás superfícies ulceradas , cáusti-
cos assaz eíficazes , seja pelos progressos , que tem
feito a enfermidade , quando os enfermos recorrem aos
soccorros.
A ulcera carcinomatosa traz apôz si a desorgani-
zação , ou o estado canceroso das partes que afíecta.
He assm que em huma ulcera do útero ou do recto ,
se enconttáo as paredes destas vísceras espessadas , e
mudadas em huma substancia cinzenta , toucinhosa ,
na qnal não existe distineçáo entre os solides , e
os líquidos , onde as fibras e as laminas tem desappa-
re-
IP7
.retido ; estado homogenio , apparencia inorgânica , na
qual reside o caracter essencial do cancro.
A estirpaçáo das partes tocadas das ulceras carci-
nomatosas se pôde admittir não somente , quando o
seu assento he nos lábios , porém ainda em diversas
outras partes do corpo. Eu tenho praticado duas vezes
com bom successo esta operação. Tratava se na primei-
ra de hum cancro venéreo da largura de hum soldo ,
existente sobre o dorso do penis. Excitado por repeti-
das cauterisaçóes sem fructo , sobreviveo aos outros
symptomas syphiliticos destruídos pela applieaçáo ào
mercúrio em fricções. Sua superfície estava doíorosa ,
e sanguinolenta ; seus lábios duros, rubros, e voltados.
Não hesitei em separallo de hum só golpe com o bis-
turim. Felismente senão estendia até os corpos carver-
nosos; evitei levantando a pelle o ferir os nervos e os
vasos, que se dirigem ao longo do dorço do penix ;
-por esta opperaçáo substitui á ulcera carcinomatosa ,
huma ferida simples, que se curou no fim de huma
suppuraçáo de alguns dias. Hum igual êxito foi o
fructo de huma estirpaçáo simiihante praticada na occa-
ziáo de huma ulcera mais larga , cujo assento era no
braço direito. Se huma ulcera deste género tivesse lan-
çado profundas raizes, se seus estragos se estendessem
aos ossos, seria preciso amputar o membro; porém se
a. existência da ulcera no tronco tornasse esta amputa-
ção impossível , dever-se-hia recorrer á estirpaçáo pelo
instrumento cortante seguida da cauterisaçáo pelo fogo ,
a fim de destruir tudo que pôde estar enfermo.
* Ha huma sorte de degeneração do tecido cutâneo ,
que me parece participar áo mesmo tempo do herpes-,
do cancro, e da ulcera carcinomatosa. Eu a tenho du.ts
vezes observado.
Madame *** mercadora de papel sentio no peito e
no braço vivas dores; a pelle se inchou formando tu-
mores alongados , e como selinaricos , cujo aspecto era
■assaz simiihante ao de certas cicatrizes, quando amea-
çáo de se abrir. As dores rezisuráo a todos os temedios inter-
nos
1S>8
flos, elocaes. Erão pungentes e similhantes ás do cancro.'
Fez-se a estirpaçáo das partes dâ pelle affectada. As
feridas curaráo-se ; porém as dores se fizeráo sentir
<3e novo , a enfermidade tornou a apparecer , e ainda
dura.
. Huma criança recebida no hospital de S. Luiz af-
fectada dos herpes., appresenta sobre diversas pastes ca
pelle , e sobre tudo nos braços tumores s.miihantes ,
também dolorosos , ofíerecendo o mesmo caracter de
dores, o mesmo aspecto, e igualmente resistentes &Ò6
•remédios anti-herpeticos. O êxito provável destas duas
afecções será a morte dos enfermos.
GÉNERO SEPTIMO.
Ulceras Tinhosas.
x\ Similhansa náo he menos sensivel entre à tinha ,
c o herpes, que entre esta ultima affecção e a ulcera
carcinomatosa. Esta náo parece ser em alguns casos ,
senão huma modificação do herpes corrosivo. A tinha
susceptível de se apresentar debaixo de formas tão va-
riadas , como a affecção herpetica , se offerece , tão
depressa debaixo do aspecto farináceo do herpes íuríu-
raceo , asemelha-se as mais das vezes ao estado crosto-
so, e outras vezes se mostra totalmente análoga, aos
herpes fagedenicos : quanto seria difhcil aos mais hábeis
o destinguir desta variedade de herpes , certas tinhas ul-
ceradas. He pois com erro que os nosologistas tem tan-
to insistido sobre a distincçáo das diversas espécies de
tinhas, e que tem dado esre nome ás simplices varie-
dades da enfermidade ; variedades que se succedem ás
diversas épocas de sua duração. A mesma tinha pri-
merito mucosa , ou furfuracea , pode passar gradualmen-
te ao estado crostoso, e rugoso , depois vir a ser ver-
dadeiramente ulcerada, ou pustulosa sem que a pesar
destas diversas transformações mude realmente de natu-
reza. He sempre n* sua base a mesma enfermidade, e
o
\99
9 mesmo tratamento lhe convém. He verdade que a
tinha affecta quasi exclusivamente o couro cabeíludo ;
porem manifesta-se algumas vezes em outras partes do
corpo. He com esta forma que eu tenho observado crostas,
e laminas muito estensas sobre os membros , e sobre
tudo no dorço onde a pelie tem por sua espessura, sua
densidade , e sua adherencia intima ás partes que subja-
sem , numa analogia tanto mais sensível com o couro
çabeíludo , quanto se observa mais perto deste ultimo.
i Devemos tratar separadamente as diversas varieda-
des da tinha? Os Árabes distinguião cinco espécies del-
ia , Sauvage leva o seu numero até nove , Vogel náa
reconhecia , senão quatro , Muray as reduzio a duas , o
Professor pinél estabeleo três. Desejando fixar a incer-
teza , que nascia de huma tal diversidade de opiniões ,
attentamente observei a tinha em duzentos indivíduos ,
tratados ao mesmo tempo desta enfermidade no verão
do anno X. Eu vi bem depressa , que suas formas eráo
mais variadas , do que senão tinha julgado , por falta
de não haver observado hum tão grande numero de ti-
nhosos ; a comparação destas tinhas me convencco da
espécie de gradação , que segue a natureza em todoí
os seus actos , formas extremamente variadas , porém
insensíveis , pelas quaes cila passa da tinha farinácea
para a tinha ulcerosá. Desde então adoptei a idéa que
senão tinha assaz multiplicado as espécies da enfermi-
dade, se as cstabelicião sobre o fundamento frívolo da
diversidade da forma 3 ou do aspecto, e que náo as ti-
nhão assaz reduzido , se lhe náo consideraváo mais ,
que a natureza do mal.
A tinha he huma enfermidade da infância ; he do
primeiro ao septimo anno , que ella se declara as mais
das yezes ; he assaz frequente até a época da puberda-
de : então se torna muito mais rara; he ainda mais nos
adultos, e náo sobrevem na velhice. He igualmente
pouco commum o vela nos primeiros meses da vida ,
menos que senão queira considerar, como huma va-
riedade da tinha ,_ a crosta láctea das crianças de mama i
erup-
200
erupção depurativa, que com razão se tem arranjado
entre as espécies desta enfermidade.
As crianças , cuja pelle he secca , pouco transpa-
rente , e coberta de sardas , são mais frequentemente
affectadas delia ; os dous sexos parecem igualmente ser
sujeitos á tinha. Em fim a falta de limpeza, o uso ha-
bituai de huma nutrição grosseira , e indigesta as predis-
põem singularmente. Pergunta-se j se a tinha he heredi-
tária , e se se desenvolve mais particularmente em as
crianças nascidas de pais aíFectados desta moléstia ?
Esta influencia da herança tão sensível em muitos ca-
sos, he aqui pouco notável, Primeiro a tinha prolon-
gando-se e raramente nascendo depois da época da pu-
berdade , náo he ordinário que os pais tenhao sido af-
fectados delia : além disto a tinha parece ser huma en-
fermidade depurativa, cujo assento no couro cabelludo
he determinado pela tendência dos movimentos vitaes
para a cabeça nas primeiras idades da vida. Com tudo ,
se as imperfeições as mais ligeiras, as feições do rosto
menos sensíveis , são vesivelmente transmettidas pela
geração j porque o filho de hum pai tinhoso durante
a sua infância, não veria ao mundo, senáo com a
enfermidade, ao menos com a dispoziçáo para a con-
trahir ?
Os filhos do rico são sujeitos a ella , como r os do
indigente; he preciso confessar com tudo, que he mais
rara nos primeiros , talvez porque melhor vestidos re-
sistem mais á influencia do frio , ou porque usáo de
melhores alimentos, e vivem mais isentos da sordidez.
O contagio da tinha he difficil ; verdade he , que se
tem communicado a muitos indivíduos da mesma famí-
lia, que fazião uso do mesmo pente, ou da mesma
escova para limpar seus cabellos , e que então a ino-
culação podia ter sido tanto mais fácil , quanto os in-
divíduos eiáo mais moços, tinhão sido escovados, ou
penteados com mais força , e que o couro cabelludo
apresentava alguma escoriação ; porém eu me tenho segu-
rado por huma multidão de experiências , que náo ten-
do
201
do a cabeça cscuriada os tinhosos podiáo "trocar seus
barretes com as outras crianças , emprestar-lhes o seu
pente , dormir com elles , e servirem-se dos mesmos
vestidos , sem que estes contrahissem a enfermidade,
Alguns impiricos tem ensaiado o inocular a unha , que
julgaváo encerrada e nociva, e apezar dos seus esfor-
ços, não tem tirado bons eífeitos nesta tentativa.
Esta difhculdade , que se encontra , em determinar
a tinha pela applicaçáo do puz , que corre das ulceras,
depes da cahida das crostas , ou pela mesma matéria
destas crostas reduzida a pó mui fino , nos confirma
cada vez mais na opinião , que he huma affecção ver-
dadeiramente saudável , e depurativa por meio da qual
a narureza se desembaraça de huma superfluidade de
humores, cuii retenção poderia ser nociva,; Não he
huma tinha esta sarna crostosa, cujas erupções se mos-
tráo principalmente na região occipital í Esta arfecçào
qnasi sempre- complicada de • engorgitamentos das glându-
las lymphaticas visinhas , he totalmente olhada como
util/ e depurativa, devemos limitar-nos a entreter 3
limpeza da cabeça, destruindo os piolhos, cuja enfer-
midade parece singularmente favorecer a multiplicação ,
e a untar as crostas tinhosas seccas , e espessadas com
«orpos gordurentos, como o ceroto , a banha de porco,
a manteiga bem lavada , a hm de lhe 'provocar a queda.
As curandeiras distinguem muito bem esta tinha da ca-
beça , da verdadeira tinha.
Depois da cahida das crostas da tinha, o couro
cabelludo se mostra despido do epidermes, offerecendo
hum rubor herpetico , e coberto de piquenas ulcera-
ções, tanto mais profundas, quanto a enfermidade esta
mais adiantada. O engorg ; tamento glanduloso não se
limita nas glândulas occipitaes , e cerviçaes , das regiões
inguinaes , da axilla , algumas vezes mesmo as do me-
senterio participáò da àffècçáo. Este engorgitamento ,
€|ue em certos casos precede, as mais das ve.es acom-
panha , porém o mais frequentemente ainda segue a
erupção dos botões, ; indica isto a existência de hum
prin-
2<òl
Principio humoral, espalhado em tcda a economia r' c -
fluindo es caminhos da lympha, e que deve sahu a
favor da erupção ? ou he devido á reabsorvencia r; i ma-
téria , que secreta o couro cabelludo ulcerado ? A pri-
meira supposiçáo me parece mais verosímil.
Se a tinha tem durado muito tempo , e que , mui-
to intensa , tem levado seus estragos ao corpo da mes-
ma pelle , além do tecido reticular , eila determinado
a cahida dos cabellos , que já mais renascem. He sem
duvida neste estado que Ducante tem observado a en-
fermidade, cujos bulbos dos cabellos são, segundo elie,
o assento essencial. He verdade que neste gráo os bui-*
bos estão lesados ; porém eiies ficáo intactos na ulce-
ração superficial, e os cabellos arrancados repuilulão.
A analyse chimíca das crostas tinhosas demonstra
o, 70 de aibominio coagulo , o, 17 de gelatina, o, o
5 de fusfata de cal, e huma pequena quantidade de
agua ; < huma tão grande porção de albominio , e de
gelatina não fotnece huma nova prova da natureza de-
purariva da tinha ? e se pergunta porque esta erupção
se faz pela cabeça ; não he isto responder , o mostrar a
tendência dos movimentos , e das forças , variável se-
gundo as idades , sensível na cabeça das crianças , deri-
gindo se para o peito e seus crgáos no adulto , e sobre
o abdómen nos velhos ? O augmento das partes , seu
desenvolvimento commeçáo peia cabeça , e se acabáo
pelas partes inferiores , os desarranjamentos pathalogi-
cos seguem a mesma ordem , affectáo na mesma suc-
eessão ; porque os órgãos devem ser tanto mais dis-
postos ás enfermidades , quanto anutriçáo sua he mais
activa , e o apparelho dos movimentos vitaes mais
complicado. O exercício frequente dos órgãos dos sen-
tidos , .sua viva excitabilidade , sua aptidão a resentir
as novas impressões , de que elles sáo de alguma sorte
assaltados , durante os primeiros annos da vida , a acti-
vidade do cérebro , que combina , .associa , ou antes
faz analyse das idéas , para a formação da intelligen-
cia;; não se vê nisto huma multidão de causas de ex-
ci-
205
eitamanto , que devem artrahir os humores para a ca-
beça , e determinar nesta parte as aríecçóes da primei-
ra idade?
A tinha se termina espontaneamente, quando se
lhe não faz algum remédio. A revolução , que conduz
a puberdade diminuindo a tendência dos humores para
a cabeça lhe effectua quasi sempre a cura. Algumas ve-
zes com tudo ella resiste a esta crize natural , porém
raras vezes se prolonga até o fim do terceiro setena-
rio (isto he até os vinte e hum annos). Não he pre-
ciso com tudo entregar a tinha a si mesma ; seus es-
tragos prolongados poderiáo destruir completamente osca-
bellos, ecausdr assim aalopecia, ou mesmo desorganisar
o couro cabeiludo , e causar ulcerações do peor caracter.
i Quaes são os meios de destru ; r esta aílecçáo ,
sem perigo dos que ella affecta? Devem ser banidos
<lo seu tratamento os repercussivos ; porque se tem vis-
to esta repercussão seguida de hidropesias , de tísicas ,
de inchaços articulares, de oppilaçóes etc- < Deve-se
pois abandonar á natureza , e entrar a moléstia no do-
mínio da medicina espectante ? < A enumeração de nu-
ma multidão de remédios propostos contra a tinha ,
seja pelos modernos , seja pelos antigos provará , que
senão tenha tido esta opinião d'ella?
Todos estes remédios para o dizer com prevenção ,
*em por efTeito o mudar o modo do excitamento esta-
belecido no couro cabeiludo, e de dirigir para algum
outro emunctorio os humores , que para elle se derigem.
He deste dobrado modo , que obráo os banhos com as
dissoluções salinas , do sublimado , de amoníaco , etc. ,
o barrete , pelo qual se opera o arrancamento , as un-
ções com o óleo de bagas de louro , e outros corpos
gordurentos, aos quaes se mistura algumas substancias
excitantes , os ligeiros cathereticos , o ceroto com o
«nxofre > o oxido de carbonata , e de magnesia , as ca-
taplzmas de cicuta e de meimendro , as pílulas dissol-
ventes , saponacias , e mercuriaes , assim como os cosi-
mentos amargos.
Comr
204
Commeça-se por fazer raspar a cabeça dotinhozo,
depois se lhe applica o excitante necessário para mudar
o modo do exciçàmetltio. Desault applioavá duas , ou
três- vezes no dia os banhos de huma dissolução de
alguns grãos de sublimado, e de amoníaco; cobria a
Cabeça nos mtervullos Sdcíã banhos com chtlftiaços embebi-
dos no mesmo licor. He escusado o dizer que esta appl ca-
ção immediata dos excitantes sò he possível na tinha
furfuracea ; porque, n;.s outras variedades da moléstia,
se deve commeçar por fazer cahir as crostas, e limpar
o couro cabelludo , cobrindo successivamenre de muitas
cataplasmas , ou de folhas de àtóelgas untadas de hum
corpo gordurento.
O methodo do arrancamento com o barrete he o
mais doloroso , porém também he o mais seguro , e o
mais geralmente usado ; consiste em cobrir a cabeça
corri hum emplastro pegajoso de pez , farinha de sen-
teio , e vinagre. Esta mistura he assaz tenaz quando
se applica em hum pano de iáa , o qual só se despega
arrancando os cabellos , e faz apparecer o tecido celíu-
lar. Córta-se o pano do barrete em tiras triangulares
reunidas por seus cumes , de modo que representem
huma espécie de cruz de Malta , quando a estensáo da
tinha exige que se applique sobre toda a cabeça. Quan-
do este barrete tem permanecido applicado , durante
hum , dous , três , ou quatro dias , se despega , e le-
vantando suecessivamente cada tira , procedimento me-
nos doloroso que a quelle pelo qual se arranca todo o
barrete ao mesmo tempo. Quando se tem levantado o
emplastro , "o couro cabelludo lança sangue , as papilas
nervosas puxadas causáo muitas dores, lava-se a cabeça
com hum cozimento muciíaginoso , e se torna apelicat
o barrete , tantas vezes , quantas forem necessárias para.
a extinção completa da tinha. Isto se renova pocco mais
ou menos duas vezes na semana ; eu tenho com tudo
experimentado , que a cura se apressava pelas applica-
çóes mais frequentes feitas todos os dias , ou de dous
cm dous dias.
Quan
205
Quando a tinha não ccmprehende a totalidade do
couro cabeiludo , he mais custoso o trataila pelo arran-
camento , e se deve temer mais a sua renovação Ap-
plicáo-se tiras separadas sobre todos os lugares aiíecta-
dos , e quando a cura parece estar completa , rica-ss
exposto a' mostrarem-se outros botões nos lugares , on-
de os cabellos tinháo sido conservados.
O methodo do arrancamento he preferido nos es-
tabelecimentos públicos , primeiro , porcjue he o mais
seguro, e se íica menos exposto a ver brotar de novo
a tinha, quando a applicação do barrete tem sido suíR-
mt-nteciente repetida , porém sobre tudo pela commodida-
de de sua pratica. Os curativos se fazem com muitos dias
de intervallo ; os enfermos que seguem o tratamento
externo do hospital de S. Luiz, assistem em casa de
seus parentes, e vem duas vezes na semana para, se lhe
fazer levantar seus barretes , e recebem novos. Tem-
se allegado contra este methodo a sua barbaridade , he
a maior reprehensáo , que merece ; achão-no também
extremamente extenso; he verdade que em certos casos
o tratamento , cujo extensão ordinária he de três a seis
mezes, se prolonga hum, dous., ou mesmo três annos ;
porém os ensaios compararivos feitos sobre quasi du-
zentos tinhosos com dez medicamentos , os mais acre-
ditados , nos tem convencido que todos são sujeitos ao
mesmo inconveniente.
O ceroto misturado com igual parte de flores da
enxofre he empregado para a cabar o curativo comme-
çado pelo barrete, ou antes, se a rinha he ligeira e
farinácea , o ceroto dito he bastante para todo o trata-
mento. Acontece o -mesmo do pó de carvão, o qual
como se sabe he hum verdadeiro oxido de carbonata ,
e não , como se tem julgado muito tempo , esta ul-
tima substancia no seu estado de pureza. Misrura-se es-
te pó com ceroto , manteiga lavada, ou antes coma
banha de porco , e se cobre todos os dias a cabeça ul-
cerada. O oxido .de magnesia tem recentemente sido
preconizado ; porém nós o repetimos , numerozas expe-
rien»
io6
rtencias nos tem demonstrado que estes excitantes tão»
variados gozaváo quasi das mesmas virtudes ; que acu-
ra he mais ou menos prompta , segundo a gravidade
da tinha , e as despozições individuaes , antes que se-
gundo os remédios empregados.
Lede com desconfiança estas observações pompo-
sas de curas promptamente obtidas pela applicaçáo de
certas substancias ; o curativo he devido a ligereza da
moléstia. A rebeldia da tinha , em certos casos , qual-
quer que seja o remédio, que se lhe appliqne, se deve
olhar de mais a mais como o resultado de hum esfor-
ço depurativo.
A coexistência dos engorgitamentcs glandulosos tem
feito empregar as tizanas amargas , e os purguntes re-
petidos no tratamento. Estes meios sáo úteis dando
hum outro curso aos humores exuberantes; as fricções
seccas sobre todo o corpo não sáo menos proveitosas
para trazerem á pelle a transpiração ordinária , pouca
abundante nos tinhosos. Em fim tem-se prosposto con-
tra a tinha todos os remédios anti-escrofulosos , não
que ella pertença ás escrófulas , ( posto que estejamos
longe de pertendej que a tinha não tenha alguma ana-
logia com esta ultima affecção) mas porque muitos
tinhosos tem a fibra molle , e se dáo bem com o uso
dos tónicos.
GÉNERO OUTAVO.
Ulceras psoricas , ou sarnosa*.
J_ lj Xo ha huma classe de enfermidades, cuja hisro-
ria esteja menos adiantada , que a das affecçóes cutâ-
neas , e como as ulceras pertencem todas a esta ordem
de lesões , não he de admirar que os livros só forne--
çáo a seu respeito , noções imperfeitas. Os antigos não»
viáo nestas enfermidades senão acrimonicas de dive rsas
espécies , e Boerhaave fez todos os seus esforços para
as distinguir por caracteres hypotheticos. Que Wans-
wie-
207
irieten em seus fastidiosos Commentarios , disserta cotv
descendentemente sobre o aquor espécie de náo sei que ,
que senáo pôde exprimir nem na língua Grega , nem
na Franceza, espécie de acrimonia que não consiste no
acre propriamente dito , porém tem o meio entre o
terresrre e o aeerbo , ou o austero ; sua linguagem par-
ticular inintell-givel seduzirá aquelies, que admirío, o
q b não podem entender. Lorry tentou o desenvolver
este cahos , e a sua Obra sobre as enfermidades da
peiie (Tratactus de morbis cutaneis*) ainda o melhor
tratado sobre esta matéria , porém privado dos soccor-
ros de algumas descobertas , que lhe devião os moder-
nos fornecer sobre o systema lymphatico , náo tem
feito de alguma sorte , senáo franquear o caminho para
os seus suecessores.
Entre os exanthemas chronicos náo existe hum ,
cujas varidades excedão em numero ás que a sarna po-
de ofrerecer ; rio depressa se mostra de baixo da for-
ma de pústulas miiiares esbranquiçadas mais on menos
numerosas , e cheias de huma serosidade límpida ria
<|uai muitos naturalistas tem achado hum insecto da es-
pécie do oução (acams scabiei) cuja presença tem sido
olhada como causa essencial da enfermidade. Outras ve-
zes se desenvolvem pústulas rubras duras , e mais gros-
sas ; n' outros casos se manifestáo pequenas ulceras
crostosas , mais ou menos próximas humas de outras ,
etc. As denominações de sarnas simples , sarna miúda ,
ou rabugem , de psoriases , ou ronha etc. distinguem
estas diversas variedades.
A sarna he algumas vezes huma erupção critica ,
e saudável , pela qual se termináo diversas enfermidadss
internas , sejáo agudas , sejáo crónicas. Conhece-se facil-
mente que a limpeza he só a única cousa a recommendar
nesta espécie de aíFecção , que desaparece bem depressa
pelo uso dos banhos tépidos , e bebidas amargas.
Outras vezes he o resultado de pouca limpeza. He
a esta causa que ss deve attribuir a que nasce sem con-
tagio no seio de huma família indigente.
A
2C8
A estas sarnas • criticas , e espontâneas he preciso
ajuntar a sarna contagiosa, produzida pelo insecto que
alojando-se abaixo do epidermes excita a pelle , e de-
termina a formação de pequenas vesículas Em fim ha
erupções psoricas , das.quaes humas dependem do exci-
tamento da pelle por fricções seccas muito ásperas , ou 1
por fricções medicamentosas mais ou menos excitantes,
durante que outras, análogas aos herpes, e servindo a
ligar estes dous géneros de afFecçóes , parecem ser de-
vidas como elles , seja a hum excesso de excitabilidade
da pelle, seja d existência de hum principio espalhado
nos nossos líquidos.
He nos intervallos dos dedos, nas curvas das per-
nas, e sobre o peito, que se mostráo ordinariamente
os pequenos botões da sarna ; destas, partes se espalhão
por todo o resto do corpo. Huma viva commixáo tem
sido dada como o caracter delia. Ha com tudo certas
erupções psoricas , cujo prorido he quasi nullo. He so-
bre tudo* na sarna contagiosa caracterisada pela presen-
ça do Guçao , que a commicháo he ardente , e se con-
verte em huma dor picante , e acerba , quando os en-
enfermos solicitados por huma necessidade irresistível,
arranhão a pelle até escuriala.
A sarna he em geral huma enfermidade pouco gra-
ve 3o menos que ella não seja inveterada , ou compli-
cada de huma outra affecção. Então he verdade que
não somente resiste teimosamente aos remédios, porém
ainda sua desapparição he frequentemente seguida de acci-
dentes produzidos pela metastase dos humores sobre o pul-
mão, ou qualquer ©utro órgão importante á vida. Estes
inconvenientes ida sarna recolhida são bem reaes, posto
que em muitos casos tenháo s<do suppostos , ou exage-*
rados pela charlataneria. Tenho frequentemente obser-
vado no hospital de S. Luiz como consequência da re-
trogradação da sarna , abcessos frios , que se tormão
nas vizinhanças das articulações ', huma matéria serosa
misturada com grumos limphathicos sahe da abertura ,
da espécie de kysto , . de que estes abscessos sáo for-
ma-
209
mados. São quasi sempre multiplicados ; eu tenho aber-
to successivamente treze em hum mesmo individuo.
Todas as idades , e todos os sexos são sujeitos á
sarna. As crianças, e as mulheres são mais suscept veis
d'eda por contagio ; a transmissão desta espécie he mais
racil , durante os calores do verão , e o suor , do que
nas circunstancias oppostas.
Pódem-se suprimir sem temor , as sarnas recentes ,
e simplices , sobre tudo, quando ellas tem sido trans-
mettidas pelo contacto. Basta para isto banhar todas as
manháas o enfermo , e depois fazello untar com huma
pomada ligeiramente excitante , e repercussiva , como a
pomada citrina , ©u huma mistura da banha de porco ,
e ilores de enxofre , á qual se ajuntáo alguns grãos de
muriato de amoníaco. A agua de sabão , a infusão de
tabaco de fumo , os banhos com huma ligeira dissolu-
ção de acitito de chumbo , a agua de muriato , etc ; em
huma palavra todos os líquidos excitantes não são me-
nos efRcazes. He útil o ajuntar á este tratamento ex-
terno hum ou dous purgantes administrados antes das
fricções , a fim de que algum accidente , nascido do
embaraço das primeiras vias não vá perturbar a acção
dos remédios; he preciso também repetir os meios
purgativos quando a pelie se limpa de todas as bor-
bulhas. Favorecem então a derivação dos humores , at-
trahindo-os para a membrana mucosa do tubo intestinal
que lhes serve de emunctorio. He por ter esquecido a
precaução saudável de evacuar muitas -vezes no tempo
da desapparição da sarna , que certos enfermos tem
sofFrido diversos accidentes consecutivos.
Os cosinaentos amargos de passiencia , de scabioza ,
e de almeirão são dados durante toda a extensão do
tratamento. Estas tisanas entretém a liberdade do ven-
tre , e são olhadas por alguns , como tónicas , e depu-
rativas ao mesmo tempo.
Quando a sarna he antiga , torna-se mais essen-
cial ainda o fazer concorrer os remédios internos com
o tratamento tópico. Náo se deve proceder ás fricções
O se-
210
senío depois de haver devidamente evacuado as primei-
ras vias com hum vomitório , e com repetidos purgan-
tes. Estes últimos serão continuados cada dia em pe-
quenas doses , e de modo , que entretenháo huma direc-
ção habitual de humores para o tubo intestinal. Ob-
tem-se este fim fazendo dissolver a sulfata de potassa
nas bebidas amargas. Em fim a applicação dos evacuen-
tes , e dos imargos deve ser prolongada , posto que
não exista algum vestígio da erupção. Esta conducta
poc ao abrigo dos inconvenientes , que nasceriáo da sua
supressão muito repentina.
2 A importância das precauções , que acabáo de ser
indicadas , o perigo da repercussão da. sarna , são como
se tem julgado as provas convincentes da existência de
hum virus psoricoí; Porém para que he admittir hu-
ma causa única para huma enfermidade , que nasce em
circunstancias tão oppostas , e se apresenta debaixo de
tantos aspectos? A causa próxima da sarna contagiosa
he bem conhecida , e se a precipitada supressão desta
sarna he perigosa , quando dura desde hum certo tem-
po , isto depende menos do recolhimento de hum virus
particular na massa dos humores , que do transporte
das serosidades lymphaticas , que chamava para á pellfe
o excitamento , qufe se tem suprimido pela destruição
dos insectos. Os tegumentos cobertos de huma multi-
dão de borbulhas devem ser olhados como hum vasto
exundatorio , cuja supressão pôde arrastar as mais tristes
consequências , se senão deshabittta pouco a pouco , a
economia acostumada a desembaraça r-se pdr este cami-
nho . de huma certa quantidade de fluido
Quando cela negligencia das precauções, que a
prudência exige, aífecçóes asthmaticas, inflamações
crónicas , febres lentas etc. , resultem da repercussão da
sarna , tem-se aconselhado de se tornar a chamar esta
erupção inoculando-a ; o excitamento da pelle por ba-
nhos muito quentes , por fortes fricções , por abluções
com licores excitantes , taes como a agua de Mcttem-
berg , que não he outra consa mais 3 que huma disso-
lu-
211
lução de sublimado na agua destillada , o uso cont>
miado dos sudoríficos internamente etc. tem sido acon-
selhados para fazer sahir as sarnas recolhidas ; porém
náo se poderia ser muito circunspecto na sua adminis-
tração; antes de se decidir a eila , será preciso indagar
attentamente se os accidentes de que se queixa o enfer-
mo são realmente devidos á supressão da sarna , ou se
elles devem ser attribuidos a outra causa. Eu tenho vis-
to grande numero de indivíduos , que affligidos de do-
res rheumaticas , ou gotosas } de dificuldades de respi-
rar , de ophralmias , de diarreas rebeldes etc. etc. áo
eessaváo de accusar as sfFecçóes psoricas , de que se
ju!ga.váo ter sido mal curados. Bum attenro exame
hr/endo-me algumas vezes reconhecer esta causa, me
provava muitas vezes , que era com erro , que se lhe
impunváo os effeitos devidos a estas enfermidades; e
sem procurar o reproduzir a sarna , eu empregava com
bom suecesso os remédios apropriados.
Nesta ocCasiáo'eu observarei, que os enfermos se
enganáo frequentemente sobre a òtigèm de sua enfer-
midade. Tal mulher attribuc á abundância de seu leite,
os fluxos venéreos, de que ella he atormentada, ou
lhe chama flores brancas ; tal outra chama gotosas as
dores evidentemente syphliticas ; isto náo soffre alguma
incommodidade , para que o pratico a náo ©onsidere como
huma consequência do galico. Livre de todos estes pre-
juízos , aclarado por suas indagações sobre a verdadeira
natuteza do mal , o medico remonta facilmente á sua
causa, e se algum motivo obriga a enferma a calar- se.,
elle lhe náo applica hum tratamento menos convenien-
te.
A dificuldade, que se experimenta em curar certas
sarnas , pôde ser devida á applicação viciosa dos tópi-
cos. He por isso que as fricções muito ásperas , e
muito repetidas , a applicação das pomadas rançosas ,
ou muito excitantes, determináo huma erupção, que
se ajunta a da sarna, ou toma o lugar delia: engana-
do pela similhança, o enfermo continua a esfregar-$e,
e
2I2 1
e perpetua ' por este modo a enfermidade renoyando-lhe
todos os dias a causa.
Em hum caso desta espécie eu fiz suspender o
tratamento interno , e me limitei em prescrever hum
banho tépido , e hum brando laxante todos os dias.
Bem depressa foi a pelle limpa : huma outra vez a
pelle arranhada a presentava ulcerações superficiaes
muito extensas , e muito dolorosas pelo descobrimento
das papilas nervosas do dermes Eu remediei isto , aj ati-
tando aos banhos tépidos , e aguas laxantes , a applica-
çáo de huma pomada anodina , feita com huma mistura
de ceroto , e de extracto gommozo de ópio , em peque-
na quantidade.
A complicação da sarna com os herpes , a enfer-
midade venérea, o escorbuto , etc. não merece occu-
par-nos. A sagacidade do leitor supprirá sem custo a
esta omissão voluntária. Para a combater, basta com-
binar o tratamento das espécies simplices ou tratar suc-
cessivamente as affecções complicadas simultaneamente ,
tendo cuidado de começar pela mais grave.
F I M.
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