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Full text of "Historia Aethiopiae : Liber I-IV"

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RERUM  AETHIOPICARUM  SCRIPTORES  OCCIDENTALES 

""  IXEOITI 

A    (SiVE>OCJXvO    XATI     Aiy    XIX 

CURANTE    C.    BECCARI    S.    I. 

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P.  PETRI  PAEZ  S.  I. 


HlSTORIA  AeTHIOPIAE 


LIBER  I  ET  II 


ROMAE 

EXCUDEBAT   C.   DE   LUIGI 

1905- 


J^A^VSSO  'V-  ^ 


J:i^r...'  'SuLi;^ 


JUL    6   1906 


^JfrRAB''^'; 


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i.(^^ 


Ahctor  stbi  vindicat  izis  proprictatis 


HD  LEeXOREM. 


UANTi  facienda  sint  opera  historica  et  epistolae 
virorum  illorum,  qui  medio  saeculo  XVI  ac  dein 
ceps  Aethiopiam,  propagandae  rellgionis  catho 
licae  causa,  petierunt  ibique  per  octoginta  continenter  annos 
commorati  sunt,  nemo  est  qui  ignoret.  Attamen,  ut  notum  est, 
ea  scripta,  hucusque  immeritae  oblivioni  data,  in  tabulariis 
sepulta  iacuerunt ;  imo  manuscriptum  p.  Petri  Paez  historiam 
aethiopicam  a  primis  usque  temporibus  continens  deperditum 
omnino  putabatur.  De  aliis  autem  manuscriptis,  ut  ex.  gr.  de 
tribus  Tractatibus  historicis  EmanueUs  Barradas,  nulla  prorsus 
notitia  habebatur,  ut  fusius  In  primo  volumine  anno  superiore 
typis  edito  enarravi  (cf.  Notizia  e  Saggi  etc.  Roma  1903, 
Casa  Edit.  Ital.,  Parte  I,  pp.  3-6). 

Cum  vero  nostris  hisce  diebus  plerique  docti  viri  ad  hi- 
storiam  aethiopicam  penitus  investigandam  omni  ope  et  studio 


IV  AD   LECTOREM 

contendant,  opportunum,  ut  non  dicam  necessarium,  visum 
est  ea  scripta  integra  in  lucem  edere ;  in  his  enim  non  modo 
res  a  missionariis  gestae  fuse  narrantur,  sed  et  mores,  religio, 
historia  vetus  Aethiopiae  penitus  investigatur,  et  regionis  illius, 
tum  temporis  occidentalibus  fere  ignotae,  situs,  natura,  cultus 
accurate  describitur.  Horum  scriptorum  et  documentorum  ope 
fabulae  omnes,  quae  in  historiam  aethiopicam  iamdiu  irre- 
pserunt  et  ad  haec  usque  nostra  tempora  a  scriptoribus  im- 
peritis  vulgatae  sunt,  facili  negotio  poterunt  dissipari. 

Aggredior  igitur,  doctissimorum  virorum  etiam  sufFragio 
innixus,  editionem  omnium  eorum  operum  et  documentorum 
adornare,  quae  ex  accurata  tabulariorum  investigatione  in 
meam  notitiam  venerunt  et  quorum  elenchum  per  annos  di- 
gestum  videre  est  in  volumine  superius  citato. 

Confido  fore  ut  labor  iste  meus  in  edendis  hisce  scriptis 
cum  favore  excipiatur,  non  modo  ab  historicis  et  geographis, 
sed  etiam  ab  antiquitatum  orientalium  studiosis ;  eo  vel  magis 
quod  series  ista  Scriptorum  Occidentalium  non  parvi  erit 
adiumenti  ad  plenam  intelligentiam  et  quandoque  etiam  ad 
complementum  et  emendationem  historiarum  ab  Auctoribus 
Aethiopicis  conscriptarum,  quae  modo  cura  et  studio  Ignatii 
Guidi,  praelo  dantur  Parisiis  in  eximio  illo  opere  cui  titulus: 
Corpus  scriptortiin  ckristiafiorum  orie7italiu7n. 

Universam  nostram  coUectionem  sexdecim  volumina  in-8'' 
maiori  comprehendent,  quorum  prima  novem  opera  historica 
exhibebunt  pp.  Paez,  Barradas,  Almeida  et  patriarchae  Mendez, 
reliqua  relationes  et  epistolas.  Unumquodque  volumen  praeibit 
critica  Introductio,  in  qua  de  vita  auctoris,  de  eius  opere  deque 


AD   LECTOREM  V 

huius  fontibus  ratio  reddetur.  Ad  calcem  autem  duo  copiosi 
indices  addentur,  quorum  primus  includet  res  in  opere  con- 
tentas,  alter  nomina  propria  locorum,  et  personarum. 


PROSPECTUS   VOLUMINUM. 


VoLUMEN  I  (iam  typis  editum).  Introductio  generalis.  —  Notiaia 
^  Saggi  di  opere  e  documenti  inediti  riguardanti  la  Stotia 
di  Etiopia  durante  i  secoli  XVI,  XVII  e  XVIII  con  otto 
fctc-simili  e  due  carte  geografiche. 

VoL.  II  (iam  typis  editum).  —  Historia  Aethiopiae  a  p.  Petro  Paez 

lingua  lusitanica  exarata,  lib.  I  et  II. 

VoL.  III  (sub  praelo).  —  Eiusdem  historiae  lib.  III  et  IV. 

VoL.  IV.  —  Emanuelis  Barradas  S.  I.,  Tractatus  tres  lusitanice 
exarati, 

VoL.  V.  —  Emanuelis  de  Almeida,  Historia  de  Ethiopia  a  alta 

lib.  I  ad  IV. 

VOL.  VI.  —  Eiusdem  historiae  lib.  V  ad  VIII. 

VoL.  VII.  —  Eiusdem  historiae  lib.  IX  ad  X. 

VoL.  VIII.  —  Patriarchae  Mendez,  Expeditionis  aethyopicae  lib.  I 
et  II. 

VoL.  IX.  —  Eiusdem  lib.  III. 

VoL.  X.  —  Eiusdem  lib.  IV. 

VOL.  XI,  XII,  XIII,  XIV.  —  Relationes  et  epistolae  variorum 
tempore  missionis  iesuiticae,  ab  anno  1550  ad  ann,  1640. 

VoL.  XV  et  XVI.  —  Relationes  et  epistolae  selectae  tempore  mis- 
sionis  FF.  Minorum,  ab  anno  1632  ad  ann.  i8iS- 


'iM^^^^;.^^     SS^M; 


In  Historiam  Aethiopiae  p.  Petri  Paez 
eRiTieA  iNTKeDuerie 


.iiii!^ 


isTORiAM  patris  Paez  ex  communi  eruditorum  desi- 
derio  in  lucem  daturus,  aliquid  de  vita  ipsius  deque 
eius  Operis  fontibus  praemittere  necessarium  putavi. 
Sed,  ne  lectorem  diutius  detinere  videar  in  enarrandis  iis 
eventibus  qui  a  Tellez  primum  ac  dein  ab  Juvency  et  Cordara 
in  Historia  Societatis  fuse  tractantur,  paucis  verbis  ea  omnia 
perstringam,  diutius  immoraturus  in  iis  enucleandis  quae  vel 
omnino  hucusque  ignota  permanserunt,  vel  quae,  licet  a  Tellez 
enarrata,  tamen  ex  aliis  fontibus  nuper  repertis  nova  luce  eaque 
prorsus  nativa  illustrantur.  Etenim  in  Chronhistoria  Provi^iciae 
Toletanae  Soc,  lesti^  a  patre  de  Alcazar  diligentissime  conscripta, 
quaeque  magna  ex  parte  adhuc  inedita  in  bibliotheca  s.  Isi- 
dori  Matriti  asservatur,  undecim  reperiuntur  epistolae  eaeque 
satis  prolixae  ipsius  p.  Paez  ad  p.  Itur6n  suum  quondam  ma- 
gistrum  datae,  in  quibus  candide  et  minutatim  auctor  omnia 
quae  ad  ipsum  spectabant  enarrat.  Hunc  fontem  mihi  non 
esse  spernendum  existimavi,  adeoque  ex  ipso  fere  omnia  quae 
de  eo  dicturus  sum  usque  ad  eius  in  Aethiopiam  ingressum 
deduxi.  Licet  enim  omnes  fere  eventus,  qui  tempore  capti- 
vitatis  locum  habuerunt,  enarrati  prostent  ab  ipsomet  Paez  in 


VIII  INTRODUCTIO 

sua  Historia  lib.  III,  cap.  XV  ad  XXI,  ex  quo  p.  Almeida 
primum  et  ab  hoc  Tellez  aliique  unice  hauserunt,  tamen,  quia 
epistolae  conscriptae  fuerunt  vel  ipso  captivitatis  tempore  vel 
statim  ac  Goam  liber  appulit  auctor,  contra  vero  eorumdem 
eventuum  narratio  quae  continetur  in  Historia  scripta  fuerit 
triginta  et  amplius  annis  a  captivitate  et  quidem  non  nativo 
sed  alieno  sermone,  eorumdem  factorum  narrationem  ex  illo 
novo  fonte  denuo  a  me  repetendam  esse  duxi. 

Accedit  quod  ex  catalogis  Provinciae  Goanae,  non  modo 
aliquot  notitia?,  sed,  uti  ex  dicendis  patebit,  pluries  diem 
certum  quorumdam  eventuum  coUigere  potui.  Ideo,  si  ea  quae 
narraturus  sum  non  omnia  nova  accident  lectori  erudito,  tamen 
a  me  pleraque  addentur  quae  vel  iam  cognita  illustrant  vel 
ea  corrigunt  quae  a  scriptoribus  non  accurate  fuerunt  enarrata. 

Ut  ordinate  procedat  oratio,  vitam  patris  Paez  primum 
narrabo,  deinde  de  fontibus  e  quibus  ipse  narrationem  suam 
hausit  aliquid  addam,  simulque  Operis  ipsius  merita  et  defectus 
candide  aperiam. 

I. 

De  vita  et  laboribus  P.  Paez. 

A)  Fontes  inediti :  I-X.  Epistolae  decem  p.  P.  Paez  ad  p.  Thoraam  dti  Itur^o  in  parte 
inedita  operis  patris  de  Alcazar  Chronhistoria  Provinciae  Toletanae  Soc.  lesu, 
Decada  5*,  an.  4°,  cap.  V  (in  Biblioth.  S.  Isidori,  Matriti,  Reservado  S.  II,  Tabla  II, 
n.®5i):  I."  Bazain,  16  feb.  1589.  -  2.*Sana,  17  iul,  1593.  -  3."  Sana,  18  iul.  1594.  - 
4.*  Goa,  10  dec.  159O.  -  5."  Assalona,  20  nov.  1597.  -  6.*  Chaul,  2  dec.  1599.  - 
7.*  Diu,  4  nov.  1601.  -  8  ■  Diu,  4  dec.  1602.  -  9.*  de  Ethiopia,  20  iul.  1608.  - 
10.*  Dambea,  20  ian.  1615.  —  XI.  Epistola  p.  Antonii  de  Monserrate  ad  R.  P. 
Gen.  Clandium  Aquaviva,  Sana  22  iulii  an.  1593  ASI.,  Goana  Hist,  Aethiop, 
i549-162g  n.°  XXI.  —  XII.  Epistola  p.  Paez  ad  R.  P.  Gen.  C.  Aquaviva,  Goa  1 7  de- 
cembr.  1596,  ASI.,  Goana  Malab,  Epist,  1590- 1599  n.°  XI.  —  XIII.  Catalogi 
Provinciae  Goanae  S.  I.  annorum  1585-86,  1594,  1596,  1605,  1609,  1621,  1622. 
ASI.  Catalogi  mss,  Prov.  Goanae,  —  XIV.  P.  Pero  Paez,  Historia  de  Aethiopia^ 
lib.  III,  capp.  15  et  seqq.,  lib.  IV,  cap.  3.  ASI.  —  XV.  Emanuel  Almeida,  Historia 
de  Ethiopia  a  alta^  IJb.  V,  capp.  1-6;  lib.  VI,  cap.  29.  —  XVI.  Epistola  Seltan 
Sagad  ad  praepositum  provinciae  Goanae  p.  Aloysium  Cardosum  (acclusa  in  rela- 
tione  scripta  a  p.  Sebastiano  Barrero  ad  p.  Visitatorem  ii  dec.  1622).  ASI.  Goana 
Hist,  Aeth.  1549-1629^  n.®  XLI.  —  XVII.  Lembran^a  das  cousas  de  Ethiopia  pera  o 
p.  Provincial  ver.  ASI.   Goana  Hist.  Acth.  1630-1659^  n,°  III. 


INTRODUCTIO  IX 

B)  Fontes  editi:  I.  Tellez,  Historia  geral  de  Ethiopia  a  alta,  Conimbr.  1660,  lib.  III, 
capp.  1-8.  —  II.  Juvency,  Hist.  Soc,  Tesu,  parte  V,  lib.  2,  §  9.  —  III.  Cordara, 
Hist.  Soc.  lesn,  parte  VI,  lib.  3,  n.**  98;  lib.  VII,  n.°  161.  —  IV.  Andrade,  Varones 
ilustres^  tomo  II,  pag  472.  —  V.  Nieremberg,  Varones  il7ts t res,  edit.  i*,  tomo  I, 
pag>  391«  —  VI.  Du  Jarric,  Histoire  des  Inde:  orientales^  cap.  20,  pag  322.  — 
VII.  D'Oultreman,  Tdbleaux  de  Personnages  stgnalez^  pag.  259.  —  VIII.  So- 
tuellus,  Bibliotheca  scriptorum  Soc,  lesu,  pag.  687.  —  IX.  Sommervogel,  Biblioth. 
scrip.  S.  /.,  tomo  VI,  pag.  82.  —  X.  Patrignani,  Menologio  di  pie  memorie  di 
alcuni  religiosi  della  C.  di  Gesti^  tomo  II,  20  maggio.  —  XI.  Desborough  Cooley, 
Notice  sur  le  p.  P.  Paes^  «  Bulletin  de  la  Societ6  de  Geographie  »,  Paris,  mai  1872. 
—  XII.  Alegambe,  Bibl.  Script.  Soc.  lesu,  —  XIII.  De  Guilhermy,  Menologe  de 
la  C.  de  JesuSy  Assistence  d^Espagne^  II  partie,  20  mai.  —  XIV.  Letterc  annue 
d*Etiopia,  Malabar.  etc.^deWanno  1620  al  24,  Roma,  Corbelletti  1627,  pag.  45. 


1.  Petrus  Paez  (i)  ortum  habuit  honesto  loco  Olmedae  in 
oppido  Toletanae  dioeceseos  prope  Complutum  anno  chri- 
stiano  1564,  eique  consobrinus  fuit  p.  Stephanus  Paez,  qui 
multos  annos  munere  Praepositi  Provmcialis  Mexicanam  et 
Peruanam  provincias  gnbernavit  (2).  Annos  natus  decem  et 
octo  Societatem  lesu  ingressus  est  et  post  assuetas  probationes 
per  tres  annos  philosophiae  operam  dedit  Belmonte  sub  patre 
Thoma  de  Itur6n,  quo  magistro  se  plurimum  in  litteris  et 
pietate  profecisse  testatur,  ut  probant  omnes  epistolae  ad  ipsum 
per  multos  annos  ab  Indiis  et  ab  ipsa  Aethiopia  datae. 

2.  Confecto  philosophiae  curriculo,  in  Indias  missus  est  et 
vectus  simul  cum  aliis  sociis  navi  cui  nomen  a  s.  Thonia 
longo  et  difficillimo  itinere  Goam  appulit  cursum  theologiae 

(i)  In  epistolis  hispanico  sermone  ad  p.  Ituren  missis  subscriptio  ad 
cognomen  «  Paez  »  addit  et  aliud  «  Xaramillo  »;  quod  mirum  videri  non 
debet  qui  morem  hispanicum  novit.  In  ceteris  tamen  eius  epistolis  constanter 
se  subscribit  «  P.°  Paez  ». 

(2)  Haec  ex  Patrignani  Menologio.  De  eius  parentibus  deque  pueritia 
nullae  prorsus  notitiae  habentur.  Attamen  ex  quibusdam  eiusdem  litteris  sci- 
mus  ipsum  habuisse  fratrem  nomine  Joannem,  cum  quo  ut  videtur  commer- 
cium  litterarum  habuit  et  eidem  munuscula  ex  Indiis  misit  et  vicissim  ab 
eo  pecuniam  ad  libros  coemendos  accepit.  Cfr.  epist.  ad  p.  Ituren,  6."  §  «  Oc- 
cupome  ahora  »,  7.^  in  P.  S.,  8.^  in  fine,  et  10.*  §  penult.  «  El  traslado  em- 
bio  >.  Duas  praeterea  sorores  habuit:  nomen  uni  Anna  Maria,  alteri  Isa- 
bella,  quibus  de  se  suisque  rebus  notitias  transmisit  (ibi,  epist.  10.*  ead.  §). 
Demum  in  una  epistola  sermo  etiam  est  de  quodam  fratris  filio  nomine 
Gaspar  (ibi,  epist.  io.°,  ead.  §). 


X  INTRODUCTIO 

confecturus.  Dum  primo  tantummodo  anno  scholasticam  au- 
diebat  et  simul  rudibus  cathechizandis  operam  dabat,  mense 
ianuario  1589  a  Praeposito  Provinciali  Petro  Martinez  socius 
additur  patri  Antonio  de  Monserrate,  qui  ad  sacram  expedi- 
tionem  aethiopicam  instaurandam  fuerat  destinatus  ac  proinde 
sacerdotio  initiatus  sub  finem  ipsius  mensis. 

3.  Huius  tam  inopinati  eventus  rationem  reddit  ipse  p.  Paez 
in  epistola  ad  patrem  Itur6n  mense  februario  insequenti  data, 
quae  integra  simul  cum  aliis  eiusdem  Patris  supra  citatis  pu- 
blici  iuris  fiet  suo  loco,  scilicet  volumine  XII  huius  coUectionis. 
Hic  tantummodo  referam  quae  ad  rem  nostram  faciunt.  Scribit 
itaque:  «  Duobus  diebus  ante  festum  conversionis  s.  Pauli  ac- 
civit  me  p.  Petrus  Martinez  huius  provinciae  praepositus,  di- 
xitque  parari  expeditionem  sacram  magni  momenti  sibique 
et  aliis  patribus  ex  gravioribus  visum  fuisse  me  cum  alio 
patre  ad  illam  destinare.  Attamen,  cum  res  esset  magnis  la- 
boribus  ac  periculis  plena,  petere  a  me  ut,  si  quid  in  con- 
trarium  haberem,  sincere  aperirem.  Ad  haec  reposui  nuUo 
me  alio  fine  in  Indias  transmisisse  quam  ut  omnes  quotquot 
se  mihi  offerrent  occasiones  arriperem  ad  labores  et  pericula 
quaevis  pro  divino  servitio  et  animarum  salute  sustinenda. 
Quare  quo  magis  difficultatibus  plena  expeditio  foret,  eo  me 
illam  gratius  accepturum.  Gratissima  haec  responsio  accidit 
Patri,  reposuitque  se  de  me  non  minora  expectasse :  expedi- 
tionem  esse  pro  Aethiopia  et  patrem,  cui  ego  socius  additus, 
esse  Antonium  de  Monserrate  natione  catalaunum,  virum  in 
hisce  rebus  valde  versatum,  singulari  gratia  in  tractando  cum 
regibus  praeditum  et  linguis  orientalibus  eruditum.  Nova  haec 
expeditio  aethiopica  fit  iussu  Regis  Lusitani,  qui  de  hac  re 
litteras  nuperrime  ad  Indiarum  Gubernatorem  dederat.  Hic 
vero  statim  ac  eas  accepit  patrem  Provincialem  convenit, 
iussa  Regis  exponit,  atque  instat  ut  sine  mora  duo  saltem 
patres  in  Aethiopiam  mittantur.  P.  Martinez  reponit  sibi  ac 
Patribus  nihil  iucundius  esse  quam  huic  Regis  mandato  mo- 


INTRODUCTIO  XI 

rem  gerere.  Attamen,  ne  morae  nimium  protrahantur,  oppor- 
tunum  sibi  videri  ut  unus  ex  theologiae  auditoribus  hoc  eodem 
mense  sacris  ordinibus  initietur.  Gubernator  Archiepiscopo 
Goano  persuasit  ut  illico  negocium  expediret,  sicque  factum 
est  ut  ipso  die  conversionis  s.  Pauli  subdiaconi,  die  veneris 
insequenti  diaconi,  ac  demum  die  dominico  sacerdotis  munere 
auctus  fuerim  (i)». 

4.  Hucusque  ipse  Paez;  adeo  vero  urgebant  iussa  Regis 
Lusitani  ut  statim  ac  p.  Paez  fuit  sacerdotio  insignitus  illico 
die  secunda  februarii  1589  itineri  se  commiserit  Bazain  ver- 


(i)  «  Dos  dias  antes  de  la  conversion  de  s.  Pablo  me  llamo  el  p.  Pe- 
dro  Martinez  provincial  de  esta  provincia,  y  me  dixo  que  se  queria  hacer 
una  mission  de  gran  servicio  de  N.  S.  y  que,  despues  de  haberlo  encomen- 
dado  muy  de  veras  k  Su  Magestad,  les  avia  parecido  a  los  padres  y  k  el 
que  yo  fuesse  con  el  padre  que  estaba  senalado.  Pero  que  con  todo  esso, 
por  ser  empressa  muy  trabajosa  y  peligrosa,  queria  saber  si  yo  tenia  alguma 
difficultad ;  porque,  teniendola,  enviaria  a  otro  de  muchos  que  deseaban  y 
le  avian  pedido  esta  mission.  Yo  le  respondi  que  lo  principal  que  me  avia 
moxido  para  venir  a  la  India  era  desear  semejantes  occasiones,  en  que  pu- 
diesse  servir  a  N.  S.  y  padecer  alguna  cosa  por  su  amor:  y  que  assi,  quanto 
mas  trabajosa  y  difficultosa  fuese,  con  tanto  mayor  contento  y  alegria  la 
acceptaba.  El  me  lo  agradecio  diciendo  que  no  esperaba  menos  de  mi  y 
que  la  mission  era  para  Ethiopia. 

«  El  padre  con  quien  voy  se  llama  Antonio  de  Monserrate,  catalan 
de  nacion,  muy  intelligente  para  estas  cosas  y  de  singular  gracia  para  tra- 
tar  con  estos  Reyes ;  y  assi  fue  un  de  los  que  estuvieron  en  el  reyno  y  corte 
del  Mogor  y  sabe  bastantemente  las  lenguas  necessarias.  Esta  mission  se 
hace  por  averlo  pedido  muy  encarecidamente  el  Rey  N.  S.  Y  assi,  viendo 
las  cartas,  el  Virrey  se  vino  luego  a  nuestra  casa  a  pedirle  al  p.  Pedro  Mar- 
tinez,  provincial  desta  provincia,  padres  para  ella;  y  nos  dixo  despues  al 
p.  Monserrate  y  a  mi  que,  si  no  se  los  dieran,  que  lo  tomara  por  testimo- 
nio  y  despachara  luego  por  tierra  un  correo  al  Rey,  por  ser  cosa  de  tanto 
servicio  a  N.  S.  y  que  el  Rey  tanto  le  habia  encargado.  Pero  si  el  tenia 
mucho  deseo  de  que  fuessemos,  todos  los  padres  deseaban  mucho  mas  esto, 
por  aver  veinte  annos  que  casi  nuevas  no  hay  de  alla.  Dixole  el  p.  Pro- 
vincial  al  Virrey  que  tenia  necessidad  para  esto  de  ordcnar  un  hermano: 
y  el  envio  luego  un  recado  al  Arzobispo  diciendo  que  convenia  al  servicio 
de  Su  Magestad  que  lo  hiciesse.  Y  assi  me  ordeno  de  Epistola  el  dia  de 
la  conversion  de  s.  Pablo,  y  el  viernes  siguiente  de  Evangelio,  y  luego  el 
domingo  de  Missa».  Epist.  i.**  p.  Paez  ad  p.  Ituren.  Bazain  16  feb.  1589,  in 
Chronhisi.  etc. 


XII  INTRODUCTIO 


sus(i);  quo  ubi  pen^enit,  dominica  quinquagesimae  prima 
vice  in  ecclesia  illius  coUegii  sacris  litavit,  ac  dein,  ut  ipse 
testatur  in  eadem  epistola,  dum  necessaria  ad  iter  aethiopicum 


(i)  P.  Tellez  {Hist.  de  Ethiopia  a  alta^  lib.  III,  cap.  l,  pag.  210)  secu- 
tus  Almeidam  [Hist.  de  Ethiopia  a  alta,  lib.  V,  cap.  i,  fol.  177)  assignat  pro- 
fectioni  diem  secundam  februarii  anni  1588.  Qui  minime  de  errore  impu- 
tandi,  quia  Almeida  hoc  datum  ex  ipsa  Paez  Historia  desumpsit,  ubi  lib.  III, 
cap.  15,  circa  medium  haec  habentur:  «  Tratando  03  padres  de  Ihe  [patri  de 
Monserrate  ad  aethiopicam  expeditionem  electol  dar  companheiro,  me  couve 
a  mim  tam  boa  sorte,  que  tinha  chegado  de  Portugal  naquelle  setembro,  e 
assi  nos  aparelhamos  logo... .  Chegado  o  tempo  de  partir  pera  Dio,  7ios  em" 
barcamos  a  2  de  fevereiro  a  tarde  de  1588  >;  idemque  cap.  16  sequenti  ait  se 
discessisse  Diu  «  a  5  de  abril  de  1588  »  et  cap.  17,  suam  captivitatem  in- 
cepisse  ^<  aos  14  de  fevereiro  de  589  ».  Sed  evidenter  errasse  ibi  patrem 
Paez  defectu  memoriae  quando  haec  scribebat,  triginta  scilicet  et  amplius  an- 
nis  post  illos  eventus,  sequentibus  argumentis  comprobatur: 

1°)  Catalogus  Provinciae  Goanae  anni  1588  asserit  patrem  Paez  eo 
anno,  post  peregrinationem  maritimam  difficillimam,  Goam  venisse.  Sed  cum 
ipse  asserat  se  pervenisse  Goam  mense  septembri  et  inde  discessisse  mense 
februario  insequenti,  patet  hoc  secundum  datum  non  esse  referendum  ad  an- 
num  1588  sed  ad  annum  1589. 

2°)  Idem  Catalogus  eiusdem  provinciae  anni  1594  docet  Patrem  esse 
a  quinque  annis  sacerdotem.  Sed,  cum  ab  ipso  Patre  (Epist.  i.*  cit.  ad  p.  Itu- 
ren)  sciamus  eum  sacrjs  initiatum  fuisse  paucos  dies  ante  profectionem,  ista 
profectio  non  potuit  habere  locum  nisi  mense  ianuario  1589,  ex  quo  tan- 
tum  usque  ad  1594  quinque  anni  decurrere  potuerunt. 

3°)  Accedunt  duae  epistolae  ex  captivitate  datae,  una  ipsius  Paez,  ai- 
tera  p.  Monserrate.  In  prima,  quae  data  fuit  ex  urbe  Sana  die  17  iul.  1593 
(Epist.  2.*  ad  p.  Ituren  in  Chronhist.  etc),  asserit  «  aver  tres  aJios  que  aqui 
estamos  »;  et  quia  a  die  profectionis  ad  eorum  adventum  Sanam  unus  fere 
annus  intercessit,  patet  pariter  ipsos  profectos  fuisse  Goa  non  anno  1588 
sed  1589.  In  altera  autem  data  ex  eadem  urbe  22  iul.  1593  (ASI.  Goana, 
Hist.  Aethiop.  1^49-1629,  n.  XXI)  pater  de  Monserrate  repetit  se  a  tribus 
annis  manere  Sanae  apud  Assan  Bassa  «  en  cuyo  poder  estiin  ha  tres  anos  », 
et  inde  asserit  eorum  captivitatem  a  quatuor  circiter  annis  durare  «  \'a  en 
quatro  afios  que  carecemos  del  [Santissimo  Sacramento]  ».  Ergo  si  mense 
iuho  1593  erant  iam  prope  quatuor  anni  a  captivitate,  ipsi  non  potuerunt 
Goa  proficisci  nisi  mense  febr.  1589  et  eodem  anno  in  captivitatera  inci- 
disse.  Hinc  est  quod  Soramervogel  {Biblioth.  de  la  Comp.  de  /esus,  tomo  6, 
pag.  82,  ad  nomen  Paez  Pierre)  asserit  eum  solvisse  Goa  Aethiopiam  ver- 
sus  die  2  febr.  1589,  cum  in  Indias  profectus  fuisset  mense  apriii  1588. 
Addo  haec  eadem  duo  data  inveniri  apud  Patrignani,  Menol,,  tomo  2°  p.i- 
gina  139,  ad  diem  20  maii.  Ambo  certe   haec  data  nonnisi  ex  catalogis  a 


INTRODUCTIO  XIII 

parabantur,  linguae  persicae  addiscendae  operam  dedit.  Hoc 
mirum  videri  non  potest,  si  quis  consideret  quod  ad  fallendos 
Turcas,  qui  sacerdotes  omnes  aditu  Aethiopiae  prohibebant, 
pater  Paez  cum  suo  socio  sub  specie  mercatorum  Armeniorum 
fretum  maris  rubri  transmittere  iussi  fuerant.  <  Ahora  me 
ocupo  en  aprender  Persio,  entretanto  que  nos  hacen  los  ves- 
tidos  que  hemos  de  Uevar,  que  han  de  ser  como  de  Moros, 
porque  hemos  de  ir  en  naos  de  ellos  hasta  Moca,  y  despues 
passar  por  tierra  de  Turcos  » .  Ita  scribit  p.  Paez  e  Bazain 
i6  feb.   1589  (i). 

5.  At  vero  nonnisi  paucos  dies  in  coUegio  Bazainensi  com- 
morati  sunt.  Etenim,  ut  refert  Almeida  (2),  quidam  vir  nobilis 
Aloysius  de  Mendoncja,  qui  in  civitate  Diu  morabatur  et  mer- 
caturam  in  portubus  Aethiopiae  exercebat,  Gubernatori  lusi- 
tanico  per  litteras  promiserat  se  facili  negotio,  ut  putabat, 
patres  ex  portu  Diu  in  aliqua  ex  mercatorum  Baneanorum 
navibus  Massuam  usque  vehi  curaturum.  Patres  igitur,  non  sine 
magno  periculo  ex  quadam  oborta  maris  tempestate,  Diu  se 
transtulerunt,  ubi,  more  Armeniorum  mercatorum  amicti,  ne 
fraude  Mahumetanorum  remigum  Turcis  proderentur,  oppor- 
tunitatem  navim  aliquam  conscendendi  opperti  sunt  (3).  Cum 
V^ro  nullus  e  navarchis  eos  recipere  auderet,  Ormuz  se  con- 
tulerunt,  ut  inde  Cairum   versus  navigarent,  ac  dein   itinere 

nobis  citatis  desumere  debuerunt  corrigendo  errorem  Tellez,  qui  solus  ex 
historicis  Aethiopiae  ipsis  erat  notus. 

4^)  Pater  ipse  Paez  in  epistola  ad  Praepositum  Generalem  data  Goa 
17  decembris  1596  lASL,  Goana,  Malab,  Episl.  j 590-1  sgg,  n.  XI)  ait:  «  Este 
ano  passado  que  fue  el  sepiimo  de  nuestro  cautiverio  » .  Eius  ergo  captivitas 
debuit  incoepisse  sub  initio  anni  1590.  Quod  autem  verba  illa  «  aho  passado  » 
referri  debeant  non  ad  annum  anteccdentem  1595  sed  ad  annum  1596,  in 
cuius  ultimis  diebus  scribebat,  confirmatur  ex  Catalogo  Prov.  Goanae  anni 
eiusdem  eiusdemque  mensis  supracitato,  in  quo  legitur  Patrem  mansisse  ca- 
ptivum  6-7  annos.  Secus,  debuisset  dicere  «  7-8  »;  nam  a  decembri  1596  ad 
mensem  ianuarium  anni  1590  praecise  sex  in  septem  anni  numerantur. 

(1)  Epist.   1.*  cit.  ad  p.  Ituren,  in  Chronhist.  etc. 

(2)  Hist.  de  Ethiopia  a  altOy  lib.  V,  cap.   l,  fol.   177. 

(3)  Epist.  4.^  p.  Paez  ad  p.  Ituren,  10  dec.  1596  in  Chrotthist.  etc. 


XIV  INTRODUCTIO 

terrestri  Aethiopiam  peterent.  Sed  huic  quoque  consilio  nun- 
cium  remiserunt,  et  Mascatem  petierunt,  postquam  ambo  a 
febri,  qua  correpti  fuerant,  convaluissent ;  ex  quo  portu  quidam 
mahumedanae  navis  gubernator  se  una  cum  ipsis  Aethiopiam 
versus  vela  daturum  spoponderat. 

6.  Ut  Mascatem  appulerunt  p.  Paez  denuo  in  febrim  incidit, 
ex  qua  cum  nulla  spes  esset  ut  brevi  convalesceret,  et  na- 
varchus,  ne  ventorum  opportunitatem  perderet,  profectionem 
urgeret,  consilio  inito  cum  Gubernatore  arcis  et  primoribus 
Lusitanis,  pater  de  Monserrate  solus  navem  conscendere  statuit. 
Attamen  eo  ipso  tempore  gubernatori  nunciatum  est  octo  py- 
ratarum  naves  insidias  parare  ut  navem  illam  mercatoriam 
praedarentur.  Exinde  nova  ad  profectionem  mora.  Interea, 
non  sine  divino  numine,  pater  Paez  a  febri  convalescit;  et 
cum  mare,  ope  gubernatoris,  a  pyratis  fuisset  purgatum,  tan- 
dem  aliquando,  die  25  decembris  1589,  sub  noctem  navem 
conscenderunt. 

7.  Principio  prosperum  habuerunt  iter,  at  vero,  die  i  ia- 
nuarii  1590,  saevientibus  undis  gubernaculum  confractum  est, 
et  cum  nautae  non  possent  iter  prosequi  neque  itinere  terrestri 
Mascatem  denuo  repetere,  ad  insulas  Curia  Muria  appellatas 
appulerunt  (i).  Sed  cum  neque   in   his  insulis  lignum  ad  re- 

(i)  «  Gastamos  cinquenta  dias  en  el  mar  con  algunos  contrastes,  y  en 
Ilegando  hallamos  un  Veneciano  que  se  offrecio  a  nos  llevar.  Y  no  espe- 
rando  ya  mas  que  la  partida  de  las  embarcaciones,  en  que  aviamos  de  ir 
para  Bazora,  nos  vino  una  carta  del  capitan  de  una  fortaleza  que  llaman 
Mascate,  y  esta  entre  Dio  y  Orrauz,  en  que  nos  decia  que  tenia  un  piloto 
moro  que  nos  pondria  en  Ethiopia  dentro  de  un  mes.  Parecio  bien  esto  a 
los  que  tenian  alguna  noticia  del  estrecho  de  Meca,  por  donde  decia  que 
nos  avia  de  llevar:  y  assi  dexamos  estotro  camino. 

«  En  este  tiempo  adolecio  el  p.  Monserrate,  y  tuvo  mucho  trabajo,  por 
ser  aquella  isla  en  extremo  caliente,  y  como  el  estuvo  sano,  adoleci  yo. 
Mas,  por  ser  necessario  partir,  me  embarque  doliente  a  6  de  octubre  y  fui- 
mos  a  Mascate  cn  seis  u  ocho  dias.  Alli  me  apreto  la  dolencia  de  manera 
que  se  determinc')  entre  el  Padre  y  el  Capitan  de  la  fortaleza  y  otros  que 
yo  me  quedasse  alli  y  el  Padre  prosiguiesse  la  missi^m.  Llevaba  con  sigo 
un  Armenio  que  sabia  hablar  arabio  y  turco,  y  fuera  del  piloto  y  marine- 


INTRODUCTIO  XV 

parandum  gnbernaculum  invenissent,  coacti  sunt  alii  mauro- 
rum  navigio  se  committere.  Interea,  ut  verbis  ipsius  Patris 
utar,  «  contra  id  quod  statutum  fuerat,  prioris  navigii  nautae 
Dofar  in  oram  arabicam  appulerunt  et  de  proximo  nostro 
transitu  per  illum  maris  tractum  rumorem  sparserunt;  sicque 
factum  est  ut  navem  qua  vehebamur  duo  maurorum  navigia 
aggrederentur  et  captivam  Dof^r  abducerent.  Per  quinque  dies 
in  carcerem  detrusi  omni  fere  victu  defraudati  sumus,  donec 
ad  regem  illius  regionis  iussi  fuimus  proficisci.  Iter  nobis  fuit 
maritimum  quatuor  dies,  terrestre  autem  per  invia  et  aspera 
duodecim,  donec  defatigati  pedibusque  quam  maxime  fessi, 
Tarim,  quae  magna  est  urbs  Arabiae,  pervenimus  et  a  plebe, 
quae  numquam  in  christianos  offenderat,  iniuriis  omnimodis 
imo  et  sputis  impetiti  sumus(i)>. 

ros,  que  eran  moros,  otro  moro  que  le  avia  de  guiar  por  tierra.  Mas  el  dia 
que  habia  de  partir  vino  nueva  que  unos  corsarios  tenian  tomada  una  em- 
barcacion  quatro  leguas  de  alli  y  que  andaban  con  ocho  por  donde  el  ne- 
cessariamente  avia  de  passar;  y  por  esto  no  partio.  El  capitan  de  la  for- 
talcza  envio  otras  ocho  embarcaciones  y  tomaron  al  capitan  de  los  ladro- 
nes;  y  assi  quedo  seguro  el  mar.  En  esto  se  gastaron  muchos  dias  y  yo 
tuve  mejoria;  y  por  que  deseaba  mucho  ir,  les  persuadi  que  me  llevassen 
hasta  cierto  limite  donde  se  acababan  nuestras  tierras  y  que,  si  no  me  hal- 
lasse  mejor,  desembarcaria  alli.  Con  esto  partimos  dia  del  Nacimiento  a  la 
noche,  y  quiso  N.  S.  que  luego  me  dexo  la  calentura,  con  dormir  al  se- 
reno  v  hacer  mucho  frio.  Dia  de  la  circuncision  a  la  noche  nos  dio  una 
tormenta  grande,  y  quando  amanecia  quebronos  el  timon  6  leme... .  De  alli 
a  dos  o  tres  dias  nos  volvio  a  quebrar,  y  con  estar  cerca  de  tierra  y  atarle 
con  cuerdas,  la  tomamos  con  mucha  dificultad.  Hicieron  consulta  los  ma- 
rineros  y  piloto  y  resolvieronse  con  que  ni  podian  passar  adelante  ni  tor- 
nar  atras.  Tratamos  de  tomar  a  Mascate  por  tierra,  mas  no  pudo  ser,  por- 
que  avia  en  medio  grandes  desiertos  y  muchos  ladrones.  De  manera  que 
dixeron  no  avia  otro  remedio  si  no  aventuramos  a  passar  a  unas  islas  que 
Ilaman  Curia  Muriay  que  estan  a  ocho  leguas  de  alli;  donde  les  parecia 
que  hallariamos  con  que  concertar  la  embarcacion.  Esperaron  dia  quieto  y 
con  todo  esso  passamos  con  mucho  trabajo  ».  (Epist.  4.^  cit.  ad  p.  Ituren, 
10  dec.  1596,  in  Chronhist,  etc). 

(i)  « Bebiamos  agua  de  charcos  y  a  medio  dia,  que  se  detenian 

a  dar  de  comer  a  los  camellos,  cogian  mucha  langosta  y  de  aquellos  gril- 
los  mayores  y  comian  los  assados;  mas  nosotros,  aunque  era  mucha  la 
hambre,   no   podiamos  gustar   manjar  tan   asqueroso;   y  assi  nos  daban  a 


*I*^n^ 


XVI  INTRODUCTIO 

8.  <c  Altero  die  summo  mane,  ad  maiora  avertenda  pe- 
ricula,  itineri  denuo  nos  commisimus  et  per  ipsos  quatuordecim 
dies  sub  ardentissimo  solis  aestu,  solo  indusio  et  bracis  ex 
gossypio  induti  pedibus  incedentes,  tenuimus  tandem  regiam 
civitatem  Eiran,  cuius  sultanus  Amar  nos  non  adeo  inurbane 
recepit  et  vestes,  nobis  per  vim  ablatas,  restitui  iussit.  Ad  eius 
praesentiam  altero  die  admissos,  comiter  percunctatus  est 
cuius  generis  homines  essemus,  unde  et  quo  fine  Aethiopiam 
peteremus,  et  rogantibus  nobis  breviaria  etiam  aliosque  libros 
reddi,  suisque  servis  ut  nobis  necessaria  ad  victum  praeberent 
mandavit.  Hi  tamen  per  solidos  quatuor  menses,  quibus  ibi 
morati  sumus,  nonnisi  panem,  et  hunc  atrum,  cum  aqua  prae- 
buerunt. 

9.  €  Dum  spes  nobis  affulgebat  ut  istius  regis  ope  a  capti- 
vitate  liberaremur,  turcarum  quidam  Bass^,  cuius  iste  Sultanus 
vectigal  erat,  nos  ad  se  quamprimum  remittere  iussit.  In  viam 
igitur  denuo  nos  commisimus  et  post  decem  et  octo  dierum 
asperrimum  iter,  Sanam  Arabiae  urbem  attigimus.  Primo  qui- 
dem  Turcarum  Bassi  nos  tanquam  exploratores  reputans,  ca- 
pite  plecti  constituerat ;  at  postmodum,  cum  ab  apostata  quodam 
rescivisset  nos  sacerdotes  christianos  esse,  in  ipsius  arcis  car- 
cerem  detrudi  imperavit ;  ubi  plures  Lusitani  iamdiu  captivi 
detinebantur,  atque  laboribus  et  aerumnis  defessi  iam  in  eo 
erant  ut  fidei  nuncium  remitterent.  Nos,  Deo  favente,  paul- 
latim    animos   adiecimus  et    omni    quo    poteramus    spirituali 


cada  uno  su  torta  cocida  en  la  ceniza  de  un  poco  de  harina  qua  trahia- 
mos  en  la  embarcacion,  mas  era  tan  pequeiia  que  siempre  quedabamos  con 
buena  voluntad  de  comer.  Al  cabo  de  los  diez  dias  Uegamos  a  una  ciudad 
grande  que  llaman  Tarim,  y  salio  mucha  gente  por  ver  christianos  que 
nunca  avian  visto.  Comenzaron  luego  a  hacernos  gestos  mofando  y  riendo 
y  a  llamamos  Cafares,  que  es  lo  mismo  que  Cafres  y  hombres  sin  ley,  y 
lleg()  a  tanto  que  a  porfia  nos  escupian  lanzando  algunas  salivas  en  el  ro- 
sto ;  lo  que  no  solo  no  nos  era  molesto,  mas  nos  causaba  mucha  alegria : 
solo  nos  pesava  ver  tanta  muchedumbre  de  gente  perdida  ».  (Epist.  cit.  4** 
ad  p.  Ituren,  ex  Chronhist,  etc). 


INTRODUCTIO  XVII 

subsidio  refectos,  in   christianae    religionis  professione   robo- 
ravimus  (i). 

10.  «  Pater  de  Monserrate,  utpote  infirmae  valetudinis,  domi 
manebat,  ego  autem  robustior  viribus  catena  onustus  agrorum 

(i)  Opere  pretium   est  referre   ipsius   Paez  verba  in   alia   epistola   ad 

eumdem  p.  Ituren  ex  urbe  Sana  data  (epist.  2*  ad  p.  Ituren,  17  iul.  1593,  ex 

Chronhist.  etc.)  quibus  modum  quo  ad  exercendos  christianae  religionis  actus 

suos  concaptivos  adduxerat   belle  describit.  «  ....  tenemos  oratorio   con  un 

altar  muy  bicn  concertado,  assi  de  omamentos  como  de  imagenes,  donde 

los  christianos  vienen  a  se  encomendar  a  Dios,  por  la  manana  antes  de  ir 

a  trabajar,  y  a  la   tarde  quando  vienen.  Y  -para  que   con  mayor  consuelo 

y  animo  puedan   passar  los  travajos  del   cautiverio,  celebramos  las  fiestas 

lo  mejor  que  podemos,  procurando  en  todas  ellas  remedar  lo  que  se  hace 

en  tierra  de  christianos.  Porque,  como  anocheze,  que  los  presos  se  recogen, 

nos  juntamos  todos  en  el  oratorio,  teniendole  muy  bien  concertado  con  ra- 

mos  y  flores  que  trahen  de  las  huertas,  y  decimos  Visperas  y  Completas, 

ayudandonos  algunos  que  saben  cantar ;  y  antes  de  amanezer  decimos  missa 

seca  con  mucha  solemnidad  para  el  estado  en  que  estamos ;  porque  el  que 

la  ha  de  decir  se  reviste  en  uno  de  los  aposentos  que  tiene  el  oratorio,  y 

a  la  puerta  estan  esperando  dos  Portugueses,  que  son  mayordomos  con  unos 

cirios  grandes;  salen  delante  otros  dos  con  sobre-pellices :  el  uno  leva  un 

incensario  que  hicimos  de  cobre,  y  el  otro  el  missal;  y,  dicha  la  confesion, 

entretanto  que  se  inciensa  el  altar,  tanen  con  una  viguela  que  les  dejaron 

quando  los  cautivaron.  Acabado  el  ofertorio,  bendecimos   pan,  y  en  higar 

del  Santissimo  Sacramento,  levantamos  un  Crucifijo  de  cobre  pequeiio,  que 

despues  de  cautivos  tornamos  a  cobrar  por  medio  de  una  muger  renegada. 

Entretanto  taiien  y  cantan ;  y  en  lo  ultimo  de  la  missa,  dicha  la  confesion 

Uegan  uno  a  uno  a  le  adorar  y  toman  juntamente   pan  bendito  de  mano 

de  uno  de  los  que  sirven.  Y  para  que  hagan  esto  con  mayor  devocion,  pro- 

curamos  que  todos  vengan  confesados,  lo  que  muchos  de  ellos  hacen  mas 

a  menudo. 

«  Demas  desto,  viernes,  sabados  y  domingos  a    la  noche  les  decimos 

letanias  y  Salve,  y  muchas  veces  tienen  sermon,  particularmente  el  Adviento 

y  Quaresma;  y  en  la  Semana  Santa  hacemos  sepulcro  de  pano  negro  y  can- 

tamos  todos  los  oficios.  Hacemos  procession  dentro  de  la  sala  donde  esta 

el  oratorio  (que  es  grande),  domingo  de  Ramos,  llevando  todos  palmas,  y 

dia  de  Ressurreccion  y  dia  de  Corpus-Christi  la  hizimos  muy  solemne,  Ue- 

vando  el  Crucifixo  en  una  custodia  de  palo  cubierta  de  damasco  carmesi  y 

oropel,  tanendo  y  danzando   delante  de   ella.  Gracias  a  N.  S.  que   siendo 

cautivos  de  hombres  tan  nuestros  enemigos  y  contrarios  a  su  santa  fe,  con 

todo  esso  no  les  permite  que  nos  priven  de  un  consuelo  tan  grande  como 

este,  aunque  saben  mucho  de  lo  que  hacemos.  Antes  dicen  a  los   mismos 

christianos  que,  quando  nosotros   no   estabamos   aqui,  eran  como  bestias, 

porque  no  les  veian  solemnizar  las  fiestas  como  ahora  ». 


XVIII  INTRODUCTIO 

molitioni  damnatus  fui.  At  exactis  sex  mensibus,  cum  me  ab 
illo  labore  liberassent,  ediscendae  linguae  arabicae  et  hebraicae 
operam  dedi ;  quarum  linguarum,  arabicae  praesertim,  peritiam 
mihi  postmodum  magno  subsidio  futuram  existimo.  Hisce  oc- 
cupationibus  distenti,  ipsos  tres  annos  Sanae  posuimus,  cum 
ex  divino  consilio  quaedam  spes  affulsit  brevi  nos  servitute 
liberandos;  nam  uxor  ipsius  Bassci,  quae  olim  christiana  fuerat, 
nostris  calamitatibus  commota,  apud  maritum  egit  ut  nos 
Hierosolymam  mitteret,  et  iam  iste  consensum  praebuerat,  exe- 
cutioni  daturus  quando  ipse  ratione  sui  muneris  illuc  se  con- 
ferret.  Cum  ecce  nebulo  quidam  natione  Baneanus,  qui  fidem 
execraverat,  Moca  per  litteras  Bassa  insinuavit  maximam  illum 
pecuniae  vim  ex  nostra  redemptione  extorquere  posse.  Hinc 
mutato  animo,  viginti  millia  ducatorum  a  nobis  exposcit,  atque 
ut  id  facilius,  uti  putabat,  consequeretur,  strictiori  custodiae 
nos  commisit,  catena  oneravit  solumque  panem  nigrum  ad 
victum  praebuit(i). 

(i)  Cum  ea  spes  evanuerit,  p.  de  Monserrate  ad  Praepositum  Gene- 
ralem  litteras  dedit  Sana  die  22  iul.  1593,  in  quibus  novum  et,  ut  ipse  pu- 
tabat,  efficax  medium  ad  libertatem  obtinendam  proponebat  «  ....  aunque 
el  padre  Provincial  de  la  India  passado  y  presente  busco  y  busca  los  me- 
dios  possibles  para  nuestra  libertad,  no  aprovecha,  porque  las  personas  im- 
mediatas,  por  cuyas  manos  el  negocio  ha  de  passar,  o  son  moros  o  son 
gentiles.  Los  moros,  por  no  desplazer  a  su  Mahoma,  no  lo  queren  hazer, 
los  gentios,  aunque  muestran  dolerse  de  nosotros,  no  ozan,  e  desso  nos  tie- 
nen  dado  el  desengaiio,  y  por  esta  causa  se  va  nuestro  destierro  dilatando 
ya  quatro  anos,  y  si  Dios  no  lo  abreviare,  se  dilatara  toda  la  vida,  que  sera 
una  grande  consolacion  [sic\  porque  carescemos  de  la  sagrada  communion 
del  santissimo  sacramento  y  de  los  otros  subsidios  de  jubileos  e  indulgencias 
de  que  gozan  los  cativos  que  estan  mas  cercanos  de  tierras  de  christianos, 
o  en  tierras  donde  ha  comercio  con  eilos.  Por  lo  qual  pido  a  V.  P.  que 
quiera  meter  mano  en  ello  o  por  medio  de  algimo  de  los  consules  que  re- 
siden  en  Constantinopla,  o  por  medio  de  nuestros  padres,  si  alla  estan  al- 
gunos  como  pocos  anos  ha  estuvieron,  y  qualquiera  dellos,  a  quien  vuestra 
Paternidad  lo  encomendare,  ha  de  hazer  una  suplica  que  en  summa  con- 
tenga  lo  que  se  sigue  »  (ASI.  Goana,  Hist,  aethiop,  1549-1629^  n.  XXI;  cfr. 
Elenco  11,  75,  in  Vol.  I,  Notizia  e  Sa}(gi),  Summa  istius  supplicationis  ad 
magnum  Turcarum  Sultanum  est  ut  ipsis  permittat  vel  suum  iter  prosequi 
Aethiopiam   ver«us,  vel  saltera  Constantinopolim  venire,  licet  servituti  ad- 


INTRODUCTIO  XIX 

11.  «  Elapso  iam  altero  anno,  cum  nihil  proficeret,  nos  suo 
Domusmagistro  duriori  etiam  carcere  detinendos  tradit.  Hic, 
homo  crudelis,  ut  a  nobis  quinque  milh'um  ducatorum  summam 
extorqueret,  nos  subterraneo  eoque  angusto  et  foetido  ergastulo 
inclusit  et  coUo  torquem  ferreum  iniecit,  e  quo  catena  adeo 
gravis  pendebat  ut  vix  caput  levare  possemus.  Hoc  tenebri- 
coso  loco  quindecim  dies  transegimus,  quibus  exactis,  nos  iti- 
nere  terrestri  Mocam  miserunt,  ea  spe  ut  a  navibus  mercatoriis, 
quae  ex  eo  portu  in  Indias  commeabant,  pretium  nostrae  li- 
berationis  essent  recepturi. 

12.  «Mocam  igitur  pervenimus  sub  finem  anni  proxime  eJapsi 
[scil.  1595];  at  solventibus  inde  navibus,  cum  ne  ulla  quidem 
mentio  incidisset  de  nobis  redimendis,  Turcae  in  iram  con- 
versi,  nos  catenis  revinctos  remigio  addixerunt.  Incredibile 
dictu  est  quot  aerumnas  per  spatium  fere  trium  mensium  per- 
tulimus;  fame,  siti,  frigore,  calore  laboribusque  supra  vires 
pater  de  Monserrate  confractus,  in  gravem  incidit  morbum  et 
brevi  vita  decessisset,  nisi  navis  praefectus,  qui  pro  nobis  vades 
stabat,  veritus  ne  integrum  pretium  frustratae  redemptionis  ipse 
gubernatori  refundere  cogeretur,  remigium  custodia  commu- 
tasset.  Mansimus  parva  inclusi  casa  per  plures  menses,  aquam 
ipsam  pretio  nobis  comparantes,  donec  mercatoriae  naves  Goa 
advectae  mille  ducatorum  summam  pro  nostra  redemptione 
nomine  praepositi  provinciae  Goanae  Turcis  persolverunt  (i). 

dictos.  In  margine  huius  epistolae  manu  secretarii  Societatis  legitur  scrip- 
tum:  «  Se  tiene  escrito  a  la  Venetia  ».  Sed  exitus  negotii  expectationi  pa- 
trum  non  respondit. 

(i)  En  ipsissima  verba  patris  Paez:  «  En  Moka  nos  apretaron  mucho 
para  que  diessemos  dinero ;  y  como  partieron  las  naos,  que  se  desengana- 
ron  de  que  no  les  aviamos  de  dar  lo  que  pedian,  nos  metieron  en  una 
galera,  y  quitandonos  los  hierros  que  llevabamos,  nos  echaron  cadenas  y  pu- 
sieron  a  cada  uno  en  su  banco  en  medio  de  dos  galeotes.  Entramos  pri- 
mero  dia  de  septiembre,  y  al  tercero  dia  cayo  un  rayo  que  hizo  pedazos 
buena  parte  del  mastil  grande,  mas  sin  dano  de  la  gente.  Esto  tuvieron  por 
mal  aguero,  y  por  esso  dexo  la  muger  del  Baxa  de  ir  a  Meka  en  ella.  Esta- 
ban  en  esta  galera  todos  los  galeotes  de    los  que  alli  tienen;  a  lo  que  se 


XX  INTRODUCTIO 

Sic  tandem  post  septem  fere  integros  annos  durissimae  ser- 
vitutis  libertatem  adepti  navem  conscendimus  et  magnis  pro- 
cellarum  periculis  superatis  Goam  appulimus  medio  hoc  ipso 
mense  decembri  [scil.    1596]  ». 

13.  Hucusque  ipse  p.  Paez  in  sua  epistola  quam  compendio 
retuli.  Eodem  anno  1597,  ut  ex  cathalogo  1596-1597  eruitur, 

anadia  que  nunca  la  limpian  y  assi  era  mucha  la  suciedad ;  y  toda  la  no- 
che  hasta  que  queria  amanecer  estabamos  sentados,  lanzando  al  mar  las 
chinches,  que  por  todas  partes  nos  subian;  y  si,  cansados  y  vencidos  del 
suefio,  nos  echabamos,  luego  se  nos  cubria  de  ellas  el  rostro,  y  assi  nos  era 
forzoso  tornar  a  levantar,  hasta  que  cerca  de  la  maiiana  se  recogian.  En- 
tre  dia  eranos  necessario  hacer  alarde  y  despedir  mucha  gente  que  no  po- 
diamos  sustentar,  assi  de  la  que  nos  pegaban  nuestros  companeros,  como 
de  la  que  nosotros  criabamos,  que  no  era  poca,  por  no  tener  mas  que  una 
sotana  de  augeo  y  una  camisa.  La  comida  era  como  un  quartillo  de  una 
simiente  como  panizo  que  llaman  jnillo^  sin  otra  cosa  alguna.  Solo  tenia- 
mos  de  quando  en  quando  algunas  cabezas  de  ajos,  que  nos  embiaba  un 
Griego  christiano  que  estaba  en  Moka.  Desta  manera  estuvimos  dos  meses 
y  medio  al  sol,  al  agua  y  al  frio ;  y  por  adolecer  el  padre  gravemente,  en- 
vie  a  decir  al  capitan  de  la  galera  que  le  dexasse  ir  para  tierra  y  que  yo 
quedaria  alli,  porque,  si  el  moria,  yo  no  tenia  rescate  que  dar;  y  que  ha- 
bia  de  escribir  al  mayordomo  del  Baxa  que  por  no  le  dejar  curar  muriera, 
y  quedaria  el  rescate  sobre  el.  Mando  que  a  mi  tambien  me  llevassen  y 
metieronnos  en  una  casa  donde  no  nos  daban  cosa  ninguna,  y  era  neces- 
sario  comprar  hasta  el  agua  que  trahen  de  lejos;  y  assi  tomamos  dinero 
prestado  de  un  gentil  que  trataba  de  nuestro  rescate.  Y  con  esto  se  fue 
hallando  bien  el  padre;  y  estuvimos  alli  hasta  que  ias  naos,  que  vinieron 
de  la  India,  tornaban  a  partir,  que  este  gentil  dio  por  nosotros  mil  duca- 
dos  que  el  padre  Provincial  y  algunos  nuestros  devotos  le  tienen  escrito 
que  diesse :  y  assi  nos  embarcamos  y,  despues  de  aver  passado  muchos  tra- 
vajos  en  el  mar,  Uegamos  aqui  [Goam]  con  salud,  a  Dios  gracias,  quatro  dias 
antes  que  acaben  de  partir  las  naos  para  Portugal  »  (Epist.  4.*  cit.  ad  p.  Itu- 
ren  ex  Chronhist.  etc.  Goa,  10  dec.  1596.  Ex  alia  epistola  patris  Paez  ad 
R.  P.  Generalem,  Goa,  17  dec.  eiusdem  anni  (ASI.  Goana,  Malab.  Epist. 
1590-15991  n.  XI,  Cfr.  Elenco  II,  81,  in  Vol.  I,  Notizia  e  Saggi  etc),  eruitur 
patrem  Claudium  Acquaviva  iussisse  ut  omnem  operam  Goani  patres  darent 
ad  illos  redimendos,  eosque  pfimo  Hierusalem  deinde  in  Italiam  mitteret. 
En  verba :  «...  fue  Dios  servido  que  ultimamente  nos  rescatasen,  en  lo  que 
trabajo  mucho  el  p.  Provincial,  y  ansi  vemos  aqui  [en  Goa]  avra  veinte  dias, 
donde  supe  como  V.  P,  ienia  mandado  se  hiciese  todo  lo  posible  por  nuestra  li- 
bertad  v  que  fuesemos  por  via  de  Hierusalem.  No  merezco  yo  tanto  a  N.  S. 
como  es  ver  a  V.  P. ;  mas  esta  charidad  me  obliga,  ordenandolo  ansi  V.  P., 
a  me  aventurar  de  nuevo  con  mucho  gusto  a  otros  mayores  trabajos...  ». 


INTRODUCTIO  XXI 

iterum  theologiae  recolendae  fuerat  destinatus.  Attamen  vix 
uno  vel  altero  mense  ad  hoc  studium  incubuit;  nam  gravis- 
simo  morbo  correptus,  totos  octo  menses  decubuit  et  bis  etiam 
morti  proximus  fuit,  ut  ipse  testatur(i).  Vix  vero  citra  om- 
nium  expectationem  convaluit,  in  Salsetanam  insulam  missus 
fuit,  ut  ibidem  christianorum,  qui  in  quatuor  pagis  degebant, 
curam  susciperet.  Interim  vero  cum  in  Aethiopia  obiisset  pater 
Franciscus  Lopez,  qui  quadraginta  annos  in  illo  agro  exco- 
lendo  impiger  insudaverat  quique  ultimus  e  sociis  patriarchae 
Oviedo  superstes  remanserat  (2),  praepositus  provinciae  Goa- 
nae  iterum  illi  expeditioni  tentandae  patrem  Paez  destinavit ; 
quod  negocium  quidem  ille  prompto  et  alacri  animo  susce- 
pit  (3).  Sed  per  plures  annos  hoc  propositum  propter  obortas 
difficultates  executioni  mandari  non  potuit,  ita  ut  Vice-Rex 
Franciscus  da  Gama  et  archiepiscopus  Goanus  frater  Alexius 
Menezes,  ut  aliquo  modo  catholicis  lusitanis  omni  subsidio  in 
Aethiopia  destitutis  subvenirent,  sacerdotem  e  clero  saeculari 
Indum  eo  mittendum  curaverint  medio  anno   1598(4). 


(i)  Vide  epistolam  5.*™  ad.  p.  Ituren  sub  initio,  Assalona,  20  nov.  1597, 
in  Chronhisi,  etc. 

(2)  «  No  mesmo  mes  [de  mayo]  de  1597  levou  nosso  Senhor  pera  si 
era  Fremona  ao  padre  Francisco  Lopez,  o  derradeiro  dos  companheiros  do 
sancto  patriarcha  dom  Andre  de  Oviedo.  Chegarao  estas  novas  a  Goa  e 
forao  de  todos  muito  sintidas,  por  verem  que  ficavao  os  catholicos  e  Por- 
tugueses  de  Ethiopia  totalmente  sem  pastor  como  rebanho  de  ovelhas  em 
bosque  e  mato  de  lobos  e  tigres  ».  Almeida,  Hist,  de  Ethiopia  a  alta^  lib.  V, 
cap.  9,  fol.  192. 

(3)  «  ....  instan  los  christianos  de  Ethiopia  particularmente  ahora  que 
murio  un  padre  que  les  avia  quedado;  y  assi  los  padres  desean  que  tome 
a  acometer  esta  empresa ;  lo  que  yo  hare  de  muy  buena  voluntad,  por  ser 
tan  grande  el  desamparo  de  aquella  christiandad,  aunque  se  que  arriesgo 
tanto  en  esto  la  vida,  que  lo  mas  probable  es  morir  en  la  demanda,  como 
todos  los  que  de  quince  anos  a  esta  parte  quisieron  entrar.  V.  R.  por 
charidad  me  encomiende  a  N.  S.  para  que  ordene  de  mi  lo  que  mas 
fuere  servido  ».  Epist.  5*  cit.  ad  p.  Ituren,  de  Assalona  20  nov.  1597,  in 
Chronhist,  etc. 

(4)  Fuit  hic  sacerdos  Melchior  da  Sylva  de  quo  Almeida  Hist,  etc^ 
lib.  V,  cap.  5,  cit.  fol.  192-192,^.  «  Pediao  os  catholicos  de  Fremona...  que. 


XXII  INTRODUCTIO 

14.  Pater  Paez  sub  finem  eiusdem  anni  e  Salsete  missus  est 
Chaul  ut  praedicationi  verbi  Dei  insisteret,  ibique  adeo  oculis 
laborare  coepit  ut  ne  epistolas  quidem  sua  manu  scribere  posset. 
« No  doy,  ita  scribit  ex  Chaul  sub  die  2  dec.  1599,  mas 
nuevas  a  V.  R.  assi  porque  las  tendra  mas  cumplidas  en  la 
carta  general  que  de  ac4  v&,  como  por  estar  ^naltratado  dc 
un  ojo  y  no  las  poder  escribir  por  tni  mano(i))^.  Debuisset 
quidem,  petente  p.  Hieronymo  Xaverio,  Cambaiam  ante  se- 
ptem  menses  se  conferre,  ut  ibidem  novi  templi  aedificandi 
provinciam  susciperet;  sed  Prorex  ne  se  illi  itineri  commit- 
teret,  qua  de  causa  ignotum  est,  impedivit  (2).  Anno  insequenti 
1^00  missus  est  in  collegium  Bazain  munere  ministri  (3). 
Cum  vero  iussu  Philippi  III,  Hispaniarum  et  Lusitaniae  regis, 
disiectis  tricis  quas  malevoli  moliebantur,  prima  novi  collegii 
Soc.  lesu  in  urbe  Diu  fundamenta  iacta  fuissent,  eo  fine  ut 
aethiopicae  Missioni  succurri  posset,  illuc  p.  Gaspar  Soarez 
ut  superior  una  cum  p.  Petro  Paez  fuerunt  destinati  (4). 

pois  se  via  nao  ser  possivel  passar  a  Ethiopia  padre  da  Companhia,  pola 
muita  vigia  que  os  Turcos  tinhao  nos  portos  do  Mar  Roxo,  que  Ihes  man- 
dassem  algum  sacerdote  natural  da  India,  porque  o  tal  nao  sendo  differente 
nas  cores  e  lingua  dos  Baneanes  e  outros  Indios,  que  custumavao  vir  nas 
naos  do  estreito,  parece  que  nao  correria  perigo  e  passaria  facilmente.... 
Buscouse  e  achouse  logo  hum  sacerdote  bramene  criado  desde  menino  no 
nosso  seminario  de  Sancta  Fee,  bem  entendido  y  de  bom  exemplo,  o  qual 
por  sirvi^o  de  Deus  e  bem  das  almas  se  offereceo  a  todos  os  trabalhos  e 
riscos  desta  jornada....  Seis  anos  esteve...  em  Ethiopia,  sinco  antes  de  che- 
gar  o  p.  P.  Paez;  hum  com  elle  ».  >. . 

(i)  Epist.  6."  cit.  ad  p.  Ituren  in  Chronhist,  etc. 

(2)  «  Hace  ahora  siete  meses  que  iba  a  hacer  una  iglesia  en  el  reyno 
de  Cambaya  con  provision  del  Mogor,  cosa  que  ha  mucho  que  se  desea, 
y  que  cost()  bien  de  travajo  al  p.  Xavier  para  lo  alcanzar  del  Rey.  Mas 
despues  de  tener  enviado  los  omamentos  para  decir  missa  y  yo  estar  para 
partir,  impidio  la  ida  el  Virrey.  Parece  que  sera  con  justos  respectos.  No 
se  si  mudara  de  parecer.  Occupome  ahora  en  predicar  donde  ay  muy  po- 
cos  libros...  ».  Epist.  6.*  cit.  ad  p.  Ituren,  Chaul,  2  dec.  1599,  ^^  Chronhist.  etc. 

(3)  Catal.  Prov.  Goanae,  1597. 

(4)  Circa  collegii  Diensis  fundationem,  quo  proposito  ea  fuerit  statuta, 
quas  subierit  difficultates  vide  Almeida  Historia  etc,  lib.  V,  cap.  10,  fol.  194 
et  seqq.,  ubi  fuse  rem  pertractat.  Vide  etiam  ipsius  Paez,  epist.  7^  ad  p.  Itu- 


INTRODUCTIO  XXIII 

15.  Dium  igitur  initio  anni  1 601  se  transtulit  p.  Paez  eo  fine 
ut  opportunitatem  navim  aliquam  Aethiopiam  versus  solventem 
conscendendi  opperiretur.  Sed  illo  anno  nemo  ex  navarchis 
ausus  est  eum  in  Aethiopiam  transvehere  ob  metum  Turca- 
rum  qui  omnes  prope  Aethiopiae  portus  occupabant.  Scribit 
autem  ipse  Paez  se  velle  omnem  lapidem  movere  ut  tandem 
aliquando,  licet  maximo  cum  suo  periculo,  in  Aethiopiam 
perveniat,  velle  se  consilium  quoddam  sibi  a  Lusitanis  in 
Aethiopia  commorantibus  propositum  executioni  mandare; 
sperare  se  brevi  dominationem  Turcarum  in  ora  arabica  labe- 
factatum  iri  ope  quorundam  regulorum  Arabiae,  qui  iam  duos 
ex    praecipuis   Bass^   praelio  subactos  interfecerant  (i).    Sed 

ren  in  Chronhist,  etc,  Diu,  4  nov.  1601,  quam  hic  infra  referimus.  Quantam 
in  eo  collegio  spem  pro  augendis  tutandisque  rebus  aethiopicis  omnes  po- 
nerent  ipse  Paez  (epist.  9*  ad  p.  Ituren,  20  iul.  1608  de  Aethiopia  in  Chio^ 
nhisi.)  ostendit  his  verbis:  «  Encomiendelo  [al  Emperador  de  Ethiopia]  V.  R. 
a  N.  S.  para  que  tenga  efFecto  [el  buen  deseo]  y  en  tal  caso  se  acahard  de 
vet  quan  provechosa  es  la  casa  de  Dio,  que  sin  ella  mal  se  pudiera  prover  d 
Eihiopia  » .  At  vero  collcgium  Diense  expectationi  Missionis  aethiopicae,  pro 
qua  tantummodo  provehenda  fuerat  fundatum,  post  paucos  annos  omnino 
non  respondit.  Etenim  Rectores  illius,  qui  eodem  tempore  munere  Procu- 
ratoris  Missionis  aethiopicae  fungebantur,  viginti  et  amplius  annos,  scilicet 
ab  an.  1610  ad  1630,  non  modo  maximam  pecuniae  partem  (600  pardaos  an- 
nuos)  ad  patres  sustendandos,  sed  illam  etiam,  quae  titulo  eleemosynae  in- 
ter  pauperes  Lusitanos  Aethiopiae  eroganda  a  rege  Lusitaniae  fuerat  desti- 
nata,  in  alios  usus  et  praesertim  in  negotiis  collegii  Diensis  provehendis  sua 
auctoritate  distraxerant.  Hinc  patres  Aethiopiae  qui,  sub  finem  anni  1630, 
ad  viginti  et  unum  numerabantur,  praeter  Patriarcham  et  Episcopum,  cum 
per  litteras  nihil  proficerent  et  defectu  pecuniae  ipsis  assignatae  gravibus 
in  angustiis  versarentur,  voto  unanimi  unum  ex  suis  Goam  miserunt  ad  hoc 
gravissimum  negotium  coram  perficiendum.  Haec  eruuntur  ex  Documento, 
cui  titulus:  Ijembranga  das  cousas  de  Ethiopia  pera  0  padre  Provincial  ver 
(ASL  Goana,  Hist,  Aeth.  1630-1639,  n.  III).  Ex  hoc  authentico  docuraento, 
anno  forte  1631  conscripto,  hice  clarius  patet  quam  temere  post  aliquod 
tempus  Romae  de  immensis  divitiis  lesuitarum  Aethiopiae  fuerit  blateratum. 
Cfr.  Vol.  I,  Notizia  e  Saggi^  pag.  96,  adnot.  2;  pag.  98,  adnot.  i;  pag.  105 
adnot.  2 ;  pag.  106,  adnot.  2. 

(l)  «...  de  la  [Bazain]  parti  en  enero  para  esta  ciudad  que  se  Ilama  Dio; 
y  con  no  tener  que  passar  mas  que  un  golfo  de  dos  dias,  gaste  trece  con 
tormentas  y  vientos  contrarios.  Ni  aqui  faltaron  tormentas  de  contradiccio- 
nes,  levantadas  por  personas  que  debian  antes  favorecer.  Llego  a  tanto  que 


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XXIV  INTRODUCTIO 

eum  spes  fefellit;  nam  Lusitanus  ille,  qui  ex  Aethiopia  Dium 
venire  debuisset,  ut  inde  cum  patre  Aethiopiam  versus  sol- 
veret,  metu  Turcarum  se  loco  movere  non  est  ausus.  Tunc 
pater  cum  quodam  navarcho  turcico,  qui  mercaturam  exercebat 

el  Virrey  [Don  Franc.  da  Gama],  que  en  aquei  tiempo  gobemaba,  nos  mando 
notificar  por  un  oydor  que  saliessemos  de  esta  ciudad  dentro  de  tres  dias 
con  otras  cosas  que  seria  largo  contar;  por  lo  que  no  digo  mas;  de  que 
no  parece  que  le  quedo  nada  por  hacer  al  demonio  para  estorbar  el  ser- 
vicio  de  Dios,  que  rezela  que  la  Compania  ha  de  hacer  en  esta  ciudad,  en 
que  de  los  muros  adentro  ay  mas  de  quarenta  mil  gentiles.  Mas  con  todo 
la  tempestad  cesso  con  la  llegada  deste  Virrey  [Ayres  de  Saldanha]  que  ama 
a  la  Compania  como  si  fuera  de  ella,  por  el  zelo  grande  que  tiene  de  la 
christiandad.  Ni  de  lo  commun  deste  pueblo  tuvimos  nunca  agravio,  antes 
muchos  favores,  y  cada  dia  son  mas  nuestros  devotos,  por  el  provecho  que 
sienten  con  los  ministerios  de  la  Compaiiia.  Tienennos  ya  dado  en  dinero 
cerca  de  tres  mil  ducados,  con  que  compramos  unas  casas  pequenas  con 
una  huerta  grande  en  que  hacemos  una  iglesia  muy  hermosa,  porque  hay 
aqui  mucha  piedra  y  muy  buena. 

«  La  principal  causa  porque  hicimos  aqui  residencia  fue  porque  es  ne- 
cessario  para  conservar  la  mission  de  Ethiopia,  puesto  que  de  solo  este 
puerto  van  naves  para  ella,  y  por  no  aver  quien  tuviesse  el  cuydado  que 
es  necessario,  se  difficultaba  cada  dia  mas  el  camino.  Desee  mucho  passar 
luego  como  aqui  llegue  y  trahia  orden  del  p.  Nicolas  Pimienta,  visitador 
desta  provincia,  para  ir  solo,  no  pudiendo  llevar  companero.  Mas  estaban 
las  naves  tan  de  partida  que  no  se  atrevieron  los  capitanes  de  las  naves 
a  me  llevar,  porque  son  gentiles  y  tienen  grandissimo  miedo  de  los  Tur- 
cos  que  senorean  todos  aquellos  puertos.  Mas  ahora  me  vinieron  cartas  de 
algunos  Portugueses,  que  alla  estan  desde  el  tiempo  de  nuestro  padre  Pa- 
triarcha,  que  avra  treinta  y  cinco  aiios,  en  que  representan  un  medio  para 
poder  entrar,  que,  aunque  es  bien  arriesgado,  lo  estoy  determinado  de  to- 
mar,  si  la  santa  obediencia  me  aprobare  esta  determinacion.  Escriben  que 
no  hay  ya  mas  que  mil  y  quatrocientos  catholicos  de  los  que  dexaron  nue- 
stros  padres,  y  que  son  tan  pobres  que  los  mas  de  ellos  andan  vestidos  con 
pieles  de  animales,  y  los  otros  cubren  el  cuerpo  con  solo  un  pedazo  de 
lienzo ;  trahen  las  cabezas  descubiertas  con  el  cabello  muy  cumplido.  Esta 
con  ellos  ahora  un  clerigo  Indio  criado  en  nuestro  seminario  de  Goa,  que 
por  ser  de  la  color  de  los  marineros  que  alla  van,  se  dio  orden  que  fuesse; 
mas  con  todo  esso  fue  conocido  en  las  tierras  de  los  Turcos  y  escapo  con 
mucho  travajo  huyendo  de  noche  por  unas  sierras.  Mas  este  quierese  tornar 
para  aca,  porque  dice  que  no  puede  con  travajo  tan  grande,  y  assi  piden 
todos  con  muchas  lastimas  que  acudamos  a  tan  grande  desamparo ;  porque 
tienen  por  cierto  que,  en  faltandoles  sacerdote,  han  de  tomar  sus  hijos  los 
yerros  de  los  Ethiopes  que  son  muchos.  N.  S.  tenga  por  bien  de  abrir  puerta 
para  que  pudamos  entrar  a  los  consolar  y  encaminar  a  los  demas. 


INTRODUCTIO  XXV 

in  portubus  Aethiopiae,  convenit  ut  se  illuc  traiiceret,  etsi 
coqui  munere  in  navi  fungi  debuisset  (i). 

l6.  Sub  finem  anni  insequentis  1603  tandem  aliquando  iter 
arripuit  Aethiopiam  versus.  Qua  ratione  id  assequi  potuerit, 
habemus  ex  ipso  Paez  in  sua  Historia  (2).  Pervenerant  scilicet 
Dium  initio  anni  1603  aliquot  mercatores  turcae  e  familia- 
ribus  Bassa  Suaquem.  P.  Paez  linguae  arabicae  iam  peritissimus 
illos  amicitia  sibi  devinxit  eisque  aperuit  suum  consilium  in 
Aethiopiam  navigandi  ad  repetendam  haereditatem  quorum- 
dam  e  suis  cognatis,  qui  ibi  vita  decesserant.  Turcae  putantes 
eum  Armenium  esse,  se  paratos  illi  praebuerunt,  non  modo 
ad  iter  aethiopicum,  sed  etiam  ad  eum  omni  quo  possent 
modo  iuvandum  ut  in  patriam,  Armeniam  videlicet,  remearet. 
Oblatam  tam  inopinato  opportunitatem  sibi  non  esse  respuen- 

«  Puede  ser  que,  si  los  Arabios  de  aquellas  tierras,  donde  yo  estuve,  lle- 
varen  adelante  la  guerra  que  contra  los  Turcos  tienen  comenzada,  sea 
facil  este  camino  porque  los  tienen  muy  apretados  y  mataron  al  mas  es- 
forzado  Baxa  que  alla  avia  con  muchos  otros  Turcos,  y  un  Xeque  seiior  de 
muchas  tierras  (con  quien  yo  tuve  mucha  amistad,  porque  estuvimos  presos 
juntos  en  una  torre)  me  envio  a  decir  en  las  naves  que  ahora  llegaron, 
que  el  huyo  de  la  prission  y  tenia  ya  muerto  a  aquel  Baxa  con  muchos 
Turcos,  por  los  agravios  que  yo  sabia  que  le  tenian  hecho ;  que  le  encomen- 
dasse  a  Dios  para  que  los  pudiesse  acabar  de  destruir  ».  Epist.  7.*  ad  p.  Itu- 
ren,  Diu  4  nov.  1601,  in  Chronhist,  etc. 

(i)  « hace  ahora  dos  anos  que  me  enviaron  a  esta  ciudad  de  Dio, 

donde  vienen  las  naves  del  Estrecho  de  Meca,  para  passar  en  alguna  de 
ellas,  si  hallasse  occasion.  Este  ano  esperaba  de  la  tener  buena,  porque  te- 
nia  pedido  que  viniesse  un  hombre  de  alla  que  me  pudiesse  guiar  por  la 
tierra  adentro,  determinando  de  desembarcar  de  noche  y  caminar  luego, 
embrenandonos  de  dia  hasta  passar  dos  jomadas  que  ay  de  peligro  de  Tur- 
cos;  mas  no  vino,  porque,  Ilegando  al  puerto  donde  se  avia  de  embarcar, 
no  se  atrevio  por  miedo  de  los  Turcos.  Mas  no  tengo  de  todo  perdida  la 
esperanza  de  ir  este  ano,  porque  esta  aqui  un  mercader  turco  de  aquella 
tierra,  con  quien  determino  de  me  meter,  aunque  sea  por  cocinero.  Por- 
que,  aunque  se  muy  bien  que  todos  son  falsos  y  que  nos  desean  beber  la 
sangre,  con  todo  esto  creo  que  el  interes,  que  este  aqui  tiene  de  su  mer- 
cancia,  le  forzara  a  guardar  alguna  fidelidad,  y  si  no  la  guardare,  de  toda 
manera  espero  de  N.  S.  mucho  mayores  mercedes  de  las  que  merezco  ». 
Epist.  8*  ad  p.  Ituren,  Diu,  4  dec.  1602,  in  Chronhist.  etc. 

(2)  Lib.  IV,  cap.  3,  fol.  404-409. 


XXVI  INTRODUCTIO 

dam  putavit  pater  et,  assentiente  praeposito  provinciae  Goanae 
ac  Prorege  subsidia  necessaria  praebente,  una  cum  merca- 
tore  Basuan  Aga,  die  2  2  martii,  vela  dedit  et  prospero  itinere 
die  26  aprilis  Massuam  appulit.  Ubi  cum  pater  aliquot  dies 
versatus  fuisset,  primores  loci  eum  humanissime  exceperunt 
et  ratione  auctoritatis,  qua  apud  ipsos  poUebat  Basuan  Aga 
eius  amicus  et  comes,  non  modo  liberum  praebuerunt  iter  ut 
in  interiorem  Aethiopiam  se  conferret,  sed  et  comites  addi- 
derunt,  qui  eum  Debaroam  usque  tuto  perducerent. 

17.  Praemonuit  Paez  per  epistolam  de  suo  proximo  adventu 
sacerdotem  Melchiorem  a  Sylva  et  loannem  Gabriel  Lusita- 
norum  ducem,  et  die  5^  maii,  debili  iumento  insidens  hu- 
milique  vestitu  amictus,  ut  praedonum,  qui  montes  inter  Mas- 
suam  et  Debaroam  infestabant,  rapacitatem  eluderet,  itineri 
se  commisit.  Totos  quinque  dies  in  illis  asperis  montibus  tran- 
scendendis  insumpsit,  et  tandem  die  10  maii  Debaroam  per- 
venit.  Insequenti  die  loannem  Gabriel  cum  pluribus  Lusitanis 
obvium  habuit,  tantaque  fuit  omnium  laetitia  et  praesertim  pa- 
tris  Paez,  ut  ipse  in  sua  Historia  testatus  sit  se  eo  momento 
pro  nihilo  habuisse  omnes  anteactos  labores.  «  Como  eu  vi 
os  Portugueses,  me  alegrei  de  maneira  que  todos  os  trabalhos 
passados  me  pareciam  nada,  e  di  muitcts  gratjas  a  Deos  por 
tam  grandes  merces  como  me  tinha  feito;  e  elles  tambem 
nam  Ihas  acavavam  de  dar,  tendo  por  milagro  passar  por 
entre  Turcos  tam  descuberta  y  f rancamente  ( i )  > . 

18.  Cum  his  altero  die  itineri  denuo  se  dedit  Fremonam 
versus,  ubi  aedem  sacram  Lusitani  habebant.  Exceptus  ab 
omni  populo  maxima  laetitiae  et  venerationis  significatione, 
sine  mora  operi  apostolico  manus  adiecit,  catholicos  lusitanos 
in  retinenda  fide  roboravit,  aethiopes  non  paucos  ad  errores 
deponendos  inducere  coepit.  Sed  cum  intelligeret  ab  nutu 
Imperatoris  omnia  pendere,  ad  eum  litteras  dedit,  quibus 
eum  conveniendi  veniam  postulabat.  Imperator  Atn&f  SagS.d 

(i)  Paez,  Hist.^  lib.  IV,  cap.  3,  fol.  408. 


INTRODUCTIO  XXVII 

(Za  Denghel)   religioni    catholicae  non  infensus   benigne  re- 
scripsit  ac  venientem  humanissime  excepit(i). 

19.  Triduo  post,  ut  ipse  pater  narrat,  concertationem  habuit 
coram  Imperatore  cum  monachorum  eruditissimis  de  duplici 
in  Christo  natura,  in  qua  Pater  adeo  perspicue  e  theologicis 
fontibus  duplicem  in  Christo  voluntatem  esse  duplicemque 
naturam  unicae  insitas  personae  demonstravit  ut  omnes  ad- 
miratione  ac  pudore  defixi  haererent,  ac  Imperator  ipse  inge- 
muerit :  «  lam  intelligo  nos  christianorum  habere  nihil  praeter 
nomen  >.  Aliis  deinde  disputationibus,  qua  publicis  qua  pri- 
vatis,  multis  etiam  e  primoribus  catholicas  veritates  persuasit, 
iamque  eo  deducta  res  erat  ut  Imperator  fidem  catholicam 
amplexus  obedientiam  Romano  Pontifici  praestare  constitue- 
rit  (2),  quod  perfecisset,  nisi  a  monachis  commota  plebs  eum 
regno  et  vita  privasset  sub  finem  anni  1 604  (3). 

20.  Per  annum  integrum  vacavit  imperium,  humana  divina- 
que  omnia  susque  deque  versa  fuerunt.  Tandem  anno  1 605  Jacob, 
seu  Malcic  Sagid  secundus,  ab  exilio  revocatur  eique  summa 
imperii  denuo  committitur.  Apud  hunc  quoque  quantum  p.  Paez 
gratia  et  favore  valuerit  documento  sunt  et  renovatae  saepius 
coram  ipso  disputationes  cum  monachorum  litteratissimis  de 
praecipuis  controversiae  capitibus  inter  catholicos  et  schisma- 
ticos  et  ipsius  Imperatoris  consilium  de  fide  catholica  non 
solum  provehenda  sed  et  amplectenda. 

21.  At  vero  mediis  in  his  rebus  denuo  a  schismaticis  mona- 
chis  populus  in  furorem  agitur,  et  Jacob  de  medio  toUitur 
die  10  martii  1607  (4).  Compositis  aliquo  modo  turbis  Su- 
senios,  qui  primum  MalS.c  Sag&d  tertii,  dein  Seltan  Sagad 
nomen  sibi  imposuit,  imperii  gubernacula  regenda  suscepit. 
Quantum  hoc  imperante  per  quindecim  et  amplius  annos  res 


(i)  Paez,  Hist.^  lib.  IV,  cap.  6,  fol.  413-417. 

(2)  Ibid.,  cap.  7,  per  totum. 

(3)  Ibid.,  cap.  9,  per  totum. 

(4)  Ibid.,  cap.  15,  per  totum. 


XXVIII  INTRODUCnO 

catholica  profecerit  demonstrant  favor  ab  ipso  in  gratiam 
praesertim  Patris  Paez  patribus  Soc.  Jesu  praestitus,  plura 
eius  ope  instructa  templa  ac  Missionis  domicilia,  schismati- 
corum  ad  plura  centena  millia  ad  fidem  catholicam  conver- 
siones,  obedientia  ab  ipso  Selt&n  Sagid  ac  eius  fratre  Cela 
Christ6s  Pontifici  Romano  praestita  (i)  ac  demum  publica 
Imperatoris  catholicae  fidei  professio  ob  susceptam  solemni 
ritu  e  manibus  ipsius  Paez  sacram  Synaxim,  cum  antea  sacra 
exhomologesi  sua  commissa  expiasset  ac  libidinibus,  in  quo- 
rum  coeno  diu  volutabatur,  nuncium  remisisset.  Haec  quae 
brevissime  perstrinxi  fuse  narrata  reperiet  lector  tum  ab  ipso 
Paez  in  sua  Historia,  lib.  IV  per  totum,  tum  ab  Almeida 
Historia  de  Ethiopia  a  alta,  libro  VII,  tum  denique  in  Rela- 
tionibus  et  Litteris  quarum  elenchum  dedi  in  I  volumine  No- 
tizia  e  Saggiy  I,  nn.   82-97;  II,  nn.    14-17. 

22.  Ex  imperatoris  Selt^n  Sag3,d  prope  insperata  ad  bo- 
nam  frugem  conversione  incredibile  dictu  est  quantum  animi 
gaudium  patri  Paez  contigerit,  qui  proinde  quasi  votorum  suo- 
rum  summam  consecutus  nihilque  habens  praeterea  quod  in 
hac  vita  sibi  optandum  putaret,  auditus  est  illud  Simeonis 
usurpare :  Nunc  dimittis  servum  tuum,  Domine.  Ac  reipsa  post 
duos  menses  finem  vivendi  fecit,  die  vigesima  maii  anni  1622, 
annum  agens  aetatis  duodesexagesimum.  Morbum  contraxisse 
creditur  in  illa  ultima  profectione  ad  Imperatorem,  qui  tum 
longe  a  Gorgord,  ubi  Paez  morabatur,  in  finibus  Gallarum  ca- 
stra  posuerat.  Perrexit  enim  aetate  iam  devexa  laboribusque 
confractus,  incomodo  decem  dierum  itinere,  per  loca  sole  tor- 
rida,  et,  quia  feriae  esuriales  agebantur,  usque  ad  occasum  solis 
ieiunus  more  aethiopico.  Iter  vero  denuo  relegentem  adeo 
defecerunt  vires  ut  simul  ac  Gorgoram  attigit  committere  se 
lecto  coactus  fuerit,  ex  quo  amplius  non  surrexit  (2).  Corpore 

(i)  Paez,  Hist,,  lib.  IV,  cap.  24-29. 

(2)  Cfr.  Annuam  Relatione  (TEthiopia  degli  anni  1621-1622.  Roma,  Cor- 
belletti,  1627,  pag.  45  et  seqq. 


INTRODUCTIO  XXIX 

fuit  statura  procero  et  propter  labores  et  ieiunia  macro,  at 
vultu  ob  nativum  colorem  conspicuo,  comes  et  affabilis  supra 
quam  dici  possit  ita  ut  omnium  sibi  animos  devinceret  (i). 
De  eo  iure  usurpari  poterat  illud  Apostoli  <  Omnibtcs  omnia 
/adtis  sum  ut  omnes  lucri/acerem  >. 

23.  Quibus  vero  virtutum  exemplis,  qua  floruerit  profana 
aeque  ac  sacra  scientia  linguarumque  peritia  satis  superque 
testantur,  non  modo  epistolae  patrum  qui  in  aethiopico  agro 
excolendo  cum  ipso  adlaborarunt  et  scripta  eius  eruditionis  ac 
pietatis  plena,  sed  etiam  ipsi  Aethiopes,  qui  vivum  propter 
mores  et  scientiam  laudarunt  eiusque  amicitiam  ambierunt, 
mortuum  tamquam  communem  parentem  luxerunt.  Imperator 
autem  tantum  ex  eius  morte  traxit  sensum  acerbitatis  ut  toto 
die  nec  cibum,  nec  ullum  aliud  animi  aut  corporis  levamentum 
admiserit,  et  litteras  primum  quidem  ad  patrem  Fernandez, 
deinde  ad  patrem  Ludovicum  Cardosum  praepositum  provin- 
ciae  Goanae  dederit  in  quibus  merita  patris  Paez  extollit  (2). 

(i)  €  Era  de  corpo  alto  e  magro,  rosto  corado,  de  engenho  vivo,  de 
condi^ao  tam  afavel,  que  a  quantos  tratava  ganhava  as  vontades.  Guardou 
perfeitamente  aquillo  do  apostolo:  Omnibus  omnia  etc,  fazendose  nao  s6 
mestre  e  pregador  da  verdadeira  fee,  mas  medico  e  enfermeiro  pera  os 
doentes,  architecto,  pedreiro,  carpinteiro  pera  fazer  igreias  a  Deus  e  casas 
ao  Emperador,  con  tanta  humiidade  e  chaneza  que  todos  cativava  fazen- 
dose  servo  e  cativo  de  todos...  ».  Almeida,  HisL  etc.  lib.  VII,  cap.  34,  fol.  306. 

(2)  Cfr.  Annuam  cit.  Relaiione  etc,  degli  anni  i^^i-id^^f  Roma,  Corbel- 
letti,  1627. 

In  epistola  autem  ad  patrem  Cardosum  (cuius  apographum  prostat  in 
epistola  patris  Barreto  ad  patrem  Generalem,  data  Goa,  11  dec.  1623;  ASI. 
Goana,  Hist,  Aethiop,  1^4^*162^,  n.  XLI)  scribit  Imperator:  «  ....  veneravel  pa- 
dre  Provincial  Luis  Cardoso,  cuja  fama  chegou  a  esta  tierra  de    Ethiopia, 

se  envia  esta  carta  a  V.  R O  segundo  [ponto]  he  da  morte  do  perfei- 

tissimo  penitente  e  virtuoso  revA^  padre  Pero  Paez,  pay  de  nossa  alma,  claro 
sol  da  fe,  que  allumiou  a  Ethiopia  das  trevoas  de  Eutiquio.  E  depois  que 
eclypsou  e  se  pos  este  nosso  sol,  achamos  tristesa  em  lugar  de  alegria  e 
pranto  em  lugar  de  contentamento,  e  lal  pranto  qual  foi  o  de  Alexandria 
pella  morte  de  s.  Marcos,  e  tal  sentimento  qual  o  de  Roma  no  fallecimento 
de  s.  Pedro  e  s.  Paulo.  Mas  que  fallaremos  e  contaremos  das  virtudes  deste 
apostolo  de  dentro  e  fora  humilde  e  verdadeiro  em  suas  obras  e  palavras  [?]. 
Se  o  papel  fora  tamanho   como  o  ceo,  e  a  tinta   como  o  mar,  ouveranos 


XXX  INTRODUCTIO 

Apud  ipsum  vero  patris  recordatio  multo  diuturnior  fuit,  quam 
quisquam  ab  eo  expectare  potuisset.  Etenim  post  illud  tempus, 
quoties  gorgoranam  aedem  ingrederetur,  super  Patris  tumu- 
lum  se  prosternere  solebat,  ut  magistro  olim  suo  honorem 
exhiberet  et  quanto  eius  desiderio  teneretur  quo  poterat  modo 
demonstraret. 


11. 

De  Pontibus  historiae  P.  Paez 
deque  illius  pretio  et  mendis. 

I.  P.  Paez  suum  opus  conscripsit  ultimis  vitae  suae  annis 
motus  praesertim  praecepto  praepositi  Provinciae  Goanae,  ut 
commenta  patris  Urretae  O.  P.  (i)  Societati  lesu  et  maxime 
duobos  patriarchis  Nunez  Barreto  et  Oviedo  iniuriosa  re- 
futarentur.  Nemo  certe  huic  muneri  aptior  patre  Paez,  qui 
iam  fere  duodeviginti  annos  in  Aethiopia  posuerat,  in  eiusdem 
linguis  et  moribus  versatissimus  et  in  investiganda  rerum 
veritate  quam  maxime  perspicax  noscebatur.  Ipse  pater  in 
epistola  ad  p.  Mutium  Vitelleschi  Praepositum  generalem, 
quam  huic  historiae  praemisit,  expresse  dicit :  <  Por  me  en- 
caregar  o  p.  Provincial  da  India  que  o  ficesse  [scil.  de  rebus 
aethiopicis  narrationem  texere]  e  que  iuntamente  respondese 
ao  que  impoe  ao  padre  patriarcha  Dom  Joam  Nunes  Barreto 
e  aos  padres  da  Companhia,  que  com  elle  vinham  pera  Ethio- 
pia,  o  padre  frei  Luis  de  Urreta  ».  Huic  superiorum  praecepto 
eo  libentius  auctor  obtemperandum  sibi  duxit  quo  magis  hoc  et 
suo  proposito  res  aethiopicas  male  in  Europa  cognitas  pate- 

de  parecer  que  nao  bastariam  pera  fazer  escrever  a  fama  de  suas  bonda- 
des,  proveito  e  regras.  Em  o  que  aconteceo  nao  se  podem  colher  as  flores 
que  se  espalharao,  nem  tornar  o  dia  que  passou,  nem  se  receber  a  agoa 
que  se  entornou  ». 

(i)  Historia  de  la  Ethiopia^  Valencia,  1610. 


INTRODUCTIO  XXXf 

faciendi  et  plurium  patrum  desiderio  respondebat,  ut  ipse  in 
eadem  epistola  testatur(i). 

2.  Ex  hoc  scopo  polemico  suae  Historiae  factum  est  quod 
A.  in  assignandis  et  perscrutandis  fontibus,  e  quibus  rerum  no- 
titias  hausit,  fuerit  accuratissimus  et,  quod  in  Historiis  il%is 
temporis  frustra  quaeras,  pro  unoquoque  fere  eventu  et  pro 
quavis  locorum  descriptione  fontes  singillatim  indicaverit.  In 
epistola  dedicatoria  supra  citata  ad  tria  tantum  capita  eos 
reducit  auctor ;  eaque  sunt :  libri  aethiopici,  traditio  per  testes 
fide  dignos  accepta  et  experientia  propria.  En  eius  verba: 
< ...  esta  Historia...  en  que  ordinariamente  falo  de  vista  e  o  que 
refero  dos  livros  de  Ethiopia  tresladei  fielmente,  e  as  cousas 
(jue  escrevo  por  informa^am  procurei  de  tomar  das  pessoas 
mais  fide  dignas  que  ca  ha  >.  His  tribus  fontibus  debet  et 
quartus  adnumerari,  scil.  scripta  partim  in  lucem  edita  tem- 
pore  A.  partim  inedita,  eorum  europaeorum,  lusitanorum  prae- 
cipue,  qui  in  Aethiopia  versati  sunt  et  de  rebus  ac  moribus 
illius  regionis  tractarunt.  Etenim  etiam  et  iste  fons  saepe 
saepius  ab  A.  citatur. 

3.  Et  haec  generatim :  Ut  autem  lectori,  antequam  ad  per- 
volvendam  historiam  manus  apponat,  facilius  patescat  quam- 
nam  auctoritatem  ea  quae  lecturus  est  mereantur,  singillatim 
mihi  enucleandum  esse  duxi  e  quot  et  quibus  fontibus  prae- 
cipuae  res  ab  auctore  enarratae  deriventur;  et  quemdam  veluti 
indicem  fontium  huiusmodi,  capitumque  et  paragraphorum  eius 
Historiae  respondentium  lectori  praebere.  Quia  vero  hoc  primo 
volumine  tantummodo  i""et  ^'"Historiae  liber  in  lucem  eduntur; 
3"*  autem  et  4"  proximo  anno  typis  tradentur,  ne  cogar  lec- 
torem  pro  primis  duobus  libris  ad  Capita  eorumdemque  pa- 

(i)  €  Depois  que  entrei  em  este  imperio  de  Ethiopia,  que  foy  em  raayo 
de  1603,  e  comecei  a  ver  as  cousas  delle,  entendi  quam  pouca  noticia  se 
tinha  dellas  em  Europa:  pollo  que  desejava  sempre  dar  algum  aos  daquel- 
las  partes ;  mas  foram  tantas  e  tam  precissas  as  occupac^oes,  que,  ainda  que 
a  este  desejo  se  juntou  pedillo  com  instancia  por  cartas  alguns  Padres,  nam 
o  pude  nunca  por  em  execu^am  ». 

***** 


XXXII  rNTRODUCnO 

ragraphos  remittere,  et  pro  duobus  lilnis  insequentibus,  qui 
adhuc  paragraphorum  numeratione  carent,  remittere  tantum- 
modo  ad  capita  et  ad  folia  mss.,  quod  confusionem  aliquam 
et  incertitudinem  pareret,  hoc  loco  indicandos  mihi  esse  pu- 
tavi  tantummodo  fontes  i'  et  2'  libri:  idque  eo  magis  quod, 
cum  fontes,  praesertim  scripti,  i*  et  2'  non  sint  iidem  ac  se- 
quentium  librorum,  inutilis  et  taediosa  repetitio  evitabitur. 

Pontes   I   et  II  Libri. 

I.  —  Scripta  i^etkiopica. 

i.  Elenchus  Regnarum  et  Pravinciarum  imperii  aeihiopici  (Xt^lt 
ditus  auctori  a  Secretario  imperatoris  Seltan  Sagad).  —  Lib.  I,  cap.  i , 
n.  3. 

2.  Cathalogi  Imperatorum  duo  (primus  inventus  ab  A.  inter 
libros  ecclesiae  Axum,  alter  ipsi  traditus  ab  imperatore  Seltan  Sa- 
gad).  —  Lib.  I,  cap.  i,  n.  14;  cap.  5,  per  totum;  cap.  6,  n.  9;  cap.  17, 
n.  2.  -  Lib.  II,  cap.  17,  n.  3. 

3.  Liber  dictus  Ghebra  Nagast,  scil.  Gloria  Regum  (inventus  ab 
A.  in  ecclesia  Axum).  —  Lib.  I,  capp.  2  et  3  per  totum.  -  Lib.  II, 
cap.  I,  n.  4;  agitur  de  regina  Saba  eiusque  filio  Menilehec. 

4.  Chronica  Zara  Jacob  (Auctori  tradita  ab  imperatore  Seltan 
Sagad).  —  Lib.  I,  cap.  5,  n.  5;  cap.  14,  n.  i  (i). 

5.  Liber  dictus  Mazaquebt  Haimanot,  scil.  Thesaurus  Fidei,  — 
Lib.  I,  cap.  II,  n.  6.  -  Lib.  II,  cap.  3,  n.  i,  ubi  agitur  de  errore  Ae- 
thiopum  circa  duplicem  Christi  naturam. 

6.  Liber  dictus  Haimanot  Abbo,  scil.  Fides  Patrum.  —  Lib.  I, 
cap.  II,  n.  6.  -  Lib.  II,  cap.  2,  n.^;  cap.  3,  n.  i,  ubi  de  eisdem  erroribus 
est  sermo. 

(i)  Circa  hanc  partem  Chronicae  Zara  Jacob  ab  A.  citatam,  praemo- 
nendum  lectorem  volo  me  errasse  transcribendo  duo  verba  formulae  quam 
in  brachio  sinistro  impressam  ab  Aethiopibus  gestari  voluit  Zara  Jacob.  Ex 
accurata  enim  inspectione  autographi,  legendum  omnino  est:  Diabolos  Dctzc 
bdc  (quod  interpretantur  Dillmann  et  Guidi  Diabolus,  divinitas  seu  idolum 
vanum ;  vel  etiam,  ut  A.  placuit,  Diabolus  turpis  et  vanus)  non  vero  Dezcbac, 
ut  impressum  est  pag.  68,  lin.  18;  multo  autem  minus  Dazebac,  ut  male  legit 
in  Almeida  Perruchon  (in  appendice  ad  Chronicam  Zara  Jacob^  Paris,  1893, 
pagg.  199  et  203).  Lectio  enim  Almeida  conformis  est  cum  illa  Paez,  scil. 
Dazc  bac,  Notandum  quod  pro  Lusitanis  sonus  litterae  z  idem  est  ac  s:  sic 
promiscue  scribebant  tunc  diz,  dis,  Neguz^  Negus  etc. 


INTRODUCTIO  XXXIII 

7.  Codex  Caeremoniarum  pro  coronatione  Imperatomm  (inter 
libros  ecclesiae  Axum).  —  Lib.  I,  cap.  12,  nn.  1-5. 

8.  Lithurgia  aethiopicay  ad  literam  in  lusitanicum  sermonem  con» 
versa  (plura  exemplaria  prae  manibus).  —  Lib.  II,  cap.  11,  per  totum, 

9.  Liber  precum  in  usum  Moneichorum  (Auctori  traditus  a  Su- 
periore  cuiusdam  monasterii).  —  Lib.  II,  cap.  2  per  totum,  ubi  re- 
feruntur  lusitanico  sermone  preces  fere  omnes. 

10.  Caeremoniale^  in  usum  Abunae,  pro  conferendis  ordinibus 
sacris  ling^a  arabica  conscriptum  (Auctor  vidit,  at  nemo  voluit  illi 
legendum  tradere),  —  Lib.  II,  cap.  13,  n.  3. 

1 1 .  Liber  quo  continentur  ritus  et  preces  in  initiatione  mona' 
chorum.  —  Lib.  II,  cap.  18,  n.  4,  ubi  A.  ex  eo  excerpta  tradit. 

12.  Vita  Abba  Statius  (Quae  fetulit  A.  de  hoc  fundatore  mo- 
nachorum  Aethiopiae  accepit  a  monachis,  qui  librum  habebant; 
hunc  tamen  ipse  nunquam  habere  potuit  prae  manibus).  —  Lib.  II, 
cap.  18,  n.  I. 

13.  Vita  abbd  Tacla  Haimanot,  —  Lib.  II,  cap.  19,  per  totum, 
ubi  refertur  integra,  sed  lusitanico  sermone. 

14.  Vita  abbd  Samuel.  —  Lib.  II,  cap.  21,  n.  2,  ubi  aliquot  ex 
eo  libro  excerpta  referuntur. 

15.  Synaxarium  (Senkessar)  aethiopicum,  quod  A.  vertit  «  Flos 
Sanctorum  ».  —  Lib.  II,  cap.  22,  n.  7,  ubi  citat  hunc  librum  ad  con- 
futandas  quasdam  vitas  Sanctorum  Aethiopiae  ab  Urreta  confictas; 
cap.  23,  n.  10,  in  quo  compendio  refertur  vita  imperatoris  Lalibala. 

16.  Historia  imperatoris  Caleb  ex  quodam  libro  ecclesiae  Axum. 
—  Lib.  II,  cap.  23,  n.  12.  Ex  hoc  libro  refert  A.  tantummodo  ex- 
peditionem  contra  Finaas.  Cetera  oretenus  accepit. 

17.  Acta  s.  Frumentii  {Fremenatos)  (probabiliter  liber  citatus 
est  Synaxarium).  —  Lib.  II,  cap.  10,  n.  i,  ubi  affirmat  in  libris  ae» 
thiopicis  nuUam  se  invenisse  mentionem  de  sacramentis  Confirma- 
tionis  et  Extremae  Unctionis. 

18.  Libri  aethiopici  sine  titulo.  —  Lib.  I,  cap.  4  per  totum.  De 
variis  officiis  in  regia  aula  aethiopica  affirmat  A.  se  notitias  hau- 
sisse  partim  etiam  em  seus  livros.  -  Lib.  II,  cap.  i ,  n.  4. 

II.  —  Libri  Lusitanici, 

I .  Franciscus  Alvarez,  Verdadeira  informofHo  das  terras  do  Pre^ 
ste  JoQo  das  Indias,  Lisboa,  1540.  —  Lib.  I,  cap.  12,  n.  8,  ubi  de- 
scribuntur  ex  hoc  auctore  cathedrae  vel  sellae  ex  petra  circa  vetus 


XXXIV  INTRODUCTIO 

templum  axumiticum,  qiiae  tempore  Auctoris  amplius  non  exstabant; 
cap.  13,  nn.  1-2,  de  apparatu  quo,  iuxta  Alvarez,  imperator  Onag 
Sagad  se  conferebat  ad  ecclesiam  etc;  cap.  14,  n.  2,  de  modo  quo 
iter  faciebat  imperator  Asnaf  Sagad  (Claudius);  cap.  16,  n.  5,  re- 
fertur  modus  ferendi  sententiam  a  iudicibus  et  refutatur;  cap.  16, 
n.  13,  qui  Lusitanorum  primi  ingressi  fuerint  Aethiopiam.  -  LiKII, 
cap.  1 5  per  totum,  refertur  ex  eq  descriptio  templorum  in  rupibus 
excisorum;  cap.  16,  n.  6,  de  ritibus  nuptialibus. 

2.  Guerreiro  Ferdinandus,  Relofam  etc.  com  huma  addigam  d  re- 
la^am  de  Ethiopta  nos  annos  1608-160^^  Lisboa,  161 1.  —  Lib.  I, 
cap.  11,  n.  7,  ubi  refertur  testimonium  (ex  Guerreiro)  patriarchae 
Oviedo  circa  opinionem  Aethiopum  de  concilio  Efesino;  capp.  31-36, 
in  quibus  refertur  historia  Christofori  de  Gama.  -  Lib.  II,  cap.  7, 
ubi  referuntur  epistolae  p.  Consalvi  Rodrigfuez  et  aliorum  circa  mo- 
dum  quo  imperator  Claudius  excepit  patriarcham  Oviedo. 

3.  Miguel  de  Castanhoso,  Historia  das  cottsas  etc.  que  dom  Chri- 
stovtu)  da  Gama  fez  nos  repios  do  preste  /o&o  etc,  Lisboa,  1548.  — 
Lib.  I,  capp.  31-36,  in  quibus  eadem  historia  narratur. 

4.  Joannes  Alvarez  e  Soc  Jesu,  Assistens  Lusitaniae,  Epistola 
ad  A,  data  circa  validitatem  ordinum  sacrorum  in  Aethiopia,  ex  tC" 
stimonio  patriarchae  Oviedo.  —  Lib.  II,  cap.   13,  n.  6. 

III.  —  Traditio  oralis  db  Auctore  per  testes  flde  dignos  excepta. 

1.  Aliquot  ex  primoribus  regni  coram  imperatore  Seltan  Sa- 
gad,  lib.  1,  cap.  i,  n.  2:  agitur  de  finibus  imperii  tempore  A.  - 
Alius  ex  primoribus  regni,  ibid.,  cap.  10,  nn.  1-8:  quando  ince- 
perit  et  cessaverit  mos  custodiendi  in  Amba  Guixen  filios  impe- 
ratorum. 

2.  Za  Oald  Madehen  superior  monasterii  de  Allelo,  lib.  I,  cap.  i, 
n.  9:  quod  sint  ignoti  Dominicani  in  Aethiopia. 

3.  Officiales  regni,  lib.  I,  cap.  4,  per  totum :  circa  differentiam 
munerum  publicorum  inductam  tempore  A. 

4.  Tres  principes  descendentes  ab  antiquis  Imperatoribus  et  in 
Amba  Guixen  commorantes,  lib.  I,  capp.  6,  7,  per  totum:  ubi  agi- 
tur  de  eadem  Amba  et  de  eius  incolis  etc  -  Duo  ex  iisdem,  lib.  I, 
cap.  9,  nn.  6,  7,  8:  de  commentitiis  thesauris  praedictae  Ambae.  - 
Item  tres  principes  ex  iis,  lib.  I,  cap.  10,  nn.  1-8:  quando  incoe- 
perit  et  cessaverit  mos  custodiendi  principes  in  Amba. 


INTRODUCTIO  XXXV 

5.  Abba  Merca,  lib.  I,  cap.  11,  nn.  i  et  seqq.:  quomodo  anti- 
quitus  eligerentur  imperatores  et  quomodo  tempore  A. 

6.  Joannes  Gabriel  dux  cohortis  Lusitanae,  lib.  I,  cap.  12,  nn.  6-7: 
quo  ritu  acta  fuerit  coronatio  Seltan  Sagad;  cap.  18,  per  totum: 
de  Consilio  Latino  ab  Urreta  conficto;  cap.  26,  n.  8:  de  piscibus 
electricis  in  Nilo  (i). 

7.  Monachus  senex  et  in  ritibus  sacris  peritissimus,  lib.  I,  cap.  1 3, 
n.  6 :  de  festo  s.  Crucis  in  Aethiopia. 

8.  Multi  in  traditionibus  aethiopicis  periti,  lib.  I,  cap.  15,  nn.  2 
et  seqq. :  de  mulieribus  quibus  nubere  solent  imperatores. 

9.  Za  Denghel,  lib.  I,  cap.  16,  n.  13:  quod  codex  legum  lusi- 
tanarum  ignotus  fuit  aethiopibus. 

10.  Ras  Athanatheus,  lib.  I,  cap.  16,  n.  13,   de  eadem  re. 

11.  Joannes  Antonius  Venetus,  lib.  I,  cap.  18,  per  totum:  de 
Consilio  Latino  ab  Urreta  conficto. 

12.  Seniores  Lusitanorum,  lib.  I,  cap.  18,  per  totum,  de  ea- 
dem  re. 

13.  Seltan  Sagad,  lib.  I,  cap.  9,  nn.  6,  7,  8:  de  thesauris  com- 
mentitiis  in  Amba  Guixen;  cap.  10,  nn.  1-8,  circa  custodiam 
Principum  in  Amba;  cap.  11,  nn.  i  et  seqq.,  de  electione  Impe- 
ratorum  ;  cap.  16,  n.  13,  de  ignorantia  codicis  legum  lusitanarum  in 
Aethiopia;  cap.  22,  n.  9,  de  scientia  Magistrorum  in  Aethiopia  ; 
cap.  23,  n.  II,  de  modo  venandi  rinhocerontes;  cap.  26,  n.  5,  de 
cursu  Nili;  cap.  26,  n.  9,  de  commentitio  tributo  Aegypti  pro  inun- 
dationibus  Nili  regendis;  cap.  27,  n.  8:  quod  flumen  Tacaze  in  Ni- 
lum  influat.  -  Lib.  II,  cap.  i,  n.  4,  de  commentitio  ordine  eque- 
stri;  cap.  13,  n.  6:  dubium  de  validitate  ordinum  sacrorum  in  Ae- 
thiopia  ;  cap.  23,  n.  8:  dubium  circa  sanctitatem  vitae  Imperato- 
rum  Aethiopiae. 

14.  Sela  Christos,  lib.  I,  cap.  26,  n.  5,  de  cursu  Nili;  cap.  30, 
per  totum,  de  vectigalibus  et  tributis  publicis  Imperii.  -  Lib.  II, 
cap.  13,  n.  6,  dubitat  de  validitate  ordinum  sacrorum;  cap.  23,  n.  8, 
dubitat  de  sanctitate  Imperatorum  Aethiopiae  et  cur. 

(i)  P.  Paez  fuit  primus  ex  Europaeis,  qui  hunc  sane  singularem  pi- 
scem  electrico  apparatu  praeditum  notaret  et  belle  describeret.  Eum  adm' 
ghez  Aethiopes  vocant,  auctor  appellavit  torpedinem,  ex  simili  proprietate  qua 
alium  piscem  huius  nominis,  sed  marinum,  ditatum  sciebat.  Modo  ichtyologi 
eum  appellant  melanopterum  electricum,  Invenitur  non  modo  in  Nilo  supe- 
riori,  sed  etiam  in  plerisque  aliis  Africae  occidentah's  fluminibus. 


XXXVI  INTRODUCTIO 

15.  Thesaurarius  et  Secretarius  Imperii,  lib.  I,  cap.  30,  per  to- 
tum.  de  vectigalibus  et  tributis  publicis  tempore  A. 

16.  Lusitanus,  qui  fuit  comes  ChristophorideGama,  lib.  I,  cap.  31, 
n.  37 :  narratio  expeditionis  et  mortis  Christophori  de  Gama. 

16.  Abuna  Simon,  lib.  II,  cap.  13,  n.  i,  quod  nunquam  fuerit 
dignitas  Patriarchae  in  clero  aethiopico. 

17.  Multi  clerici  et  saeculares  aethiopes,  lib.  II,  cap.  14,  nn.  3,  4, 
de  ritibus  nuptialibus. 

18.  Alexius  de  Menezes  archiepiscopus  Goanus,  lib.  II,  cap.  17, 
n.  I,  quod  non  sint  religiosi  Augustiniani  in  Aethiopia. 

19.  Ichegue  Monachorum  Tacla  Haimandt,  lib.  II,  cap.  17,  n.  i : 
ignoti  Augustiniani  in  Aethiopia;  cap.  20,  n.  3,  de  monasterio  Li- 
banos  deque  eiusdem  monachorum  numero  etc. 

20.  Monachi  plures  fide  digni,  lib.  II,  cap.  18,  nn.  i,  3,  5,  quod 
duo  tantum  sint  ordines  monachorum  in  Aethiopia. 

21.  Monachus  in  antiquis  historiis  pentissimus,  lib.  II,  cap.  23, 
n.  12,  de  reliquis  regis  Caleb  gestis,  quae  in  eius  Historia  non 
continentur. 

IV.  —  Experientia  propria  Auctoris. 

1)  LlB.  I,  cap.  I,  n.  I,  profitetur  se  de  visu  multa  cognovisse.  — 
2)  nn.  4,  5,  6,  7,  de  forma  corporis,  de  intellectu,  de  vestibus  et  de 
salutationibus  Aethiopum.  —  3)  n.  11,  de  variis  Aethiopiae  tribu- 
bus.  —  4)  n.  13,  Gallarum  descriptio.  —  5)  Cap.  3,  nn.  16-21,  con- 
futatio  historiae  aethiopicae  circa  Arcam  Testamenti,  et  Urretae  de 
Tabulis  Legis;  quid  sit  Tabot  etc.  —  6)  Cap.  5,  nn.  7-1 1,  de  variis  no- 
minibus  regnm  Aethiopiae,  qui  numquam  fuerunt  sacerdotes,  bene 
autem  saepius  diaconi;  de  appellatione  erronea,  PresSyferi  loannis. 
—  7)  Cap.  8,  nn.  3,  5,  de  biblioteca  Amba  Guixen  et  de  numero  mo- 
nachorum.  —  8)  Cap.  9,  n.  12,  de  nummis  excusis  ab  Imperatoribus 
Aethiopiae;  —  9)  Cap.  10,  nn.  6,  11,  12,  quot  essent  prognati  imperato- 
rum  in  Amba  Guixen  tempore  A.  —  10)  Cap.  11,  n.  4,  episcopus 
unus  in  tota  Aethiopia;  n.  5,  tmperator  praefert  Crucem  ut  insig^e 
diaconatus;  sceptrum  incognitum;  n.  8,  numerus  et  nomina  guber- 
natorum  tempore  vacationis  imperii.  —  11)  Cap.  12,  n.  8,  de  ca- 
thedris  ex  petra  prope  Axum;  n.  9,  imperator  Seltan  Sagad  invisit 
A.  Fremonae  post  coronationem  etc.  —  12)  Cap.  13,  nn.  3,  4,  de  modo 
et  pompa  qua  se  ferebant  Imperatores  ad  missam  tempore  A. ;  de- 


INTRODUCTIO  XXXVH 

scriptio  sellae  imperialis;  n.  5,  qua  pompa  imp.  Za  Denghel  se  con- 
tulerit  ad  audiendam  missam  ab  A.  celebratam;  nn.  6»  7,  8,  quam  ab- 
sona  sintquae  retulit  Urreta  de  festo  in  dominica  Palmarum  et  SS.Eu- 
charistiae  sacramenti;  n.  9,  de  domibus  Aethiopum  et  monasteriis 
monialium.  —  13)  Cap.  14,  nn.  3-6,  de  veatibus  Imperatoris  tem- 
pore  itineris ;  de  modo  iter  habendi  tempore  belli  et  tempore  pacis ; 
de  numero  militum;  de  modo  cetstrametandi.  —  14)  Cap.  15,  n.  4, 
de  emblematibus,  quae  sibi  imprimunt  in  brachiis  Aethiopes;  n.  5, 
quomodo  equitare  soleant  muheres;  n.  7,  de  nomine  Itegue  imposito 
Imperatrici.  —  15)  Cap.  16  fere  per  totum,  de  iudiciis  et  poenis  etc. 

—  16)  Cap.  17  per  totum,  de  appellationibus  et  earum  fructu.  — 

17)  Cap.  19,  n.  2.  adversus  commenta  Urretae  de  visitatione  provincia- 
rum ;  n.  3,  quid  praestet  Imperator  in  nuptiis  suorum  cognatorum.  — 

18)  Cap.  20  per  totum,  de  urbibus,  seu  pagis  Aethiopiae ;  de  modo  eos 
gubernandi  etc.  —  1 9)  Cap.  2 1  per  totum,  de  moribus  Aethiopum.  — 
20)  Cap,  22  per  totum,  qui  sint  magistri  in  Aethiopia;  quid  et  quomodo 
doceant.  —  21)  Cap.  23  per  totum,  de  quadrupedibus  tam  silvestri- 
bus,  quam  domesticis.  —  22)  Cap.  24  per  totum,  de  avibus.  — 
23)  Cap.  25  per  totum,  de  mineralibus,  de  climate  et  fertilitate 
arvorum.  —  24)  Cap.  26  per  totum,  de  flumine  Nilo  eiusque  fonti- 
bus  etc.  —  25)  Cap.  27  per  totum,  de  fluminibus  Marab  et  Tacaze.  — 
26)  Cap.  28  per  totum,  de  fluminibus  Zebe  et  Aoax.  —  27)  Cap.  29 
per  totum,  de  praecipuis  Aethiopiae  lacubus. 

28)  LiB.  II,  Cap.  2  per  totum,  errores  Aethiopum   circa  Tri- 
nitatem.   —  29)  Cap.  3,  nn.  2,  3,  4,  errores  circa  naturam  Christi. 

—  30)  Cap.  4  per  totum,  disputationes  A.  cum  doctioribus  Aethio- 
piae  circa  duplicem  in  Christo  naturam  tempore  Seltan  Sagad  etc. 

—  31)  Cap.  5  per  totum,  schismatici  rebellant  et  Seltan  Sagad  vita 
periclitatur.  —  32)  Cap.  6  per  totum,  errores  Aethiopum  circa  ani- 
mam  humanam.  —  33)  Cap.  8  per  totum,  de  caeremoniis  iudaicis 
in  usu  apud  Aethiopes.  —  34)  Cap.  9  per  totum,  errores  circa  sa- 
cramentum  Baptismi.  —  35)  Cap.  10  per  totum,  errores  circa  sacra- 
mentum  Poenitentiae  eiusque  praxis  risu  digna.  —  36)  Cap.  11, 
nn.  I,  2,  de  diebus  quibus  missam  celebrant  Aethiopes;  de  altari, 
vestibus  s&cerdotalibus  etc;  nn.  13,  14,  erronea  praxis  in  celebra- 
tione  Missae  et  in  sumenda  Eucharistia.  —  37)  Cap.  13,  n.  2,  de 
honoribus  et  divitiis,  quibus  abundat  Abuna  etc;  nn.  3,  4,  5,  7, 
quomodo  sacris  ordinibus  initientur  etc;  de  ridiculo  examine  ini- 
tiandorum;  de  commentitio  coelibatu  clericorum  etc  —  38)  Cap.  14, 


XXXVIIl  INTRODUCTIO 

n.  2,  Auctor  disputat  contra  divortium;  n.  5,  et  contra  pravam  con- 
suetudinem  viduarum  nubendi  leviris  suis.  —  39)  Cap.  15,  nn.  9-13, 
ritus  consecrationis  altarium;  de  vasis  sacris;  de  reverentia  quam 
Aethiopes  templis  adhibent:  descriptio  templi  ad  europaeae  artis 
modum  ab  A.  constructi;  de  sacris  imaginibus  apud  Aethiopes.  — 
40)  Cap.  16  per  totum,  de  ritibus  fiinebribus  et  erroribus  circa 
Purgatorium.  —  41)  Cap,  20  per  totum,  de  praecipuis  Aethiopiae 
monasteriis  et  praesertim  Libanos.  —  42)  Cap.  21  per  totum,  de 
monasterio  de  Allelo. 


Ex  his  quae  hucusque  exposita  sunt  de  Fontibus  abunde 
patet  intelligenti  quo  pretio  habenda  sit  Historia  aethiopica 
patris  Paez.  Nihil  enim  ferme  in  ea  ab  Auctore  narratur  quod 
non  vel  ipse  oculis  usurpaverit,  vel  e  certis  documentis  aut 
a  testibus  fide  dignis  acceperit.  Si  quis  igitur  sinceram  Ae- 
thiopiae  imaginem,  maxime  initio  saeculi  XVII,  prae  oculis 
habere  velit,  is  pervolvat  diligenter  quatuor  istius  historiae 
libros,  et  spe  sua  non  frustrabitur.  Addo  quod,  cum  Auctor 
utramque  linguam,  aethiopicam  vetustam,  scilicet  geez,  et  vul- 
garem,  seu  amaricam,  perfecte  calluerit  librosque  aethiopicos 
primus  ex  europaeis  prae  manibus  habuerit,  non  parum  subsidii 
in  plerisque  capitibus  ipsius  historiae  recentiores  in  literatura 
aethiopica  eruditi  poterunt  invenire.  Demum  historiae  natu- 
ralis  cultores  plura  nec  spernenda  reperient  in  his  quae  A. 
fuse  de  animalibus,  de  plantis  et  de  mineralibus  pertractat. 
Legentibus  enim  patebit,  Auotorem  nostrum  singulari  quadam 
perspicacia  in  observandis  obiectis,  quae  suis  oculis  primo 
obiiciebatur,  iisque  cum  aliis  sibi  notis  comparandis  dotatum 
fuisse.  Tunc  temporis  profecto  animalium  in  varias  classes 
scientifica  distributio,  si  aristotelicam  excipias,  nulla  habebatur, 
et  historiae  naturalis  obiecta  a  priori  potius  vel  ex  traditione 
vulgari,  quam  a  posteriori,  seu  ex  experientia,  tractabantur. 
Quare  non  parum  miratus  sum  Auctoris  ingenlum,  qui  in  de- 
scribenda  forma  et  moribus  animalium  adeo  fuit  exactus,  ut 
a  recentiori  zoologiae  cultore  nil  magis  desiderares.  Percurrat 


INTRODUCTIO  XXXIX 

ex.  gr.  lector  descriptiones  Camelopardalis,  Zebrae,  Rhino- 
cerontis  et  Hyppopotami,  quas  auctor  exhibet  Lib.  I,  cap.  23^ 
nn.  4,  5,  et  6,  et  fatebitur  mecum  in  nuUo  alio  historiae  na- 
turalis  libro  se  accuratiores  invenisse.  Quod  vero  spectat  ad 
eventus  historicos,  quorum  testis  fuit  ipse  Auctor,  nemo  non 
videt  quanti  eius  Historia  emolumenti  sit  allatura  iis  qui  hi- 
storiam  Aethiopiae  saeculi  XVII,  non  ex  praeconceptis  iudi- 
ciis,  ut  hucusque  a  plerisque  factum  est,  vel  ex  fontibus  tan- 
tummodo  aethiopicis,  qui  omnimodam  non  merentur  fidem, 
sed  ex  intima  ac  genuina  rerum  factorumque  ratione  pertra- 
ctare  velint.  Et  haec  quoad  historiae  huius  substantiam. 
Quod  pertinet  ad  rerum  tractandarum  modum,  in  Auctore 
nostro  perspicuitatem  et  nativam  quamdam  simplicitatem  lector 
suspiciet  (i).  NuUa  insuper  est  quaestio,  etiam  difficillima,  nuUi 

(i)  Utinam  hanc  Auctoris  nostri  simplicitatem  in  enarrando  ceteri,  qui 
ex  eo  materiam  desumpserunt,  secuti  fuissent.  Conferat  ex.  gr.  lector  de- 
scriptionem  eiusdem  eventus  primo  a  p.  Paez  exhibitam,  dein  ab  Almeida  ac 
demum  a  Tellez,  quam  hic  subiicio.  Paez,  lib.  IV,  cap.  3,  fol.  407,^.:  «  Perto  da 
minham,  quiseram  descansar  hum  pouco  e  pera  isso  nos  afastamos  bom  pe- 
da^o  do  caminho,  e  estando  asentados  antes  de  dormir,  se  alevantaram  todos 
com  muita  pressa  grit^do ;  e  virando  eu  a  cabe^a  a  ver  que  era,  vi  hum  liao, 
que  saia  dando  volta  e  estava  de  mi  como  8  ou  dez  passos ;  pollo  que,  se 
nam  tivera  huns  espinheiros  no  meio,  pode  ser  que  ficera  salto;  e  com  a 
grita  que  Ihe  deram  se  afastou,  mas  muito  devagar.  Tiraram  muitas  pedras 
pera  aquella  parte  e  parecendolhes  que  seria  fugido,  nos  deitamos,  ficando 
dous  em  vigia;  mas  elle  tomou  a  passar  logo  outra  vez  a  vista,  que  facia 
bom  luar;  pollo  que  nos  fomos  sem  dormir;  e  caminhamos  etc.  ». 

Almeida,  lib.  I,  cap.  12,  fo.  196:  «  No  quarto  da  alva  se  afastou  com 
os  companheiros  hum  pouco  do  caminho  pera  tomarem  algum  descanzo: 
eis  que,  em  pregando  os  olhos,  o  acorda  huma  grande  grita  que  derao  os 
companheiros  e  virando  o  padre  os  olhos  pera  ver  o  que  era,  veo  hum  leao 
oito  ou  dez  passos  que  se  retirava  devagar  e  metia  no  mato.  Atirarao  to- 
dos  pera  aquella  parte  muitas  pedradas  e  come(;avaose  a  aquietar,  quando 
o  leao  Ihe  tomou  a  aparecer  por  outra  banda.  Deixarao  entao  o  descanso 
e  tomarao  ao  caminho...  ». 

Tellez,  lib.  III,  cap.  13,  pag.  241 :  «  ...  no  quarto  d*alva  se  afastou 
hum  pouco  do  caminho  pera  tomarem  algum  repouzo.  Eys  que  ao  primeyro 
pregar  dos  olhos  o  esperta  huma  grande  grita  dos  companheyros  e  viran- 
dose  o  padre  pera  a  parte  donde  vinham  os  brados,  ve  hum  fero  e  espan- 
toso  le&m,  em  distancia  de  oyto  ou  dez  passos,  que  com  lento  e  vagaroso 


XL  INTRODUCTIO 

eventus,  etiamsi  intricatissimi,  qui  ab  auctore  fere  ob  oculos 
legenti  non  subiiciantur. 

Attamen  quia  patri  Paez,  continuis  et  gravissimis  occu- 
pationibus  distento,  otium  defuit  ad  suum  opus  expoliendum, 
hinc  factum  est  ut  plura  in  eo  menda  reperiantur.  Praecipua 
sunt:  defectus  aliqualis  ordinis  in  digerenda  materia;  nimia 
identidem  prolixitcLs ;  repetitiones  frequentes;  periodiorum  non 
semper  ad  normam  syntaxis  evolutio ;  verborum,  raro  tamen, 
hispanicorum  interpolatio  ac  demum  formarum  orthographi- 
carum  inconstantia.  Si  vero  isti  defectus  cum  intrinseco  operis 
pretio  comparentur,  merito  repetere  quis  possit  illud  horatia- 
num  <  ...  ubi  plura  nitent...  non  ego  paucis  offendar  maculis>. 

Quomodo  Historiae  codex,  qui  amissus  putabatur,  reper- 
tus  fuerit,  inveniet  lector  in  I  vol.  Notizia  e  Saggi^  par.  I,  n.°  i . 
In  huius  praesenti  mea  editione  adamussim  textum,  ut  ab 
Auctore  ipso  exaratum  est,  exhibeo,  nihil  immutando  ne  formam 
quidem  orthographicam  verborum,  quae  inconstans  est,  ut  dixi, 
quaeque  in  libro  2°,  qui  aliena  manu  conscriptus  est,  non 
parum  differt  a  tribus  aliis  libris  Auctoris  manu  conscriptis  (i). 
Interpunctionem  solummodo  aliquantulum  immutavi,  ut  lectio 
facilior  evaderet.  Huc  illuc  <  \sic\  »  interposui,  quando  lectio 
dubia  mihi  videbatur;  pariter  uncis  inclusas  adieci  literas  et 
aliquando  etiam  verba,  quae  Auctori  in  scribendo  evidenter 
exciderant.  Capita,  quae  saepe  longiora  sunt  quam  par  est, 
in  paragraphos  distinxi,  quarum  numeratio  tamen  in  mar- 
gine  videre  est,  ne  genuinam  A.  dispositionem  vel  minimum 


andar  se  hia  retirando  pera  o  matto,  mas  sem  os  querer  perder  dos  olhos, 
que  de  quando  era  quando  punha  nelles.  Depois  que  o  perderam  de  vista, 
trataram  outra  vez  de  repousar,  mas  o  leam,  que  parece  andava  faminto, 
nam  les  deyxou  por  muyto  tempo  lograr  o  sono,  porque  dando  huma  volta, 
Ihes  tornava  a  apparecer  pela  outra  banda,  tomando  os  a  espertar  outro 
novo  sobresalto ;  e  pera  nam  terem  mays  vizitas  de  semelhante  espertador, 
se  levantaram  e  tornaram  ao  caminho  ». 

(i)  Exemplar  utriusque  scriptionis  exhibetur  in  tabulis  quae  initio  lib.  I 
et  II  praefixae  sunt. 


INTRODUCTIO  XLI 

immutarem.  Unicuique  paragrapho   brevem    rerum    summam 
adieci  ut  legentium  utilitati  deservirem. 

A  notis  historicis  apponendis  omnino  abstinui ;  quae  enim 
animadversione  mihi  digna  videbantur  iam  adnotata  reperiet 
lector  in  vol.  I,  cit.  Notizia  e  Saggi  etc.  Notae  omnes,  quas 
inveniet  in  praesenti  volumine,  ad  declarationem  textus  solum- 
modo  pertinent.  At  vero  indicem  verborum  rerumque  nota- 
bilium,  ne  voluminis  huius  moles  plus  iusto  excresceret,  ad 
calcem  II  voluminis  amandandum  duxi. 


HISTORIA  DE  ETHIOPIA 


C.  BuccAU.  Rer.  Aeih*  Scrtpt*  occ,  ined,  —  II. 
I 


AO  MUITO  REVERENDO 
EM    CHRISTO    NOSSO    PADRE 

Padre  MUTIO  VITELLESCHI 

PREPOSITO  CiERAL 
DA  COMPANIIIA  DE  JESU 


que  entrei   em    este  imperio    de    Ethiopia, 

foi  em  mayo  de    1603,  e  comecei  a  ver  as 

as  delle,  entendi  quam  pouca  noticia  se  tinha 

^     ;  pollo  que  desejava  sempre  dar  alguma  aos 

daquellas  j>artes ;  mas  foram  tantas  e  tam  precissas  as  ocupa- 

<;oes,  que,  ainda  que  a  este  desejo  se  juntou  pedillo  com  in- 

stancia  por  cartas  aiguns  Padres,  nam  o  pude  nunca  por  em 

execuijam.  Agora  porem  me  foi  for^ado  cortar  por  algumas  e 

ainda  por  muyto  do  tempo,  em  quc  ouvera  de  descansar  do  tra- 

balho  de  outras,  por  me  encarregar  o  p.  Provincial  da  India 

que  o  ficesse  e  que  juntamente  respondese  ao  que  impoe   ao 

padre  Patriarcha  dom  Joam  Nunes  Barreto  e  aos  Padres  da 

Companhia,  que  com  elle  vinham  pera  Ethiopia,  o  padre  frey 


4  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

Luis  de  Urreta  da  sagrada  religiam  de  s.  Domingos  em  hum 
livro,  com  que  saio  em  Valencja  de  Aragam  o  anno  de  1610, 
das  cousas  politicas  e  ecclesiasticas  deste  imperio,  que  eu  li 
com  atencjam,  e  em  todo  elle  casi  nam  achei  cousa  que  dis- 
sese  com  o  que  ca  passa,  como  vera  tambem  claramente 
quem  lee  esta  Historia  que  das  mesmas  cousas  tenho  feita, 
em  que  ordinariamente  falo  de  vista,  e  o  que  refero  dos  livros 
de  Ethiopia  tresladei  fielmente,  e  as  cousas  que  escrevo  por 
informacjam  procurei  de  tomar  das  pessoas  mais  fide  dignas, 
que  ca  ha  e  tenho  por  certo  que  nenhuma  avera  entre  ellas 
a  que  possa  por  nota  quem  as  tiver  visto  e  esperimentado, 
e  muito  menos  a  as  demais  que  escrevo,  como  V.  P.  podera 
ver,  pois  todos  os  annos  tem  certas  informa^oes  do  que  ca 
passa,  pollas  cartas  dos  Padres  meus  companheiros  e  assi  por 
isto  como  por  ser  V.  P.  tam  particular  fay  desta  missam  (i), 
me  pareceo  debia  ofFerecer  a  V.  P.  este  peqtieno  trabalho  (2), 
em  cuya  ben^am  e  santos  sacrificios  e  ora^Ses  muito  em  o 
Senhor  me  encomendo. 

De  Dancas  corte  do  Emperador,  em  maio  de   1622. 


P.°  Paes. 


(i)  Verba  ista  italico  caractere  impressa  suffecta  ab  Auctore  leguntur  in  ms.  loco 
sequentium  quae  ab  ipsomet  abrasa  fuerunt,  scil.:   «  poUa  obriga^am  quc  tenho  ». 

(2)  Hic  etiam  sequcntia  abrasa  lcguntur:  «  esta  obra,  para  que,  sendo  tal  que 
possa  sair  a  luz,  de  licen^a  para  esso  e  sc  nam,  mande  que  fique;  por  que  meu  intento 
nam  foi  mais  que  cumprir  com  a  obediencia  do  p.  Provincial  e  satisfacer  ao  desejo  dos 
Padres  quc  a  pediam,  ». 


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EXEMPLAR  SCRIPTIONIS  I,  III  ET  IV  LIBRI  AiUCTORIS  MANU  EXARATI. 


PR©L©G©  a©  LEIT©R 


a  das  principaes  re<;oes  e  causas,  por  que  se  escre- 
m  as  Historias,  christam  Leitor,  he  pera  que  com 
tempo  nam  fiquem  sepultadas  no  esquecimento  as 
cousas  dignas  de  memoria,  senam  que  sirvam  de  lembran^a  e 
exemplo  a  os  vindouros,  como  di?.  Quintiliano  Inst.  Oral.  H- 
vro  lo,  cap.  i.  e  por  isto  ordenou  Deos  nosso  Senhor,  que  se 
ficesem  Chronicas  das  cousas  memoraveis  que  sucederam  ao 
povo  de  Isrrae).  como  se  vee  nos  livros  sanctos,  onde  se  referem 
miudamente  nam  s6  as  cousas  prosperas,  mas  as  adversas,  os 
bens  e  os  males  que  ficeram  os  Reys,  os  Principes  e  Monarchas 
de  Isrrael ;  que  esse  he  o  fim  da  Historia,  como  diz  s.  Augusti- 
nho,  tom.  2,  Epistola  131  ad  Memorium  episeopum,  contar 
com  toda  verdade  assi  o  mal  como  o  bem  de  quem  o  tem. 
Tambem  se  escrevem  as  Historias  pera  que  todos  possam  ter 
noticia  das  cousas  insignes  que  ha,  e  dos  casos  que  sucedem 
em  terras  muito  remotas  e  afastadas,  o  que  causa  grande  go- 
sto  e  he  de  muita  recrea<;am  participar,  se  quer  em  esta  forma. 


6  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

daquilo  que  nam  podem  ver.  Mas  he  muy  importante  e  de 
todo  necessario  que  o  historiador  tenha  certa  informacjam  do 
que  ha  de  escrever,  porque,  como  notou  muito  bem  Luciano 
livro  Quomodo  est  scribcfida  Ilistoriay  he  grande  vicjo  della 
quando  o  que  a  escreve  nam  esta  muy  enteirado  das  pala- 
vras,  das  pessoas,  dos  casos  e  lugares  tocantes  a  ella ;  o 
que  muitas  veces  falta,  particularmente  em  os  que  escre- 
vem  por  informacjam  de  outros,  e  por  isso  se  acham  tantos 
e  tam  grandes  erros  em  historiadores  muito  graves,  como 
em  Plinio  e  outros  antiguos,  e  ainda  em  alguns  modernos, 
que  escreveram  das  cousas  da  India  oriental.  Mas  sobre  todos 
os  que  tenho  visto  e  ouvido  os  tem  o  padre  frey  Luis  de 
Urreta  da  Ordem  do  glorioso  padre  s.  Domingos,  em  hum 
livro  que  imprimio  em  Valen^a  de  Aragam  o  anno  de  6io, 
a  que  intitulou  :  Historia  ecclcsiastica  e  politica  dos  grandcs 
e  remoios  reynos  de  Ethiopia^  Monarchia  do  Emperador  cha- 
mado  Preste  JoafJi  das  Indias^  que  agora  me  chegou  as  maos, 
e  achei  que  por  seguir  a  informa^am  de  hum  Joam  Balthe- 
sar  natural  do  reyno  de  Fatag&r  em  Ethiopia,  Cctsi  nam  tem 
cousa  que  diga  com  a  verdade  do  que  ca  passa.  Nem  ha  que 
maravilhar  muyto  disso,  porque  de  mais  de  que  ordinaria- 
mente  de  longas  vias  *vam  largas  mentiras,  nam  tinha  noticia  f.  i,v. 
de  ser  esta  a  moeda  mais  corrente  em  Ethiopia,  tanto  que  o 
emperador  Mal^c  QaguM,  que  reinou  n  annos  e  avera  23 
que  morreo,  tracia  muytas  veces  por  proverbio:  «  Mentiras  de 
Ethiopia  e  cobicja  de  Egypcios  » .  Do  que  eu  pudera  tracer 
aqui  muytos  exemplos  das  cousas  que  tenho  visto  do  anno 
de  603,  que  entrei  em  Ethiopia;  mas  baste  o  que  passou 
cstando  com  o  emperador  SeltSn  (^'agued,  que  agora  he,  no 
terrado  de  alguns  pa^os  muito  altos,  que  ha  pouco  tempo 
c|ue  fez.  Chegou  hum  seu  criado  e  disselhe  que  ficera  tracer 
certa  madeira  que  Ihe  tinha  encomendado  de  50  palmos  de 
cumprido  e  tres  de  largo.  Disse  o  Emperador  que  visse  bem 
se   tinha  enteiramente   aquella  medida.  Foi   elle  e,  tornando 


PROLOGO  AO   LEITOR  7 

logo,  porque  estava  ja  a  madeira  na  porta  do  pa^o,  affirmou 
que  ainda  tinha  mais  que  menos.  Folgou  tanto  o  Emperador 
de  ouvir  isto,  que  deceo  logo  a  ver  com  muytos  dos  Gran- 
des  e  eu  com  elles,  e  chegando  achou  que  nam  tinha  ainda 
bem  dous  palmos  de  largura ;  poUo  que  voltou  enfadado,  di- 
cendo :  Se  daqui  a  la  cima  me  tracem  tam  grande  mentira, 
que  faram  do  estremo  de  meu  imperio[?]. 

Pouco  tempo  depois  disto,  me  disse  elle  que  escolhese 
huma  boa  terra,  que  ma  daria  ;  e  nomeandolhe  huma,  que 
me  tinham  louvado,  me  preguntou  se  a  tinha  visto,  e  respon- 
dendolhe  que  nam,  mas  que  ma  louvaram,  disse :  Nam  se  fie 
V.  R.  tam  de  pressa  do  que  Ihe  dicem  ;  nam  cuide  que  a 
gente  de  nossa  terra  he  como  a  da  sua :  primeiro  veja  a  terra, 
e  depois  diga  se  he  boa  ou  nam.  Com  o  que  confirmou  o  que 
dicem  ca  muitos,  que  em  Ethiopia  nam  se  ha  de  crer  se  nam 
o  que  se  vir  com  os  olhos.  E  assi  eu  tambem  achei  que 
aquella  terra  nam  aproveitava  pera  nada,  pollo  que  me  deu 
outra  muito  boa. 

Pois  se  na  terra  de  Ethiopia,  onde  facilmente  se  pode 
provar  o  que  he  mentira,  se  dicem  tantas,  que  muito  que 
Joam  Balthesar  se  esprayase  lanto  a  sua  vontade  nellas  em 
terra  tam  distante  desta,  como  he  Valencja,  onde  ninguem  Ihe 
podia  contradicer  [?].  Foi  em  esta  materia  tam  largo  que  se  pu- 
dera  dicer  que  nenhuma  cousa  juntou  o  padre  frey  Luis  de 
Urreta  a  sua  informa^am  mais  a  proposito  que  as  patranhas 
que  traz  dos  Poetas,  porque  nam  o  sam  menores  as  que  Joam 
Balthesar  Ihe  affirmou  por  grandes  verdades ;  antes  foi  muyto 
menos  o  que  aquelles  fingiram  do  que  este  sem  nenhum 
escrupulo  inventou.  PoUo  que  disse  muyto  bem  frey  Luis  de 
Urreta  no  principio  do  Prologo  de  sua  Historia,  que  as  cousas 
que  escrevia  eram  todas  novas,  nam  vistas,  nem  lidas  em 
author,  nem  livro  de  quantos  tem  Europa ;  porque,  a  fora  dos 
f.  2.  livros  de  cavallerias,  que  *professam  fic^oes,  nam  parece  (jue 
abera  nenhum  que  tenha  tantas,  quantas  Joam  Balthesar  refirio. 


8  HTSTORIA   DE   ETHIOPIA 

Vendo  pois  eu  tantas  fabulas,  contei  por  festa  algumas 
diante  do  Emperador  e  de  muytos  Grandes,  e  mostrandolhes 
o  livro,  se  maravilharam  muyto  de  como  deram  tam  de  pressa 
credito  a  hum  homem  nam  conhecido  pera  imprimir  livro ;  e 
disse  o  principal  dos  secretarios :  Parece  que  este  Joam  Bal- 
thesar  he  chocarreiro,  que  todas  as  cousas  conta  as  avesas. 
Respondeo  o  Emperador:  Nam  he  se  nam  espiritu  maligno; 
porque  o  chocarreiro  nam  pode  inventar  tantas  mentiras.  E 
se  ficera  isto  somente  engrandecendo  as  cousas  de  sua  terra, 
fora  menos  mal ;  mas  procurou  tanto  desfacer  em  as  dos  Por- 
tugueses  (se  he  seu  todo  o  que  frey  Luis  escreve,  como  elle 
affirma)  e  por  nota  em  pessoas  tam  graves  delles,  que  me 
pareceo  tinha  obriga^am  de  contradicer  suas  mentiras,  ma- 
nifestando  a  verdade,  e  pera  que  o  leitor  tenha  alguma  noti- 
cia  dellas,  em  quanto  chega  a  seus  lugares  onde  as  vera  cum- 
pridamente  refutadas,  tocarei  aqui  brevemente  algumas. 

Diz  pois  (como  refer  frey  Luis  de  Urreta,  pag.  207)  que 
vindo  por  Patriarcha  de  Ethiopia  o  padre  dom  Joam  Varreto, 
entrou  nella  com  1 2  companheiros  da  Companhia  e  alvoro- 
tou  logo,  nam  somente  o  estado  secular  de  todo  o  imperio, 
mas  os  clerigos  muyto  mais,  mandando  que  dalli  por  diante 
nam  ouvese  mais  clerigos  casados,  senam  que  em  tudo  se 
conformasem  com  a  Igreja  latina ;  e  que  os  seculares  paga- 
sem  dizemos  a  Igreja  de  todos  seus  fructos,  amas  cousas 
novas  e  nunca  vistas  em  Ethiopia,  e  creceram  tanto  as  dif- 
ferencias,  que  o  Patriarcha  com  casi  todos  seus  companheiros 
se  sairam  de  Ethiopia  e  tornaram  pera  Goa ;  sendo  assi  que 
nem  o  Patriarcha  dom  Joam  Varreto  veio  em  toda  sua  vida 
a  Ethiopia,  nem  passou  nunca  de  Goa,  nem  por  outro  nen 
hum  Padre  se  mandaram  nunca  taes  cousas. 

Na  pag.  614  diz  que  poUos  annos  de  1555  entraram  em 
Ethiopia  mais  de  trecentos  Portugueses  judeos,  a  quem  que- 
rendo  prender  os  Inquisidores,  por  se  descubrirem  por  taes, 
fugiram  huns  pera  os  mouros  e  outros  pera  Goa;  onde,  pera 


PROLOGO  AO   LEITOR  g 

encubrir  sua  maldade  e  apostasia,  affirmaram  mil  falsedades, 
dicendo  que  os  de  Ethiopia  eram  cismaticos  e  o  Preste  Joam 
cruel  enemigo  da  religiam  christaa,  e  que  o  padre  Patriarcha 
Andre  de  Oviedo  estava  presso  padecendo  grandes  trabalhos 
nas  prissoes,  e  chegando  estas  novas  al  rey  dom  Sebastiam, 
f.  2,v.  se  persuadio  com  *facilidade  ser  historia  verdadeira  o  que  nam 
era  senam  fabula  e  malicia,  e  alcancjou  de  Pio  V  hum  bu- 
leto  surrepticio,  por  estar  Sua  Santidade  mal  informado,  em 
que  mandava  que  o  padre  Patriarcha  Andre  de  Oviedo  saise 
de  Ethiopia  com  a  primeira  ocasiam  que  achase  e  fosse  a 
pregar  a  China  e  Japam.  Isto  tam  bem  he  muyto  fora  dos 
limites  da  verdade ;  porque  nem  em  Ethiopia  entraram  nunca 
taes  Portugueses  judeos,  nem  ha  Inquisidores,  nem  hum  Rey 
tam  christao  e  prudente,  como  dom  Sebastiam,  se  avia  de 
persuader  com  facilidade  o  que  nam  era,  pera  informar  de 
cousa  tam  grave  a  Sua  Santidade,  antes  o  fez  com  muito 
pezo  e  acordo  e  por  ter  informacjoes  muyto  certas  que  o  Pre- 
ste  Joam  era  muyto  contrano  a  nossa  santa  fe,  e  prender  e 
degradar  ao  padre  Patriarcha  Andre  de  Oviedo. 

Por  estas  e  outras  muytas  mentiras,  que  depois  veremos, 
se  pudera  facer  deste  livro  o  que  seu  mesmo  author  refere 
pag.  343  que  se  fez  no  reyno  de  Valencja  ao  livro  de  Joam 
Bolero  Benes,  que  por  dicer  pouco  e  falso  dos  reynos  e  pro- 
vincias  do  mundo,  e  em  particular  de  Espanha,  o  prohibi- 
ram  com  pregoes  pubricos  ;  porque  nam  he  re^am  se  per- 
mita  que  livro  de  tantas  mentiras  e  que  tanto  tocam  na  honrra 
e  fama  de  huma  nacjam  tam  catholica  como  a  portuguesa, 
de  quem  ainda  os  Turcos,  com  serem  tam  grandes  seus  ene- 
migos,  affirmam  (como  eu  ouvi  muytas  veces  em  sete  annos 
que  me  tiveram  cativo  no  estreito  de  Meca)  que  nam  ha 
na^am  mais  fiel  e  verdadeira  que  a  portuguesa ;  pollo  que  pu- 
deram  dicer  com  Moyses  DetiL  32:  «  Inimici  nostri  suntju- 
dices  » .  Nem  he  re(;am  que  tal  livro  ande  dedicado  a  Sacra- 
tissima  e  sempre  Virgem  do  Rosario  may  da  mesma  verdade. 

C.  Bbccari.  Her,  Aeth,  Scripi,  occ,  iued»  —  II.  2 


lO  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

Nam  digo  isto  por  desfacer  no  piadoso  zelo  com  que  se  deve 
presumir  que  o  padre  frey  Luis  de  Urreta  escreveo,  senam 
pera  mostrar  o  que  merecem  as  falsedades  grandes,  com  que 
Joam  Balthesar  o  enganou. 

O  que  principalmente  pretende  o  padre  frey  Luis  em  toda 
sua  obra,  e  mais  de  proposito  no  livro  2,  he  mostrar  que  os 
Emperadores  de  Ethiopia  e  seus  vassallos  nunca  foram  ci- 
smaticos  e  desobedientes  a  Igreja  romana,  nem  o  sam  oje, 
e  que,  ainda  que  por  muito  tempo  ignoraram  muitas  ceremo- 
nias  da  Igreja,  toda  via,  no  que  toca  ao  misterio  da  S."*  Trin- 
dade  e  dos  14  artigos  e  dos  Sacramentos,  sempre  do  prin- 
cipio  da  Igreja  se  conservaram  em  toda  pureza  e  sinceridade 
da  fe  catholica,  sem  nunca  se  afastarem  hum  ponto  della,  nem 
dos  artigos  decretados  e  difFmidos  nos  concilios  geraes;  e 
quanto  ao  *circuncidaremse  e  guardarem  sabbado  e  outras  ce-  f.  3. 
remonias  da  ley  velha,  que,  depois  que  por  via  da  India  de 
Portugal  tiveram  comercio  com  a  Igreja  romana  e  entende- 
ram  que  os  ChristSos  de  la  se  escandalizavam  de  elles  guar- 
darem  a  circuncissam  e  mais  ceremonicis  da  ley  e  os  Papas 
Ihes  mandaram  que  o  nam  ficessem,  logo  o  deixaram  sem 
nunca  mais  se  circuncidar,  nem  guardar  ceremonia  alguma  ju- 
daica  nem  outros  erros,  em  que  de  antes  por  ignorancia  vi- 
viam.  E  assi  na  pag.  44  reprehende  com  palavras  muy  pe- 
sadas  aos  authores  que  escreveram  o  contrario,  chamandoos 
presumidos,  calificadores  de  so  nome  e  nam  de  officio  e  que 
falam  mal  e  sem  fundamento,  com  outras  cousas  semelhantes. 
Esta  he  a  soma  de  todo  seu  intento  e  a  este  proposito  diz 
outras  muytas  cousas  que  no  discurso  desta  Historia  mostrarei 
como  sam  falsas,  sem  arrecear  esta  censura  que  elle  pus  a 
aquelles  authores,  porque  no  principal  falarei  de  vista  e  espe- 
riencia  e  nam  por  informacjoes  como  as  de  Joam  Balthesar, 
e  no  demais  as  tomarei  dcis  pessoas  mais  importantes  deste 
imperio ;  e  em  tudo  o  que  escrever,  ora  toque  aos  Portugue- 
ses,  ora  a  os  de  Ethiopia,  falarei  desinteresadamente  con  cha- 


PROLOGO   AO  LEITOR  II 

necja  e  seni  encarecimentos;  porque  demais  de  ser  Religioso, 
a  quem  pertence  dicer  singelamente  a  verdade  do  que  sou- 
ber,  nem  pera  engrandecer  aquelles  me  podera  mover  a  carne 
e  sangue,  nem  pera  desfacer  em  estes  me  incitara  desgosto 
particular,  antes  Ihes  tenho  muytas  obrigacjoes,  porque  do  prin- 
cipio  que  entrei  em  suas  terras,  sempre  me  ficeram  muytas 
honrras  e  merces  sobre  merces,  nam  somente  os  principes 
e  grandes,  mas  em  particular  tres  Emperadores  que  foram  em 
este  tempo.  Pollo  que,  guardando  as  leys  de  boa  historia  e 
seguindo  o  parecer  de  santo  Agustinho  no  lugar  citado,  direi 
singelamente  o  bem  e  o  mal  pubrico  de  quem  o  tiver,  sem 
facer  eceicjam  de  pessoas,  sometendome  sobre  tudo  ao  pare- 
cer  e  correicjam  de  quem  com  charidade  me  quiser  emmen- 
dar,  particularmente  a  do  padre  Mutio  Vitelleschi  Geral  de 
nossa  Companhia,  a  quem  vai  dirigida  esta  Historia,  porque 
demais  de  ter  poder  pera  tirar  o  que  Ihe  parecer  ou  mandar 
que  ninguem  a  veja,  nenhum  outro  milhor  a  pode  emmen- 
dar,  por  ser  fielmente  informado  cada  anno  de  todas  as  cou- 
sas  que  sucedem  por  outros  cinco  Padres  da  Companhia,  que 
ca  residem. 


[LIVRO  1]  <•) 


CAPITULO   I. 

Em  que  se  trata  da  situa^am  e  de  quantos  e  quais  se- 
jam  os  reynos  e  provincias  da  parte  de  Ethiopia,  que 
senhorea  o  Emperador  que  chamam  Preste  Joam. 

f.  5,v.  *Muytas  e  grandes  differencias  tem  entre  si  os  authores  sobre       i.  Cur  uutur  de- 

...  .      .  t_  nominatione    Preste 

quantos  e  quais  sejam  os  reynos  e  provmcias  que  se  comprehen-  1^^^^^^  Errores  Urre- 
dem  de  baixo  deste  nome  Ethiopia  ;    mas  eu  nam  me  deterei  em  **®  geographici  in- 

numeri.  Auctor   de- 

aprovar,  nem  condenar  suas  opinioes,  porque  meu  intento  nam  he  scHbitomntaez  pro- 
tratar  aqui  della  em  toda  sua  latitud,  senam  de  so  esta  parte  que  stonttarfocorum  me- 
senhorea  o  Emperador  a  que  comummente  chamam  Preste  Joam.  E  tiuntur  incolae   per 

dies  itineris ;  Auctor 

posto  que  muytos  e  graves  authores,  como  sam  os  que  se  citam  no  reducit  ad  leucas. 

Prologo  da  Historia  Ethiopica  de  Francisco  Alvarez  e  refere  frey 

Luis  de  Urreta  na  sua  cap.  i8,  affirmem  que  este  Emperador  nam 

he  o  Preste  Joam,  senam  outro   Rey  muy  differente,  que  confina 

com  os  Tartaros,  onde  ainda  agora  ha  Christaos,  segundo  me  af- 

firmou  pouco  ha  hum  mancebo  natural  da  Tartaria,  que  vejo  a  ter 

a  esta  terra ;  com  tudo  isto  no  discurso  desta  Historia  o  nomearei 

por  Preste  Joam,  por  ser  mais  conhecido  em  Europa  por  este  nome, 

que  por  outro  nenhum.  Mas  antes  de  nomear  seus  reynos  e  provin- 

(l)  Dcsignatio  Libri  primi  deest  hic  in  autographo,  sed  bene  adest  in  sequenti- 
bus  tribus  libris. 


14  HISTORrA    DE   ETHIOPIA 

cias,  sera  bem  advertir  que,  demais  de  que  casi  todas  as  informa- 
Qoes  que  Joam  Balthesar  deo  a  frey  Luis  de  Urreta,  no  so  no  que 
toca  as  cousas  ecclesiasticas  dc  Ethiopia,  mas  tambem  nas  politicas 
da  paz  e  da  guera,  ritos  e  costumes,  sam  meras  fic^oes  e  cousas 
prodigiosamente  fabulosas,  nas  descrip(;:oes  geograficas,  situagam, 
gradua^am  de  terras,  reynos,  provincias,  mares,  rios  e  alagoas  nam 
diz  cousa  com  cousa,  senam  tudo  tam  misturado  e  com  tam  grande 
confusam,  que  nam  ha  quem  o  entenda;  e  nos  nomes  proprios  das 
cousas  he  necessario  adivinhar  pera  saber  de  que  fala ;  nem  ainda 
eu  com  estar  ca  poderei  falar  matematicamente  nas  distancias  e  si- 
tua^oes  das  terras,  assi  por  nam  ter  instrumentos  nem  cousa  de  que 
me  ajudar,  como  polla  gente  da  terra  ser  tam  pouco  curiosa  em 
esta  materia  que  nenhuma  recjam  certa  sabem  dar,  nem  contam  por 
legoas  senam  por  dias  de  caminho,  em  que  pode  aver  grande  fa- 
lencia,  mas,  computando  pouco  mais  ou  menos  pollo  que  comum- 
mente  acostumam  de  andar  em  hum  dia,  colligireis  as  distancias 
com  a  maior  probabilidade  que  puder. 
a.  Aethiopia  pro-  Tratando  pois  de  so  esta  parte  de  Ethiopia,  que  senhorea  o 

prie  dicta  eztenditur 

inter  tropicos  per  Preste  Joam,  sua  cumpridam  corre  de  norte  a  sul  e  toda  ella  esta 
500  ^«ucas  longitu-  pQgta,  entre  os  Tropicos  de  baixo  da  zona  torrida,  e  comeca  de  perto 

diniB  a  FocAt  usque    ^  ^  '  t  i- 

ad  BahAr  Qam6  et  de  Quaquem  de  huma  terra  que  se  chama  Focai  e  vai  discurrendo 
ti^iniVab  Haz6  us-  P^^^  ^  sul  ate  a  tcrra  que  chamam  Bahar  Gamo.  Preguntei  a  mui- 
que    ad    Ombare4.  ^^5  quantos  dias  seriam  de  caminho,  e  achei  muyta  variedade  entre 

Graves  errores  vete- 

rum  Bcriptorum  et  elles,  particularmente  preguntando  a  alguns  Grandes  diante  do  em- 
^*^*^  ^       '  perador  Seltan  Qagued,  huns  disseram  que  eram  dous  meses  de  ca- 

minho ;  ao  que  respondeo  o  Emperador  que  nam  podia  ser  tanto  e 
facendo  a  conta  com  elles  achou  40  *e  cinco  dias  de  caminho;  f«4- 
outros  disseram  que  eram  50»  que  contados  a  8  legoas  que  pode- 
ram  andar  cada  dia,  sam  400  legoas,  e  se  quisermos  estender  a  dez 
por  dia  (que  conforme  elles  seralavam  a  distancia,  nam  o  eram), 
entam  seram  500.  Sua  largura,  por  onde  a  tem  maior,  come^a  do 
estremo  da  provincia  de  Bur,  de  huma  terra  que  se  chama  Hazo, 
que  esta  de  pois  de  entrar  as  portas  do  estreito  do  Mar  Roxo,  e 
vai  discurrendo  casi  pcra  oessudueste  ate  huma  terra,  que  chamam 
Ombarea,  e  dicem  que  sera  trinta  dias  de  caminho  de  huma  parte 
a  outra,  que  contados  a  S  legoas  sam  240,  e  se  quisermos  que  tam- 
bem  se  contem  a  dez,  entam  seram  300  legoas.  E  assi,  quando  al- 
guns  authores  dicem  que  ha  tres  meses  e  mais  de  caminho  de  hum 
estremo  a  outro  do  imperio,  parece  que  entenderam  das  jornadas  que 


LIVRO   I,   CAPITULO   I.  15 

faz  o  Preste  Joam,  quando  caminha,  que  seram  de  tres  ou  4  legoas. 
Pollo  que  conforme  a  isto  se  alargou  muito  frey  Luis  de  Urreta 
no  cap.  I,  pag.  5,  dicendo  que  tem  de  cumprido  680  legoas,  e  de 
largo  470,  e  por  onde  menos  260,  e  de  circuito  2000;  e  muito  mais 
errou  no  mesmo  lugar,  affirmando  que  esta  terra  tem  por  confins  ao 
poente  o  Rio  Negro,  o  monte  Atlante  e  o  reyno  de  Congo,  e  ao 
meio  dia  os  famosos  montes  da  Lua  e  o  Cabo  de  Boaesperan^a  e 
toda  a  costa  do  Oceano  de  Mo^ambique  ate  o  Cabo  de  Guardafui ; 
que  todas  sam  cousas  entre  si  muy  distantes  e  disparatas;  porque 
o  Rio  Negro  (que  elle  diz  que  ca  se  chama  Marab),  quando  sae 
das  terras  do  Preste  Joam,  esta  muy  distante  do  reyno  de  Congo, 
e  os  montes  que  elle  chama  da  Lua  (se,  como  affirma  pag.  29,  sam 
os  das  fontes  do  Nilo)  estam  no  reyno  de  Gojam  muyto  dentro  de- 
ste  imperio,  e  o  cabo  de  Boaesperan^a  e  Mo^ambique  muytas  cen- 
tenas  de  legoas  afastados  delles ;  nem  na  costa  do  Oceano  de  Mo- 
^ambique  ate  o  cabo  de  Guardafui  teve  nunca  o  Preste  Joam  hum 
palmo ;  nem  suas  terras  chegam  la  com  muyto,  nem  ainda  na  costa 
do  Mar  Roxo  tem  oje  porto  nenhum;  que  todos  Ihe  tomaram  os 
Turcos  ja  ha  mais  de  60  annos.  Os  mais  principaes  sam  Quaquen 
e  Ma^ua,  a  que  alguns  chamam  Dalec,  porque  primeiro  estava  este 
porto  em  huma  ilha,  que  se  chama  Dalec,  mas  depois  o  passaram 
a  Ma^ua.  Ambos  estes  portos  sam  ilhas  muyto  piquenas  e  perto  da 
terra  firme. 

Deixando  pois  isto  e  vindo  as  terras,  que  senhorea   o   Preste      3-  Nomina  35  Rc- 

gnoruin   c   18    Pro» 

f.  4.V-  Joam,  digo  que  sam  35  reynos  e  18  provincias.  *E  come^ando  polla  yinciarum  iuxta  c- 
vanda  do  Mar  Roxo,  o  primeiro  reyno  se  chama  Tigre,  depois  se  l®"^'*™  *^«  "tM?" 
segue  Dancali,  Angot,  Doba  Seltan,  Mota.  Au^a,  Amhara,  Olaca,  imperatoris     SeltAn 
Xaoa,  Ifat,  Gueden,  Ganh,  Doaro,  Fatagar,  Oye,  Bali,  Hadea,  Ala-  ^^  scriptomm  rc- 
male,  Oxelo,  Ganz,  Beteramora,  Gurague,  Cuera,  Buzana,  Sufgamo,  fcUuntur. 
Bahargamo,  Cambat,  Boxa,  Gumar,  Zenyero,  Narea,  Conch,  Damot, 
Gojam,  Begmeder,  Dambia.  Estes   tem   ca  por  reynos,  ainda   que 
alguns  pode  ser  que  nam  merecem  tal  nome.  As  provincias  se  cha- 
mam   Gadancho,  Arench,  Orgar,  Cagma,  Mergai,   Xarca,  Gamaro, 
Abexgai,  Talaceon,  Oagra,  ^emen,  (,^alamt,  Bora,  Abargale,  Salaoa, 
Qagade,  Oalcait,  Magaga.  Tudo  isto  me  dio  por  rol  o  principal  dos 
secretarios  do  Emperador  e  depois  pera  me  certificar  mais,  preguntei 
diante  do  mesmo  Emperador  a  hum  seu  irmSo,  que  se  chama  Eraz 
Qela  Christ6s  e  me  dissc  da  mesma  maneira,  mas  acrecentou  o  Em- 
perador  que  ainda  que  seus  antecessores  possuiam  todos  estes  reynos 


l6  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

e  provincias,  de  alguns  delles  senhoreava  elle  agora  pouco,  por  terem 
tomado  a  mor  parte  huns  gentios  que  chamam  Gala,  de  quem  adiante 
falaremos.  De  onde  se  vee  que  nam  foi  bem  informado  frey  Luis 
de  Urreta  sobre  esta  materia,  pois  diz  pag.  5  que  sam  42  reynos 
de  christaos  muito  grandes  e  muy  povoados,  e  trece  provincias  de 
gentios  e  mouros,  e  que  por  nam  serem  christaos  os  que  nellas  mo- 
ram  nam  Ihes  dam  nomes  de  reynos,  ainda  que  na  verdade  em  gran- 
de^a  o  sam.  Tambem  as  terras  de  hum  mesmo  reyno  que  gover- 
nam  Senhores  diflFerentes  nomea  por  reynos  distintos,  como  as  terras 
de  Tigre  Mohon  e  as  de  Bahar  Nagax,  aquem  elle  chama  Berna- 
gaez,  que  diz  que  sam  reynos,  sendo  nam  mais  que  terras  do  reyno 
de  Tigre ;  e  muyto  pior  informa<;am  tiveram  Bartholomeo  Casaneo 
e  Joam  Boemo  Aubano,  a  quem  elle  cita  pag.  343 ;  pois  o  primeiro 
(como  elle  alli  refer  contra  os  padres  Mafei  e  Ribadeneira)  affirma 
que  obedecem  ao  Preste  Joam  74  Reys  e  casi  infinitos  Principes, 
e  o  2°  diz  que  he  hum  dos  poderosos  principes  do  mundo,  e  o  que 
mais  reynos  tem  de  baixo  de  seu  imperio. 

4.  Forma corporis,  Os  moradores  dcstes  reynos  e  provincias  comummente  sam  de 

color  ac  vestitus  Ae-  ,  ,  ,  .    .  ,  t^      . 

thiopum  varia  iuzta  ^^^  ba^a,  mas  alguns  se  acham  casa  tam  alvos  como  Portugueses, 
regiones.  Vires  ro-  entre  os  que  chamam  Agous  e  (iongas  do  reyno  de  Gojam  e  entre 

os  Hadias ;  outros  sam  muyto  pretos.  Tem  ordinariamente  boas  fei- 
Qoes  no  rosto,  os  corpos  fortes  e  robustos,  sofredores  sobre  maneira 
de  trabalho,  fome,  sede,  calmas,  frios  e  vigias.  As  meninas  e  mi- 
nino[s]  filhos  de  gente  *baixa  andam  despidos  ao  sol  e  ao  frio  ate  f.  5. 
que  sam  grandecinhos,  ou  quando  muyto  se  cobrem  com  huma  pele 
de  cabra  ou  de  carneiro.  Os  filhos  de  homens  grandes,  ainda  que 
vistam  beni,  andam  descalgos  e  com  a  cabega  descuberta  ate  que 
sam  grandes  e  em  quanto  sam  piquencs  tracem  topete  muyto  bem 
concertado,  e  os  cavellos  do  mais  alto  da  cabe^a  cumpridos  e  tran- 
gados  em  tres  ou  quatro  tran^as,  que  Ihes  vam  caindo  pera  as  co- 
stas,  e  de  se  criarem  desta  maneira  e  sem  mimo  Ihes  vem  serem 
depois  robustos  e  de  boa  saude,  e  ordinariamcnte  passam  dos  80  an- 
nos  com  boas  for^as  e  disposic^am,  e  dicem  que  muitos  ainda  de  cem 
annos  as  tem ;  e  eu  vi  hum  frade,  que  me  affirmou  que  tinha  cento 
e   trinta  e  hum    annos  e  caminhava  a   pe  mostrandose  bem  forte. 

5.  Quoad  vires  in-  No  cntendimento,  que  he  o  milhor  do  homem,  nam  Ihes  facem 

teUectusaequant  Eu-  ^  .,1  -•     t-  « 

ropaeos;  vitia  dissi-  comummente  ventagem  os  milhores  de  iiuropa,  como  o  temos  bem 
mulant;  veniam  pro  esperimentado  na  gente  nobre;  e  o  que  a  mi  nam   pouco  me  raa- 

offensis  acceptis  non        ^  . 

recusant ;    graviora  ravilha  he  que  dc  tal   maneira  refream  suas  paixocs   naturaes,  ou 


LIVRO   I,   CAPITULO   I.  17 

pera  milhor  dicer,  as  dissimulam,  que  por  mais  agastados  que  estejam  negoda  non  pcr  se, 

sed  per  tertlas  per- 

huns  dos  outros,  raramente  o  mostram,  particularmente  os  homens  gonas  tractant. 

grandes;  antes  entam  sam  mais  corteses  e  brandos  em  suas  pala- 

vras,  sem  per  nenhum  caso  aver  as  descomposturas  que  entre  outras 

nagoes.  Mas  tambem  algnmas  veces  se  vengam,  posto  que  se  huma 

vez  perdoam  (o  que  facem  com  facilidade  quando  Ihes  rogam,  por 

grave  que  seja  a  cousa),  tem  por  grande  baixe^a  e  ainda  escrupulo 

tomar  a  falar  sobre  aquello  por  que  se  desavieram,  e  assi  os  que 

se  redducem  a  nossa  santa  fe  se  acusam  na  confissam  que  torna- 

ram  a  falar  (ainda  que  fosse  com  seus  amigos)  sobre  o  que  ja  tinham 

perdoado.  Tem  por  costume  nam  so  os  homens  grandes,  mas  os  de 

menos  condi^am,  nam  tratar  nunca  negocio  grave  de  rosto  a  rosto : 

tudo  corre  por  terceiros  e  recados,  por  mais  que  as  partes  sejam 

huma  mesma  cousa;  tendo  por  muyto  menor  perda  a  do  tempo  que 

se  gasta  em  estas  embaixadas  que  a  da  honrra  e  primor  que  se  pode 

menoscavar  com  algnma  mostra  de  paixam  ou  descompostura  nas 

palavras,  que  muytas  veces  nam  sam  tam  medidas  quando  o  animo 

esta  perturbado. 

As  cortesias,  de  que  usam  huns  por  outros,  sam  por  a  mao  6.  Quomodo  aese 
dereita  no  peito  e  baixar  a  cabe^a  dicendo :  Bi^on  ayaoel,  que  ^^  ^*"* 
quer  dicer:  o  mal  nam  esteja  em  vos.  E  quando  hum  he  inferior 
baixa  ate  a  cinta  o  panno  que  traz  em  lugar  de  capa  e  beixa  a 
mao  ao  outro ;  e  entrando  em  casa  de  homem  grande,  cinge  o  panno 
e  tira  os  (japatos.  Quando  os  homens  grandes  vam  de  huma  terra 
a  outra  e  visitam  seus  parentes,  ou  egoaes,  se  dam  paz  no  rosto; 
e  todos,  quando  entram  na  ig^eja,  tiram  os  cjapatos  e  ficam  com  a 
f.  5,v.  cabe^a  cuberta,  *como  em  cumprimento  do  que  Deos  mandou  ao 
profeta  Exo.  3,  que  se  descalgase  por  reverencia  e  respeito  e  nam 
que  se  desbarretase. 

Os  vestidos  dos  homens  grandes  sam  de  grS  e  outros  pannos      7.  Denuo  de  ve- 

^jj  ij-Lj  11  j/^'  _..      stibus    nobilium    ct 

nnos  de  damasco,  veludo  e  borcado,  que  Ihes  vem  do  Cairo ;  o  corte  piebis. 
he  o  mesmo  que  o  dos  Turcos,  mas  a  cabaya  interior,  que  Ihes 
serve  de  camisa,  tem  colarino  alto  com  botoes,  e  ordinariamente  he 
de  panno  branco  de  algodam  tam  fino  como  olanda,  que  Ihes  vem 
da  India;  e  as  cabayas  de  cima  degoladas  e  cumpridas  como  as 
dos  Turcos,  ainda  que  este  emperador  Seltan  Qagued  ja  vai  intro- 
ducendo  capas  como  as  dos  Portugueses.  Alguns  tracem  na  cabe^a 
toucas  como  Turcos,  outros  varretes  de  panno  ordinariamente  ver- 
melho,  outros  tem  o  cavello   cumprido,  que  concertam  de  muitas 

C.  Bkccaki.  Kgr.  A^th»  Script»  oec,  ined,  —  II.  J 


l8  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

maneiras.  A  gente  baixa  veste  como  pode  e  ordinariamente  he  hum 
panno  branco  de  algodam  cosido  como  len^ol  e  com  este  se  cobre,  sem 
tracer  de  baixo  mais  que  hum  cal^am ;  e  ainda  alguns  nam  tracem 
mais  que  hum  coiro  de  vaca,  que  concertam  como  camu^a  grossa. 
Os  vestidos  das  molheres  nobres  sam  humas  camisas  muyto  largas 
e  cumpridas,  degoladas,  casi  ao  modo  das  das  molheres  de  nossas  ter- 
ras,  com  muytos  lavores,  e  sobre  ellas  huma  como  basquinha  de 
seda  ou  de  outra  cousa.  Alg^as  se  cobrem  com  mantelinhas  de 
damasco  ou  veludo,  ou  com  pannos  de  seda  ricos,  que  Ihes  servem 
de  manto  pera  irem  fora,  e  quando  caminham  levam  albornoces 
e  chapeos  na  cabe^a,  tracem  sempre  topete  muito  bem  concertado 
e  o  de  mais  cavello  feito  em  muytas  tran^as  delgadas,  e  folgam 
mais  com  o  cavello  preto  que  louro.  Tracem  orelheiras  de  ouro 
fermosas  e  as  doncellas  poem  guirnaldas  com  argentaria  e  outras 
pe^cts  de  ouro,  com  que  ornam  os  cavellos.  As  molheres  baixas 
vestem  como  podem :  o  ordinario  he  hum  panno  de  algodam  como 
hum  len^ol,  ou  hum  coiro  com  camu^a. 
8.  Linguae  ct  na-  As  lingoas  que  ha  em  este  imperio  sam  muytas  e  muy  diffe- 

tiones :     Christiani,  .     i  «  .... 

Mahumedani,  Judaei  rentes,  amda  em  hum   so   reyno;   e  a  mais   universal  e  cortesam 
et  Gentiles.  Confuta-  jj^   ^  q^^   chamam  amhara ;  lincfoa  que   na   eloquencia    se   parece 

tur  asseitio  Urretae  ^  »         &        n  ^  f 

de  eiectione  ludaeo-  muyto  com  a  latina.  As  na^oes  sam  tambem  muytas  e  muy  diffe- 
norum.  "  r^ntes,  mas  podem  se  reducir  a  4 :  Christaos,  Mouros,  Judeos  e  Gen- 

tios,  e  nos  mais  dos  reynos  se  acham  todas  juntas.  Por  onde  foi 
muyto  fora  de  caminho  a  informagam  que  sobre  esta  materia  teve 
frey  Luis  de  Urreta,  pois  diz  pagg.  7  e  363  que  o  Preste  Joam 
Alexandre  3°,  por  conselho  do  padre  frey  Daniel  prior  do  convento 
da  AUeluya  da  ordem  de  sam  Domingos,  aos  annos  de  1570,  botou 
de  toda  Ethiopia  os  mouros  e  judeos,  ainda  que  eram  muytos  e 
muy  grandes  os  tributos  que  pagavam.  e  o  que  nella  *se  atreve  a  f.  6, 
entrar  sem  licenc^a  fica  por  ley  condenado  a  ser  escravo.  Tudo  isto 
he  muyto  contrario  a  verdade,  porque  casi  em  todos  os  reynos  e 
particularmente  em  este  de  Dambia,  onde  agora  esta  a  Corte,  ouve 
de  muytos  tempos  a  esta  parte  muytos  mouros  e  judeos,  nem  os 
Emperadores  puderam  nunca  sugetar  de  tudo  os  Judeos,  que  estam 
no  meio  de  seu  imperio  tres  ou  quatro  dias  de  caminho  de  sua  corte 
na  provincia  de  (^emen,  ainda  que  o  procuraram,  indo  por  veces 
sobre  elles  em  pessoa  com  grossos  exercitos ;  e  o  Emperador  Sel- 
tan  Qagued,  que  agora  vive,  por  causa  de  hum  alevantado,  que  se 
acolheo  a  elles,  Ihes  facia  muitos  partidos  e  dava  em  outra  parte 


LIVRO   I,   CAPITULO   I.  19 

boas  terras,  porqne  Ihe  desocupasem  aquellas  que  sam  serras  muyto 
fortes ;  e  nam  quiseram ;  pollo  que  foi  sobre  elles  com  grande  exer- 
cito  em  otubro  de  614,  e  ainda  que  matou  muytos  e  tomou  o  ale- 
vantado,  nam  os  pode  botar  das  serras,  e  assi  oje  estam  nellas  sem 
Ihe  quererem  obedecer  e  por  isto  em  agosto  de  616  mandou  que 
todos  os  Judeos  de  Dambia  e  os  demais  que  Ihe  obedeciam,  se  fice- 
sem  christaos ;  ao  que  muytos  obedeceram  e  outros  fugiram  pera  as 
terras  fortes,  onde  estam  Judeos. 

Tambem  he  falso  o  que  diz  que  o  convento  da  AUeluya  he  de      9.  Palsa  assertio 

■r>.        .  «  r  .  .  .    Urretae       monaate- 

s.  Domingos;  porque  nem  o  he,  nem  o  toi  nunca,  como  mostrarei  ^^^   Alleluia   ease 

adiante  no  fim  do  2°  livro;  nem  o  prior  se  chama  Daniel,  senam  Doniinicanorum.  Ex 

sene  imperatoram  a 

Za  Oald  Madehen,  que  quer  dicer  «  naceo  [do]  Salvador  » ;  e  era  de  1 31  NaM  ad  AtanAf  Sa- 
annos  em  abril  de  616,  que  eu  fui  a  o  visitar  em  seu  convento  pera  ^^^^  *iii'num^ 
acabar  com  elle  certas  cousas,  e  me  disse  que  avia  40  annos  que  quam  extitisse. 
era  superior  e  que  seu  predecessor,  que  se  chamava  Gabra  Maravi, 
scilicet  Servo  do  esposo,  fora  superior  58  annos,  nem  ouve  nunca 
tal  Alexandre  3°  em  Ethiopia,  e  o  que  reynava  o  anno  de  1570  se 
chamava  Malac  Qagued  e  o  nome  do  bautismo  era  Zar  Za  Denguil, 
scilicet  «  procedeo  da  Virgem  »,  e  reynou  33  annos  e  morrendo  no  de 
96,  Ihe  sucedeo  Jacob  seu  filho  e  chamouse  Malac  Qagned.  Daqui 
se  podia  collegir  quam  fabulosats  sejam  as  cousas  que  atribue  frey 
Luis  de  Urreta  no  discurso  de  sua  Historia  a  este  Alexandre  3°, 
pois  estas  sam  tam  falsas ;  mas  com  tudo,  porque  em  muytas  par- 
tes  faz  men^am  delle,  ja  que  em  esta  come^ou,  sera  bem  mo- 
strar  como  nam  ouve  tal  Preste  Joam  em  os  tempos  que  elle 
affirma  e  quantas  veces  falando  delle  se  contradiz,  para  que  se  en- 
tenda  o  credito  que  se  deve  dar  a  as  demais  cousas  de  seu  livro. 
Diz  pois  na  pag.  88  que  este  Alexandre  3°  sucedeo  ao  emperador 
Paphnucio,  que  sucedeo  a  Naum,  e  depois  pag.  617  diz  que  este 
f.  6,v.  Alexandre  3®  sucedeo  ao  Preste  Joam  *Mena.  Primeiramente  nam 
ouve  tal  Emperador  Paphnucio  e  ao  que  elle  nomea  Naum  (que  nam 
se  chamava  senam  Naod)  sucedeo  seu  filho  Lebena  Denguil,  scili- 
cet  c  encenso  da  Virgem  >,  e  quando  o  ficeram  emperador  se  intitulou 
David,  e  assi  se  chamava  quando  Francisco  Alvarez,  capellam  del 
rey  dom  Manoel  de  Portugal,  entrou  em  Ethiopia  o  anno  de  1520, 
e  depois  mudou  o  nome  e  se  chamou  Onag  Qagued.  A  este  suce- 
deo  seu  filho  Glaudeos,  scilicet  Claudio,  e  chamouse  Atanaf  Qagned, 
e  estava,  quando  entro  dom  Christovao  da  Gama  em  Ethiopia  com 
400  Portugueses,  que  foi  no  anno  de  1541,  e  depois  o  mataram  os 


20  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

Mouros  em  batalha  em  mar^o  de  1559;  e  sucedeolhe  Minas  seu 
irmao,  a  quem  frey  Luis  chama  Mena,  e  chamouse  Adamas  (^a- 
gued  e  morreo  anno  de  563.  Pollo  que  errou  muyto  frey  Luis  di- 
cendo  que  Alexandre  3°  sucedeo  a  Paphnucio  e  depois  que  suce- 
deo  a  Mena;  pois  este  Minas  nam  sucedeo  a  Onag  Qagiied,  a  quem 
elle  chama  Paphnucio,  senam  a  seu  filho  Atanaf  (^agued. 
10.  Fabulae  quae  Tambem  diz   pag.  616  que  este  emperador   Mena   escreveo   a 

iUexandro Tll^protu.-  P^^pa  Pio  V,  que  o  padre  Andre  de  Oviedo  era  presidente  do  Con- 

lit  Urreta:  perperam  selho  latino,  e  que  o  reverenciavam  como  a  santo;  e  na  pacf.  102 
etiam     Fr.    Alvarex  ^  »  r  s       v 

asserit  sub  Alexan-  e  193  diz  que  o  emperador  Alexandre  3**  a  instancia  do  padre  Andre 
sitLios^etbiopiam  ^®  Oviedo  instituyo  este  conselho  latino  e  fez  presidente  delle  ao 
fuisse   primum   in-  mesmo  Padre ;  no  que  se  vee  claro  a  contradicjam :  porque,  deixando 

pera  seu  lugar  o  mostrar  que  nunca  ouve  em  Ethiopia  tal  conselho 
latino,  se  Alexandre  3°  instituyo  o  conselho  latino,  como  o  em- 
perador  Mena,  que  foi  antes  delle  (como  diz  pag.  6 1 7)  podia  escrever 
a  Pio  V,  que  o  padre  Andre  de  Oviedo  era  presidente  deste  con- 
selhop].  Diz  mais  pag.  91,  que  sendo  este  Alexandre  3°principe  e 
estando  no  monte  Amhara,  o  sirvio  la  muyto  Joam  Balthesar ;  sendo 
assi  que  o  derradeiro,  que  de  la  tirarSlo  pera  Emperador,  foi  Naod, 
o  qual,  como  dicem  todos  em  Ethiopia  e  se  vee  no  catalogo  dos 
Emperadores,  avia  que  de  la  saio  118  annos  quando  se  impri- 
mio  o  livro  de  frey  Luis,  que  foi  o  de  610,  e  diz  elle  pag.  7  que 
Joam  Balthesar  caminhava  pera  os  70  annos;  poUo  que  conforme 
a  esta  conta,  50  annos  pouco  mais  ou  menos  antes  que  Joam  Bal- 
thesar  nacese,  ja  servia  a  Alexandre  3°  no  monte  de  Amhara.  Tam- 
bem  diz  pag.  7  e  118  e  139  que  Alexandre  3°  morreo  anno  de  606 
e  em  seu  lugar  eligiram  hum  principe  da  gera^am  de  David,  que 
se  chamava  Zarac  Haureat,  e  vivia  o  anno  de  608.  Tudo  isto  he 
falso,  porque  eu  entrei  em  Ethiopia  em  mayo  de  603  e  nam  achei 
tal  Alexandre,  senam  Jacob  filho  do  emperador  Malac  Qagued,  que 
tambem  se  chamou  Malac  (^agued,  e  o  setembro  seguinte  o  tiraram 
e  mandandoo  presso  ao  estremo  do  imperio  a  hum  reyno  que  cha- 
mam  Narea,  levantaram  a  hum  seu  primo  que  se  chamava  Za  Den- 
guil,  scilicet  «  da  Virgem»,  e  aos  13  de  otubro  de  604  o  mataram 
elles  mesmos  e  tornaram  a  tracer  Jacob;  mas  aos  dez  de  mar^o  de 
607  Ihe  deo  batalha  hum  seu  primo,  que  *se  chamava  Suzenios  e  f.  7. 
o  matou  e  assi  foi  emperador  e  chamouse  Malac  Qagued.  Depois, 
por  aver  tantos  deste  nome,  o  mudou  e  chamase  Seltan  Qagued,  que 
quer  dicer  «  o  poder  adoura  »  ou  «  faz  reverencia  » .  Tudo  isto  declarare- 


LIVRO   I,  CAPITULO   I.  21 

mos  adiante  cumpridamente  e,  pera  concluir  esta  materia,  digo  que 
he  cousa  muito  certa  que  nam  ouve  nunca  em  Ethiopia  Alexandre  3**, 
porque  ninguem  sabe  dar  re^am  delle,  nem  no  catalogo  dos  Em- 
peradores  ha  mais  que  hum  Alexandre,  a  que  elles  chamam  Escan- 
der,  e  este  foi  muyto  antes  que  os  Portugueses  descubrisem  Ethio- 
pia,  pollo  que  tambem  se  enganou  Francisco  Alvares  no  que  diz 
fol.  128,  que,  sendo  Alexandre  emperador,  entrou  em  Ethiopia  P.^ 
de  Covilham  portugues ;  porque  este  parteo  de  Portugal,  como  se 
diz  no  prologo  de  sua  Historia,  o  anno  de  1487  e  o  emperador 
Alexandre  morreo  antes  no  anno  de  1475;  por  onde  he  certo  que 
errou  o  nome  do  Emperador.  Isto  bastara  por  agora  pera  o  leitor 
saber  quam  fabulosas  sam  as  cousas  que  frey  Luis  de  Urreta  diz 
deste  Emperador  no  discurso  de  sua  Historia. 

Tomando  pois  aos  moradoures  das  terras  do  Preste  Joam,  os  ix.incoUeAethio- 
mais  cortesoes.  nobres  e  poderosos.  geralmente  falando,  sam  os  que  P|,««  JJ^*  ^ 
chamam  Amharas.  Os  demais  tem  muytos  e  differentes  nomes  con-  prodiveraistribubus, 

.  quanim      praecipua 

forme  a  suas  familias  e  as  provincias  onde  moram;  pollo  que  em  Amhara,  comuni  vo- 
hum  so  reyno  ha  gentes  de  muy  differentes  nomes.  Com  tudo  ha  cabuloHabcxyocan- 

-^  o  j  tur:   falsa    interpre- 

hum  nome  casi  geral  pera  toda  a  terra  e  os  moradoures  della  que  tatio  huius  nominis 
he  Habex,  porque  a  a  terra  chamam  Habex  e  aos  moradoures,  seja 
hum  ou  muytos.  Isto  nam  somente  entre  si  huns  a  outros,  mas  prin- 
cipalmente  os  Mouros  e  Turcos  a  a  terra  e  aos  moradoures  cha- 
mam  Abex,  posto  que  ordinariamente  quando  falam  de  so  a  terra, 
todos  a  chamam  Ethiopia,  e  este  nome  he  mais  proprio,  e  assi  os 
naturaes  nas  cartas  e  livros  que  escrevem  deste  so  usam;  que  o 
nome  Abex  muytos  tem  pera  si  que  o  inventaram  os  mouros,  e  nin- 
giiem  de  muytos  a  que  preguntei  me  soube  dicer  o  que  significa; 
mas  frey  Luis  de  Urreta  pag.  4  corrompe  o  nome,  como  tambem 
o  facem  outros  authores,  e  a  terra  chama  Abassia,  e  aos  moradoures 
Abissinos,  e  traz  huma  ethimologia  parece  que  imaginaria :  porque 
nunca  a  pude  achar  nem  entre  os  mouros  nem  entre  a  gente  de 
Ethiopia,  ainda  que  elle  diz  que  em  lingoa  arabiga,  turquesca  e  na 
mesma  dos  ethiopes  quer  dicer  gente  franca  e  livre,  que  nunca  sir- 
vio  a  senhor  estrangeiro,  nem  ha  reconhecido  rey  estranho,  e  que  tal 
he  a  terra  de  Ethiopia;  poUo  que  affirma  pag.  7  e  pag.  16  e  17 
que,  ainda  que  a  Ethiopia  inferior  e  baixa,  que  come^a  junto  a 
Egypto  ate  a  ilha  Meroe,  ha  tindo  senhores  estrangeiros  e  obede- 
f.  7A.  cido  a  Emperadores  estranhos,  a  alta  e  mayor,  que  comecja  *da  Me- 
roe  ate  os  montes  da   Lua   e  lagoas  do   Nilo,  nunca  ha  sido  con- 


22  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

quistada  nem  jamais  ha  obedecido  a  senhor  estrangeiro,  sempre  de 

annos  a  esta  parte  ate  o  Emperador  que  oje  govema,  amas  Ethiopia 

baixa  e  alta  obedecem  a  hum  mesmo  Senhor,  que  he  o  Preste  Joam. 

la.    Palsum    est  Mas,  deixando  a  ethimologia  que  ao  nome  Abissinos  da  frey 

n^quam  8ub  extera  ^'"^^  ®  ^^  ^""^  muyto  nos  limites  que  poe  a  as  terras  do   Preste 
potestatefuisse.Nam  Joam,  teve  niuyto  falsa  informagam  no   que   diz  que   nunca  foram 

Mahumedani        sub 

Granh    potiti    sunt  conquistadas  e  que  sempre  foram  govemadas  e  o  sam  oje  por  seus 
Ae^iopia  fere  uai-  fiihos  legitimos  e  Emperadores  naturaes;  porque  o  anno  de  1528, 

pouco  mais  ou  menos,  veio  com  exercito  hum  capitam  gfrande  del 

Rey  de  Adel  mouro,  que  se  chamava  Mahamed  e,  por  que  era  izquerdo, 

o  nomeam  commummente  Granh  (que  asi  chamam  na  lingoa  da  terra 

ao  que  he  izquerdo),  e  entrando   por  estas  terras  do   Preste   Joam 

as  tomou  casi  todas  e  as  senhoreou  12  annos  ou,  como  alguns  di- 

cem,  15,  sem  ficar  mais  que  muyto  poucas  e  essas  mal  seguras,  por- 

que  sempre  o   Emperador  e  os   dellas   andavSo   fugindo  de  huma 

parte  a  outra;  e,  se  dom  Christovao  da  Gama  nam  viera  de  socorro 

com  os  400  Portugueses,  que  ja  dissemos,  nam  Ihe  ouvera  de  ficar 

ao  mouro  hum  palmo  da  terra  que  nam  senhorease,  como  diremos 

adiante  quando  tratarmos  da  entrada  de  dom  Christovao  em  Ethiopia. 

13.  Gallae  qui  sint  Demais  disto,  em  tempo  do  emperador  Onag  Qagued,  vieram 

a  tempore  OnAg  Sa-  ^^  vanda  do  sul  huns  gentios  pretos,  que  chamam  Galas,  pastores 

gftd  Aethiopiara  in-  ^^  vacas,  cfente  muy  cmel  e  fera,  que  como  suas  molheres  acavam 

vaserint.  »   o  ^  ~i 

de  parir,  sejam  filhos  ou  filhas,  os  botam  fora  no  campo  e  alli  mor- 
rem  ou  os  comem  os  animaes,  huns  por  espa^o  de  seis  annos,  ou- 
tros  de  dez,  e  se  algnm  furta  a  crian^a  que  botaram  por  que  nam 
morra  e  he  achado,  Ihe  dam  grande  castigo  e  o  tem  por  homem 
amaldi^oado.  Nam  lavram  os  campos,  nem  se  sustentam  ordina- 
riamente  se  nam  de  leite  e  mantega  e  de  came  cma,  ainda  que 
algnmas  veces  a  asam  e  cocem.  Nam  tem  Rey,  mas  cada  8  annos 
elegem  capitaes  que  os  governam  na  paz  e  na  guerra.  Estes,  com 
virem  casi  despidos  e  nam  tracerem  outras  armas  mais  que  dous 
^argunchos,  huma  adarga  e  huma  macinha  de  pao,  foram  entrando 
por  este  imperio  de  maneira  que  oje  senhoream  muyta  parte  delle 
e  no  que  fica  facem  casi  todos  os  annos  muytas  entradas  e  dam 
grandes  asaltos,  levando  casi  sempre  muyta  pressa,  particularmente 
de  vacas,  de  molheros  e  meninos ;  que  aos  homens  todos  matam  por 
nam  se  fiarem  delles,  ainda  que  algumas  veces,  depois  de  tomada 
a  prossa,  dam  sobre  elles  os  capitaes  do  Emperador  e  Iha  facem 
deixar,  matando  alguns;  mas,  se  querem  passar  onde  ellcs  estam. 


LIVRO  I,  CAPITULO   I.  23 

f.  8.  raramente  os  alcan^am,  porque  fogem  *com  suas  vacas;  e  como  as 
terras  estam  todas  ermas,  que  nam  as  semeam,  nam  os  podem  se- 
guir  muyto,  por  nam  acharem  que  comer;  mas  os  dous  annos  pas- 
sados  entraram  algumas  veces  e,  dando  de  subito  sobre  elles,  ma- 
taram  muitos  e  trouxerkm  grande  pressa,  como  diremos  no  4  li- 
vro.  Esta  peste  de  Ethiopia  dicem  que  pronosticou  o  Patriarcha 
dom  Joam  Bermudez,  que  entrou  com  dom  Christovao  da  Gama,  e 
depois,  por  nam  quererem  dar  a  obediencia  a  Igreja  Romana,  como 
tinham  prometido,  se  tornou  pera  India,  lan^ando  maldigam  a  as 
terrcts  por  onde  passava  e  dicendo  que  via  entrar  em  Ethiopia  hu- 
mas  formigas  pretas  que  a  destruiam,  e  todas  as  terras  que  elle 
amaldigou,  estam  agora  destruidas  e  possuidas  de  Galas. 

Tambem  he  fora  de  caminho  o  quc  frey  Luis  diz  que  sempre       14-  Falsiim  item 

T^,-  .      .      r  •  j  T^  j  1      '^'  j  •      Aethiopiam    semper 

Ethiopia  foi  govemada  por  Emperadores  legitimos,  porque,  demais  alegitimisimperato- 
do  contar  os  livros  de  Ethiopia,  he  cousa  muyto  notoria  nella  que  ^^^^  fuisse  guber- 

natam.  DynastiaZa- 

morrendo  o  emperador  Armah,  ou,  como  outro  catalogo  diz,  Del-  guft  usurpavit  impe- 
naod,  deixou  hum  filho  muyto  piqueno  e  ficou  como  por  seu  ayo  "^"^  ^'  ^^**  annos. 
e  governador  do  imperio  hum  senhor  muy  poderoso  chamado  Za- 
goe,  casado  com  huma  molher  de  sangue  real,  e,  morrendo  dalli  a 
pouco  tempo  o  minino,  foi  elle  governando  o  imperio  como  antes, 
sem  se  nomear  por  Emperador,  nem  querer  alevantar  nenhum  dos 
da  gera^am  de  Salomam,  a  quem  pertencia  o  imperio,  ate  que  mor- 
reo  e,  ficando  hum  seu  filho,  se  nomeou  por  Emperador  e  matou 
quantos  pudo  achar  dos  de  Isrrael,  a  quem  podia  pertencer  o  im- 
perio,  pera  que  nam  Ihe  ficase  competidor,  e  senhorearam  toda 
Ethiopia  os  da  gera^am  deste  Zagoe  340  annos ;  que,  ainda  que  no 
catalogo  dos  Emperadores  nam  estam  mais  que  143,  dicem  que  fal- 
tam  muytos  e  que  esto  trahe  a  verdadeira  conta;  e  ao  fim  deste 
tempo  se  alevantou  hum  da  geracjam  dos  legitimos  Emperadores, 
que  tinham  escapado  escondidos  em  terras  afastadas,  e  com  ter  pouca 
gente,  sabendo  que  os  principaes  do  exercito  do  contrario  o  aviam 
de  receber,  foi  confiadamente  contra  elle  e  chegando  perto  disse- 
ram  ao  Emperador  que  aquelle  filho  de  Isrrael  (que  assi  chamam 
aos  da  casta  real  que  decendem  de  Salomam)  vinha  contra  elle :  que 
saise.  Respondeo  que  nam  era  necessario,  que  pera  aquelle  bastava 
hum  capitam ;  e  assi  mandou  o  da  dianteira ;  mas,  como  de  segredo 
estava  concertado  com  o  outro,  logo  se  Ihe  ajuntou  com  a  gente 
que  levava.  Sabendo  elle  isto,  mandou  outros  dous  capitaes,  que 
f.  8,v.  *tinha  por  fieis ;  mas  tambem  ficeram  como  o  primeiro  e  todos  jun- 


"^ 


24  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

tos  tomaram  contra  seu  senhor.  O  que  vendo  elle,  fugio  em  seu 
cavallo  e,  por  nam  poder  escapar,  se  meteo  em  huma  igreja,  dicendo 
que  tomava  por  valedor  a  hum  santo  que  nella  avia,  que  chamam 
Charcos.  Mas  chegou  logo  o  de  Isrrael,  que  hia  em  seu  alcance,  e 
disse :  Senhor,  nam  Ihe  valhais,  que  tomou  o  imperio  que  nam  Ihe 
pertencia,  e,  dandolhe  com  a  lan^a,  o  matou  e  assi  ficou  pacifica- 
mente  por  Emperador  e  chamaram  o  Icuno  Amlac,  que  quer  di^er : 
«  seja  com  elle  Deos  »,  e  deste  Emperador  se  foi  continuando  a  linea 
de  Salomam  ate  agora,  qtie  sam  mais  de  jjo  annos  (i). 

Por  onde  foi  muito  contraria  a  verdade  a  informa^am  que  de- 
ram  a  frey  Luis  de  Urreta,  que  nunca  Ethiopia  fora  govemada  por 
senhor  estrangeiro,  senam  por  seus  naturais  e  ligitimos  Emperadores; 
pois  consta  que  se  cortou  a  linea  dos  Emperadores  por  espaijo  de 
de  340  annos ;  que  ainda  que  aquelle  Zagoe  era  Ccisado  com  molher 
de  casta  real,  nam  podiam  seus  filhos  erdar  o  imperio,  por  nam  ser 
costume  que  os  filhos  de  molheres  erdem,  ainda  que  ellas  sejam 
filhas  do  precedente  Emperador,  se  seu  marido  nam  era  de  casta 
real  por  via  de  varam. 

(i)  Haec  adiunxit  Auctor  in  margine  et  delevit  quae  sequuntur,  scil.:  «  Desde 
aquelle  Emperador  se  foi  continuando  a  linea  de  Salomam  ate  agora,  que  sam  mais  de 
350  annos.  Este  teve  cinco  filhos  ou,  como  outros  dicem,  nove  e,  estando  pera  morrer, 
Ihes  encomendou  muito  que  tuviesem  muyta  ujiiam  e  amor  entre  si,  e  que  cada  hum  reynase 
hum  anno,  come^ando  o  mais  velho.  £  assi  hiam  facendo;  mas  chegando  o  imperio  ao  2^, 
ou,  como  outros  affirmam,  ao  7°,  se  enfadou  o  mais  piqueno,  porque,  quando  avia  de 
comer  com  os  outros  dous  seus  irmaos,  que  era  como  acabava  o  Emperador  e  o  mais 
velho,  que  comiam  juntos,  faciam  sair  aos  outros  fora  do  aposento  pera  lavar  as  maos 
e  depois  entravam  a  comer.  Enfadado  disto  disse  a  seus  amigos :  Eu  nam  hei  dc  facer 
desta  maneira,  senam  quando  me  chegar  o  imperio  prender  todos  estes  meus  irmaos  e 
pollos  em  lugar  de  onde  nam  possam  mais  sair.  Nam  faltou  quem  dissese  isto  ao  que 
era  Emperador;  pollo  que  mandou  logo  prender  todos  seus  irmSos  e  levar  ao  monte  de 
Amhara  que  chamam  Guixdn,  que  he  muito  forte,  como  adiante  diremos;  e  dalli  licou 
costume  metcrem  la  os  filhos  dos  Emperadores,  ate  o  emperador  Naod,  quc  tirou  este 
costume;  ficando  la  somente  os  que  primeiro  estavam;  e  ainda  ha  oje  no  monte  gera- 
^am  de  Fre  He^an,  aquelle  que  foi  causa  dos  come^arem  a  meter,  segundo  me  disse  o 
emperador  Seltan  Qagued  )). 


f  <>•  CAPITULO  II. 

£m  que  se  trata  da  gera^am  dos  Emperadores  de  Ethiopia, 

come^ando  da  reynha  Sabba. 


Cousa  he  muyto  certa  e  averiguada   entre  os  Ethiopes,   tanto       i.DereginaSaba; 

11  j  v  '  j.         cur  de  ea  Auctor  lo- 

que  nam  Ihes  parece  que  possa  aver  de  nenhuma  maneira  contro-  quatur. 
versia,  em  que  seus  Emperadores  decendam  de  Salomam  por  via 
da  reynha  Sabba,  porque  todos  seus  livros  estam  cheios  disso  e 
elles  sempre  se  pre^aram  e  estimam  oje  muito  chamaremse  isrrae- 
litas  e  iilhos  de  David.  Por  onde  avendo  de  tratar  delles,  primeiro 
devemos  falar  da  may,  por  quem  Ihes  veio  tam  grande  honrra  como 
he  serem  filhos  de  David ;  e  mais  este  he  o  estilo  da  divina  Escrip- 
tura  falar  primeiro  da  may,  quando  querem  tratar  do  filho,  e  assi 
quando  o  sag^ado  escritor  queria  contar  as  grande^as  de  algum 
Rey,  primeiro  decia  quem  era  sua  may,  e  como  se  chamava,  como 
o  fez,  querendo  tratar  de  Jeroboan,  que  primeiro  disse,  que  sua  may 
tinha  por  nome  Serva,  molher  viuva  «  Cuius  mater  erat  nomine 
Serva,  mulier  vidua  »  3,  Re^.  11.  O  mesmo  fez  querendo  falar  del 
rey  Joas,  4,  Reg.  12,  e  del  rey  Ezechias,  4,  AV^.  18,  que  primeiro 
declarou  quem  eiam  suas  mays  e  como  se  chamavam;  o  que  imi- 
tou  o  glorioso  Evangelista  S.  Mat.  c.  i,  que,  pera  escrever  as  ma- 
ravilhas  e  grande^as  de  Christo  N.  S.,  conta  primeiro  quem  foi  sua 
may  e  que  nome  tem. 

C.  Bju:cari.  Her.  Aetk,  Scripi,  occ.  intd.  —  II.  4 


y 


n 


26  HISTORIA    DE  ETHIOPIA 

a.  Varia  eiiudem  Avendo   pois  de   tratar   do  primeiro   Emperador  de  Ethiopia, 

nomina   et  ratio  il»  jjoi-  jj  •  j  j^j» 

lorum.  ^^  procedeo  de  Saloraao,  e  dos  demais  seus  descendentes,  digo  que 

sua  may  foi  a  reynha  Sabba  e,  como  affirmam  os  que  mais  noticia 
tem  das  historias  de  Ethiopia,  naceo  no  reyno  de  Tigre  em  huma 
aldea  que  ainda  agora  se  chama  Sabba,  hum  4°  de  legoa  pera  oc- 
cidente  de  huma  villa  que  chamam  Ag^um,  onde  ella  depois  teve 
sua  corte,  e  do  porto  de  Ma^ua  ate  ella,  caminando  casi  pera  o  sul, 
seram  25  legoas  pouco  mais  ou  menos.  Tambem  a  chamam  Negesta 
Azeb,  que  quer  dicer  «  Reynha  do  sul  »  e  estes  dous  nomens  se  acham 
muitas  vece|s]  nos  livros  de  Ethiopia.  No  3  dos  Reys,  c.  10  e  2 
Paral,  9,  a  chamam  Sabba,  e  em  j.  Mat,  c.  12,  onde  nossa  versam 
diz  Regina  Austri  a  versam  de  Ethiopia  diz  Negesta  Azeb.  Ou- 
tro  nome  tambem  se  acha  algumas  veces  em  seus  livros,  que  he 
Maqueda,  mas  dicem  que  este  nome  he  *arabio,  e  que  quer  di-  f.  9.^ 
cer  Amhara.  Pollo  que  Negesta  Maqueda  he  Reynha  Amhara;  e 
hum  livro  de  Agcjum,  falando  da  reyna  Azeb,  diz  que  edificou 
huma  cidade  cabega  de  Ethiopia,  que  se  chamou  Dabra  Maqueda; 
e  nam  cuido  sera  fora  de  caminho  se  dissermos  que  esta  cidade 
Maqueda  he  a  que  agora  chamam  Ag^um;  porque  no  livro,  onde 
poem  o  catalogo  dos  Emperadores,  diz  que  a  reynha  Azeb  come^ou 
a  reinar  em  Ag^um,  e  as  ruinas  dos  edificios,  que  ainda  aparecem, 
mostram  bem  aver  sido  a  mais  sumptuosa  que  ouve  em  Ethiopia, 
posto  que  agora  seja  villa  piquena.  Mas,  deixando  lugar  pera  que 
cada  hum  diga  sobre  isto  o  que  milhor  Ihe  parecer,  pois  vai  tam 
pouco,  passaremos  a  contar  a  jornada  que  fez  pera  Jerusalem,  de- 
sejando  de  ver  as  grande^^ts  e  maravilhas,  que  a  fama  pubricava 
de  Salomam;  porque  no  discurso  della  se  vera  em  que  fundam  os 
Emperadores  de  Ethiopia  o  terem  se  por  descendentes  da  real  casa 
de  David.  E  pera  que  esta  historia  nam  leve  mais  nem  menos  or- 
nato  do  que  Ihe  dam  os  livros  de  Ag^um,  deonde  a  tirei,  a  refe- 
rirei  por  as  mesmas  palavras  que  elles  a  contam,  que  sam  as  si- 
guintes. 
3.  Incipit  historia  «  Determinando  el  rey  Salomam  edificar  o  Templo,  mandou  re- 

de  reeina  Saba  iuxta  j^j  j  j  j  n^ 

codices  Azumiticos.    *  cado  a  todos  os  mercadoures  do  mundo  que  Ihe  trouxessem  merca- 

Tamerin     mercator   ^  durias  ricas  e  que  Ihes  daria  ouro  e  prata,  e,  tendo  particularmente 

aethiops    pergit    ad 

Salomonem ;  admi-    «  noticia  de  hum  mercador  rico  de  Ethiopia  da  Reynha  Azeb,  que  se 

S^tias^flllus*™  ^*   *  chamava  Tamerin  e  tinha^^o  camellos  e  73  embarca^oes,  llie  man- 

«  dou  dicer  que  Ihe  levase  as  cousas  mais  ricas  que  achase  e  ouro  fino 
<  de  Arabia  e  pao  preto ;  o  que  elle  cumprio  e  juntando  todas  as 


LIVRO   I,   CAPITULO   II. 


27 


f.  10. 


invisere  Salomonem. 


€  cousas  que  pode,  chegou  com  ellas  a  Salomam,  e  elle  tomou  o  que 
«  Ihe  pareceo  bem  e  Ihe  deo  muyto  mais  do  que  valia.  Este  mercador 
t  era  homem  discreto  e  de  bom  entendimento  e,  maravilhado  da  sa- 
«  biduria  de  Salomam,  notava  com  aten<;am  a  doQura  de  suas  pala- 
«  vras,  sua  justi^a,  a  modestia  em  seu  andar  e  o  modo  de  sua  vida 
«  e  o  amoroso  trato  que  tinha  com  todos,  o  aparato  de  sua  mesa  e 
<  a  ordem  de  seus  criados,  a  sabiduria  com  que  ordenava  sua  casa, 
«  perdoando  aos  que  erravam,  e  quando  castigava  era  com  clemencia; 
€  falava  com  semelhancjas,  sendo  suas  palavras  mais  doges  que  mel; 
«  e  assi  os  que  se  chegavam  a  elle,  nam  folgavam  de  se  afastar,  vendo 
«  sua  sabiduria  e  do<;ura  de  suas  palavras,  que  eram  como  agoa  a 
«  quem  tem  sede  e  pam  ao  que  tem  fome,  e  micinha  ao  doente,  e 
«  julgava  com  verdade  sem  distin^am  de  pessoas,  e  Deos  Ihe  deo 
«  muita  honra  e  rique<;a,  ouro  e  prata  e  pedras  preciosas,  vestidos 
«  ricos,  tanto  que  o  ouro  era  como  prata,  e  a  prata  como  chumbo, 
«  e  o  ferro  come  palhas  do  campo  ». 

«  Tendo  estado  alli  muyto  tempo,  pidio  licen<;a  a  Salomam  pera      4-  Mer<»tor  rcver- 

titur  cLomum ;  narrat 

€  tornar  a  sua  terra,  dicendo :  Senhor,  folgara  muito  de  estar  *em  quae  viderat  reginae 
vossa  casa  como  o  menor  de  vossos  servos,  porque  ditosos  e  bem-  ^f^^l^JSTil^'^^* 
aventurados  sam  os  que  ouvem  vossas  palavras  e  cumprem  vosso 
mandado;  mas  detineme  ja  muyto:  ja  he  tempo  de  tornar  a  minha 
senhora,  conforme  a  promesa  que  Ihe  fiz,  e  pera  Ihe  entregar  seu 
fato,que  eu  tambem  sou  seu  criado.  Salomam  Ihe  fez  muytas  honrras 
e  deo  muyto  fato  e  com  isto  o  despedio  em  paz  pera  a  terra  de  Ethio- 
pia ;  e  chegando  a  sua  Senhora  Ihe  entregou  o  fato  que  tracia  e  Ihe 
contou  como  chegou  a  Salomam  e  todas  as  cousas  que  vio  e  ouvio, 
com  o  que  folgava  tanto  que  cada  dia  Ihe  tomava  a  preguntar  o 
que  tinha  visto  e  se  acendia  em  deseio  do  ir  a  ver,  tanto  que  cho- 
rava  com  o  amor  e  desejo  grande  que  tinha  de  ver  aquellas  cousas, 
e  asi  determinou  em  seu  cora<;am  de  ir,  e  Deos  Ihe  deo  firme<;a 
em  este  proposito ;  e  asi  come<;ou  a  ordenar  sua  casa,  e  aparelharse 
pera  o  caminho  e  as  cousas  que  avia  de  presentar  a  vSalomam,  e 
mandou  aos  Principes  e  Grandes  que  se  aparelhasem,  porque  o  ca- 
minho  era  cumprido,  e  que  juntasem  animaes  de  carga,  camellos, 
mulas  e  embarca<;oes,  e  facendo  Ihes  huma  pratica,  Ihes  disse  :  Ouvi 
minhas  palavras  e  considerai  minhas  re<;;oes;  o  que  desejo  he  bu- 
scar  sabiduria,  porque  o  amor  della  me  tem  frechado  o  cora<;;am  e 
me  puxa  com  cordas  muy  fortes,  porque  milhor  he  a  sabiduria  que 
o  thesouro  de  ouro  e  prata,  e  ainda  que  tudo  quanto  foi  criado  sobre 


28  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

«  a  terra.  Com  que  cousa  se  podera  comprar  a  sabiduria  de  baixo  do 
*  sol?  He  mais  doce  que  o  mel,  e  alegra  mais  que  o  vinho,  mais 
«  resplandece  que  o  sol.  E  depois  de  ter  dito  muytos  louvores  da  sa- 
«  biduria,  concluio  sua  pratica  dicendo  que  pollas  novas  que  tivera 
«  de  Salomam  o  amava  sem  o  ver  e  todas  as  cousas  que  delle  tinha 
«  ouvido  Ihe  eram  como  agoa  ao  que  tinha  sede  ». 

5.  Regixxa    Saba  «  Ouvindo  isto  os  principes  e  a  gente  de  sua  casa,  responderam : 

pervenit     lenisalem        ci_  •  ^^j'-  t_'j'  ri^ 

et  moratur  ibi:  ad-    *  Senhora,  ja  que  tanto  desejais  a  sabiduria,  nam  vos  taltara;  quanto 

miratur    sapientiam    ^  ^q^^  estamos  aparelhados  pera  vos  acompanhar,  se  fordes  e  pera 

et  divitias    Salomo- 

nis.  «  ficar,  se  ficardes,  pera  viver  e  morrer  com  vosco  em  toda  parte. 

«  E  assi  se  aparelhou  com  grande  abundancia,  honrra  e  magestade,  e 
«  carregaram  697  animaes  de  carga  e  mulas  sem  conto,  com  o  que 
«  parteo,  e  foi  seu  caminho  tendo  em  seu  cora^am  grande  confian^a 
«  em  Deos ;  e  chegando  a  Jerusalem  foi  recibida  de  Salomam  com 
«  grande  honrra  e  agassalhou  a  perto  de  sua  casa,  mandandolhe  o  jan- 
«  tar  e  cea  com  muita  abundancia,  15  core  de  farinhade  trigo  muytos 
«  do^es  e  30  core  de  farinha  feitos  em  pam ;  cinco  vacas,  50  capoes, 
«  50  carnoiros,  *afora  as  cabras,  galinhas  e  vacas  do  mato  e  veados,  f.  io,v. 
«  60  medidas  grandes  de  vinho  novo,  30  de  velho  etc,  cousas  do  que 
«  Salomam  mais  gostava.  E  quando  Salomam  a  hia  a  visitar,  sempre 
«  dava  a  1 5  dos  seus  vestidos  novos  tam  ricos  que  levavam  os  olhos 
«  a  pos  si.  EUa  tambem  o  hia  a  visitar  e  a  praticar  a  sua  casa,  e 
«  via  e  ouvia  sua  sabiduria  e  justi<;!a,  sua  honrra  e  magestade,  c  do- 
«  gura  de  suas  palavras  e  como  mandava  com  gravedade  e  respondia 
«  com  medo  de  Deos.  Vendo  tudo  isto,  se  maravilhava  de  sua  grande 
«  sabiduria  e  como  nenhuma  falta  avia  em  suas  palavras,  senam  que 
«  em  tudo  era  perfeito  e  como  dava  ordem  e  medida  a  quanto  aviam 
«  de  facer  os  officiaes  que  edificavam  o  Templo,  assi  na  madeira  como 
4  nas  pedras  e  nas  demais  cousas,  e  assi  como  a  luz  resplandece  entre 
«  as  trevoas,  assi  resplandecia  a  sabiduria  de  seu  cora^am  em  todas 
as  cousas  e  assi  tudo  facia  com  a  sabiduria  grande  que  Deos  Ihe 
deo,  quando  Ihe  pidio  nam  victoria  de  seus  enemigos,  nem  rique^as, 
«  nem  honrras,  senam  sabiduria  pera  governar  seu  povo  e  edificar 
«  sua  casa  » . , 

6.  Vcrba  Reginae  «  Vendo  todas  estas  cousas  a  Reynha  disse  a  Salomam :   Bem 

ad  Salomonem.  .  -*  >  01.  r*jii^  js         ■»  •  1 

«  aventurado  sois  vos,  Senhor,  que  vos  foi  dada  tam  grande  sabidu- 
«  ria  e  entendimento.  Folgara  de  ser  como  huma  das  mais  piquenas  de 
«  vossas  servas  e  labar  vossos  pos  e  ouvir  vossa  sabiduria.  Quam  bem 
«  me  pareceram  vossas  repostas  e  a  do<;iura  de  vossas  palavras.  Vossa 


LIVRO   I,   CAPITULO   II.  29 

<  sabiduria  he  sem  medida  e  vosso  entendimento  sem  mingoa,  como 

<  a  estrella  da  minha  entre  as  mais  estrellas  e  como  o  sol  quando  nace. 
«  Dou  muytcts  grac^as  a  quem  me  fez  chegar  a  vos  e  vervos  e  a  quem 
«  me  fez  entrar  por  vossas  portas  e  me  fez  ouvir  vossas  palavras. 
«  Respondeo  el  rey  Salomao  :  Quanto  sabiduria  e  entendimento,  saio 
«  de  vos ;  que  eu  tenho  o  que  me  deo  o  Deos  de  Isrrael,  conforme 
«  Ihe  pedi  e  busquei  nelle  ;  mas  vos,  nam  conhecendo  ao  Deos  de 
«  Isrraei,  tivestes  tanta  sabiduria  em  vosso  coragam,  que  me  viestes  a 
«  ver  e  ser  humilde  como  escrava  de  meu  Deos  e  estar  em  pe  a  porta 
«  de  sua  casa,  onde  eu  sirvo  a  minha  senhora  a  Arca  da  Ley  do 
«  Deos  de  Isrrael  Syon  santa  celestial.  Eu  sou  seu  servo  e  nam  livre, 
«  nem  foi  por  minha  vontade  senam  polla  sua,  nem  esta  palavra  he 
«  minha,  mas  digo  aquillo  que  elle  me  faz  falar  e  fa(;o  o  que  me  man- 
«  dou  e  recebo  a  sabiduria  que  me  da ;  sendo  eu  pao,  me  fez  carne, 
«  sendo  agoa  me  cualhou  e  me  fez  a  sua  imagem  e  semelhanga.  Ou- 
«  tras  muytas  cousas  Ihe  disse  com  que  a  exortou  a  humildade  e  amor 
«  de  Deos;  o  que  ouvindo  ella  disse:  Que  me  aproveita  toda  esta 
«  nossa  pratica;  diceime  a  quem  hei  de  adorar,  porque  nos  adoramos 
«  o  sol,  como  nos  insinaram  nossos  pays  e  dicemos  que  elle  he  rey 
«  de  todos  os  Deoses,  porque  nos  faz  madurecer  nossos  mantimentos 
^  e  alumia  as  trevoas  e  afasta  o  medo,  e  por  isso  dicemos  que  he 

f.  n .  «  nosso  criador  *e  o  adoramos  como  a  Deos ;  mas  de  vosotros  Isrrae- 
«  litas  ouvimos  que  tendes  outro  Deos  que  nos  nam  conhecemos,  e 
«  que  vos  deo  as  Tavoa$  da  Ley  por  mao  de  Moyses  seu  propheta 
«  e  dicem  que  elle  mesmo  dece  a  vosotros  e  vos  fala  e  faz  enten- 
«  der  sua  justi^a  e  seus  mandamentos  ». 

«  A  isto  respondeo  el  rey  Salomam:  Na  verdade  he  cousa  justa      7.  Rcsponsio  Sa- 

j  TN  •  a_  11  lomonis. 

«  adorar  a  Deos  que  criou  os  ceos  e  a  terra,  o  mar,  o  sol,  a  lua  e 
«  as  estrellas  com  todas  as  demais  cousas  que  ha  nelles.  A  elle  so 
«  pertence  adora^am  com  temor  e  tremor,  com  alegria  e  contenta- 
«  mento;  elle  he  o  que  mata  e  da  vida,  castiga  e  perdoa,  alevanta 
«  o  pobre  da  terra,  da  triste^a  e  alegria  e  nam  ha  quem  Ihe  possa  di- 
«  cer:  Porque  ficestes  isto  [?] ;  a  elle  convem  gloria  e  louvor  dos  anjos 
«  e  dos  homens.  Quanto  ao  que  dissestes  que  nos  deo  as  Tavoas  da 
«  Ley,  de  verdade  nos  foram  dadas  polla  mao  do  Deos  de  Isrrael, 
«  pera  que  entendesemos  seus  mandamentos,  sua  justi^a  e  castigo  que 
«  ordenou  em  seu  templo.  Respondeo  a  Reynha :  Pois  daqui  por 
«  diante  nam  adorarei  ao  sol,  senam  ao  criador  delle,  Deos  de  Isrrael : 
«  estas  Tavoas  de  sua  ley  senhoreem  a  mi  e  a  minha  gera^am  e  a 


30  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

€  todos  meus  vassallos ;  que  por  isto  achei  honrra  diante  de  vos  e 

<  diante  do  Deos  de  Isrrael  meu  criador,  que  me  fez  chegar  a  vos  e 
«  ouvir  vossas  palavras,  ver  vosso  rosto  e  entender  vosso  manda- 
«  mento.  Com  isto  se  despidio  e  reposou  em  sua  casa.  Depois  o  visi- 
'  tava  muitas  veces  e  ouvia  sua  sabeduria,  gnardandoa  em  seu  co- 
«  ra^am.  Elle  tambem  a  visitava  e  Ihe  declarava  quanto  Ihe  pre- 
«  guntava  ». 

8.  Exacds  7  men-  «  Passados  sete  meses,  quis  a  Reynha  tomar  pera  sua  terra  e 

sibtts    Regina    vult         -.  £>    ,  ^-   1  j         ^ 

abire.  Salomon  eam   *  disse  a  balomam :  r  olgara  de  estar  sempre  comvosco,  mas  por  causa 
invitat  ad  coenam.     ^  ^q  ^ieu  povo  me  he  necessario  tornar.  Tudo  isto  que  tenho  ouvido 

«  Deos  fa<;:a  que  de  fructo  em  meu  cora^am  e  no  coragam  de  todos 
«  os  que  vieram  comigo.  Ouvindo  isto  Salomam  disse  em  seu  cora- 
«  (jam  :  Quem  sabe  se  desta  molher  tam  fermosa,  que  veio  dos  fins 
«  da  terra,  me  dara  Deos  fructo[?].  E  respondeolhe :  Ja  que  viestes  a 
«  terra  tam  longe,  porque  aveis  de  tornar,  sem  ver  a  ordem  de  meu 
«  reyno  e  o  modo  que  se  guarda  com  os  Grandes  [?].  Vinde  a  minha 
«  casa  pera  que  se  vos  possa  mostrar.  Respondeo  ella :  De  vontade 
«  o  farei,  pera  que  me  acrecenteis  sabiduria  e  honrra-  Folgou  muyto 
«  Salomam  com  a  reposta,  e  mandou  dar  ricos  vestidos  aos  principaes 
«  dos  que  acompanhavam  a  Reynha,  e  ordenou  que  em  sua  casa  ou- 
«  vese  muyto  aparato  e  as  igoarias  da  mesa  fossem  dobrada^  do  que 
«  se  acostumava,  de  maneira  que  nunca  ate  entam  se  tinha  visto  apa- 
€  rato  tam  grande  como  aquelle  dia,  e  como  a  mesa  del  Rey  foi 
«  aparelhada,  entrou  a  Reynha,  nam  por  a  porta  principal  senam  por 
«  outra  piquena,  e  asentouse  *em  hum  lugar  que  el  Rey  tinha  muyto  <"•  ^a. 
«  ricamente  aparelhado  com  muyta  pedraria  e  outras  cousas  fermo- 
«  sas  e  com  muytos  cheiros  e  feito  com  tanta  arte  e  sabiduria  que 
«  ella  via  todas  as  cousas  qiie  passavam,  sem  ser  vista  de  ninguem, 
«  e  maravilhavase  muyto  e  glorificava  em  seu  cora^am  ao  Deos  de 
«  Isrrael.  Sentado  el  Rey  a  sua  mesa,  mandava  delia  a  Reynha  as 
«  igoarias  que  Ihe  podiam  causar  mais  sede,  e  como  se  acabou  a 
«  mesa,  entraram  os  Principes  e  Grandes  do  reyno  e  alevantan- 
«  dose  el  Rey  foi  onde  estava   a  Raynha  e   disselhe  que   folgase 

<  e  descansase  alli  ate  outro  dia.  Respondeo  ella  que  o  faria,  mas 
♦  que  Ihe  jurase  por  o  Deos  de  Isrrael  que  nao  Ihe  faria  agravo 
«  nenhum.  Disse  Salomam,  que  elle  jurava,  mas  que  ella  tambem 
«  lurase  de  nam  tomar  nada  de  sua  casa.  Respondeo  ella  rindo:  Como, 
«  Senhor,  sendo  tam  sabio,  falais  desta  maneira?  por  ventura  hei  de 
«  furtar  da  casa  del  Rey  o  que  elle  nam  me  deo  ?  Nam  vos  pare<;a, 


LIVRO   I,   CAPITULO   II.  31 

<  Senhor,  que  eu  vim  por  amor  de  fato,  porque  meu  reyno  com  vossa 
«  gra^a  tambem  he  rico,  e  nam  me  falta  nada  do  que  eu  quero.  Nam 
«  vim  se  nam  a  buscar  vossa  sabeduria.  luraram  amos  e  foise  el  Rey 
€  a  reposar  a  sua  cama  de  fronte  della  e  mandou  a  hum  seu  pagem 
«  que  trouxese  agoa  e  a  botase  em  huma  garrafa  a  vista  da  Reynha 

<  e  fechando  as  portas  se  fosse  », 

«  Tendo  a  Reynha  dormido  o  primeiro  sonho,   acordou   com      9.  Et  postea  cum 
«  grande  sede  e  desejou  muito  beber  da  agoa  que  tmha  visto  e  pare-  i^^  tradit  et  divitiis 

<  cendolhe  que  Salomam  dormia,  se  alevantou  e  foi  muyto  manso  a  cumulatam  dimittit. 

<  tomar  a  agoa;  mas  Salomam,  que  com  malicia  vigiava,  a  tomou  polla 
«  mao  e  Ihe  disse,que  porque  quebrara  o  juramento[?].  Respondeo ella 

<  com  medo:  Por  ventura  beber  agoa  he  quebrar  o  juramento?  Disse 

<  el  Rey  :  Vistes  mor  cousa  debaixo  do  sol  que  a  agoa  ?  Respondeo 

<  ella :  Pequei  sobre  minha  cabega ;  vos  guardastes  o  juramento.  En- 

<  tam  el  Rey  a  levou  com  sigo  e,  estando  durmindo,  Ihe  pareceo  em 

<  sonho  que  decia  do  ceo  o  sol  muy  resplandecente  e  que  alumiava 

<  muyto  a  Isrrael,  e  que  dalli  a  pouco  hia  pera  a  terra  de  Ethiopia 

<  e  nella  alumiava  muyto  e  pera  sempre,  porque  alli  folgou  de  estar. 

<  Acordou  Salomam  espantado  com  esta  vissam  e  alevantandose  con- 

<  tou  a  Reinha  o  que  tinha  visto.  Elia  Ihe  pidio  com  muyta  instancia  a 

<  deixasse  ir  pera  sua  terra,  pollo  que,  elle  entrando  na  casa  de  seus 

<  thesouros,  Ihe  deo  muytas  rique^as  e  vestidos  preciosos,  carregando 

<  muytos  animaes  e  sete  mil  carros.  Depois  tirou  hum  anel  do  dedo 

<  e  Iho  deo,  dicendo:  Este  me  mandai  em  sinal,  se  Deos  me  der  al- 

<  gum  fructo,  e  se  foi  varam,  venha  elle;  e  com  isto  a  despidio  em 
f-  12.    c  paz  e  encomendou  g^ardase  bem  o  que  Ihe  tinha  insenado  que  *ado- 

<  rase  a  hum  so  Deos  e  ficesse  sempre  sua  vontade,  pera  que  nella 

<  fosse  benta  sua  terra  ». 

<  Partindo  a  Reynha  com  toda  esta  honrra  e  aparato,  veio  a  sua       10.  Post  reditum 

<  terra  de  Bala,  que  he  Disana,  e  aos  nove  meses  e  cinco  dias  depois  cx  Salomone. 

<  que  se  afastou  de  Salomam,  pareo  hum  filho  e  o  deo  a  criar  com 

<  muyta  honrra,  e,  passados  40  dias,  entrou  em  sua  cidade  com  grande 

<  pompa  e  magestade  e  os  Principes   e   Grandes  do  reyno  se  ale- 

<  graram  em  sua  entrada  e  Ihe  trouxeram  muytos  presentes ;    ella 

<  tambem  Ihes  deo  muy  ricos  vestidos,  ouro,  prata  e  pec^as  de  grande 

<  formosura  e  concertou  seu  reyno  de  maneira  que  nam  ouve  quem 

<  desobedecese  >. 

Isto  tirei  de  hum  livro  muyto  antiguo,  que  se  guarda  na  igreja       ".  Quaedam  Au- 

,       .        A  1,  j       rr.  A  .    j      ctoris    adnotationes 

de  AgQum;  no  que  se  vee  como  aquelle  mercador  lamenn  criado 


n 


32  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

ad  supradicum  hi-  da   reynha  Sabba,   despedido  de   Salomam   veio  a   Ethiopia,  onde 

estava  sua  senhora  e,  ouvindo  ella  as  maravilhas  que  contava  de 
Salomam,  se  determinou  do  ir  a  ver.  Por  onde  conforme  a  isto  e 
ao  que  todos  os  de  Ethiopia  sem  controversia  affirmam,  he  cousa 
certa  que  a  reynha  Sabba  partio  de  Ethiopia,  quando  foi  a  Je- 
rusalem,  mas  de  que  terra  della  nam  facem  mencjam  os  livros 
nem  os  naturaes  o  sabem  de  certo.  Alguns  dicem  que  parteo  de 
huma  terra  que  chamam  Fazcolo,  onde  se  acha  o  mais  fino  ouro  que 
ha  em  Ethiopia,  e  fica  ao  occidente  do  reynode  Gojam,  nam  muyto 
longe  delle ;  outros  affirmam  que  parteo  de  AgQum,  onde  dicem  que 
tinha  seu  asento  e  naquelle  tempo  era  cidade  muyto  grande,  ainda 
que  agora  he  villa  piquena;  e  esto  he  o  que  tem  por  mais  certo. 
A  terra  onde  ella  veio,  quando  tornou  de  Jerusalem,  que  a  Historia 
chama  Bala,  dicem  que  he  na  provincia  de  Amacen  nam  muyto 
longe  do  porto  de  Ma^ua. 


CAPITULO  III. 

Em  que  se  declara  como  Menileh^c  filho  da  reynha  Sabba 
foi  a  Jerusalem  a  ver  seu  pay  Salomam. 


Antes  que  prosigamos  a  historia  do  filho  da  reynha  Sabba,  se       »•  Varia  nomina 

,,j_^.  -.  ,  .•jA^        fi^"   Sabae   et  Salo- 

ha  de  advertir  que  os  hvros,  que  se  gnardam  na  igreja  de  Ag^um   monis.    Unde    mos 
Ihe  dam  diversos  nomes,  scilicet:  Bainalehequem,  Ebna  Elehaquem,   Iniperatomm      mu- 

^  ^  tandi  nomen   quum 

Ebnehaquem,  Menilehec,  e  nam  Melilec,  como  diz  frey  Luis  de  Ur-  ad  regimen  evehun- 
reta  pag.  46.  Mas  deste  ultimo  Menilehec  usa  comummente  a  gente  de 
Ethiopia  e  quer  dicer  na  lingoa  antigfua  «  parecese  com  elle  » ,  porque 
se  parecia  muyto  com  Salomam;  mas  Salomam,  quando  o  alevantou 
f.  12.V.  por  Rey,  Ihe  pus  por  nome  *David  como  seu  pay  e  daqui  vem  que 
os  Emperadores  de  Ethiopia  mudam  o  nome  do  Bautismo  quando 
Ihes  entregam  o  imperio.  Os  demais  nomes  querem  dicer  «  filho  de 
sabio  » .  Suposto  isto,  pera  que  o  leitor  nam  repare  na  variedade  dos 
nomes,  continuaremos  com  a  historia  de  Menilehec,  que  comegamos 
no  cap.  precedente,  da  mesma  maneira  que  o  livro  a  refer,  e  diz  assi. 

«  Creceo  o  minino  e  pus  Ihe  nome  Bainalehequcm,  e,  chogando       «•  Instante  Meni- 

leh6c,    Regina    eum 

€  a  12  annos,  preguntava  aos  que  o  criavam,  quem  era  seu  pay,  e   mittitadSalomonem 
«  disseramlhe  que  el  rey  Salomam.  Preguntou  tambem  a  Reynha,  ^"^    *^^™   Tamertn 

^  •'  °  -^  mercatore. 

c  e  respondeolhe  com  agastamento :  Peraque  me  preguntais  de  vosso 
«  pay ,  nem  de  vossa  may  ?  Saio  elle  sem  falar  nada  e  tornando  dalli 

C.  Bbccaei.  H^.  Attk,  Scri^t.  oec,  ined,  —  II.  5 


34  HISTORIA   DE   FTHIOPIA 

«  a  tres  dias  com  a  mesma  pregtinta,  Ihe  respondeo  ella :  Sua  terra 
«  he  longe  e  o  caminho  trabalhoso;  nam  desejeis  ir  la.  Com  isto  esteve 
«  ate  que  chegou  a  22  annos,  em  que  aprendeo  toda  sorte  de  caval- 
«  leria  e  caga,  e  depois  pidio  a  Reynha  com  muyta  instancia  Ihe  dei- 
«  xase  ir  a  ver  seu  pay.  Vendo  ella  o  gram  desejo  que  tinha,  mandou 
«  chamar  a  seu  mercador  Tamerin,  e  Ihe  disse  que  o  levase  al  Rey 
«  seu  pay,  porque  coiitinuamente  a  importunava  de  noite  e  de  dia: 
«  mas  que  procurase  tornar  de  pressa  e  com  bem,  se  o  Deos  de 
«  Isrrael  quissese;  e,  aparelhando  o  necessario  pera  seu  caminho  con- 
«  forme  a  sua  honrra  e  as  pe^as  que  avia  de  presentar  al  Rey,  o 
«  mandou  com  grande  acompanhamento,  encomendando  a  todos  que 
«  nam  o  deixassem  la,  senam  que  o  tornasem  a  tracer,  e  que  pidi- 
«  sem  a  Salomam  que  o  levantcise  por  Rey  de  Ethiopia,  com  ordem 
«  que  dalli  por  diante  todos  seus  sucessores  fossem  homens  e  de  sua 
«  gera^am  ;  porque  era  costume  reinarem  molheres  doncellas,  sem  ca- 
«  sarem  nunca,  e  que  Ihe  mandase  hum  peda^o  da  vestidura  da  Arca, 
«  diante  de  quem  ficesem  ora^am,  e,  afastando  seu  filho  so,  Ihe  en- 
«  tregou  o  anel,  que  Salomam  Ihe  tinha  dado  de  seu  dedo,  em  sinal 
«  pera  que  conhecese  que  aquelle  era  seu  filho  e  que  Ihe  lembrase 
«  o  juramento  que  ella  tinha  feito  de  nam  adorar  senam  ao  Deos  de 
«  Isrrael,  e  que  o  mesmo  fariam  todos  seus  vassallos,  e  com  isto  o 
«  despidio  em  paz. 
3.  Menilehftc  pcr-  «  Facendo  elle  seu  caminho  chegou  a  terra  Gaza,  que  Salomam 

cum  Salomon  mia-    *  tinha  dado  a  sua  may,  onde  foi  recebido  com  grande  honrra,  pa- 
sis  donis  ad  sc  vc-    ^  recendolhes  que  era  o  mesmo  Salomam,  porque  em  nenhuma  cousa 

nirc  lubct.  ^  jt      -1 

«  se  differenciava  delle;  e  como  a  seu  Rey  Ihe  presentava  cadahum 
«  o  que  podia  conforme  a  seu  estado.  Mas  depois  huns  deciam  que 
«  nam  podia  ser  Salomam,  que  estava  em  Jerusalem;  outros  affirma- 
«  vam  que  era  o  mesmo  Salomam  filho  de  David,  *e  com  esta  du-  f.  13- 
«  vida  mandaram  gente  de  cavallo  a  Jerusalem,  onde  achando  a  Sa- 
«  lomam,  Ihe  disseram  que  toda  sua  terra  estava  perturbada  por  che- 
«  gar  a  ella  hum  mercador,  que  em  tudo  se  parecea  com  elle  sem 
«  haver  differencia  nenhuma.  Preguntou  el  Rey  pera  onde  hia  ?  e  re- 
♦  sponderam  que  nunca  se  atreveram  a  Ihe  preguntar,  por  la  grande 
«  magestade  que  tinha,  mas  que  sua  gente  decia  que  vinha  pera  elle. 
«  Ouvindo  isto  Salomam  ficou  alterado  em  seu  cora(;;am,  mas  alegre 
«  em  seu  espiritu,  entendendo  o  que  podia  ser,  que  ate  entam  nam 
«  tinha  mais  que  hum  filho,  que  se  chamava  Jeroboam,  e  mandou  a 
«  hum  seu  criado,  sobre  quem  se  encostava,  que  o  fosse  a  receber  le- 


LIVRO  I,   CAPITULO   III. 


35 


f.  13.V. 


vando  muytos  presentes  e  grande  numero  de  carros  e  que  o  trou- 
xese  com  a  maior  preste^a  que  pudese  ser  ». 

«  Parteo  o  criado  de  Salomam  com  grande  aparato,  e  chegando 
onde  Bainalehequem  estava,  Ihe  deo  os  presentes  e  disse  que  fosse 
logo  com  elle,  porque  o  cora<;am  del  Rey  ardia  com  amor  e  desejo 
do  ver.  Quanto  eu,  nam  sei  se  sois  seu  filho  o  irmao,  mas  nam  cuido 
que  sois  outro;  porque  em  tudo  vos  pareceis  com  elle.  Ao  que  re- 
spondeo:  Dou  muytos  louvores  ao  Deos  de  Isrrael,  porque  hachei 
honrra  diante  de  meu  senhor  el  Rey,  sem  chegar  a  ver  seu  rosto, 
me  fez  alegrar  com  suas  palavras.  Agora  tambem  tenho  esperanga 
em  este  mesmo  Deos  que  me  fara  chegar  a  o  ver  e  tornar  em  paz 
a  Reynha  minha  may  e  a  minha  terra  de  Ethiopia.  Respondeo  o 
criado  de  Salomam :  Muyto  mais  que  isso  que  desejais  achareis  em 
meu  Senhor  e  em  nossa  terra.  Entam  Bainalehequem  deo  ricos  ve- 
stidos  aos  criados  de  Salomam  e  parteo  com  elles  pera  Jerusalem, 
e  chegando  a  cidade,  como  o  viram,  parecialhes  que  era  o  mesmo 
Salomam,  do  que  se  maravilhavam  muyto ;  e  cntrando  al  Rey,  se 
alevantou  de  sua  cadeira  e  o  abra^ou  e  disse:  Eis  aqui  a  meu  pay 
David  resucitado  dos  mortos  e  renovado  em  sua  mocidade.  De- 
ciaisme  que  se  parecia  comigo :  nam  he  senSo  o  rosto  de  meu  pay 
David  quando  era  mancebo,  e  metendoo  em  sua  camara,  Ihe  deo 
ricos  vestidos  e  pus  aneis  nas  maos  e  coroa  na  cabe^a  e  o  fez  asentar 
em  cadeira  igoalmente  com  elle,  e  os  Principes  e  Grandes  de  Isrrael 
Ihe  ficeram  reverencia  e  deram  benpam  dicendo:  Benta  seja  a  may 
que  vos  pareo,  porque  nos  sahio  da  raiz  de  Jese  homem  esclarecido 
que  seja  nosso  Rey  e  de  nossos  filhos.  E  todos,  cada  hum  conforme 
a  seu  estado,  Ihe  trouxeram  seus  presentes,  e  elle  deo  a  Salomam 
em  secreto  o  anel  de  sua  may,  dicendo  que  se  lembrase  do  que 
elle  le  tinha  dito.  Respondeo  Salomam :  Para  que  me  dais  este 
anel  por  sinar?':  em  vosso  rosto  vejo  de  verdade  que  sois  meu 
filho  ». 

#  *Depois  que  Salomam  acabou  de  falar  em  secreto  com  seu  filho, 
entrou  Tamerin  e  disselhe:  Ouvi,  Senhor,  o  que  vos  manda  dicer 
vossa  serva  a  Reynha :  pede  vos  que  ungais  a  este  vosso  filho  por 
rey  de  nossa  terra,  e  que  mandeis  que  daqui  pordiante  nam  reyne 
la  nunca  moiher,  e  que  Iho  torneis  a  embiar  em  paz,  pera  que  se 
aleg^e  seu  coragam.  Respondeo  el  Rey :  Que  tem  a  molher  sobre 
o  filho  mais  que  parir  com  dores  e  crialo  ?  A  filha  pera  a  may  e 
o  filho  pera  o  pay;  pollo  que  nam  o  hei  de  mandar  a  Reynha, 


4.  Eum  Salomon 
recipit  cum  magno 
favore  et  coram  o- 
mnibus  ut  suum  fl- 
lium  recog^oscit. 


5.  Verba  Tamerin 
ad  Salomonem.  Hic 
vult  suadere  Meni- 
lehte  ut  apud  se 
maneat,  sed  frustra. 


n 


36  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  senam  facelo  Rey  de  Isrrael,  porque  he  o  primogenito  de  minha 
«  vara  que  Deos  me  deo.  E  mandandolhe  cada  dia  ricos  comeres  e 
«  preciosos  vestidos,  ouro  e  prata,  Ihe  decia  que  milhor  era  ficar  onde 
«  estava  a  casa  de  Deos  e  a  Arca  e  tavoas  da  Ley  e  onde  o  mesmo 
«  Deos  morava.  Mas  elle  respondia :  Quanto  ouro  e  prata  e  vestidos 
«  ricos  nam  faltam  em  nossa  terra ;  nam  vim  mais  que  pera  vosso 
«  rosto,  ouvir  vossa  sabiduria  e  sugetarme  a  vosso  imperio  e  depois 
«  tornar  a  minha  terra  e  a  minha  may :  porque  todos  folgam  com  a 
«  ten  a  onde  nacem ;  e  assi  por  mais  que  me  deis,  nam  folgarei  de  ficar 
«  aqui,  porque  me  puxa  a  came  pera  onde  naci  e  me  criei,  e  se  della 
«  eu  adorar  a  Arca  do  Deos  de  Isrrael,  elle  me  honrrara,  bastara  que 
«  me  deis  alguma  cousa  do  vestido  da  Arca  de  Syon,  para  que  eu 
«  com  minha  may  e  todos  os  de  meu  reyno  reverenciemos ;  que  ja 
«  minha  vSenhora  destruyo  todos  os  idolos  e  convirtio  nossa  gente  ao 
«  Deos  de  Syon,  porque  assi  ouvio  e  aprendeo  de  vos,  e  como  Ihe 
«  mandastes  assi  o  fez.  Procurou  Salomam  persuadirlhe  que  ficase 
«  com  muytas  re^ocs  e  promessas  e  que  seria  Rey  de  Isrrael  e  pos- 
«  suiria  a  terra  que  Deos  dera  a  seu  povo  e  a  Arca  do  Testamento, 
«  e  nam  o  pudendo  acabar  com  elle,  juntou  seus  conselheiros  e  os 
«  principes  e  grandes  de  seu  reyno  e  Ihes  disse,  como  nam  podia  aca- 
«  bar  com  seu  filho  que  ficase,  que  de  toda  maneira  se  queria  tornar ; 
«  pollo  que  todos  se  aparelhasem  pera  o  ungir  por  rey  da  terra  de 
«  Ethiopia,  e  que  assi  como  elles  estavam  alli  a  sua  mao  de- 
«  reita  e  izquerda,  assi  estariam  la  seus  primogenitos  com  elle,  e 
«  que  mandariam  sacerdotes  que  insinasem  a  ley,  pera  que  se  suge- 
«  tasem  ao  Deos  de  Isrrael.  Responderam  todos:  Assi  como  el  Rey 
«  ordenar  sera  feito.  Quem  ha  de  contradicer  ao  mandamento  de 
«  Deos  e  del  Rey  [?]  » . 
6.  Ungitur,  prae-  «  Aparelharam  logo  suavissimoscheiros  e  aceite  e  tangendomuy- 

cipiente  Salomone,  a  .  t        «         • 

sacerdotibus  in  Re-    «  tas  sortes  de  mstrumentos  musicos  com  voces  de  alegria  o  mete- 
gem  Aethiopiae  et  m    ^  ^^^  ^^  Sancta  Sanctorum  e  foi  nomeado  poUa  boca  de  Sadoc  e  loas 

lege  Mosaica  mstrui-  ^ 

tur.  «  sacerdotes,  e  foi  ungido  poUa  mao  do  Principe  de  Salomam  e  puse- 

«  ramlhe  por  nome  *David,  porque  naley  achou  nome  de  Rey  e  saindo  ^-  *^- 
«  subio  na  mula  del  rey  Salomam  e  levaramo  por  toda  a  cidade 
«  dicendo :  Viva  el  rey.  O  Deos  de  Isrrael  vos  seja  guia  e  a  Arca 
«  da  Ley  de  Deos,  e  onde  quer  que  chegardes,  se  vos  sugetem  todos 
«  e  [cjaian  diante  [vos]  vossos  enemigos.  Depois  Ihe  deo  ben^am  seu 
«  pay  dicendo:  A  ben^am  do  ceo  e  da  terra  seja  com  vosco;  e  to- 
<s.  dos  responderam:  Amen.  Disse  entam  Salomam  a  Sadoc  sacerdote  : 


LIVRO   I,   CAPITULO    ITI. 


37 


f.   I4,v. 


Declarailhe  a  justi^a  e  castigo  de  Deos,  pera  que  la  a  gxiarde.  Re- 
spondeo  Sadoc  sacerdote  :  Ouvi  bem  o  que  vos  digo,  porque,  se  o 
ficerdes,  vivereis  a  Deos,  e  se  nam,  vos  castigara  com  rigor  e  sereis 
menos  que  os  de  vosso  povo  e  vencido  da  multidam  de  vossos  ene- 
migos.  Ouvi  a  palavra  de  Deos  e  cumpria  :  nam  vos  afasteis  de  sua 
ley,  nem  a  mao  dereita,  nem  a  izquerda;  e  fezlhe  huma  pratica  muyto 
cumprida,  declarandolhe  os  castigos,  que  Deos  Ihe  daria,  se  nam 
guardase  sua  ley,  e  as  merces  que  Ihe  faria,  se  a  guardase  ». 

«  Toda  a  terra  se  alegrou  muyto  por  Salomam  levantar  a  seu 
filho  por  Rey,  mas  entristeceramse  por  Ihes  mandar  que  dessem 
seus  primogenitos,  ainda  que  Ihes  avia  de  facer  as  honrras  que  Sa- 
lomam  facia  a  elles  mesmos.  E  mandou  Salomam  a  seu  filho  que 
da  mesma  maneira  que  elle  tinha  ordenada  sua  casa  e  repartidos 
os  officios  assi  o  ficesse  na  sua  e  pera  isso  Ihe  deo  os  primoge- 
nitos,  que  se  chamavam  Azarias  filho  de  Sadoc  sacerdote  e  o  sina- 
lou  por  cabecja  dos  sacerdotes,  leremias  neto  de  Natan  propheta, 
Maquir,  Airam,  Finquina,  Acmihel,  Somnias,  Facaros,  Leoan- 
dos,  Carmi,  Zaraneos,  Adarez,  Leguim,  Adeireos,  Aztaran,  Ma- 
cari,  Abiz,  Licandeos,  Carmi,  Zeraneos.  Todos  estes  Ihe  foram 
dados  a  David  rey  de  Ethiopia  filho  del  rey  Salomam,  e  a  estes 
reparteo  todos  officios  e  mandos  de  sua  casa.  Deolhe  tambem 
cavallos,  carros,  ouro,  prata,  pedras  preciosas  e  gente  que  o  acom- 
panhase  com  outras  muytas  cousas  necessarias  pera  o  caminho  > . 

«  Aparelharamse  logo  pera  partir  os  principes  de  Ethiopia  com 
grande  alegria  e  contentamento ;  mas  ficaram  muyto  tristes  os  de 
Isrrael,  por  Ihes  levarem  seus  primogenitos  e  foi  muyto  grande 
o  pranto  que  com  elles  ficeram  seus  pays,  parentes  e  amigos  ao 
tempo  da  partida ;  mas  em  quanto  se.  aparelhavam  se  juntaram 
estes  primogenitos  e  disseram  entre  si :  Ja  que  deixamos  nossa 
terra  e  nossos  parentes,  juremos  todos  de  guardarnos  *sempre 
amor  e  uniam  em  as  terras  onde  imos.  Responderam  Azarias  e 
Jeremias  filhos  dos  sacerdotes:  Nam  tenhamos  paixam  por  dei- 
xar  nossos  parentes,  senam  por  nos  faccrem  deixar  a  Syon  nossa 
senhora  e  nossa  esperan^a ;  como  podemos  deixar  a  nossa  santa 
Syon  ?  Se  dissermos  que  nam  queremos  ir,  mandarnos  ha  matar 
el  Rey ;  nam  podemos  deixar  de  cumprir  seu  mandado  e  a  pa- 
lavra  de  nossos  pays.  Pois  que  faremos  por  amor  de  Syon  nossa 
senhora  ?  Eu  vos  darei  conselho,  disse  Azarias  filho  de  Sadoc,  se 
me  jurardes  que  nam  aveis  de  falar  com  ninguem.  Se  morrermos. 


7.  Destinantur  pri- 
mogenid  Primonim 
Israel  ad  ezercenda 
praecipua  officia  in 
regia  domo  Aefhio- 
piae. 


8.  Hi,  suadente 
Asaria,  consilium  in- 
eunt  asportandi  se- 
cum  Arcam  Testa- 
menti. 


38  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

c  morreremos  juntos,  e  se  vivermos,  tambem  sera  juntos.  luraram  en- 
€  tao  todos  por  o  nome  de  Deos  de  Isrrael  e  da  Arca  de  Deos,  e 
c  depois  Ihes  disse :  Tomemos  nossa  senhora  Syon ;  que  bem  a  po- 
*f  demos  tomar,  se  Deos  quiser.  Se  nos  acharem  e  morrermos,  nam 
c  tenhamos  paixam,  pois  por  amor  della  morremos.  Alevantaramse 
c  todos  e  beixaramlhe  a  cabega  pollo  gosto  e  consolacjam  g^rande 
c  que  tinham,  e  disseram  que  fariam  tudo  quanto  Ihes  mandase.  Disse 
c  Zacharias  filho  de  loab :  Eu  de  pracer  nam  posso  caber  em  mi ; 
c  diceime  de  verdade  se  fareis  isto  ?  Eu  bem  sei  que  o  podeis  fa- 
c  cer,  pois  estais  em  lugar  de  vosso  pay  e  tendes  em  vosso  poder 
c  as  chaves  da  casa  de  Deos.  Olhai  bem  como  emos  de  facer,  e 
c  nam  durmais  pera  que  a  possamos  tomar  e  ir  com  ella  e  semos 
c  ha  alegria,  mas  triste^a  a  nossos  pays.  Mandou  logo  facer  huma 
c  caixa  de  pao,  dos  que  sobeixaram  da  fabrica  do  Templo,  da  com- 
c  pridam,  largiira  e  altura  da  Arca  de  Deos,  para  nella  a  levar  e 
c  disse  que  nam  descubrisem  aquilo  nem  ainda  al  Rey,  senam  de- 
c  pois  de  partir  e  estar  muyto  longe  ». 
9.  luasu  Angeli,  c  Estando  a  noite  durmindo  Azarias,  Ihe  apareceo  o  anjo  de  Deos 

ct  assentiente  Salo^    *  ®  ^^^  disse  que  tomase  4  cabras  de  hum  anno  por  seus  peccados 
lomone    sacrificium   c  e  de  Elmias,  de  Abizo  e  M.iquir,  e  4  carneiros  limpos  de  hum  anno 

fit  coram  Arca.  -1       »       -r  t- 

c  e  huma  vaca,  a  que  nam  fosse  posto  jugo,  e  os  sacrificase  pera 
c  oriente,  a  metade  dos  carneiros  pera  a  mao  dereita  da  vaca  e  a 
c  outra  metade  pera  a  izquerda ;  e  vosso  senhor  el  rey  David  dira 
c  al  rey  Salomam  que  deseja  sacrificar  em  Jerusalem  e  Arca  S.*  de 
«  Deos,  e  que  por  elle  tambem  sacrifique  o  filho  do  sacerdote  da  ma- 
c  neira  que  sabe.  Entam  vos  mandara  el  rey  Salomam  sacrificar  e 
c  tomareis  a  Arca  de  Deos ;  e  dicervos  hei  como  aveis  de  tirar,  por- 
c  que  Deos  esta  airado  contra  Isrrael,  e  quer  tirar  delles  sua  Arca. 
c  Acordando  Azarias,  ficou  muyto  alegre  pollo  sonho  que  tivera  e  pol- 
c  las  palavras  que  Ihe  disse  o  anjo;  e  juntando  seus  companheiros 
c  Ihes  contou  tudo,  e  disse  que  fossem  com  elle  al  rey  David  seu 
c  senhor  pera  Ihe  dar  parte  disto,  e  assi  foram  e  Iho  disseram,  *com  f.  15. 
c  o  que  se  alegrou  muyto  e  mandou  chamar  a  Joab  filho  de  Jodahe 
c  e  o  mandou  com  recado  a  Salomam  dicendo :  Senhor,  deixaime  ir 
c  a  minha  terra  com  vossa  vontade  e  vossa  ora^am  me  siga  em  qual- 
^  quer  parte  que  eu  chegar.  Huma  cousa  vos  pe^o  muyto,  que  por 
c  isto  nam  mingueis  o  amor  que  me  tendes  :  tambem  desejo  sacri- 
«  ficar  sacrificios  a  Syon  Arca  de  Deos  em  esta  terra  santa  de  Je- 
c  rusalem  por  meus  peccados.  Foi  Joab  a  Salomam,  e  ouvindo  este 


LIVRO    r,   CAPITULO   III. 


39 


f.  I5,v. 


recado,  se  aleg^ou  muyto  e  mandou  aparelhar  grandes  sacrificios, 
p)era  que  sacrificase  seu  filho  e  deramselhe  loooo  bois  e  vacas, 
loooo  cameiros,  loooo  cabras  e  outros  animaes  do  mato  que  se 
comem,  e  dos  passaros  limpos,  de  cada  especie  dez ;  de  farinha  de 
trigo  hum  zal,  1 2  siclos  de  prata  e  40  memesreha  abaioa.  Tudo 
isto  Ihe  deo  el  rey  Salomam  a  seu  filho  e  depois  mandou  el  Rey 
dicer  a  Azarias  filho  do  sacerdote,  que  sacrificase  por  si ;  do  que 
se  alegrou  muyto  Azarias  e  trouxe  de  sua  casa  huma  vaca  a  que 
nam  se  tinha  posto  jugo  e  4  carneiros  de  hum  anno  e  4  cabras 
tambem  de  hum  anno,  e  juntou  seu  sacrificio  com  o  sacrificio  del 
Rey  asi  como  o  anjo  Ihe  tinha  dito. 

c  Apareceo  outra  vez  o  anjo  a  Azarias  e  disselhe :  Alevantai 
a  vossos  irmSios  Elmias  e  Abizo  e  Maguir;  e  como  os  alevantou, 
Ihes  disse  o  Anjo :  Eu  vos  abrirei  a  porta  do  templo  e  tomareis  a 
Arca  de  Deos  e  sem  lesam  alguma  a  levareis,  porque  Deos  me 
mandou  estar  sempre  com  ella.  Foram  elles  logo  ao  templo  e  acha- 
ram  as  portas  abertas  ate  chegarem  onde  reposava  a  Arca  de  Deos 
Syon,  e  ella  se  alevantou  logo  em  hum  momento,  porque  o  anjo 
de  Deos  a  governava,  e  elles  a  tomaram  e  levaram  a  casa  de  Aza- 
rias,  e  a  puseram  sobre  pannos  de  seda  e  Ihe  acenderam  candeas  e 
sacrificaram  hum  cameiro  limpo  e  ofereceram  encenso  e  alli  esteve 
7  dias. 

€  Em  isto  el  rey  David  muyto  aleg^e  por  ir  a  sua  terra  foi  a 
seu  pay  el  rey  Salomam,  e  facendolhe  reverencia  disse  que  Ihe  desse 
sua  ben^am.  El  Rey  o  fez  alevantar  e  tomandoo  polla  cabe^a, 
disse  :  Deos,  que  benceo  a  meu  pay  David,  seja  sempre  comvosco, 
e  ben<;:a  vossa  semente,  assi  como  benceo  a  Jacob ;  e  deolhe  outras 
muytas  bengoes.  Com  isto  se  foi  e  puseram  a  Arca  em  hum  carro, 
e  muytas  rique<;as  e  vestidos,  que  del  rey  Salomam  e  de  outros  re- 
ceberam,  carregaram  em  carros  e,  alevantandose  os  sacerdotes,  tan- 
geram  muytos  instrumentos  e  a  terra  toda  se  alvoro^ou  com  as  vo- 
ces.  Os  primogenitos  que  hiam  choravam  com  seus  pays  e  todo  o 
povo  tambem  chorava,  como  se  os  cora^oes  Ihes  disseram  que  era 
tomada  a  Arca.  Foi  *tam  grande  a  triste<;a  e  pranto,  que  ate  os 
animaes  parecia  que  choravam,  e  todos  botavam  cin<;:a  sobre  suas 
cabe<;as;  ate  Salomam,  ouvindo  as  voces  e  vindo  o  clioro  da  gente 
e  a  honrra  dos  que  hiam,  chorou  e  disse :  Ja  da  qui  por  diante  pas- 
«  sou  nossa  felicidade  e  nosso  reyno  ao  povo  alheo  que  nam  conhece 
«  a  Deos ;  e  chamando  a  Sadoc  Ihe  disse  que  trouxese  huma  das  ve- 


xo.  AMrias  cum 
fratribus,  praeeunte 
Angelo,  furantur  Ar* 
cam  et  domi  abscon- 
dunt. 


XX.  Menilehftc  iter 
arripit  cum  suia  tra- 
hentibus  Arcam ;  fle- 
tu8  populi;  benedi- 
ctio  et  monita  Salo- 
monis. 


^ 


40  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  stiduras  da  Arca  e  que  a  levase  a  seu  filho  David,  porque  a  Rey- 
«  nha  Iha  tinha  pedido  por  Tamerin  seu  criado  pera  facer  ora^am 
«  diante  della  com  todo  seu  povo ;  e  que  Ihe  dissese  que  a  Arca  de 
«  Deos  Syon  fosse  sua  guii  e  que  tivese  sempre  aquella  vestidura 
«  em  seu  arrayal,  e  que,  quando  elle,  ou  seu  povo,  ouvesse  de  jurar, 
«  fosse  por  ella,  porque  nam  se  lembrasem  mais  de  outros  Deoses, 
xa.  Promissio  Mc-  «  Foi  Sadoc  e  fez  tudo  o  que  Ihe  mandou  Salomam,  com  o  que 

nilefaftc  Sad6c  sacer-  ,  ^t-w'j  j«  t-^  -i  .t^ 

doti ;  prodigia  in  iti-    *^   aleg^ou  muyto  David,  e   disse :    Esta  seja  mmha  santa.   Re- 
^^^'  «  spondeo  Sadoc:  Pois  juraime  de  facer  que  esta  vestidura  esteja 

«  sempre  na  mao  de  meu  filho  Azarias  e  de  seus  filhos,  e  que  Ihe 
«  dareis  tambem  os  dizimos  de  vosso  reyno ;  e  elle  insinara  sempre 
«  a  Ley  de  Deos  a  vos  e  a  vosso  povo,  e  ungira  vossos  filhos  em 
«  Reys.  E  assi  o  jurou,  e  Azarias  recebeo  da  mao  de  seu  pay  Sadoc 
«  a  vestidura  da  Arca,  e  a  levaram  em  hum  carro  e  foram  seu  ca- 
«  minho  dereito,  sendolhes  guia  sam  Miguel  que  os  facia  andar  com 
«  tanta  velocidade  como  se  avoaram,  de  maneira  que  os  carros  hiam 
«  alevantados  da  terra  hum  covado  e  os  animais  hum  palmo,  e  do 
«  sol  os  cubria  huma  nuve,  que  os  acompanhava  e  por  o  mar  os 
«  levava  como  foram  levados  os  filhos  de  Isrrael  por  o  Mar  verme- 
«  Iho.  O  primeiro  dia  que  se  alevantaram  chegaram  a  Gaza,  terra 
«  que  el  rey  Salomam  deo  a  reynha  Sabba  e  passaram  a  Mazrin 
«  terra  dos  Egypcios,  e  todo  este  caminho  ficeram  em  hum  dia :  e 
«  vendo  os  Principes  de  Isrrael  que  o  caminho  de  trece  dias  ficeram 
«  elles  em  hum,  sem  cansarem  nem  terem  sede,  nem  fome,  nem 
«  homens  nem  animaes,  entenderam  que  esta  era  cousa  de  Deos. 
«  E  como  viram  que  tinham  chegado  a  terra  dos  Egypcios,  dis- 
«  seram:  Descansemos  aqui,  pois  chegamos  a  terra  de  Ethiopia;  que 
«  a  agoa  de  Taca^e  vem  e  chega  ate  aqui ;  e  pondo  suas  tendas, 
«  descansaram.  Disse  entam  Azarias  al  rey  David :  Eis  aqui,  Senhor, 
«  as  maravilhas  de  Deos,  que  se  cumpriram  em  vos.  Aqui  tendes 
«  a  Arca  de  Deos,  so  por  sua  vontade  e  nam  vossa;  e  assi  tambem 
«  ella  estara  onde  quiser ;  que  ninguem  Iho  pode  toller.  Agora  se 
«  cumprides  os  mandamentos  de  Deos,  estara  *com  vosco  e  vos  de-  f.  16. 
«  fendera.  Entam  el  rey  David,  pasmado  de  tantas  maravilhas,  deo 
«  gra<^as  a  Deos,  elle  e  todo  seu  arrayal ;  e  era  tam  grande  a  alegria 
«  de  todos,  que  maravilhados  alevantavam  as  maos  ao  ceo,  dando 
«  gra^as  a  Deos,  e  el  Rey  saltava  de  placer,  como  cordeiro  e  como 
«  cabrito  quando  esta  farto  de  leite,  e  como  se  alegrou  David  diante 
«  da  Arca  do  Testamento;  e  entrando  na  tenda,  onde  estava  a  Arca, 


LIVRO   I,   CAPITULO   III. 


41 


f.  i6,v. 


Ihe  fez  reverencia  e  beixou  e  disse:  Senhor  Deos  de  Isrrael,  a 
vos  gloria,  porque  faceis  vossa  vontade  e  nam  a  dos  homens.  E 
fez  huma  oraijam  muyto  cumprida,  dandolhe  gra^as  poUa  merce 
que  Ihe  tinha  feito;  e  tangeram  muytos  instrumentos  e  ficeram 
todos  g^andes  festas  e  cairam  todos  os  idolos  dos  gentios,  obras 
de  suas  maos.  E  outro  dia  puseram  a  Arca  sobre  o  carro  cuberta 
com  ricos  pannos  e  comegaram  a  caminhar  com  grandes  musicas; 
e  os  carros  hiam  alevantados  do  cham  como  hum  covado ;  e  che- 
garam  ao  mar  dos  mares,  mar  de  Ertera,  que  foi  averto  polla 
mao  de  Moyses,  e  caminharam  os  filhos  de  Isrrael,  e  por  que  a 
Moyses  ainda  nam  Ihe  tinha  Deos  dado  as  tavoas  da  Ley,  por 
isso  ficou  a  agoa  como  muro  de  huma  e  outra  parte  e  elles  p£is- 
saram  pollo  fundo  com  suas  molheres  e  filhos  e  animaes.  Mas 
quando  elles  chegaram  com  a  Arca,  tangendo  muytos  instrumentos, 
o  mar  os  recebeo  como  alegrandose  e  facendo  festa  com  suas 
ondas,  que,  ainda  que  se  alevantavam  como  montes,  os  carros  pas- 
savam  alevantados  sobre  ellas  casi  tres  covados  e  os  peixes  e 
monstruos  do  mar  e  as  aves  do  ar  adoravam  a  Arca;  e  saindo 
do  mar,  se  alegraram  muyto  assi  como  os  filhos  de  Isrrael  quando 
sairam  de  Eg^pto,  e  chegaram  de  fronte  do  monte  Synai,  a  asen- 
taram  alli  com  grandes  musicas. 

€  Em  quanto  elles  faciam  este  caminho,   entrou  Sadoc  sacer-      13.  Salomon  dc- 

,  «         <>  A  1  tecto  f  urto  Arcae  Dei 

dote  no  templo  e  nam  achando  a  Arca,  senam  huns  paos  que  peracquitur  Aethio- 
tinha  feito  Azarias  a  sua  semelhan^a  e  posto  alli,  caio  sobre  seu  ?*••  ^  fnistra. 
rosto  no  cham  como  morto  com  dor  e  espanto,  e  tardando  em 
sair,  entrou  Josias  e  achou  o  caido,  e  facendoo  alevantar,  vio 
elle  tambem  como  faltava  a  Arca,  e  botou  cin^a  sobre  sua  cabe^a 
e  come^ou  a  gritar  tal  alto  da  porta  do  Templo  que  se  ouvio  na 
casa  del  *rey  Salomam ;  e  como  soube  o  que  passava,  se  alevantou 
com  grande  espanto  e  mandou  lan^ar  pregam  que  se  ajuntasem 
todos  pera  ir  a  buscar  a  gente  de  Ethiopia  e  que  a  seu  filho 
trouxesem  e  a  todos  os  demais  passasem  a  espada,  que  eram 
dignos  de  morte.  E  como  se  juntaram  os  principes  e  grandes  e 
os  fortes  de  Isrrael,  saio  Salomam  com  grande  ira  pera  os  buscar; 
e  os  mais  ancianos,  as  viuvas  e  doncellas  se  juntaram  no  Templo 
e  ficeram  grande  pranto,  por  Ihes  terem  tomado  a  Arca  da  ley 
de  Deos.  Salomam  foi  poUo  caminho  de  Ethiopia  e  mandou  gente 
a  mao  dereita  e  a  izquerda,  por  si  se  afastasem  do  caminho  com 
«  medo  do  que  levavam  furtado,  e  que  fossem  diante  com  cavallos 


C.  Bbcc:ajii.  /ier.  AetA,  Script,  oce,  tned,    -  II. 


42  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

€  a  toda  pressa,  e  os  que  os  achasem  tornasem  a  Ihe  dicer  onde 
«  estavam.  E  depois,  sabendo  de  certo  assi  por  algxins  destes  de 
«  cavallo  que  tomarao,  como  poUa  gente  de  Gaza,  onde  elle  chegou, 
«  que  nam  os  podia  alcan^ar,  porque  hiam  seus  carros  alevantados 
«  do  cham  no  ar  com  tanta  velocidade  como  aves,  fez  muyto  grande 
«  pranto  e  disse :  Senhor,  vivendo  eu,  me  levastes  a  Arca  ?  milhor 
«  me  fora  tirardesme  a  vida.  E  decia  outras  muytas  palavras,  que 
«  mostravam  a  grande  tristecja  e  angustia  de  seu  coragam.  Depois 
«  se  tomou  a  Jerusalem  e  com  os  velhos  della  fez  outra  vez  novo 
«  pranto ;  e  vendo  os  Grandes  que  derramava  tantas  lagrimas,  o 
«  consolaram  dicendo  que  nam  tivese  tanta  paixam,  pois  sabia  que 
«  Syon  nam  podia  estar  se  nam  onde  ella  quisese,  nem  se  podia 
«  facer  se  nam  a  vontade  de  Deos.  EUe  foi  servido  de  que  pri- 
«  meiro  a  levasem  os  Philisteos,  e  depois  Iha  fez  tornar:  assi 
«  agora  por  sua  vontade  foi  levada  a  Ethiopia,  e  fara  que  torne, 
«  se  elle  quiser,  e  se  nam,  aqui  tambem  tendes  a  casa  que  edifi- 
«  castes  pera  Deos,  com  que  vos  podeis  consolar.  Respondeo  Sa- 
«  lomam :  Se  a  mi  e  a  vosotros  nos  levara,  ou  ficera  que  elles  pos- 
«  suisem  nossa  terra,  que  cousa  era  impossivel  a  Deos  [?].  Nam  ha 
«  nem  nos  ceos,  nem  na  terra  quem  ressista  a  sua  vontade,  nem 
«  desobedega  a  seu  mandamento.  EUe  he  Rey,  cujo  reyno  nam  se 
«  tirara  pera  sempre  dos  sempres ;  vamos  a  sua  casa  a  Ihe  dar 
«  gra^as  por  tudo ;  e  entrando  todos  no  Templo  choravam  muyto, 
«  ate  que  Ihes  disse  Salomam,  que  cessasem,  porque  nam  dessem 
«  gosto  e  alegria  aos  gentios  com  a  nova  de  sua  perda.  Respon- 
«  deram  todos:  Seja  feita  a  vontade  de  Deos  e  vossa. 
14.  Menilehftc  per-  «  Proseguindo  el  rey   David  seu  caminho,   chegcu  a  Balentos 

venit  in  Aethiopiaxn; 

regina  MaquedA  cum    «  limite  das  terras  de  Ethiopia  e  entrou  com  grande  alegria  e  con- 
universo  populo  re-   ,  tentamento  e  com  muyta  sorte  de  musicas  e  festas.  correndo  em  seus 

cipit  nlium  et  Arcam  -^ 

Dei  et  hanc  coUocat   «  carros,  e  mandaram  gente  com  muyta  pressa  que  desse  *novas  a  f,  17 
cipe  scil.^^l^rft^Ma-   *  Maqueda  reynha  de  Ethiopia,  que  vinha  seu  filho  e  como  reynara 
V^^^-  €  e  que  traciam  a  Syon  celestial.  Como  chegou  este  recado  a  Rey- 

«  nha,  se  alegrou  muyto  e  mandou  logo  lan^ar  pregam  em  todo  seu 
«  reyno  que  fossem  a  receber  seu  filho  e  principalmente  a  Syon  cele- 
«  stial,  Arca  do  Deos  de  Isrrael ;  e  tangeram  diante  della  muytos 
«  instrumentos,  facendo  grande  festa  e  alegrandose  muyto  grandes  e 
«  piquenos,  e  foram  a  terra  de  seu  poder,  que  he  cabe^a  do  reyno  de 
«  Ethiopia,  na  qual  nos  tempos  derradeiros  se  ficeram  christaos  os  de 
«  Ethiopia,  e  aparelharam  cheiros  sem  conto  em  Balte  ate  Galtet  e 


LIVRO   I,   CAPITULO   IIT. 


43 


f.  I7A. 


«  Al^afa;  e  veio  seu  filho  poUo  caminho  de  Azeb  e  Vaquir6n,  e  saio 
«  por  Mocez  e  chegou  a  Bur  e  a  terra  do  poder  que  he  cabe^a  de 
«  Ethiopia,  que  ella  mesma  edificou  em  seu  nome  e  se  chamou  terra 
«  Debra  Maqueda ;  e  entrou  el  rey  David  com  g^ande  festa  e  alegria 
«  na  terra  de  sua  may;  e  vendo  a  Reynha  de  longe  a  Arca,  que 
€  resplandecia  como  o  sol,  deu  gra^as  ao  Deos  de  Isrrael  com  tam 
«  grande  alegria  e  contentamento  que  nam  cabia  de  placer,  e  vi- 
«  stindose  ricamente,  fez  grande  festa  e  todos  g^andes  e  piquenos 
«  se  alegraram  sobre  maneira,  e  metendo  a  Arca  em  o  Templo  da 
«  terra  de  Maqueda,  puseram  de  guarda  300  homens  com  suas 
«  espadas  e  os  Principes  e  Grandes  de  Syon  os  fortes  de  Isrrael 
«  300  com  espadas  em  as  maos ;  e  a  seu  filho  deo  tambem  300  de 
«  guarda  e  se  Ihe  sugetou  seu  reyno  do  mar  Aliba  ate  Acefa,  e  teve 
«  mais  honrra  e  rique^a  que  nenhum  antes  delle,  nem  depois  ha  de 
«  ter ;  porque  em  aquelle  tempo  nam  avia  ninguem  como  el  rey  Salo- 
«  mam  em  Jerusalem  e  como  a  reynha  Maqueda  em  Ethiopia ;  que 
«  a  ambos  Ihes  foi  dada  sabiduria,  onrra  e  riquecja  e  grande  corapam. 
«  Ao  3°  dia  offereceo  a  reynha  a  seu  fiiho  setecentos  e  sete  mil 
«  cavallos  escolhidos  e  sete  mil  e  seiscentas  egoas  que  pariam,  e  tre- 
«  centas  mulas  e  outros  tantos  machos  e  muytos  vestidos  muy  ricos 
«  e  grande  soma  de  ouro  e  prata  e  entregoulhe  a  cadeira  de  seu 
«  reyno,  e  disselhe :  Deivos  vosso  reyno  e  fiz  rey  a  quem  Deos  fez 
«  rey;  escolhi  a  quem  Deos  escolheo.  Alevantouse  entam  el  rey 
«  David  e,  facendo  reverencia  a  Reynha,  Ihe  disse :  Vos  sois  a  rey- 
«  nha  e  senhora  minha ;  todas  as  cousas  que  me  mandardes  farei, 
«  sejam  pera  vida  ou  pera  morte ;  e  onde  me  mandardes  irei,  porque 
<  vos  sois  cabe^a  e  eu  pes,  vos  senhora  e  eu  escravo.  E  com  outras 
«  muytas  palavras  de  humildade  se  Ihe  offereceo;  e  como  acabou,  se 
«  tangeram  muytos  instrumentos  e  se  fez  grande  festa.  Depois  *E1- 
«  mias  e  Azarias  tiraram  o  livro  que  foi  escrito  diante  de  Deos  e 
«  del  rey  Salomam,  e  o  leram  diante  de  Maqueda  e  dos  Grandes 
«  de  Isrrael;  e  quando  ouviram  as  palavras,  adoraram  a  Deos  todos 
«  os  que  estavam  presentes  grandes  e  piquenos  e  Ihe  deram  muytas 
«  grax^as.  Ultimamente  disse  a  Reynha  a  seu  filho :  Deus  vos  de 
«  verdade,  meu  filho ;  ide  por  ella,  nam  vos  afasteis  a  mao  dereita. 
«  nem  a  izquerda;  amai  a  vosso  Deos,  porque  elle  he  misericor- 
«  dioso  e  em  suas  cousas  se  conhece  sua  bondade.  E  virandose  a 
«  falar  com  os  sacerdotes  e  gente  de  Isrrael,  Ihes  fez  muytos  offe- 
«  recimentos  e  prometeo  dos  ter  sempre  por  pays  e  mestres,  porque 


15.  Regina  cumu- 
lat  donis  filiutn,  eum 
ungere  facit  ab  Aza- 
ria  in  regem,  prin- 
cipibus  et  populo 
plaudentibu8,qui  uni 
Deo  larael  cultum  in 
posterum   praestant. 


44  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  elles  eram  os  que  gnardavam  a  ley  e  insinavam  os  mandamentos 
«  do  Deos  de  Isrrael.  Elles  tambem  Ihe  deram  muytas  gra^as,  e 
«  Azarias  particularmente  muytos  louvores,  e  disse  que  tudo  quanto 
«  viram  Ihes  parecera  bem,  a  fora  de  screm  pretos  de  rosto.  Depois 
«  disse  Azanas :  Vamos  diante  da  Arca  de  Syon  e  renovamos  o 
€  reyno  de  nosso  senhor  David ;  e  tomando  seu  como  cheio  de  oleo 
«  o  ungio,  e  assi  se  ronovou  o  reyno  del  rey  David  filho  del  rey 
«  Salomam  na  terra  do  poder  de  Maqueda  na  casa  de  Syon ;  e  ajun- 
«  tando  a  Reynha  os  Grandes  do  reyno,  les  fez  jurar  por  Syon  ce- 
«  lestial  que  nam  admitiriam  dalli  por  diante  molher  por  reynha 
«  na  cadeira  do  reyno  de  Ethiopia  senam  filhos  que  decendesem  de 
«  David;  e  Azarias  e  Elmias  receberam  o  juramento  de  todos  os 
«  Principes  e  Grandes  e  dos  Governadores  e  os  filhos  da  for^a  de 
«  Isrrael  com  seu  rey  David  renovaram  o  reyno,  e  a  gente  de 
«  Ethiopia  deixou  seus  idolos  e  adorou  ao  Deos  que  os  fez  ». 
i6.  ObservataoneB  Ate  aqui  sam  palavras  de  hum  livro,  que  se  guarda  na  igreja 

Aoctoris    ad    histo-     <,       a  ^.  -i.-^-  ^jiii_ 

riam        MenUehftc    ^®  Aggum,  e  nam  contmua  mais  a  histona,  nem  a  gente  delle  sabe 
quam  fabulosam  ex  ^^  recam  das  terras  Vaquirom,  Balte,  Galtet  e  Alcafa;  so  Bur  he 

parte  esse  ostendit. 

conhecido,  que  ho  provincia  do  reyno  de  Tigre,  hum  dia  de  ca- 
minho  do  porto  de  Ma^ua.  Quanto  ao  nome  Debra  Maqueda  da  ci- 
dade  que  a  reynha  hedificou,  Deber,  propriamente  significa  monte ; 
mas,  porque  em  os  montes  ordinariamente  edificavam  os  templos  e  mo- 
steiros,  ao  templo  ou  mosteiro  chamararSo  tambem  Deber ;  e  quando 
a  este  nome  Deber  se  ajunta  outro,  dicem  Debra;  por  onde  Debra 
Maqueda  quer  dicer  monte  ou  templo  de  Maqueda ;  e  se,  como  dis- 
semos  no  capitulo  precedente  e  se  pode  collegir  do  que  em  este 
se  refirio,  Maqueda  foi  a  cidade  de  Ag<;:um,  querera  dicer  Templo 
de  AgQum;  que  nella  avia  hum  muyto  sumptuoso  templo.  Acerca 
do  que  diz  que  o  Anjo  apareceo  em  sonhos  a  Azaiias  *e  que  Ihe  f.  18. 
mandou  que  tomase  a  Arca  do  testamento  e  que  a  trouxeram  pera 
Ethiopia,  tudo  he  historia  apocrifa  e  fabulosa ;  porque  o  contrario 
insina  a  Sagra  Escriptura  2,  Macha,  2,  onde  diz  que  o  propheta 
Hieremias  escondeo  o  tabernaculo  e  a  Arca  e  o  altar  do  encenso 
em  huma  coba  do  monte  Nebo,  em  que  subio  Moyses  e  vio  a 
terra  de  promissam,  Deut,  34,  que  esta  em  Arabia,  como  diz  Hie- 
ron.  de  Locis  Hebraicis.  As  palavras  do  sagrado  texto  sam  es- 
tas :  «  Tabernaculum  et  Arcam  iussit  Propheta,  divino  responso  ad 
«  se  facto,  comitari  secum  usque  quo  exiit  in  montem,  in  quo  Moyses 
«  ascendit  et  vidit  Dei  haereditatem;  et  veniens  ibi  Hieremias  in- 


LIVRO   I,   CAPITULO   III.  45 

«  venit  locum  speluncae  et  Tabernaculum  et  Arcam  et  altare  incensi 
«  intulit  illuc,  et  ostium  obstruxit ;  et  accesserunt  quidam  simul  qui 
«  sequebantur  ut  notarent  sibi  locum  et  non  potuerunt  invenire.  Ut 
«  autem  cognovit  Hieremias,  culpans  illos  dixit,  quod  ignotus  erit 
«  locus,  donec  congreget  Deus  congregationem  populi ».  Isto  sera  no 
derradeiro  tempo,  pouco  antes  do  dia  do  Juigo,  como  tem  pera  si 
s.  Epiphanio  na  vida  do  Propheta  Hieremias.  E  muytos,  tambem 
em  Ethiopia,  tem  esto  por  falso,  ainda  que  os  frades  de  Ag^um 
sempre  afiirmam  que  esta  em  sua  igreja  esta  Arca.  Mas  indo  por 
vissorrey  do  reyno  de  Tigre  hum  irmao  do  emperador  Seltan  (^a- 
g^ed,  que  se  chama  Qela  Christos,  scilicet  «  imagem  de  Christo  » ,  no 
anno  de  608,  chegou  de  caminho  a  AgQum,  como  acostumam  os 
Vissorreys,  poUo  nome  grande  que  tem  a  igreja  que  alli  esta,  e 
disse  aos  frades  que  Ihe  mostrasem  a  Arca  do  Testamento;  e  re- 
sponderam  que  nam  o  podiam  facer,  porque  nem  aos  Emperadores 
sc  mostrava,  nem  elles  os  obrigaram  nunca  a  isso,  polla  grande 
reverencia  que  se  deve  ter  a  Arca  santa.  Disse  elle,  que,  para  que 
andavam  com  aquellas  invengoes  [?],  e  deixouos.  Depois,  indo  eu  ao 
visitar,  porque  nossa  residencia  esta  como  dusis  legoas  de  Ag^um, 
me  falou  sobre  esta  cousa  da  Arca,  e  disselhe  como  era  fabula  o 
que  affirmavam  os  frades,  porque  a  Escriptura  insinava  o  contra- 
rio  e  tracendolhe  o  lugar  que  agora  referi,  disse  elle  tambem  que 
tudo  o  que  deciam  era  patranha.  O  siguinte  anno  foi  o  Emperador 
a  Tigre  com  exercito,  por  se  alevantar  la  hum  pretendendo  o  im- 
perio,  e  de  caminho  se  coroou  em  AgQum  e  pidio  aos  frades  Ihe 
mostreisem  a  Arca  do  Testamento ;  mas  elles  deram  tantas  escusas, 
que  o  Emperador  desistio,  e  depois  me  contou  as  porfias  que  tivera 
com  elles,  ^ombando  de  como  metiam  aquilo  em  cabe<;a  a  gente 
ignorante. 

Ainda  que  Ethiopia  nam  tem  nem   pode  nam  ter  a  Arca  do       17.  Novacetnun- 

.     «T-^  A.  j.  •  I''  j»  j  j*  quam    iii    Aethiopia 

f.  i8,T    Testamento,  outra  muy  preciosa  rehquia  e  digna  de  grande  *vene-  auditae  fabulae  Ur- 
ragam  Ihe  da  frey  Luis  de  Urreta,  pag.  54  e  55  por  estas  palavras:   retaecircaArcamTe- 

stamenti    et  tabulas 

<  Cosa  es  muy  recebida  en  toda  la  Ethiopia  que  entre  otras  mu-  legis  Moysis. 

<  chas  pie^as  ricas  y  joyas  de  grande  valor,  que  vSalomon  dio  a  su 

<  hijo  Milelec,  fue  una  muy  preciosa  y  por  tal  tenida  de  todos  los 
«  Emperadores,  que  le  dio  un  peda<;o  de  las  tablas.que  estavam 
«  escritas  con  el  dedo  de  Dios,  y  las  quebro  Moysen  a  la  raiz  del 
«  monte  lleno  de  santo  zelo  contra  la  idolatria  del  pueblo;  y  don 
«  Juan  es  testigo  de  vista,  porque  la  ha  visto  e  tenido  en  sus  ma- 


46  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  nos  muchas  veces;  y  dice  que  es  de  g^uesso  de  dos  dedos,  tan 
«  grande  como  una  quartilla  de  papel.  Ay  en  ella  gravadas  unas 
«  letras  enteras  y  otras  medias  muy  difFerentes  de  las  que  usan 
«  agora  los  Hebreos.  Tienenla  guardada  dentro  de  una  Arca  de  oro 
«  fino,  la  qual  esta  en  una  sala  de  la  libreria ;  continuamente  tiene 
«  guarda  de  dia  y  de  noche  de  los  soldados  que  estan  en  el  monte 
«  de  Amara.  »  E  pouco  mais  adiante  confirma  isto  dicendo :  «  Y  aun 
«  todos  los  ludios  de  la  Africa  y  Asia  tienen  esta  opinion  y  reve- 
«  rencian  esta  santa  reliquia  con  grandes  demonstraciones,  no  por- 
«  que  la  ayan  visto,  ni  les  dan  tal  lugar,  sino  que,  quando  vienen 
«  con  mercadurias  en  sus  caravanas  de  Persia,  de  Meca  y  Arabia 
«  y  passan  a  la  Libia,  Nubia,  Borno  y  otros  reynos,  quando  llegan 
«  al  famoso  monasterio  de  la  AUeluya,  que  es  de  frayles  del  glo- 
«  rioso  santo  Domingo,  que  desde  alli  se  descubre  el  famoso  monte 
«  de  Amara,  donde  esta  la  dicha  reliquia,  se  postran  en  los  suelos 
«  y  se  quitan  los  turbantes  y  haciendo  grandes  inclinaciones,  le- 
«  vantadas  las  manos,  estan  dando  voces  diciendo:  Adonay,  Ado- 
«  nay,  geis  Adonay,  Senor  Dios,  Seiior  Dios,  Senor  sobre  todos  los 
«  seiiores  ;  y  lo  dicen  con  tal  afecto  que  ay  algunos  que  Uoran  con 
«  mucha  ternura;  y  quando  los  religiosos  les  preguntan  la  causa  de 
«  aquellas  ceremonias,  responden  que  en  aquel  monte  estan  las  obras 
«  maravillosas  del  grande  Dios,  que  el  Preste  Juan  es  muy  amado 
«  de  Dios,  pues  le  ha  dado  tal  reliquia,  que  con  ella  sera  rey  del 
«  mundo,  vencera  sus  enemigos,  le  dara  Dios  el  rocio  del  cielo  y 
«  la  grosura  de  la  tierra,  y  a  su  alma  la  recogera  como  Abrahan 
«  alvergo  a  los  angeles  » . 

Continuando  o  author  esta  historia,  diz  pag.  57:  «  Avemos  di- 
«  cho  que  ay  en  este  peda^o  de  Tablas  algunas  letras  gravadas  y 
«  abiertas,  unas  enteras  y  otras  medias,  y  aunque  algunas  son  he- 
«  breas  conforme  a  las  que  usan  agora,  pero  las  otras  son  muy  di- 
«  ferentes,  que  no  ay  quien  las  sepa  ler;  y  yendo  don  Juan  de  Bal- 
«  thasar  *por  embaxador  del  Preste  Juan  al  rey  de  Persia,  llevo  f.  19. 
«  mandado  para  que  truxese  un  judio  el  mas  famoso  Rabbino  en- 
«  tre  todos  los  de  la  Asia,  que  estava  en  Meca,  Uamado  Rabbi 
«  Sedechias,  para  ver  si  sabria  ler  las  letras ;  el  qual  fue  con  mu- 
«  cho  gusto  solo  por  ver  aquel  fragmento  de  las  tablas  de  la  Ley. 
«  Llegando  adonde  estava  la  reliquia,  aviendo  hecho  muchas  Qale- 
«  mas  y  ceremonias  con  muchas  alaracas,  aunque  conocio  algunas 
«  letras,  de  las  otras  dixo  que  no  las  conocia  y  que  ni  eran  chal- 


^ 


LIVRO   I,   CAPITULO   III.  47 

<  deas,  ni  griegas,  ni  arabes,  ni  perscis,  ni  indias,  ni  chinas;  porque, 

<  si  lo  fueran,  el  las  leyera,  por  estar  instruido  en  todas  ellas  ». 
E  mais  adiante,  pag.  61,  diz:   «  Finalmente,  para  que  de  todas  par- 

<  tes  quede  pertrecha  y  defendida  esta  historia,  respondere  con  bre- 

<  vedad  al  que  pusiere  en  duda,  que  aquel   pedapo  de   piedra  sea 

<  de  las  Tablas  que  quebro  Moysen.  Quanto  a  lo  primero  es  bastan- 

<  tissimo  argumento  la  tradicion  universal  de  mas  de  tresmil  aiios 

<  de  antiguedad,  en   los  quales  jamas   ninguno   a   puesto   duda  ni 

<  menos  la  ha  contradecido ;  lo  2°,  que  todas  las  demas  naciones 

<  circunvecinas   le  dan    esta   gloria  y  Uanamente   les   conceden   la 

<  grandecja  desta  reliquia.  Quien  parece  que  les  avia  de  contrade- 

<  cir  eran  los  Judios,  y  ellos  sin  debate  alguno  lo  confiessan  y  ado- 

<  ran  la  piedra  como  pedago  de  las  Tablas  de  Moysen ;  y  la  ultima 

<  provan^a  sera  tomada  de  las  escripturas  autenticas,  que  se  guar- 

<  dan  desde  aquellos  tiempos  antiguos  del  rey  Salomon,  las  quales 

<  estan  en  el  monte  Amara  en  el  monasterio  de  la  s.^*  Cruz  de  la 

<  Orden  de  s.***  Anton  Abad,  donde  tienen  la  sobre  dicha  reliquia  » . 

Todo  isto  escreveo  frey  Luis  de  Urreta,  como  el  affirma,  por 
informa^am  e  testimunho  de  Joam  Balthesar,  mas  sam  cousas  tam 
fabulosas  como  outras  muytas  que  elle  contou,  porque  nem  ha  tal 
pedago  das  Tavoas  da  Ley  no  monte  de  Amhara,  nem  o  ouve  nunca 
em  Ethiopia.  E  assi  preguntando  eu  muyto  de  proposito  a  paren- 
tes  do  Emperador,  que  estiveram  muyto  tempo  dentro  de  aquelle 
monte,  e  aos  frades  mais  velhos  e  letrados  da  corte,  se  tinham  al- 
guma  noticia  de  que  no  monte  de  Amhara  ou  em  outra  parte  de 
Ethiopia  ouvese  pedago  das  Tavoas  da  Ley,  responderam  todos  que 
nunca  tal  leram  em  livro  nenhum  nem  o  ouvirdm  dicer ;  antes  ti- 
nham  por  cousa  certa  que  nam  ficou  memoria  do  que  se  ficera  da- 
quelles  peda^os  das  Tavoas,  que  Moysem  quebro;  e  pera  mais  me 
certificar  da  verdade,  preguntei  ao  Emperador,  diante  de  muytos 
Grandes  e  alg^ns  frades,  dicendo,  como  Joam  Balthesar  o  affirmara 
f.  i9,v.  em  Espanha,  e  riram  todos  muyto  de  como  fora  la  *a  meter  em 
cabe^a  huma  patranha  tam  grande ;  porque  nunca  tal  cousa  ouvera 
em  Ethiopia. 

O  que  a  mi  me  maravilha  he   como  hum  homem  natural  de       x8.   Falsum  item 

T^.,  .>  .  ..  i>i*i  1«  ^^  1      ex  monasterio  de  Al- 

Ethiopia,  posto  que  mentiroso,  podia  dicer  hum  disparate  tam  grande  iduisL  videH  montes 

como  he,  que  do  famoso  mosteiro  de  AUehiya  se  descubra  o  monte  Amharae. 
de  Amhara;  porque  nam   he  menos  que   dicer  quc   da   ribeira  de 
Lisboa  em  Portugal  se  descobra  Coimbra,  ou,  pera   falar  das  ter- 


48  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

ras  que  tenho  milhor  vistas,  que  de  Segovia  se  descobra  el  Alham- 
bra  de  Granada;  porque  nam  he  menor  a  distancia  do  mosteiro  de 
AUeluya  ate  o  monte  de  Amhara,  nem  mais  baixas  as  serras  que 
os  portos  de  Segovia  e  os  de  Andalucia,  se  nam  muyto  mais  al- 
tas  sem  compara^am ;  nem  por  o  mosteiro  de  Alleluya  podem  pas- 
sar  os  mercadores  que  elle  diz,  porque  he  muyto  fora  de  caminho, 
e  mato  tam  basto  que,  indo  eu  la  com  levar  gente  daquella  terra 
que  me  guiava,  nam  podia  passar  sem  muyto  trabalho  e  ainda  me 
rompiam  os  vestidos  as  sylvas,  posto  que  os  mercadores  naturaes 
de  Dambia,  que  nam  sam  mais  que  Christaos  e  Mouros,  quando 
vam  ao  porto  de  Ma^ua,  algumas  veces  passam  nam  muyto  longe 
daquelle  mosteiro.  Nem  he  de  frades  de  sam  Domingos,  como  disse 
no  cap.  I**  e  mostrarei  no  2°  livro,  Nem  pode  dicer  que  ha  outro 
mosteiro  de  AUeluya,  deonde  se  descobra  o  monte  de  Amhara  e 
passem  os  mercadores,  porque  nenhum  outro  he  em  Ethiopia  de 
Alleluya;  e  deste  mesmo  fala  elle,  porque  o  poe  na  terra  Tigre 
Mohon,  pag.  311,  nem  este  imperio  tem  comercio  nenhum  com  a 
Persia,  por  que  della  venham  mercadores. 
xg.  L^gatio  loan-  Tambem  parece  fabula  o  que  diz  Joam  Balthesar,  que  foi  por 

1118  Balthcsar  ad  re- 

gem  Persidis  com-  embaixador  al  Rey  da  Persia,  porque  nunca  pude  achar  quem  ouvise 
mentitia.  dicer  de  tal  embaixada,  nem  estes  Emperadores  tem  amizade  nem 

trato  nenhum  com  aquelles  Reys,  nem  da  vanda  da  Persia  vem  ca 
gente.  Quanto  dicer  que  trouxe  o  judeo  que  estava  em  Meca,  pera 
que  lese  as  letras  do  peda<;o  das  Tavoas,  he  mera  ficQam,  porque, 
demais  de  ser  cousa  tam  disparata  pera  ir  daqui  a  Persia  passar 
por  Meca,  nenhum  christao,  nem  judeo,  nem  gentio  pode  entrar  em 
Meca  so  pena  de  morte,  ou  se  ha  de  facer  mouro,  segundo  me  af- 
firmaram  muytos  Turcos,  estando  eu  cativo  em  o  estreito  de  Meca. 
Si  dissera  que  o  trouxera  de  Moca,  dourara  mais  sua  mentira,  por- 
que  alli  bem  podem  andar;  mas  se  nam  abia  tal  peda^o  das  Ta- 
voas,  pera  que  avia  de  vir  o  Judeo  ao  monte  de  Amhara  a  ler  as 
letras  [?]. 
ao.  Quid  probabi-  Com  tudo,  assi  como  muytas  veces  fundam  as  mentiras  em  al- 

f  ^ul*^"  BfiStibc  *"  gun^sis  verdades,  tambem  esta  se  pudo  fundar  no  que  fez  o  empe- 

narratis.  ludeus  qui-  rador  Malac  Qagued  no  reyno  de  Tigre ;  porque  indo  a  se  coroar 
dam  vocatus  a  MalAc  aa,  t-j  j^i- 

Sagad  ut  legeret  in-  ^^  Ag^um,  onde  se  coroam  os  Emperadores  e  vendo   muytas  le-  f.  20. 

scriptiones    Axumi-  ^^^  antiguisimas  que  alli  estam  escritas  em  colunas  c  pedras  muyto 

grandes,  *desejou  saber  o  que  deciam,  e,  por  nam  achar  quem  as 
pudese  ler,  mandou  chamar  hum  judeo  que  sabia   muytas  lingoas 


hlVKO   I,   CAPITULO   III.  49 

e  parece  avia  de  estar  no  mesmo  reyno,  e  nam  as  soube  ler.  Eu 
tambem  desejei  muyto  saber  que  deciam  e  fui  la  com  dou[s]  padres, 
que  sabem  grego,  e  hum  homem  grego,  que  sabia  muyto  bem  seus  li- 
vros,  e  nam  as  puderam  ler;  nem  sam  latinas,  nem  arabias,  nem 
hebraicas,  ainda  que  algumas  letras  se  pare^am  com  ellas;  porque 
se  o  foram,  eu  as  ouvera  de  ler. 

Tambem  pode  ser  que  a  mentira  de  que  Joam  Balthesar  teve      ai.Nomenaethio- 
em  sua  mao  no  monte  de  Amhara  o  pedapo  das  Tavoas  da  Ley  a  ^.^nj  signiflcatioi^m 

fundase  em  ter  algum  peda^o  de  pedra  de  ara  antigua,  que  algum  habet.  Inde  error  vel 

xrftus  BaltbeBar. 
frade  quissese  bautizar  por  pedago  das  Tavoas  da  Ley;  porque  a 

Arca  do    Testamento  e  a   as    Tavoas  da  Ley  e  a  a  pedra  de  ara 

nomeam   os   livros   de   Ethiopia  e  toda   a  gente   por   hum  mesmo 

nome,  que   he  Tabot,  e  sobre  todas   as  pedras   de  ara  abrem   le- 

tras  fundas,  em  que  poem  poUo  menos  o  nome  do  Santo  a  quem 

esta  dedicada  a  igreja;   nem  falta  la   pedra   muyto   alba  transpa- 

rente   de  que  facem  pedras   de  ara,  que   ainda  agora  pouco   tempo 

ha  me  mandou  (^ela  Christos  irmao  do  Emperador  huma  pedra  de 

ara  muyto  fermosa  de  pedra  branca  transparente,  que  elle  fez  la- 

vrar  pera  nossa  igreja  e  puseram  nella  a  seu  modo  o  principio  do 

evangelho  de  sam  Joam  com  letras  bem  fundas,  e  me  escreveo  que 

no  fim  do  reyno  de  Gojam,  onde  elle  he  vissorey,  havia  tanta  pe- 

dra  daquella,  que  podiam  facer  casas,  e  que  se  lavrava  muyto  bem. 

Por  onde  digo  que  podiam  ter  no  monte  de  Amhara  algum  pedago 

de  pedra  de  ara  antigua  com  as  letras  que  se  usavam  em  aquelle 

tempo,  e  como  a  pedra  de  ara  se  chama  tabot,  assi  como  as  Ta- 

boas  da  Ley,  dicendolhe  a  Joam  Balthesar,  que  aquelle  era  pedacjo 

do  tabot,  entenderia  que  era  das  Tavoas  da  Ley;  ou  pode  ser  que 

algum  frade,  pera  engrandecer  as  cousas  de  sua  igreja,  Ihe  dissese 

que  era  peda^o  das  TavoEis  da  Ley,  como  facem  agora  os  de  Ag- 

Qum,  dicendo  que  tem  a  mesma  Arca  do  Testamento. 

Mas  o  que  diz  que  se  guarda  aquelle  pedago  de  pedra  em  huma 

arca  de  ouro  fino  e  que  tem  a  sala  guarda  de  noite  e  de  dia,  he 

falso,  porque  nem  ha  arca  de  ouro,  nem  tal  guarda,  nem  mosteiro 

da  Santa  Cruz,  onde  se  guardem  as  escripturas  autenticas  quc  diz,  por- 

que  no  monte  de  Amhara  nam  ha  mais  que  duas  igrejas ;  huma  se 

chama  Egziabeher  Ab,  scilicet   Deos  padre,  e  outra  de  nossa  Se- 

nhora ;  nem  ouve  outras  nunca,  como  diremos  adiante  cm  suo  pro- 

prio  lugar. 


C.  Beccari.  Rer»  Aeih,  Script,  occ»  ined»  —   II 


f.    20,V, 


CAPITULO  IV. 

£m  que  se  trata  dos  officiaes  que  el  rey  Salomam  de 
a  seu  filho  David  pera  servi^o  de  sua  casa,  e  dos  que 
agora  tem  o  Preste  Joam. 


Ja  dissemos  como,  quando  el  rey  Salomam  fez  coroar  em  Je-       i.Loquendodcva- 

1  n^^^      -»r      M   i_A  ,  ii_  riis    oliiciis   Auctor 

rusalem  a  seu  nlho  Menilehec,  mandou  que  Ihe  pusesem  por  nome  explicabitcanonmo- 
David,  assi  por  lembran^a  del  rey  David,  como  porque  se  parecia  ^^,  *^**  Hbros  Ac- 

thiopunii  sed    ctiam 

muyto  com  elle,  e  que  nam  somente  Ihe  deo  os  sacerdotes  que  en-  iuxta    praxim    suo 

sinasem  a  ley,  mas  algnns  dos  primogenitos  dos  Principes  e  Gran-  *®'"P°''®  vigcntcm. 

des  de  Isrrael,  para  que  o  acompanhasem  e  assistisem  em  sua  pre- 

sencia.  Demais  destes  Ihe  deo  outros  menos  principaes  pera  o  ser- 

yiqo  dc  sua  casa  e  pera  o  bom  governo  e  policia  de  sua  republica, 

desejando  que,  em  quanto  fosse  possivel,  guardase  [e]m  todas  as  cou- 

sas  seu  mesmo  modo  e  estillo,  principalmente  a  magestade  de  sua 

casa,  a  ordem  e  concerto  de  seus  criados,  o  primor  de  seu  servi^o, 

seu  apparato  e  grande  cortesania,  com  todos  os  demais  ritos  e  ce- 

remonias  que  em  sua  casa  e  reyno  se  usavam.  Mas,  pera  referir 

estes,   nam   somente  direi  o  que  esta  nos  livros  de  Ethiopia,  mas 

tambem  juntamente  porei  o  que  dicem  os  que  agora  sam  cabe^as 

destes  officios,  porque  esta  muyto  misturado  e  mudado,  ainda  que 

alguns  dos  officios  os  servem  oje  os  descendentes  daquelles  mesmos 

que  deo  Salomam. 


52  HISTORIA    DE   ETHrOPIA 

2.  Quid  Bignificet  Primeiramente  ate  poucos  tempos  ha  avia  hum  que  se  chamava 
cium^*Behftt  u&dftd"  ^^^^*  Uaded,  que  quer  dicer  «  so  amado  ».  Este  morava  a  mao  de- 
tempore    auctoris  reita  do  pa^o  e  no  campo  punha  sempre  sua  tenda  a  mao  dereita 

Er^     vocabatur    et 

unus  tantum  potie-  ^a  do  Emperador,  e  outro   com   o  mesmo   titulo  e  honrra  a  mao 
officfo  ^^  **         **  izquerda  e  amos  governavam  tudo  debaixo  do  Emperador,  e  quando 

elie  nam  hia  a  guerra,  hum  destes  saia  em  seu  lugar  por  geral  de 
todo  o  exercito  e  o  outro  acompanhava  ao  Emperador.  Mas  por 
terem  tam  grande  poder  e  mando,  se  ensoverveceram  de  maneira 
que  nam  sugetavam  seus  pareceres  a  o  do  Emperador,  poUo  que, 
nam  os  pudendo  sofrer,  o  emperador  Atanaf  Qagued,  ou  pode  ser 
(como  alguns  cuidam)  que  arreceando  que  se  Ihe  revelasem,  por 
serem  tam  poderosos,  Ihes  tirou  os  titulos  e  mandos  e  os  reservou 
pera  si.  Mas  depois  o  emperador  Malac  QagTied  tomou  a  introducir 
hum  so  com  nome  de  Eraz,  que  quer  dicer  cabe^a,  e  o  emperador 
Seltan  (^agued,  que  agora  vive,  deo  este  titulo  e  cargo,  o  anno  de 
6ii,  a  hum  seu  irmao,  que  se  chama  Emana  Christos,  scilicet  «  mao 
dereita  de  Christo  »,  e  Iho  tirou  o  anno  de  615,  porque  nam  Ihe  obe- 
decia  bem ;  e  falandolhe  eu  sobre  elle,  me  disse  que  estava  deter- 
minado  de  nam  facer  mais  a  ninguem  Eraz,  porque  se  ensoberveciam 
*muyto;  que  se  aquelle  com  ser  seu  irmao  se  Ihe  mostrava  tam  so-  f.  21. 
bervo,  que  fariam  os  outros  ?  Mas  depois  Ihe  rogaram  muyto  al- 
gumas  suas  parentas  e  os  Grandes  da  corte  e  assi  Ihe  tornou  seu 
mando. 

3.  Quid    fuerint  Tambem  avia  dous  que  se  chamavam  Hedug  Eraz.  Estes  fica- 

duo  Hedtlg  £r&z  et 

duo    Gueii&.    Quid  vam  em  lugar  daquellas  duas  cabegas,  quando  elles  estavam  ausentes. 
Uzta  Axkz  et  jAn-  Qutros  dous  se  chamavam  Gueita,  scilicet  senhor  e  ficavam  em  lu- 

derebdch     AjEax6cn. 

De  officio  ecclesia-  gar   dos   Hedugues.  Uzta   Azax   sam  dous,   Jandereboch    Azaxoch 

stico    ■A.cabc  ^Cc&t  ct 

Quez-Hac6.  dous.  O  principal    ofiicio  de  todos  estes   dez  he  julgar  particular- 

mente  em  cousas  graves  e  irem  por  cabegas  a  guerra.  Outro  titulo 
muyto  grande  ha  que  dicem  Acabe  E^at,  que  quer  dicer  «  guardador 
do  fogo  ».  Este  he  sempre  algum  frade  ou  sacerdote  grande,  que  de 
ordinario  acompanha  ao  Emperador  e  entra  a  elle  quando  quer,  sem 
ninguem  Ihe  poder  tolher  e  sabe  todos  os  secretos  e  Ihe  aconselha 
em  tudo  pera  bcm  de  sua  alma  e  corpo;  ate  no  comere  beber  Ihe 
diz:  Isto  basta;  mas  nam  he  seu  confessor  nem  mestre,  porque  a 
este  chamam  Quez  Hace,  scilicet  sacerdote  como  do  Emperador, 
que  nam  achei  quem  me  souvese  dicer  propriamente  o  que  significa 
Hace.  E  chamam  ao  Emperador  fogo,  porque  dicem  que  ha  de  ser 
como  fogo  que  tem  tres  cousas:  alumiar,  aquentar  e  queimar;  assi 


LIVRO  I,   CAPITULO   IV.  53 

o  Emperador  ha  de  alumiar  aos  outros  com  suas  boas  obras  e 
exemplo  de  vida;  o  que  alude  ao  que  diz  sam  Gregorio,  Hom.  13 
€  Lucemas  quippe  ardentes  in  manibustenemus,  cum  per  bona  opera 
«  proximis  nostris  lucis  exempla  mostramus  ».  Ha  de  aquentar  com 
seu  fervor  no  bem  e  com  sua  liberalidade  pera  com  todos.  Finalmente 
ha  de  queimar  com  sua  justi<;a,  quando  ouver  que  purificar  em  a 
republica.  Outros  alfirmam  que  nam  se  ha  de  dicer  se  nam  Aca- 
be^aat,  que  quer  dicer  guardador  das  horas,  porque  a  elle  pertencia 
declarar  as  horas  em  que  o  Emperador  avia  de  despachar  os  ne- 
gocios  e  facer  as  demais  cousas. 

Os  demais  officios  sam  Eraz  balderaba  (destes  avia  dous  criados      4-  Dc  aliis  officiis 

^    .  ^  .  ,  1.1  8cii.:BrAcbalderabA, 

neis  ao  Emperador,  que  acompanhavam   sempre  dentro  da  casa  e  HedilkK  ErA*  balde- 

fora  a  aquelles  dous  Behet  Uaded  ou  Eraz,  como  por  guarda,  pera  ^"^  ^^^^^^w' 

que  nam  ficessem  nem  dissesem   cousa  nenhuma   contra  o  Empe-  Mared  Bftit,  janbe- 

rador);  Hedfig  Er^z  balderaba.  estes  tambem  eram  criados  de  quem  '^tT^^i^ 

se  fiava  o  Emperador  e  vig-iavam  os  Heducfues  como  os  primeiros  Umbar6ch,  jantacAl, 

^         ^  ,  JanderabA,  Jamxala- 

aos  Eraces  ou  Behet  Uadedoch.  Gueita  balderaba:  estes  da  mesma  mi,  TecAcan&ch,Bal- 
maneira  vigiavan  aos  dous  que  se  chamavam  Gueita.  scilicet  senhor.  g^^us^^BalftmccSHf 
f.  2i,v.  Outros  *se  chamavam  Manguest  Beit,  scilicet  casa  do  reyno.  Estes  «*  BegAmAch. 
recolhem  e  tem  a  seu  cargo  todas  as  pec^as  e  fato  do  Emperador 
e  sam  Alcaides  das  prissoes.  Mared  Beit,  scilicet  casa  de  tremor: 
estes  tem  cargo  dos  vestidos  do  Emperador  e  de  todas  suas  armas. 
Janbeleu,  tem  cargo  de  receber  os  cavallos  que  tracem  ao  Empe- 
rador  e  facer  que  se  guardem.  Aicenfo :  recebem  e  guardam  as  mulas 
que  tracem  ao  Emperador  de  tributo  e  tomam  de  dez  huma.  Egner 
Zacone:  tem  por  officio  dar  posse  das  terras  de  que  o  Emperador 
faz  merce  a  algum  pera  sempre,  e  andam  a  roda  dellas  tangendo 
atabales  e  sinalando  os  limites  onde  enterram  huma  cabega  de  cabra, 
e  se  alguem  a  tira,  tem  grande  pena.  Janacjana  Umbaroch:  sam 
ouvidores,  e  quando  o  Emperador  vai  caminhando  por  despovado, 
se  acham  alguma  ribanceira  ou  cousa  funda  no  caminho,  botam 
agoa  benta  antes  que  chegue  o  Emperador,  dicendo  o  PsaL  67: 
«  Exurgat  Deus  et  dissipentur  inimici  eius,  etc.  ».  Jantacal:  estes 
levam  as  vandeiras  do  Emperador  e  facem  afastai  a  gente  por  o 
caminho.  Janderaba:  quando  o  Emperador  caminha  levam  os  livros 
em  que  re^a,  que  ordinariamente  sam  os  Psalmos,  e  facem  tambem 
afastar  a  gente  de  diante  do  Emperador.  Janxalami  scilicet  orna- 
dores  do  Emperador:  sam  seus  orivez  e  armeiros.  Tecacanach: 
estes  sam  filhos  de  parentas  do  Emperador  e  levam  humas  varas 


54  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

em  que  poem  hum  panno  como  dosel,  pera  facer  sombra  ao  Em- 
perador,  quando  se  apea,  se  nam  estam  armadas  as  tendas.  Balde- 
bana:  quando  alguem  pede  de  merce  ao  Emperador  que  Ihe  de 
quem  Ihe  lembre  os  negocios  que  tem  com  elle  e  seja  como  seu 
procurador,  sinala  hum  destes.  Baletagua^agu^a :  porteiros  do  pa^o. 
Balemecahaf  tambem  sam  porteiros.  Uztmaguoz,  Tara^amba,  Cu- 
ra^acala:  estas  tres  casas  tambem  sam  porteiros  do  pago.  Bega 
Mach :  armam  as  tendas  do  Emperador  e  vigiam  sempre,  porque 
nam  se  arranguem  as  estacas  quando  chove  ou  faz  grande  vento, 
e  como  se  acaba  o  verao,  tomam  pera  si  as  tendas  e  pera  o  si- 
guinte  facem  outras  novas :  que  ao  Emperador  nam  Ihe  servem  as 
tendas  mais  que  hum  so  verSo. 

5.  Dc  iia  officiali-  Deb  Ambe^a  tangem  os  atabales.  Dera  moamoai  levam  as 
Ambec&,  DcrA  MoA-  tendas  e  fato  da  igreja  de  s.  Miguel  quando  o  Emperador  vai  a 
moat,BcttAn9&,Bex-  gruerra.  Beit  Anca  levam  as  tendas  e  fato  da  igreia  de  nossa  Se- 

tegrft,   Botragftt  ZA-    ^  ^  ^  ^     -^ 

yeyahAx,  Bcita  Gu*-  nhora.  Beztegre  levam  as  tendas  e  fato  da  igreja  de  Jesu.  Botra- 
5m!^BeTu1ttL"«  get  levam  o  leito.  em  que  dorme  o  Emperador  e  vam  sempre 
de  muliere  dictaite  perto,    porque   ordinariamente,   quando   se   apea,    se    asenta   nelle. 

Agr6d  cuius  officium       ^  ^  „  t^   . 

cst  punire  ignomi-  Zayeyahax  levam  o  vinho  pera  o  Emperador,  que  he  de  mel.  Beita 
niose    qui    fugiunt  Q^gber,  scilicet  casa  do  officio;  aqui  se  entendem  os  cocinheiros  e 

tcmporc  pugnae.  *  *      ^ 

os  que  levam  o  comer  ate  a  porta  da  sala  onde  esta  a  mesa  do 
Emperador.  Cuamoch:  estes  sam  muytos  e  a  elles  principalmente 
pertence  levar  o  comer  ate  aquella  porta  e  alg^uns  delles  entram  e 
o  poem  na  mesa,  e  tornam  a  sair;  *por  que  ninguem  esta  onde  come  f.  22. 
o  Emperador,  senam  o  mestre  sala  e  o  Veador  e  cuatro  pagens  que 
servem.  Bala-(^em :  tem  cuidado  de  tracer  as  tochas  que  se  gastam 
de  noite  no  pa^o.  Beita  haiz :  limpam  as  ruas  e  caminhos  por  onde 
ha  de  passar  o  Emperador.  Ite  Agrod :  he  [huma|  molher,  que  tem 
por  officio  castigar  aos  que  fogem  ra  guerra,  antes  que  o  campo  se 
desbarate ;  porque  ao  que  se  Ihe  prova  que  de  covarde  fugio,  nam 
o  castiga  homem,  senam  esta  molher,  pera  mais  desonrra,  e  o  ca- 
stigo  que  Ihe  da  he:  faz  juntar  muyta  gente  e  balha  diante  delle 
dicendolhe  muytas  cousas  de  ^ombaria  e  de  afronta  e  de  quando 
em  quando  Ihe  da  bofetadas  e  Ihe  travesa  na  boca  hum  paucinho 
em  que  tem  espetado  hum  pedaco  de  bofe. 

6.  Dc  duobus  offi-  Poucos  tempos  ha  que  acrecentaram  dous  officios ;  hum  se  chama 
ductis^scii!*  TalahAc  Talahac  Balatinoch  Gueita,  que  quer  dicer  «  Senhor  dos  criados  gran- 
Balatindch  GucitA  et  des  do  Emperador  ».  Gueta  he  Senhor:  este  tem  muyto  grande  mando, 

TecaclLn    Balatin6ch 

Gucit&.Ephcbihono-  porque  nam  somente  he  sobre  todos  os  criados  do  pago,  mas  sobre 


LIVRO   I,  CAPITULO   IV.  55 

os  do  arrayal.  ainda  que  sejam  capitaes:   ate  os  Vissorreys  depen-  rarli  in  tres  classes 

«  ^«11  t-  jiji  r-  j      divisi    iuzta     Aulas 

dem  muyto  delle  e  a  nenhum  se  da  mando  nem  se  faz  merce  de  ^^^  inscrviunt,  quae 
terras  sem  seu  conselho;  e  todas  as  cartas  que  vam  pera  fora,  de-  vocantur     Amba^A, 

^  ^  Bftit,  Ztiixi  Bftit  et 

pois  que  o  secretario  as  mostrou  ao  Emperador,  as  vee  elle  e  se  Farftz  B»it.  Antiqui- 
Ihe  parece  que  ha  que  propor  sobre  ellas  ao  Emperador,  o  faz.  e  "^^J^Z^^^^Z- 
se  nam,  poe  o  senete  do  Emperador,   que  esta  em  sua  mao,  e  as  determinatus.  Curhi 

^  soli  adstent  diu  no- 

manda.  Outro  se  chama  Tecacan  Balatinoch  Gueita,  senhor  dos  ctuque  coram  Rege. 
criados  piquenhos,  scilicet  pagens  do  Emperador.  Estes  pagens  estam 
agora  repartidos  em  tres  salas,  que  antiguamente  todas  eram  casas 
tereas.  A  de  mais  honrra  se  chama  Ambaga  Beit,  caisa  do  Liam, 
e  he  a  mais  intima.  A  2^  mais  pera  fora  se  chama  Zefan  Beit,  casa 
do  leito ;  a  3*  Faraz  Beit,  casa  do  cavallo.  Por  todos  sam  1 50  e  os 
mais  delles  escravos,  filhos  de  gentios  Galas  e  Agous  e  Cafres,  e 
dos  outros  muyto  poucos  ha  que  nam  sejam  filhos  de  homens  or- 
dinarios,  e  nam  podem  passar  os  de  huma  casa  a  outra  sem  licen^a 
do  Emperador,  porque  isto  he  subir  a  maior  honrra ;  e  en  cada  huma 
esta  sna  cabe^a  que  manda  aos  outros  o  que  ham  de  facer  em  seus 
officios  e  aos  que  ham  de  levar  fora  recados  do  Emperador,  se  elle 
nam  chama  alg^m  em  particular.  Tambem  elles  vam  fora  sos,  quando 
querem;  o  que  antiguamente  nam  se  permitia,  porque  nam  saiam 
se  nam  raramente  e  com  gnarda  fiel,  que  os  tornava  a  trager,  e 
aviatam  grande  rigor  em  isto  que  (como  dicem  seus  livros),  se  algum 
saia  fora  do  pa^o  a  comer  ou  beber  ou  a  falar,  matavam  a  elle  e 
f.  22,v,  ao  que  o  combidou.  Estes  mininos  *antiguamente  eram  trinta  todos 
escravos  e  nam  podiam  cortar  o  cabello  sem  licen^a  do  Emperador, 
nem  se  acrecentava  a  este  numero,  porque  quando  metiam  piquenos, 
tiravam  dos  grandes.  Agora  nam  ha  numero  certo  se  nam  como 
quer  o  Emperador,  e  nenhum  teve  tantos  como  este  e  ainda  os  annos 
passados  tinha  muytos  mais.  Porem  tirou  os  de  20  annos  e  Ihes  deo 
terras  e  cavallos  pera  que  o  acampanhasem  na  guerra.  A  causa  de 
folgar  com  tanta  multidam  cuido  que  he  o  que  elle  deo  a  entender 
falando  comigo  so  sobre  huns  Grandes,  que  nam  mostravam  pera 
suas  cousas  cora^am  tam  affecto,  porque  disse :  Padre,  os  que  eu 
criar  e  honrrar  me  serviram  com  bom  cora^am;  que  quanto  destcs 
pouco  ha  que  fiar. 

A  mais  intima  camara,  como  dissemos,  se  chama  casa  do  Liam,       y.Quidinunaqua- 

j      ,  -.  .  ^        que    e    tribus  Aulis 

porque  assi  como  se  tivera  por  guarda  hum  ham,   nmguem  entra  agatur. 
nella,  estando  o  Emperador,  ainda  que  seja  seu  filho,  senam  aquelle 
que  for  chamado,  o  que  faz  raramente,  e  assi  quando  ellc  entra  na 


56  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

casa  do  liam,  ninguem  chega  a  porta;  so  entram  os  pagens  dipu- 
tados  pera  aquelle  retrete.  Em  a  que  chamam  Zefan  Beit,  casa  do 
leito,  porque  alli  tem  sua  cama,  da  audiencia  a  todos.  Mas  nam 
em  huma  so  casa  tem  leito,  senam  em  muytas,  porque  Ihe  servem 
de  trono,  e  assi  no  nome  nam  ha  distin^am,  nem  entre  os  pagens : 
todos  estes  se  chamam  Zefan  Beit.  A  que  chamam  Faraz  Beit,  casa 
do  cavallo,  he  a  de  menos  honrra  e  sempre  he  em  baixo,  porque 
nella  esta  poUo  menos  hum  cavallo ;  e  antiguamente  estavam  muytos 
e  continuamente  de  dia  e  de  noite  aos  quartos  com  freos  e  selas  e 
em  os  ar^oes  capacetes,  malhas  e  espadas.  Mas  agora  nam  se  usa 
isto,  posto  que  sempre  ha  algum  cavallo,  nem  os  pagens  de  esta  casa 
tem  cuidado  delle,  senam  do  leito,  que  alli  esta.  Por  muytas  veces 
entra  la  o  Emperador  a  ver  o  cavallo  e  se  senta  no  leito  e,  se  he 
tempo  de  frio,  Ihe  facem  alli  fogo  aquelles  pagens  e  o  servem  no 
demais  que  he  necessario,  porque  aos  pagens  da  huma  nam  Ihes  he 
licito  entrar  a  servir  ao  Emperador  na  outra,  nem,  ainda  quando 
vai  fora,  querem  huns  pagens  deixar  entrar  a  outros  na  casa  que 
tem  a  seu  cargo. 
8.  Antiquitus  rc-  Com  aquelles  trinta  mininos  estava  antiguamente  o  Emperador 

ges   Aethiopiae    ne-  .  , 

quibant  videri  nisi  a  ^^  ^®^  pago,  sem  o  ver  homem  nenhum,  que  nam  era  piquena  pe- 
30  ephebis  qui  eis  in-  nitencia;  somente  entrava  o  Behet  uaded  da  mao  dereita  e  o  da  iz- 

serviebant. 

querda,  e  Acabe  E<;:at  pera  Ihe  darem  conta  das  cousas  do  Imperio 
e  saber  como  queria  que  se  despachasem;  e  estes  tres  sos  decla- 
ravam  sua  vontade  e  determinagam  ao  povo  em  tudo  o  que  se  of- 
ferecia ;  e  quando  queria  facer  grande  favor  a  alg^m,  que  nam  avia 
de  ser  senam  cunhado  ou  jenrro  ou  outro  homem  grande,  *mandava  f  23. 
que  o  chamasem  de  noite  e,  tiradas  todas  as  candeas,  falava  com 
elle  no  escuro,  e  assi  o  que  entrava  so  ouvia  sua  voz,  sem  ver  nada; 
e  ainda  isto  se  tinha  por  muyto  grande  merce,  porque  raramente  se 
facia;  e  quando  Ihe  levavam  o  comer,  saiam  aquelles  pagens  ate  a 
porta  e  alli  o  recebiam,  e  tudo  o  que  sobeixava  das  igoarias  a  que 
elle  tocava  e  do  pam  que  partia  o  enterravam,  que  ninguem  tinha 
licen^a  pcra  o  poder  comer,  e,  segundo  diz  seu  livro,  as  igoarias  que 
levavam  eram  126  e  paes  mimosos  180  e  outros  de  menos  sorte  120: 
de  vinho  de  mel  20  caloes  piquenos  e  grande's]  100. 
g.  Sub  quibus  Im-  Estas  cousas  em  parte  se  foram  deixando  em  tempo  do  empe- 

peratoribus  iUae  cae-         j-r>..j  1  i-j  ■r*_.ii_  rj 

remoniae       fuerint  rador  David  (que  mandou  por  embaixador  a  Portugal  hum   irade 
sublatae.  q^^^  s^  chamava  Qaga  Za  Ab,  que  quer  dicer  graga  do  Padre,    e 

depois  deixou  o  nome  de  David  e  se  chamou  Onag  Qagued),  por 


LIVRO   I,   CAPITULO   IV.  57 

que  entam  ja  entravam  mais  facilmente  e  o  viam.  Depois  no  tempo 
de  seu  filho  Glaudios,  que  quando  Ihe  deram  o  imperio  se  chamou 
Atanaf  Qagued,  se  deixou  de  enterrar  o  comer  e  entravam  todos 
os  Grandes,  mas  ^ingiam  os  pannos  que  traciam  vestidos  e  ficavam 
nus  da  cinta  pera  cima  dando  mostra  de  sumissam  e  humildade. 
Este  uso  se  comegou  a  deixar  avera  24  annos,  que  por  ser  o  em- 
perador  Jacob  menino,  entravam  alguns  Grandes  vestidos,  so  cin- 
giam  o  panno  que  lavavam  sobre  o  vestido  em  lugar  de  capa. 
Mas  agora  todos  entram  muyto  bem  vestidos,  so  Ihes  ficou  o  cingir 
o  panno  por  cortesia ;  e  por  veces  tratando  disto,  me  disse  este  Em- 
perador  que  Ihe  parecia  muyto  mal  o  uso  antiguo  de  entrarem  no 
pa^o  daquella  maneira  nus  e  assi  ate  os  pagens  escravos  manda 
vestir  particularmente  nas  festas  de  veludo  e  outras  sedas. 

Do  que  temos  dito  se  vee  quam  falsa  foi  a  informa^am  que  em  10.  Brrores  Urre- 
esta  materia  deo  Joam  Balthesar  a  frey  Luis  de  Urreta,  se  por  ella  rcfutwitur.  ™* 
escreveo  o  que  diz  pag.  11,  onde  refutando  a  Francisco  Alvares, 
porque  em  sua  Historia  Ethiopica  disse  que  os  officiaes,  que  o  Em- 
perador  tem  em  sua  casa  como  camareiros,  porteiros  etc,  sam  de- 
scendentes  dos  Judeos  que  Salomam  deo  a  seu  filho  Menilehec  pera 
estes  officios,  poe  estas  palavras.  «  La  verdadera  historia  es  que  los 
«  cavalleros  Abissinos  son  muy  limpios  en  linage  y  muy  hidalgos  sin 
«  mezcla  de  Judios,  y  los  Officiales  del  Emperador  no  son  judios  ni  lo 
«  fueron  jamas,  sino  los  cavalleros  mas  nobles  del  imperio  porque  son 
f.  23»v-  «  los  primogenitos  de  los  Reyes  sugetos  al  imperio,  *]os  quales  nunca 
«  fueron  Judios  ni  se  tienen  por  tales.  Aquellos  Judios,  que  vinieron  a 
«  Ethiopia  de  Hierusalem,  vivieron  en  ella  mientras  vivio  Melilec,  que 
«  fueron  muchos  anos  en  los  quales  fueron  respectados  y  honrrados  de 
«  todos.  Muerto  Melilec  o  David,  le  sucedio  su  unico  hijo  Josue,  que 
«  tambien  se  liamo  David  y  tubo  nueve  hijos  varones.  Este  como  otro 
«  Juliano  apostata  se  bolvio  a  la  gentilidad  y  quiso  que  tornase  la  ido- 
«  latria  en  todo  su  reyno  y  quitandoles  a  los  tristes  Judios  el  templo 
«  que  les  avia  dado  en  el  monte  Amara  los  echaron  a  todos  de  todo 
€  el  imperio  de  la  Ethiopia,  bolviendose  los  Ethiopes  a  los  ritos  y  su- 
«  persticiones  antiguas.  Estos  miserables  Hebreos  unos  se  quedaron 
«  en  los  estremos  de  la  Africa  al  cabo  de  Buena  Esperan^a  y  otras 
«  ticrras  desertas  y  inhabitables  por  entonces,  otros  se  bolvieron  a 
«  Hierusalem  y  otros  por  muchas  provincias  de  la  Africa  ». 

Ate  £iqui  sam  palavras  de  frey  Luis  do  Urreta  e  primeiramente, 
como  ja  adverti,  o  filho  de  Saiomam  nam  se  chamava  Melilec  se- 

C.  BiccAKi.  Rer»  AMih,  Script^  occ,  imcd,    -  II .  8 


58  HISTORIA  DE   ETiriOPIA 

nam  Menilehec,  e  tudo  isto  escreveo  por  falta  de  verdadeira  infor- 
magam,  por  que  nunca  botaram  de  Ethiopia  aos  Judeos,  que  vieram 
de  Hierusalem  com  Menilehec,  antes  ate  agora  sempre  esteve  cste 
imperio  cheio  de  seus  descendentes,  vivendo  liberamente  em  seu 
judaismo,  ainda  que  alguns  se  foram  facendo  christaos,  particular- 
mente  do  anno  de  6i6  a  esta  parte,  por  causa  do  pregam  que  lan^ou 
o  Emperador,  como  dissemos  no  cap.  i*^,  e  com  tudo  isso  ficam 
muytos  em  algumas  terras  fortes,  onde  se  acolheram  e  muytos  mais 
na  provincia  de  Cemen,  onde  esta  sua  principal  cabec^a  (a  quem  a 
gente  da  terra  chama  Guedon,  avendo  de  dicer  Gedeon)  e  por  serem 
serras  muyto  fortes  se  defenderam  ate  agora  nellas. 

Quanto  aos  officiais  do  Emperador,  todos  sam  christaos,  mas 
muytos  delles  descendentes  dos  Judeos,  que  Salomam  deo  a  seu  filho 
Menilehec  pera  estes  officios  e  he  cousa  esta  tam  sabida  e  patente 
em  Ethiopia  quc  preguntando  eu  pera  mais  certec^a  a  alguns  grandes 
da  corte,  se  rio  muyto  hum  frade  velho  meu  amigo  de  que  se  pusese 
em  duvida  cousa  tam  certa,  e  me  disse :  Vee  aqui  V.  R.  a  fuSo  e 
a  fuao  que  sam  delles,  sinalando  dous  dos  que  ali  estavam.  Nem 
me  contentei  com  isto,  senam  que  preguntei  tambem  ao  Emperador, 
e  respondeo  que  era  certissimo;  e  falando  particularmente  dos  que 
a  cima  nomcamos  Azaxoch  e  Umbaroch,  que  sam  desembargadores 
e  ouvidores,  disse  que  em  estes  officios  nam  deixavam  entrar  de 
nenhuma  maneira  nem  ainda  os  filhos  de  suas  familias,  senam  os 
filhos  que  por  linea  masculina  descendem  de  aquelles  *Judeos,  que  f.  24. 
deo  Salomam  a  seu  filho  Menilehec  pera  estes  officios,  porque  di- 
cem  que  se  entrarem  nelles  os  filhos  de  suas  filhas,  como  ordi- 
nariamente  os  marido?  sam  de  differentes  familias  (que  nam  podem 
casar  com  parentes  dentro  do  septimo  grao,  conforme  ao  costume 
de  Ethiopia,  ainda  que  alguns  nam  o  guardam),  logo  se  cortziria  a 
linea  dereita  de  aquelles  seus  antepassados. 
XX.  Aliae  fictiones  Tambem  he  muyto  contrario  ao  que  sempre  usaram  os  Empe- 

Urretae  circa  officia-         1  _»      t\i.i_'  •    j*      r         t     •     j     tt 

les  domus  reeiae.      radores  de  Ethiopia  em  seu  fja^o  o  que  aqui  diz  frey  Luis  de  Ur- 

reta  que  se  servem  dos  filhos  primogenitos  dos  Reys  sugetos  ao 
imperio,  o  que  trata  diffusamente  no  cap.  18,  onde  entre  outras  muy- 
tas  cousas  diz  estas :  «  Quando  viene  uno  destos  principes  a  la  corte, 
«  em  llegando  al  palacio  imperial  le  salen  a  recebir  dos  de  los  mas 
<  antiguos  del  gran  Consejo  y  lleban  a  la  presencia  del  Emperador, 
«  el  qual  manda  le  pongan  en  la  primera  camara,  una  delas  cinco 
€  que  ay  antes  del  aposento  imperial,  donde  habita  de  ordinario  el 


LIVRO   I,  CAPITULO   IV.  59 

«  Emperador.  En  esta  primera  camara  sirve  el  primogenitocincoanos, 
«  de  a  la  2*,  donde  sirve  otros  cinco,  y  assi  va  de  una  en  otra  hasta 
«  la  quinta  y  postrera  camara,  donde  no  todos  Uegan,  porque  su- 
«  cede  con  alguno,  que  en  siendo  de  30  anos  poco  mas  o  menos 
«  darle  el  Emperador  muger,  porque  no  se  puede  casar  sin  licencia 
«  del  Emperador  y  en  casandose  lo  embia  a  su  reyno,  aun  siendo 
«  vivo  el  padre,  porque  en  caso  que  muera  el  padre,  luego  corona 
«  al  primogenito  por  Rey,  y  con  grande  acompanamiento  lo  embia 
«  a  governar  sus  estados.  Mas  como  quiera  que  vaya,  ora  sea  casado, 
«  ora  sea  a  governar  por  la  muerte  de  su  padre,  siempre  viene  en 
«  su  lugar  el  hermano  menor,  si  le  tiene,  y  si  no,  el  pariente  mas  cer- 
«  cano  acude  a  servir  con  tal  que  sea  de  estirpe  real  y  en  tal  caso 
«  si  este  cavallero  no  es  mas  que  pariente  del  primogenito,  por  quien 
«  en  la  corte  sirve,  solo  esta  en  ella  hasta  que  el  otro  tenga  hijos 
«  aptos  para  cumplir  por  el  ».  Todo  esto,  que  el  author  diz,  he 
cousa  imaginaria,  porque  nunca  os  Emperadores  de  Ethiopia  tive- 
ram  este  modo  de  servi^o  dentro  de  seu  pa^o,  senam  o  que  acima 
dissemos;  nem  ouve  nunca  taes  filhos  de  Reys,  senam  aquelles  trinta 
meninos  escravos,  nem  ainda  agora  que  se  alargou  isto  a  entrarem 
tambem  alguns  forros,  nam  sam  filhos  de  homens  grandes;  nem  ha 
tal  distingam  de  cinco  camaras,  senam  das  tres  que  dissemos,  Am- 
ba^a  Beit,  Zefan  Beit,  Faraz  Beit,  scilicet,  casa  do  liam,  casa  do  leito, 
f.  24,v.  casa  do  cavallo.  E  em  estas  cousas  *nam  ha  duvida  nenhuma,  porque 
as  soube  das  principaes  cabe^as  destes  officios  e  dos  mesmos  mini- 
nos  que  eu  conhe<;o  e  vejo  os  mais  dos  dias  e  sei  quando  trouxeram 
cativos  muytos  dos  que  agora  estam,  e  ainda  a  mi  me  alcan^ou 
parte,  porque  de  entre  elles  me  deo  120  Emperador  em  chegando 
antes  de  se  bautizarem.  Estes  pois  sam  os  primogenitos  dos  Reys 
sugetos  ao  imperio  que  Joam  Balthesar  fingio,  estes  os  pagens  de 
sangiie  real  que  servem  ao  grande  Emperador  de  Ethiopia,  filhos 
de  gentios  Galas,  Agous  e  Cafres,  posto  que  bem  parecidos,  e  dos 
que  nam  sam  escravos  casi  nenhum  ha  que  nam  seja  filho  de  ho- 
mem  muyto  ordinario;  nam  porque,  se  o  Emperador  quisera  sei»- 
virse  de  filhos  de  homens  grandes  dentro  de  sua  casa,  nam  folgo- 
ram  elles  muyto  e  o  tiveram  por  grande  honrra,  mas  nam  quer 
senam  correr  com  o  estillo  e  modo  de  seus  antepassados. 


CAPITULO  V. 

Em  que  se  poem  dous  Catalogos  dos  Emperadores  de 
Ethiopia  e  se  trata  dos  nomens  comuns  que  tem. 


Em  os  livros  que  se  guardam  na  igreja  de  Aggum  e  hum  que       »•  Cur  luxta  Au- 

-rn  ,        c-tA^         A,,  -..  ctorcm  differant  in- 

me  emprestou  o  Emperador  Saltan  (^agued,  de  onde  tirei  o  que  a  ter  se  duo  catalogi 
cima  disse  da  reyna  Sabba  e  Menilehec  seu  filho,  se  acham  dous  i°JP?«torum.  Ubri 

•^  '  aethiopici  scatent  er- 

Catalogos  dos  Emperadores  seus  descendentes,  muyto  difFerentes  assi  roribus  ex  amanuen- 

no  numero  delles  como  em  os  nomens;  e  quanto  a  hum  ser  demi- 

nuto,  pode  ser  que  seja  culpa  do  que  tresladou  o  livro  que  deixase 

os   nomens  que   faltam,  que,  como   todos  os   livros   sam   de  mao, 

achamse  nelles  muytos  erros,  nem  tem  enteiramente  os  nomens  dos 

da  familia  de   hum   que   se  chamava   Zague,   que   tiveram   tyrani- 

9ado  o  imperio   1 43   annos,  como   consta   de  hum    dos   catalogos ; 

mas  os  que  sabem  bem  das  historias  me  affirmaram  que  cstava  er- 

rado:  porque  faltavam  muytos  dos  da  familia  deste  Zague  e  que  a 

certa  conta  destes  annos  sam  340.  Quanto  a  diflferencia  dos  nomens 

dos  Emperadores,  dicem  muytos  quem  vem  de  que  algumas  veces 

poem  em  hum  Catalogo  os  nomens  que  tinham  os  Emperadores  an- 

tes  que  o  fossem  e  em  outro  os  nomens  que  tomaram  quando  Ihes 

entregaram  o  imperio ;  porque  de  ordinario  mudam  o  nome  a  imi- 

tagam  (segundo  dicem)   de   Menilehec,  a   quem   chamaram  David, 

quando  o  coroaram  em  Hierusalem,  e  ainda  alguns  mudam  o  nome 


62 


HISTORIA   DE   ETHIOPIA 


a.  Primus  catalo- 
gus  qui  enumerat  94 
Imperatores. 


duas  veces,*  como  o  fez  o  filho  do  emperador  Naod,  a  quem  110 
bautismo  puseram  nome  Lebena  Denguil,  scilicet  «  encenso  da  Vir- 
gem  :>  e,  quando  Ihe  entregaram  o  imperio,  se  chamou  David,  que 
por  '^morte  de  seu  pay  avia  annos  que  governava  a  emperatriz  Elena;  f.  25. 
a  qual,  como  me  disseram  alguns  frades  velhos  e  o  emperador  Sel- 
tan  (^agued,  nam  era  sua  may,  porque  elle  era  bastardo,  e  por  falta 
de  legitimo  o  ficeram  Emperador,  e,  passados  alguns  annos,  deixou 
o  nome  de  David  e  se  intitulou  Onag  Qagued.  O  mesmo  fez  o  que 
agora  he,  que,  tendo  por  nome  do  bautismo  Suseneos,  que  dicem 
he  de  hum  martyr,  quando  o  juraram  por  Emperador,  se  chamou 
Malac  Qagued,  e  agora  se  chama  Seltan  Qagued,  que  quer  dicer 
«  o  poder  adoura  » ,  ou  «  faz  reverencia  » .  E  porque  pode  ser  que 
em  alguns  livros  de  Portugal,  falando  de  huns  mesmos  Empera* 
dores,  se  achem  nomens  diiferentes,  por  causa  da  diversidade  de- 
stes  Catalogos,  pera  que  isto  nam  cause  confusam,  senam  que  se 
saiba  deonde  procede,  os  porei  aqui  amos,  come^ando  poUo  que 
conta  muytos  dos  nomens  que  os  Emperadores  tinham  antes  que 
Ihes  entregasem  o  imperio,  que  diz  assi : 

«  David  rey  gerou  a  Salomam,  Salomam  gerou  a  Menileh^c, 
que  reinou  em  Ethiopia  na  terra  de  Ag^um,  e  depois  delle  reinou 
seu  filho  Zagdiir  e  sucessivamente  os  que  se  seguem : 


Zabaced. 
Taoace4. 
Aderia. 

Varec^. 

« 

Auceo. 

Maceo. 

Zaiia. 

Bace6. 

Aut6t. 

Baha^a. 

Zaoada. 

Adena. 

Calez. 

Gotolea. 

Zafelea. 

ElguebM. 

Baoaiil. 


Baoar^z. 

Aoena. 

Mahac^. 

Malcu^. 

Bac6n.  Aos   8   annos   do    reyno 

deste  naceo  Chr.°  N.  S. 
Zenfa  Azgu^d. 
Bahar  Azgu^d. 
Guerm^  Caf&r. 
Guerma  Azfere. 
Zarad6. 
Cululace6n. 
Zargua^. 
Zarai. 

Zara  Azgu^d. 
Ze6n  Hagu&z. 
Mala  Agnk. 


LIVRO  I,    CAPITULO  V. 


63 


Zaf  Arkd. 

Agd6r. 

Abra  e  Azba  irmaos.  Estes  foram 
muyto  amigos  e  reinaram  jun- 
tos,  e  em  seu  tempo  veio  de 
Hierusalem  Fremenatos  bispo 
e  pregou  o  bautismo  e  doc- 
trina  do  s.*°  evangelho  e  cre- 
ram  sua  doctrina  e  chamaramo 
Abba  Qalama,  sc.  Padre  paci- 
fico.  Depois  renaram 

Azfk. 

Arftd. 

Amct.  Estes  eram  irmaos  e  rei- 
naram  juntos  e  repartiam  o  dia 
em  tres  partes  pera  mandar. 
A  estes  sucederam 

Arad6. 

Aladob&. 

Amiamid.  Em  o  tempo  deste  vie- 
ram  muytos  religiosos  santos  de 
Rum  e  se  repartiram  por  todo  o 
imperio,  e  nove  estiveram  no 
reyno  de  Tigre,  onde  edificaram 
muytas  igrejas,  que  oje  tem  os 
nomens  que  Ihes  pus  a  gente 
da  terra  a  elles.  So  hum  nome 
proprio  se  conservou,  que  [he] 
f.  25,T.  Pantaliam ;  *aos  demais  chama- 
ram  Abba  Arogaoi,  Abba  Gue- 
rima,  Abba  Alef,  ^.ehema, 
Afce,  Abba  Licanos,  Adimata, 
Abba  Oz ;  depois  o  chamaram 
Abba  Guba  sc.  «  hinchado  », 
porque  fez  huma  igreja  em  hum 
oteiro  e  estava  so,  e  por  isso 
disseram :  Que  frade  he  este  hin- 
chado  que  faz  igreja  so?  e  ficou 
com  este  nome  Guba.  Estes  fice- 


ram  muytos  milagres,  com  que 
se  acabou  de  converter  a  gente 
da  terra,  e  entre  elles  contam 
hum  de  huma  espantosa  ser- 
pente,  que  estava  perto  da  ci- 
dade  de  Ag^um,  a  quem  da- 
vam  cada  dia  dous  carneiros  e 
alguns  caloes  de  leite,  porque, 
se  nam  achara  isto,  vinha  aos 
lugares  e  matava  muyta  gente. 
Tambem  Ihe  davam  huma  don- 
cella  em  certos  dias  do  anno. 
O  que  sabendo  aquelles  reli- 
giosos,  o  sintiram  muyto  e  hum 
delles  foi  con  muyta  gente  e, 
chegando  a  vista  da  serpente, 
se  pus  de  joelhos  com  as  maos 
alevantadas  ao  ceo  pidindo  a 
Nosso  Senhor  librase  aquella 
gente  de  tam  espantoso  mon- 
struo,  e  logo  arreventou  e  ficou 
morta.  Do  que  se  maravilha- 
ram  muyto  todos,  e  disseram 
que  a  quelles  homens  eram 
mandados  por  Deos  pera  bem 
de  suas  almas  e  corpos,  e  assi 
os  tinham  em  grande  venera- 
Qam  e  agora  honrram  como  a 
santos,  facendolhes  grande  fe- 
sta  em  seus  dias.  Depois  de 
Amiamid  reinou 

Tacena. 

Calftb. 

Grabra  Mazcal. 

Constantin6s. 

Bazgir. 

Azf£. 

Jan  Azgu^d. 

Fre^anai. 


64 


HISTORIA   DE   ETHIOPIA 


Adoraaz. 

Oai^ar. 

Madai. 

Calaud^n. 

Guermli  Azfar^. 

Zargaz. 

Degna  Michael. 

Badagl^. 

Arma. 

Ezbinani. 

Degnaxan. 

Ambaca  Udm. 

Delna6d. 

Depois  deste  deo  Deos  seus  rey- 
nos  a  outro  povo,  que  nam  era 
da  semente  de  David  nem  da 
casa  de  Isrrael,  que  se  chamava 
Zague,  e  passados  muytos  an- 
nos,  tornou  Deos  o  reyno  a  os 
de  Isrrael  e  reinou 

IconCl  Amllic,  sc.  «  Deus  seja  com 
elle  ». 

Agbace6n. 

Bahar  Azg4d. 

Hezb  Arad. 

Cadma  Azgued. 

Udm  Arkd. 


Amd  Ce6n. 

Zeifa  Arad. 

Udm. 

David. 

Theod6roz. 

Isaac. 

Andreas.       . 

Hezb  Inanh. 

Amd  Jesus. 

Badel  Inknh. 

Zara  Jacob;  este  mandou   guar- 

dar  sabado. 
B6da  Mariam. 
£scand6r. 
Amd  Ce6n, 
Na6d. 

Onag  CaguM. 
Atanlif  9^gu6d. 
Adamas  Caguftd. 
Malac  9^guftd. 
Jacob,  que  depois  se  chamou  Ma- 

lac  (^agvihd  como  seu  pay. 
Za  Denguil;  chamouse  Atanaf  9&- 

gu^d. 
Susene6s;   chamouse  Seltan  (^ql- 

gu6d  ». 


3.  Alter  catalogus 


'O  catalogo  que,  segundo  dicem,  tem  comummente  os  nomens  que   f.  26. 


qui    enumerat    165   ^g  Emperadores  tomaram,  quando   Ihes  entregaram  o    imperio,  he 

xiiiperatores. 

o  siguinte: 

«  A  reinha  Az6b   come^ou  a  reinar  em  Ag^um  aos  37  annos 

do  reyno  de  Saul,  e  aos  4  annos  do  reyno  de  Salomam  foi  a  Hie- 

rusalem  e  depois  que  tornou,  reinou  25  annos,  e  o   filho  que  teve 

de  Salomam  Ebnli  Elehaqutm  reinou  jg  annos. 


Handodea  i   anno. 
Auce6  3. 
Zao6  34. 


Gace6  meio  dia. 

Maoat  8  annos  e   i   mes. 

Bahaz  9  annos. 


LIVRO   I,   CAPITULO  V. 


65 


Cauda  2. 

CanAz  ic. 

Hadena  9. 

Oezh6  I. 

Hadena  2. 

Calaz  6. 

Cate6  17. 

Filea  27. 

Aguelbii  3. 

Aucinl^  I. 

Zebuo&s  29. 

Maheci  i. 

Bacftn  17.  Aos  8  annos  do  reyno 

deste  naceo  Chr.°  N.  S. 
Cert6  27. 
Le4z  10. 
MacenAh  7. 
Ceteio  9. 

Adguela  10  e  2  meses. 
Agueba  7  meses. 
Meliz  4  annos. 
Haquel6  13. 
Demahft  10. 
Autftt  2. 
Elauda  30. 
Zegu&n  c 
Zarema  annos  8. 
Gafal6  i. 
Becft^ar^  4. 
Dos  de  Azguagua  77. 
Dos  de  Herci  21. 
Beec6  ZauefS  i. 
Oecana  2  dias. 
HadaCiz  4  meses. 
Dos  de  Zaguftl  3  annos. 
Dos  de  Azfah&  14. 
Dos  de  Zeglib  23. 
Dos  de  ^amer^  3. 
Dos  de  Aiba  17. 


Dos  de  Escandi  37. 

Dos  de  Zaham  9. 

Dos  de  Zan  13. 

Dos  de  Aig4  18. 

Alamida  30  e  8  meses. 

Dos  de  Aheyeoa  3  annos. 

Dos  de  Abraha  e 

Azebeh^    «  guiadores    da    clari- 

dade  »  27  e  7  meses. 
Azbeha  12  annos. 
Dos  de  Azfaha  7. 
Dos  de  (^ahH  14. 
Dos  de  Adehena  14. 
Dos  de  R6te  i. 
Azfeh^  i. 
Azbah^  5. 
Dos  de  Amidli  17. 
Dos  de  Abraha  7  meses. 
Dos  de  9^b£l  2  meses. 
Dos  de  Gab6z  2  annos. 
Dos  de  Zehiil  i. 
Dos  de  Izbah  3. 
Dos  de  Abr6  e 

dos  de  Adahana  juntamente    16. 
Dos  de  Zaham  28. 
Dos  de  Amidli  12. 
Dos  de  Zahftl  2. 
Dos  de  Zebah  2. 
Dos  de  Zaham  15. 
Dos  de  Gab6z  21. 
De  Agab6  e  de 
Levi  juntamente  2. 
Dos  de  Amida  1 1 . 
De  Jacob  e  de 
David  juntamente  3. 
Arma   14,  seis  meses  e  8  dias. 
Zitana  2  annos. 
Jacob  9. 
Constantin6s  28. 


C.  Beccari.  Rer.  Aeik,  Script,  occ,  ined,  —  11. 


66 


HISTORIA    DE   ETHIOPIA 


Gabra  Mazcal  14. 

Nacu^. 

Bac&n  17.  No  terapo  deste  se  fun- 
dou  a  igreja  de  Ag^um. 

*Zenfa  AzguM. 

Bahdr  Azguftd. 

Guerma  Azfar&. 

Culule  Ce6n. 

Cergai. 

Zerai. 

Begamlii. 

Jan  Azguftd. 

Ze6n  Hegz. 

Moa^lgueha. 

Zaf  Arad. 

Agder. 

Abrah^  e  Azbaha  irmSlos. 

Azfeh^. 

Arfifed  e  Amci  irmSos. 

Arad. 

Cel  Adoba. 

Alamida. 

Amiamid. 

Tacena. 

Calftb. 

Gabra  Mazcal. 

Constantin6s. 

Bezgar. 

Azfth. 

Armah. 

Jan  Azf^h. 

Jan  Azguftd. 

Fre^anai. 

Ader^. 

Ai96r. 

Delna6d. 

Maadai.  Depois  destes  reinou  em 
Amhara  huma  molher  de  ge- 
ra^am  de  tredos  a  quem  cha- 


maram  E^at^  sc.  «  fogo  » ,  e  no 
reyno  de  Tigre  reinou  40  annos 
otra  molher  Gudit  sc.  «  mon- 
struosa  »  e  destruio  todas   as  f.  26,v 
igrejas.  Depois  desta  reinou 

Amba^i  Udm. 

Huala  Udem. 

Guerma  Azfarfe. 

Zerg&z. 

Degna  Michael. 

Badgaz. 

Armah.  Depois  deste  se  cortou  a 
linea  dereita  dos  reys  de  Is- 
rrael  e  reinou  Marari,  da  fa- 
milha  de  Zagoc,  15  annos. 

Imrah  40. 

Lalibela  40. 

Nacutolab  40. 

Harbai  8.  Estes  nam  mais  estam 
no  livro,  mas  dicem  que  faltam 
outros  muytos  dos  desta  familia 
e  que  todos  reinaram  340  annos. 
Depois  tornou  Deos  o  reino  aos 
da  linea  de  David,  e  reinou 

Icillnu  Amlac  sc.  *  seja  com  elle 
Deos  >,  15  annos^ 

Agba  Ce6n  9. 

Dous  seus  filhos  3. 

Tres  filhos  destes  2. 

Udm  Eraad  13. 

Amd  Ce6n  30. 

Ceif  Arad  28. 

Udm  Azfar^  10. 

David  33. 

Tedros  9  meses. 

Isaac  com  seu  fiiho   16  annos. 

HezbnlLnh  4. 

Dous  seus  filhos   i. 

Zara  Jacob  34. 


LIVRO  I,   CAPITULO  V, 


67 


Beda  Mari4m  10  e  2  meses. 
E^and^r  15  e  6  meses. 
Amd  Ce6n  6  meses. 
Na6d  13  annos  e  9  meses. 
Lebena  Denguil  33  annos. 
Glaude6s  18  e  7  meses. 


Minlis  4  annos. 
Zerza  Denguil  33. 
Jacob  10. 
Za  Denguil  i. 

Seltan  CaguM  16  ate  este  anno 
de  1622  ». 


f.  27.  *Ate  aqui  tirei  de  seus  livros,  mas  hase  de  advertir  que  nam      4*  Quacdam  adno- 

^Tt-AT^  '^ii_  jt_^-  j'  tationes       Auctoris. 

somente  Lebena  Denguil  he  nome  de  bautismo,  como  dissemos  no  q^i^j  ^^i  patrave- 
principio   deste  capitulo,  mas  tambem  Glaudeos.   Este  se  chamou  "*.  ^*'*  Jacob,   ct 

quid  de  eo   sensertt 

Atanaf  Qagiied,  quando  Ihe  entregaram  o  imperio ;  Minas  se  chamou  Susneos. 
Adamas  Qagned,  Zerza   Dengnil  se  chamou  Malac  (^agned,  Jacob 
tambem  Malac  Qagued,  Za  Dengnil  Atanaf  Qagned. 

Em  estes  Catalogos  se  vee  quam  errados  estam  os  nomens  dos 
mais  dos  Emperadores  que  referem  em  suas  historias  Francisco  Al- 
vares  e  frey  Luis  de  Urreta  e  outros  que  escreveram  das  cousas 
de  Ethiopia  e,  deixando  outros  muytos,  o  que  Francisco  Alvares 
fol.  127  nomea  Zeriaco,  nam  se  chama  se  nam  Zara  Jacob,  scilicet 
€  semente  de  Jacob  »,  e  dicem  que,  quando  Ihe  entregaram  o  imperio, 
se  chamou  Constantinos.  Deste  arre^oam  muyto  mal  em  Ethiopia  e 
affirmam  que,  tendo  elle  mandado  guardar  sabbado,  porque  hum  su- 
perior  de  Debra  Libanos,  scilicet  Mosteiro  do  Libano,  que  era  o 
mais  insigne  que  avia  em  Ethiopia,  nam  o  quis  guardar,  dicendo 
que  era  judai^ar,  mandou  que  o  matasem  a  elle  e  a  outros  muytos, 
e  que  tambem  mandou  matar  os  oribez  e  ferreiros,  porque  decia 
que  todos  eram  feiticeiros  e  facendo  juntar  muytosem  hum  campo, 
os  mataram ;  e  pouco  tempo  ha  que,  falando  sobre  isto  o  Emperador 
Seltan  Qagued  diante  de  mi  e  de  alguns  Grandes,  disse:  Quantos 
males  fez  Zara  Jacob :  esta  ardendo  em  os  infernos.  Respondeo  hum 
frade  velho:  Nam  diga  V.  Magestade  isso;  que  era  Rey  ungido. 
Disse  o  Emperador:  Por  bentura,  porque  seja  Rey  ungido,  nam 
pode  estar  no  inferno?  As  obras  sam  as  que  o  ham  de  salvar  ou 
condenar.  E  mandando  tracer  hum  livro  me  disse:  Se  V.  R.  quer 
ver  este  livro,  achara  as  cousas  de  Zara  Jacob.  Tomei  eu  o  livro 
e  onde  come^ava  a  falar  delle  decia  desta  maneira: 

€  Em  tempo  de  nosso  Rey  Zara  Jacob  ouve  grande  temor  e      5.  Severitaa  immo 

Ct       ClTUdcli^&S       ^stvst 

«  espanto  em  todo  o  povo  de  Ethiopia,  poUo  rigor  de  sua  justi^a  jacobiuxtalibrosae- 
«  e  de  sua  forija,  principalmente  contra  aquelles  que  adoravam  idolos,  ^l^iopicos. 
«  e  quando  alguns  vinham  a  dicer  que  outros  os  tinham  adourado, 


68  HISTORTA   DE   ETHIOPIA 

«  nam  Ihes  dava  outro  juramento  mais  que  dicer:  O  sangue  daquelles 
«  venha  sobre  vosotros,  e  com  isto  mandava  matar  aquelles  contra 
«  quem  testimunhavam,  poUo  zelo  que  tinha  da  honrra  de  Deos. 
«  Ate  a  seus  filhos  nam  perdoou:  matou  a  Glaodeos,  Amd  Mariam, 
«  Zara  Abreiham,  Betra  Ceon  *e  suas  filhas  Delcemara,  Erongece-  f.  27,v. 
«  nela,  Adelmengue<;a  e  outras  muytas;  entam  mandou  lan^ar  pre- 
«  gam  dicendo:  OuQa  o  povo  christao  o  que  fez  o  Diabo.  Mandamos 
«  que  o  povo  nam  adorase  idolos,  e  elle  entrou  em  nossa  casa  e 
«  fez  errar  nossos  filhos;  e  mostrou  a  todos  as  feridas  dos  a^oites 
«  que  Ihes  tinha  dado  em  castigo,  e  eram  tam  grandes  que  huns 
«  morreram  alli  logo  e  outros  pouco  depois.  O  que  vendo  o  povo, 
«  fez  grande  pranto.  Depois  mandou  que  todos  escrevesem  na  testa : 
«  Za  Ab  oa  Uald,  oa  Manfaz  queduz ;  que  quer  dicer :  *  do  Padre  e  do 
«  Filho  e  do  Santo  Spirito  ' ;  e  no  bra^o  dereito :  Quehed  que  uo  la 
«  Diabolos  Regum  Ana  Guebra  la  Mariam  einula  fetare  culu  Alem, 
«  que  quer  dicer:  *  Neguei  ao  Diabo  maldito  eu  escravo  de  Maria 
«  may  do  Criador  de  todo  o  mundo  \  E  no  bra^o  izquerdo:  Quehed 
«  que  u6  la  Diabolos  Dezcbac,  o  aba  Christos  amalec;  scilicet:  'Neguei 
«  ao  Diabo  sujo  e  vSo,  e  a  Christo  adouro*.  E  mandou  por  todo  seu 
«  imperio  que  a  quem  nam  ficesse  isto  Ihe  tomassem  seu  fato  e  o 
«  matasem  » .  E  pouco  mais  adiante  diz  o  livro  que,  se  algum  dos 
pagens  do  pa(;o  (que,  como  dissemos  no  cap.  precedente,  eram  trinta 
todos  escravos)  saia  fora  a  comer,  ou  a  beber,  ou  a  falar,  o  matavam 
juntamente  com  quem  o  lebou  e  quem  o  convidou;  e  a  huma  sua 
molher,  que  se  chamava  Ceon  mogue^a,  por  arrecear  que  alevan- 
tase  a  seu  filho  Beda  Mariam,  Ihe  mandou  dar  tantas  pancadas  e 
tormentos  que  morreo  e  a  enterraram  secretamente,  mas  comtudo 
o  soube  seu  filho  e  lebou  a  igreja  encenso  e  candeas.  O  que  ou- 
vindo  Zara  Jacob  seu  pay,  o  mandou  prender  e  esteve  pera  o  matar. 
6.  Refeninmr  alia  Outras  muytas  cousas  de  grande  rigor  conta  este  livro,  que  deixo 

gesta  Zara  Jacob  ex  -j       tx-  •  ^-    t_     i.  •    t_ 

iisdem  libris.  po^  nam  ser  cumprido.  Diz  mais  que  tmha  hum  cammho  com  cerca 

de  huma  e  outra  vanda  do  pa^o  ate  a  igreja,  por  onde  hia  sem  que 
ninguem  o  vise  e  na  igreja  nam  entravam  mais  que  os  superiores 
de  alguns  mosteiros  grandes,  pera  cantar,  e  quando  queria  entrar  na 
capella  pera  comungar,  saiam  todos,  sem  ficar  mais  que  Acabe  Egat 
e  outros  quatro  sacerdotes,  e  quando  hia  a  igreja  e  quando  tor- 
nava,  tinha  cuidado  hum  dos  pagens  de  dar  desde  dentro  sinal  com 
a  mao  aos  musicos  que  esperavam  fora  com  muytos  instrumentos 
pera  que  tangesem  e  ficesem  festa,  e  em  huma  das  casas  que  tinha 


LIVRO   r,   CAPITULO  V.  69 

dentro  de  sua  cerca  estavam  muitos  sacerdotes  cantando  psalmos 
f.  28.  *de  David  aos  quartos,  sem  cesar  de  dia  nem  de  noite,  e  botavam 
continuamente  agoa  benta  em  as  paredes  por  lavanda  de  dentro  da 
casa,  porque  os  feiticeiros  Ihe  faciam  feitigos  com  embeja  de 
sua  fe.  Mandou  tambem  facer  perto  da  igreja  hum  lugar  cercado, 
e  que  o  enchesem  de  agoa,  e  alli  se  bautizou  muytos  annos  ate 
que  morreo,  e  ordenou  que  perto  de  todas  as  igrejas  ficesem  tan- 
ques,  em  que  se  bautizasem,  e  que  todos  guardasem  sempre  sab- 
bado  asi  como  domingo;  porque  seus  capitaes  tiveram  em  sab- 
bado  victoria  de  hum  seu  enemigo,  que  se  chamava  Bedelai  Aure. 
Ate  aqui  sam  palavras  de  aquelle  livro ;  mas  no  que  diz  que 
matou  seus  filhos,  porque  adoravam  idolos,  nam  Ihe  da  credito  o 
emperador  Seltan  Qagued,  porque  estando  eu  falando  com  elle 
sobre  isso,  me  disse:  Quem  sabe  se  os  mandou  matar,  por  outra 
cousa  [?].  Era  muyto  forte  homem :  ainda  a  Beda  Mariam  queria 
matar  com  nam  Ihe  ficar  outro  filho. 

Demais  dos  nomes  proprios,  que  os  Emperadores  tem  em  estes  7.  Alia  nomina 
Catalogos,  Ihes  dam  outros  gerais,  como  em  os  demais  reynos  se  pUe^o^ntu/^sciL 
acustuma  com  todos  os  Reys.  O  primeiro  he  Neguz,  que  quer  dicer  NegAxetNegii^ANa- 

g&zt     zsL     Ethiopia, 

Rey,  e  deste  so  dicem  que  pode  usar  em  quanto  nam   se  coroa;  Acegu6,    Jan    C6i, 

depoisse  intitula  Negu^a  Nagazt  za  Ethiopia  sc.  «  Rey  dos  Reys  de  cdifjAn^SAl^pHl 

Ethiopia  » ,  isto  he  Emperador  de  Ethiopia.  Mas  isto  nam  se  guarda,  cantur. 

porque  eu  conheci  al  rey  Jacob  e  al  rey  Za  Denguil,  que  morre- 

ram  antes  de  se  coroarem,  e  com  tudo  isso  punham  em  suas  cartas 

Negu^a  Nagazt,  Emperador.  Tambem  o  chamam  Acegue.  A  signi- 

fica^am  deste  nome  preguntei  a  muytos,  e  huns  disseram  que  que- 

ria   dicer  «  Rey  »,  outros  que  nam,  senam   «  cousa  de  grande^a  ». 

Parece  que  corresponde  a  Magestade,  e  deste  nome  usam  mais  co- 

mummente  todos;  particularmente  quando  falam  com  elle,  ou  com 

outros  diante  delle,  nam  dicem  Neguz,  senam :  Acegue  mandou  tal 

cousa,  como  se  dissera:  V.  Magestade  ou  sua  Magestade  mandou. 

A  gente  ordinaria,  que   nam  pode  chegar  ao  Emperador,  grita  de 

longe  cada  hum  em  sua  Hngoa,  pera  ser  conhecido,  e  logo  o  Em- 

perador  manda  preguntar  por  algum  pagem,  ou  homem  grande,  o 

que  querem  e  os  despacha;  mas  nam   dicem  Neguz  nem  Acegue, 

que  entam  nam  cavem  estas  palavras.  Os  Portugueses  dicem:  Se- 

nhor,  Senhor ;  os  Gongas  christaos  dicem :  Donzo,  Donzo,  scilicet : 

Senhor,  Senhor;  os  Agous  dicem:  Jadara,  Jadara,  que  he  o  mesmo; 

os  Mouros:  Cidi,  Cidi:  senhor  meu,  senhor  meu;  e  outros  conforme 


72  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

na  capella  da  igreja  a  ouvir  Missa  *e   comungar,  porque  os  que  f.  29,v. 
nam  tem  ordens  nam  podem  entrar  la,   nem  passar  de  humas  cor- 
tinas.  que  tem  diante  em  algumas  igrejas  que  ha  cumpridas  e  nas 
demais  que  sam  redondas  nam  entram  dentro,  todos  ficam  no  alpendre 
que  tem  a  roda  e  alli  Ihes  tracem  a  comunham. 
xo.  Ezquiriturori-  Quanto  a  a  causa  porque  em  Europa  chamaram  Preste  Joam  ao 

go  appellatioziis 

prcsbyteri    loannis.   Emperador  de  Ethiopia  pode  ser  que  fosse  porque,   como  ordina- 
Error  philoldgicus.   riamente  he  diacono,  alguns  Gregos  o  chamariam  Presbitero,  e  de- 

pois  ajuntando  o  nome  Jan,  que  (como  ja  dissemos)  Ihe  dam  ao  Em- 
perador,  viriam  a  dicer  Preste  Jan,  e  os  estrangeiros,  que  muytas 
veces  corrompem  os  nomens,  acomodandoos  a  suas  lingoas,  o  cha- 
mariam  Preste  Joam.  Este  nome  Jan  he  muyto  antiguo  em  Ethiopia, 
porque,  pera  nomear  alguns  dos  officiaes  que  tinha  e  tem  agora  o 
Emperador  dos  descendentes  daquelles  que  deo  Salomam  a  seu  filho 
Menilehec,  sempre  usam  delle,  dicendo  taes  Officiaes  de  Jan,  em 
lugar  de  dicer  taes  Officiaes  do  Emperador,  como  vimos  no  capi- 
tulo  4,  onde  se  nomeam;  e  assi  ao  que  era  como  estribeiro  mor 
deciam  Jan  Beleu,  «  estribeiro  de  Jan  »,  scilicet  do  Emperador,  e 
ainda  agora  ao  que  he  orivez  e  ao  armeiro  do  Emperador  chamam 
Jan  Xalami,  «  ornador  de  Jan  »,  scilicet  do  Emperador. 
IX.  Error  histori-  Tambem  pode  ser  e  tenho  por  causa  muyto  provavel  que  cha- 

cus. 

masem  em  Europa  Preste  Joam  a  este  Emperador  de  Ethiopia  pella 
re^am  que  da  o  padre  frey  Thomas  de  Padilha  em  o  prologo  que 
acrecentou  a  Historia  Ethiopica  de  Francisco  Alvares,  quando  a  tre- 
sladou  de  portugues  em  castelhano;  onde  diz  que  tendo  noticia  el 
rey  dom  Joam  o  2°  de  Portugal,  que  em  Oriente  avia  hum  Rey 
christao  muy  poderoso  que,  demais  de  ser  rey,  era  tambem  sacer- 
dote  dos  christaos  a  elle  sugetos,  a  quem  chamavam  seus  vassallos 
Preste  Joam;  e  mandando  dous  portugueses  Pcro  de  Covilham  e 
Afonso  de  Paiva  polla  via  do  Cairo  o  anno  de  1487,  pera  que  se 
informasem  se  era  possivel  que  suas  naos  pudesem  ir  do  Cabo  de 
Boa  Esperan^a  (que  ja  era  descuberto)  ate  a  India,  onde  se  achava 
a  especieria  que  levavam  pollo  Mar  Roxo  a  Egypto,  e  que  procu- 
rasem  saber  muyto  de  proposito  onde  eram  os  reynos  do  Preste 
Joam  tam  nomeado ;  e  assi,  indo  elles  ao  Cairo  e  entrando  poUo 
Mar  Roxo,  se  afastaram  e  Pero  de  Covilham  foi  pera  India  a  se 
informar  da  navegac^am  e  especierias  que  tinha,  e  Afonso  de  Paiva 
a  Ethiopia,  onde,  como  Ihes  tinham  certificado,  todos  eram  christaos 
e  tinham  Emperador  muy  poderoso,  pera  ver  sc  era  cste  o  Preste 


I 

l 


LIVRO   I,   CAPITULO   III.  73 

f  jo.  Joam  que  buscavam,  concertando  de  se  tornarem  a  juntar  *em  o 
Cairo  em  certo  tempo.  Mas  tornando  Pero  de  Covilham  ao  lugar 
sinalado,  soube  que  era  falecido  seu  companheiro  Afonso  de  Paiva 
e  achando  cartas  de  seu  Rey,  em  que  Ihes  mandava  que  com  toda 
prestega  desem  fim  ao  come^ado,  e  que  tendo  nova  do  Preste  Joam, 
procurasem  levarlhe  huma  Carta  que  Ihe  escrivia  e  visitalo  de  sua 
parte,  pidendolhe  toda  amizade,  como  entre  dous  Principes  christaos 
se  requer;  respondeo  dando  conta  do  que  na  India  tinha  visto  e 
que  era  certa  a  navega^am  pera  ella  pello  Cabo  de  Boa  Esperanga 
e  juntamente  que  em  Ethiopia  avia  hum  Emperador  christao,  o  qual 
cuidava  que  era  o  Preste  Joam  que  S.  A.  Ihe  mandava  buscar; 
pollo  que,  jaque  seu  companheiro  era  morto,  elle  iria  a  dar  a  em- 
baixada,  que  Ihe  mandava. 

Quando  chegaram  estas  novas  «il  rey  dom  Joam,  se  alegrou 
nmyto,  como  era  regam.e  com  ellas  se  pubricou  em  Espanha  que 
o  Preste  Joam  reinava  em  Ethiopia,  e  por  esta  causa  ficou  sempre 
o  Emperador  de  Ethiopia  com  nome  de  Preste  Joao,  nam  o  sendo, 
senam  o  Emperador  do  Catayo ;  e  pera  isto  cita  a  Marco  Paulo  e 
outros  e  frey  Luis  de  Urreta  cap.  7  de  sua  Flistoria  traz  a  Jaccbo 
Nabarcho  e  a  Gerardo  mercator  e  outros  muytos  em  confirma^am 
da  mesma  opiniam.  O  certo  he  que  em  os  livros  de  Ethiopia  nam 
se  acha  feita  mengam  deste  nome  Preste  Joam,  porque  algum  dos 
letrados  a  quem  preg^ntei  ouvera  de  saber  dar  re^am  delle. 


C.  Bbccaxi.  Rtr.  Atik,  Scripi,  occ,  ined,  —  II.  xo 


ik 


r 


CAPITULO  VI. 

De  Guix6n  Amb&  onde  se  guardam  os  descendentes 

dos  Bmperadores  antiguos. 


Sam  tantas  e  tam  grandes  as  maravilhas,  que  frey  Luis  de  Ur-  i.  Auctor  descri- 
reta  conta  no  capitulo  8  deste  Guixen  Amba,  a  que  chama  monte  relationibus  trium 
de  Amara,  que  com  estar  bem  lonee  deste  reyno  de  Dambia,  onde  *f«tiuin  de  visu  fide 

^  o  -^  dignonim. 

de  ordinario  resido,  desejei  muyto  ir  la,  e  o  ouvera  de  facer,  ainda 
que  o  caminho  he  trabalhoso,  se  o  perigo  dos  ladroes  nam  fora 
tam  grande,  por  causa  dos  Galas,  que  por  aquella  parte  facem 
guerra ;  nam  porque  nam  saiba  muyto  bem  quam  fabulosa  seja  a 
informagam  que  sobre  isto  elle  teve,  senam  pera  poder  falar  de  vista. 
Mas  tudo  o  que  sobre  esta  materia  diser,  sera  por  rela<;am  de  dous  de 
aquelles  descendentes  dos  Emperadores  que  se  chamam  Abeitahum 
f.  3o,v.  Memeno  e  Abeitahum  *Taquela  Haimanot,  que  estiveram  la  muyto 
tempo  e  agora  residem  na  corte  e  de  outro  muyto  meu  amigo,  que 
se  chama  Abeitahum  Orco,  que  de  presente  esta  na  mesma  forta- 
le^a,  mas  vem  algnmas  veces  a  corte  com  licenga  do  Emperador, 
porque  nam  se  arrecea  delle  e  de  outros  que  la  entraram  e  sabem 
as  cousas  que  ha.  Mas  pera  que  milhor  se  entenda  o  nome  desta  for- 
tale^a,  se  ha  de  advertir,  que  na  lingoa  de  Ethiopia  todo  monte  e 
rocha,  en  cujo  cume  se  pode  defender  a  gente  de  seus  cnemigos, 
se  chama  Amba;  e  destas  ha  muytas  e  muyto  fortes  em  Ethiopia; 


76  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

por  onde  o  nome  proprio  daquelle  lugar,  onde  se  g^ardam  os  de- 
scendentes  dos  Emperadores  antiguos,  nam  he  Amba,  que  em  geral 
pertence  a  todos  os  lugares  fortes,  senam  Guixen,  que  quer  dicer 
«  a  chouse  [sic]  ». 

Suposto  isto,  referirei  primeiramente  o  que  diz  frey  Luis  no 
lugar  citado,  onde  descreve  esta  fortalec^a,  antepondoa  a  todas  as 
mais  fortes  do  mundo,  com  tantos  encarecimentos,  como  se  a  na- 
turega  de  todo  ponto  se  esmerara  nella,  querendo  tirar  a  luz  huma 
cousa  em  grande  maneira  prodigiosa  em  fertilidade,  bele(ja  e  fer- 
mosura,  pera  dar  mostra  ao  mundo  de  seu  grande  primor  e  per- 
fei^am.  E  porque  nam  aja  quem  cuide  que  Ihe  acrecentei  palavras, 
referirei  as  proprias  suas,  que  sam  estas. 
a.  Commenta  risu  «  Todas  estas  rocas  y  montes  »   (tinha  falado  de  humas  pedras 

digna  Urretae  circa  *  ,  ,  v 

Guizto  AmbA.  ^^^^  parecem  mespugnaveis  que  tomou  Alexandre  magno)  «  y  quantas 

«  tiene  el  mundo  pueden  callar  y  cessara  la  admiracion,  si  se  ponen 
«  em  paralelo  y  cotejo  con  el  famoso  monte  de  Amara,  que  esta 
«  en  la  Ethiopia,  donde  estan  guardados  los  Principes  del  imperio ; 
«  porque  aquellos  montes  de  la  India,  aunque  al  parecer  inexpu- 
«  gnables  y  fuertes,  alfin  fueron  entrados,  escalada  sua  altura,  ben- 
«  cidas  las  difficultades  y  rendidos  al  poder  de  Alexandre.  Mas  la 
«  fortale^a  del  monte  Amara  es  tal  que  de  ning^na  de  las  suertes 
«  dichas  ay  orden  para  poderla  entrar.  Es  una  fortele<;a  tan  pro- 
«  digiosa  que  parece  que  la  naturale^a  se  esmero  en  formarla  y 
«  descubrir  al  mundo  un  lugar  fuerte  sin  ayuda  de  ingenio  humano ; 
«  y  no  solo  es  lugar  defendido,  pero  es  uno  de  los  puestos  mas 
«  regalados  de  mayor  comodidad  y  deporte,  que  tiene  el  mundo 
«  universo ;  y  es  esto  en  tanto  estremo  que  Philon  Judio  dice  que, 
«  si  ay  parayso  terrenal,  esta  en  este  monte,  y  por  ser  tan  pere- 
«  grino  y  singular  que  en  fortale^a  es  la  mayor  y  mas  inespugnable 
«  que  ha  tenido  ni  tiene  el  universo;  y  entre  todos  los  *jardines  f.  31. 
«  floridos,  huertas  deleitosas  y  amenos  vergeles,  es  el  esmero  de 
«  todos  ellos,  enfin  parayso.  Han  tratado  del  y  hecho  mencion  en 
«  sus  escritos  asi  historiadores  hebreos,  latinos,  griegos,  como  turcos 
«  y  arabios  » . 

Pouco  mais  adiante  diz  assi :  «  Esta  el  monte  de  Amara  asen- 
«  tado  en  medio  de  la  Ethiopia  como  centro  de  todo  el  imperio  de  los 
«  Abissinos,  baxo  de  la  linea  equinocial.  Plantole  la  naturale^a  em 
«  una  campafia  tan  llana,  en  unos  llanos  tan  iguales  y  prolongados 
«  y  en  una  tierra  tan  estendida,  desocupada  y  descubierta,  que  no 


1r 


LIVRO  I,   CAPITULO  VI.  77 

s  se  halla  monte  ni  altura,  por  mas  de  30  legnas  al  rededor  del, 
«  qiie  le  enoge  ni  le  haga  padrastro.  Esta  superior  y  a  cavallero 
«  de  todo  el  campo ;  su  figfur?  es  redonda  y  circular  y  assi  con  fa- 
«  cilidad  se  acude  a  qualquier  parte  del.  Sua  altura  es  tan  grande 
«  que  ay  cerca  de  un  dia  de  subida  desde  el  pie  del  a  lo  alto ;  todo 
«  a  la  redonda  es  peiia  tajada  de  alto  a  bajo  tan  lisa  y  igual,  que 
«  no  parece  sino  que  se  higo  a  mano  con  cartabon  y  plana,  sin 
«  que  aya  peiiascos  ni  riscos  sobresalientes  y  desiguales,  sino  que 
«  es  a  manera  de  un  muro  tan  alto  que  puesto  al  pie  del  buela  tanto 
«  que  parece  que  el  cielo  se  arrodriga  sobre  el,  y  que  le  sirve  de  rafa 
«  y  estribo.  A  lo  alto  de  todo  aquel  muro  de  pefia  tajada  rebuelven 
«  las  peiias  y  las  rocas  saliendo  fuera  del  muro  por  espacio  de  mil 
«  passos,  y  van  haciendo  un  labio  y  arandela  de  la  propria  figura  de 
«  un  hongo :  obra  rara  de  nutarele^a  y  tan  singular  que  no  se  halla 
«  otra  en  el  mundo,  por  lo  qual  queda  imposibilitada  la  subida  por  de 
«  fuera,  y  assi  no  ay  que  temer  ser  escalados,  y  como  es  tan  alto  no  se 
«  le  pueden  hacer  terraplenos,  ni  rebelines  que  se  igualen.  De  cir- 
«  cuito  tendra  mas  de  20  leguas  a  la  redonda.  Esta  cercado  por  lo 
«  alto  con  un  muro  muy  gracioso  y  bien  labrado,  porque  no  caigan 
«  las  fieras  y  animales  de  caga  que  ay  en  el,  ni  hombres,  que  solo 
«  para  este  fin  se  ha  hecho,  y  no  por  defensa ;  porque  para  ella  no 
«  ay  necessidad,  pues  no  ay  arcabuz  ni  mosquete  que  llegue  a  lo  alto 
«  del  monte.  La  cumbre  y  campo,  que  esta  en  cima  deste  monte,  es 
«  todo  muy  Uano  y  igual ;  hacia  el  medio  dia  se  levanta  mansa- 
«  mente  un  coUado  que  hermosea  todo  aquel  campo  y  sirve  como 
«  de  atalaya  de  donde  go^a  la  vista  humana  de  los  lejos  mas  apa- 
«  cibles  que  se  pueden  imaginar.  De  aquel  coUado  mana  una  fuente 
f.  3^v-  «  perenne,  abundantissima  y  clara  con  *tanta  agua  que  con  varias 
«  acequias  corre  todo  el  campo  regando  los  jardines  y  frutificando 
«  la  tierra,  y  alfin  despefiandose  de  lo  alto  del  monte.  Al  pie  del 
«  hace  un  pequeno  estanque  y  laguna,  de  la  qual  sale  un  rio  que 
«  viene  a  dar  en  el  Nillo. 

«  Para  subir  a  lo  alto  no  ay  senda  ni  camino  por  ninguna  parte, 
«  que  en  esto  se  engaiio  Francisco  Alvarez,  porque  esta  como  una 
«  torre  derecha,  y  por  esso  lo  han  minado  y  socobado  por  dentro 
«  de  la  peiia  viva,  haciendo  una  escalera  a  fuer^a  de  picos,  alma- 
«  danas  y  escodas,  la  qual  es  un  caracol  sin  escalones,  ni  gradas, 
«  sino  que  va  poco  a  poco  encaramandose,  tan  ancho,  tan  abierto 
«  y  bien  labrado   que   se   sube  a    cavallo  con   mucha  facilidad;   y 


78  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  para  la  luz  desta  escalera  ay  hechas  sus  saeteras  y  claraboyas 
«  anchas  por  de  fuera  y  por  de  dentro  y  angostas  en  el  medio,  muy 
largas  y  rasgadas  de  la  suerte  y  tra<;a  que  esta  la  escalera  de 
la  torre  mayor  de  la  ciudad  de  Sevilla.  Al  pie  desta  escalera  ay 
«  uqa  puerta  muy  hermosa  pero  fortissima  con  su  cuerpo  de  gnardia 
«  y  por  el  discurso  della  ay  sus  mesas  y  rellanos  que  sirven  de 
«  descanso.  En  la  mitad  de  la  escalera  ay  una  sala  grande  y  espa- 
«  ciosa,  cortada  y  labrada  de  la  misma  pena,  con  tres  ventanas, 
<t  y  llamolas  assi,  porque  quanto  mas  sube  la  escalera  tanto  son 
«  mayores  las  ventanas.  Aqui  tambien  ay  su  guarda.  Es  la  esca- 
'i  lera  de  alto,  quiero  decir  la  techumbre  del  suelo,  mas  de  lan^a 
«  y  media,  y  desta  suerte  sube  hasta  lo  alto  del  monte,  donde  ay 
«  tambien  su  puerta  y  guarda. 

«  El  ayre  que  corre  en  lo  alto  deste  monte  es  tan  delicado, 
«  puro  y  saludable,  que  jamas  se  apesta  ni  contamina  y  assi  de  or- 
«  dinario  viven  los  que  en  el  moran  larguissimas  vidas  y  muy  aben- 
«  tasjadas  y  unas  vegeces  muy  sanas  y  enteras,  sin  las  enferme- 
«  dades  y  achaques  que  suelen  acompaiiarlas.  En  lo  alto  no  ay  ciu- 
«  dad  ni  lugar  ninguno,  solo  muchos  palacios  reales,  cada  uno  de  por 
«  si,  que  son  34  y  son  como  unos  grandes  alca^ares,  unos  edificios 
«  sumptuosos,  altos,  apuestos,  hermosos  y  muy  capaces,  donde  residen 
«  con  su  gente  y  criados  los  Principes  del  imperio ;  la  demas  gente, 
t  que  son  soldados  y  guarda  del  monte,  habitan  en  tiendas  y  pa- 
«  vellones.  Ay  dos  templos  tan  antiquos  que  se  edificaron  antes 
X  de  la  reyna  Saba  en  honrra  del  sol  el  uno,  y  el  otro  en  honrra 
«  de  la  luna,  los  mas  sumptuosos  y  magnificos  que  ay  en  toda  la 
«  Ethiopia,  los  quales  templos,  quando  la  reyna  Candace  se  con- 
X  virtio  a  la  predicacion  *del  eunucho  y  se  bautizo,  los  consagro  f.  32. 
en  honrra  del  S.  Spirito  y  de  la  Cruz.  Consagrolos  tambien  de- 
spues  el  grorioso  apostol  y  evangelista  s.  Matteo,  quando  fue  a 
predicar  a  la  Ethiopia,  la  qual  tierra  le  cayo  en  suerte,  con  la 
misma  advocacion.  Ay  en  este  monte  muchos  jardines  vellos» 
huertas  de  mucha  frescura,  regalo  y  curiosidad,  Uenas  y  pobla- 
das  de  toda  suerte  de  arvoles  fructiferos  assi  proprios  de  la 
tierra  como  traidos  de  la  Europa;  perales,  camuesos,  y  otros  mu- 
chos.  Ay  todo  genero  de  agrura,  naranjas,  cidras,  ponciles,  limas  y 
las  demas.  Ay  jardineros  que  tienen  cuidado  de  hacer  sus  encafiados 
y  quarteles  llenos  de  jocunda  verdura.  Hallanse  en  este  monte  ar- 
boles  tan  raros  y  peregrinos  que  no  se  hallan  en  ninguna  parte  del 


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I 


LIVRO   I,   CAPITULO   IV.  79 

«  mundo.  Uno  dellos  es  el  qiie  Uaman  Cubayo :  su  fruta  es  en  el  color 
«  y  tamano  como  un  membrillo  y  tan  blando,  quando  esta  maduro 
«  como  una  serva,  la  cascara  amarilla,  la  carne  de  dentro  blanca  de 
«  tanta  dul^ura  y  suavidad  que  no  parece  sino  manjar  blanco  muy  bien 
«  hecho.  A  este  fruto  le  chupan  como  quien  come  servas  muy  ma- 
«  duras  Es  la  comida  mas  subtancial  y  saludable  que  se  halla  entre 
«  todas  las  frutas  del  mundo,  de  la  qual  dixo  el  gran  medico  Amato 
«  lusitano,  que  no  ay  comida  que  assi  conserve  la  salud  y  conforte 
«  y  ayude  la  naturalega  del  hombie,  y  que  no  se  espanta  que  vivan 
«  tanto  los  que  residen  en  aquel  monte,  porque  se  sustentan  desta 
«  fruta.  Y  sin  este  arbol  ay  otros  muchos,  que  solo  se  hallan  en  este 
«  monte,  en  particular  balsamos  que  son  muchos. 

«  Ay  fuentes  artificiales  de  mucha  labor  y  artificio  con  muchos 
«  canos,  cuyas  aguas  vienen  a  parar  en  muchos  estanques  grandes 
«  y  pequeiios,  abundantissimos  de  mil  suertes  de  pe^es  para  gusto 
«  y  entre[te]nimiento  de  aquellos  illustres  principes.  Y  como  de  las 
«  frutas  ay  algunas  que  solo  en  esto  monte  se  hallan,  assi  ay  aves 
€  tan  singulcu^es  que  solo  viven  y  andan  en  este  monte,  sin  jamas 

*  averlas  visto  en  otro  lugar  del  mundo.  Uno  como  un  cario,  cuyo 
«  canto  es  suavissimo  y  su  musica  tan  regalada  que  parece  que 
«  transporta.  Ay  otro  paxaro  del  tamafio  de  un  tordo  de  cuello 
«  levantado  y  erguido;  sus  plumas  de  varios  y  hermosos  colores, 
«  con  cresta  y  barbas  como  gallo,  de  la  cresta  se   levantan  cinco 

f.  32,v.  «  o  seis  plumas  grandecitas  como  ^gar^otas  mati^adas  de  varios  co- 
«  lores  tan  hermosos,  y  toda  la  pluma  tan  bella,  que  el  Emperador 
«  de  la  Ethiopia  las  presenta  como  un  precioso  don  a  otros  Reyes. 
«  Ay  tambien  muchas  dehesas  selvas  y  hervages,  donde  pasta 
«  mucho  ganado  de  toda  suerte,  grande  y  pequeiio,  para  sustento 
€  de  los  del  monte  bastante  y  muy  sobrado  y  por  los  baldios  y  tierra 
«  montada  anda  mucha  ca^a  de  toda  suerte,  gamos,  cor^os,  ciervos, 
«  cabras  monteses,  javalies,  que  los  tienen  alli  encerrados  como  en 
«  soto  y  para  todo  ay  bastante  lugar,  porque,  como  tengo  dicho, 

*  tiene  el  campo  20  leguas  de  circunferencia  y  rodeo.  En  fin  ay 
«  en  cima  del  monte  muchas  florestas  llenas  de  diversas  ca^as  para 

<  todo  genero  de  monteria  para  su  entretenimiento  y  para  todo  tie- 
«  nen  aparejo  de  perros   ventores,    lebreles,  y  sabuesos,   cogiendo 

<  perdices  a  cevadero  o  bebedero  con  redes,  con  la^os  o  con  per- 
A  digon  de  reclamo.  No  ay  animales  pon^onosos,  ni  bestias  fieras, 
«  sino  solo  animales  de  caga  para  deporte  y  recreacion.  Tambien 


8o  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  ay  mucha  tierra  desmontada  para  sembrados  de  todo  genero  de 
«  grano  y  legumbre,  la  qual  es  tierra  fructifera  y  de  buen  llebar. 
«  Finalmente  este  monte  es  un  lugar  de  tanto  regalo  y  delicias,  que 
«  no  me  admiro  que  los  doctores  le  llamen  parayso,  porque  le  con- 
«  viene  y  entalla  este  nombre  muy  al  justo  y  al  natural  ». 

Prosiguindo  isto  traz  muytas  regoes  pera  provar  como  Ihe  con- 
vem  ao  justo  este  nome  de  parayso  e  conclue  o  capitulo  dicendo: 
«  Esto  se  avera  en  el  monte  Amara,  porque  todo  el  ario  ay  fruta 
«  cogida  del  arvol  fresca,  higos,  melones  recien  cogidos,  havas  y 
«  garban^os  verdes  todo  el  afio  los  ay,  y  en  el  se  hacen  tres  se- 
«  menteras.  La  raijon  es  porque  es  continuo  un  tiempo  como  el  otono 
«  o  primavera;  y  ay  arboles  que  dos  y  tres  veces  al  aiio  producen 
«  fruto,  la  mitad  del  arbol  el  medio  ano  y  la  otra  mitad  el  otro 
«  medio  aiio,  porque  quando  el  sol  camina  y  buelve  de  tropico  de 
«  Capricomio,  la  parte  del  arbol,  que  mira  al  sur  y  medio  dia,  pro- 
«  duce  y  esta  llena  de  fruta,  quedando  el  otro  medio  como  si  fuera 
«  invierno ;  y  quando  el  sol  anda  hacia  el  tropico  de  Cancro,  la  otra 
«  mitad,  que  esta  hacia  el  norte  y  pollo  artico,  produce  fruto,  que- 
«  dando  la  otra  mitad  deshojada  y  como  seca;  y  quando  el  sol 
«  esta  en  la  equinocial,  la  copa  del  arbol  tiene  fruta,  quedando  las 
«  otras  ramas  que  estan  a  los  lados,  y  las  baxas  *sin  fruto  ni  hojas,  f.  35, 
«  de  suerte  que  todo  el  aiio  por  diciembrc,  por  mar^o,  por  junio, 
«  por  setiembre  ay  fruta  en  los  arboles,  sucediendo  unas  ramas  a 
«  otras  y  unos  frutos  a  otros.  De  donde  se  infiere  que  a  este  monte, 
«  por  su  fertilidad  y  regalo,  le  podriamos  dar  nombre  de  parayso  ». 
3.  Auctor   deacri-  Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta,  nam  continuadas 

bA  Guij^n^^pauperes  ^^^^  ^^^^  ^^^  tiene,  porque  em  algumas  partes  ficam  cumpridas  di- 

casas  et  duas  eccle-  gressoes,  que  faz,  e  so  tomei  o  que  referi  do  que  elle  chama  monte 

siaSy  quae    in    eius 

cacumine  inveniun-  Amara,  que  he  Guixen  Amba.  Mas  quam  apocrifa  e  fabulosa  seja 

*^''  a  informa^am,  que  sobre  esta  materia  teve,  se  vera  claramente  poUo 

que  agora  direi,  nao  saindo  hum  ponto  do  que  me  affirmaram  os 

Principes  que  acima  nomeei,  e  outros  homens  de  muyto  credito,  que 

viram  esta  fortale^a.    Digo  pois  que  entrc  as  Ambas,  que  ha  em 

Ethiopia,    nam   menos   fortes  que   Guixen   Amba,    esta  tem  muyto 

grande  nome  por  sua  fortale^a  e  por  se  guardar  em  ella  os  descen- 

dentes  dos  Emperadores  antiguos,  a  quem  pertence  o  imperio,  fal- 

tando  herdeiro  ao  que  o  tem,  como  adiante  declararemos.  Esta  no 

limite  de  hum  reyno  que  chamam  Amhara,  que  antiguamente  era 

casi  o  meio  do  imperio,  mas  agora  he  casi  o  estremo  pera  a  vanda 


r 


LIVRO  I,   CAPITULO  VI.  8l 

do  sul ;  porque  huns  gentios  que  se  chamam  Galas  foram  tomando 
por  aquella  parte  muyto  grandes  tcrras  poucos  tempos  ha,  por  esta- 
rem  os  Emperadores  ocupados  em  guerras  com  seus  proprios  ca- 
pitaes,  que  se  tinham  alevantado  no  reyno  de  Tigre,  em  Dambia 
e  outras  partes.  O  asento  desta  amba  he  em  huns  campos  nao 
muyto  chaos,  porque  tem  muytos  altos  e  baixos,  e  pera  oriente  como 
dous  tiros  de  espingarda  huns  montes  muyto  altos,  que  se  chamam 
Habela  e  outros  mais  afastados,  que  se  chamam  Acel  Amba;  pera 
as  outras  vandas  nam  ha  montes  senam  muyto  longe.  Sua  figura  he 
casi  como  cruz  e  a  cima  tera  de  cumprido  meia  legoa  pouco  mais 
ou  menos,  mas  poUo  pe  tem  muyto  grande  roda.  A  altura  he  tam 
grande  que  com  difficultade  chegara  funda:  toda  rocha  talhada  e 
por  algumas  partes  em  o  alto  vira  a  mesma  pedra  pera  fora,  de 
maneira  que  por  alli  he  impossivel  subirse,  mas  por  outra  parte 
subiram  antiguamente,  como  diremos  adiante.  Nam  tem  mais  que 
huma  entrada,  que  se  chama  Macaraquer,  e  em  baixo  no  prin- 
cipio  o  camino  he  largo  e  eissi  vai  subindo  hum  pouco  ate  chegar 
f.  33,v.  a  hum  tavoleiro  *piqueno  e  dalli  por  diante  tam  estreito  e  ingreme 
que  nam  se  pode  subir  sem  muyto  trabalho,  e  cissi  quando  querem 
levar  alguma  vaca  pera  matar  la  cima,  que  poucas  veces  o  facem, 
porque  as  matam  em  baixo,  a  amarram  com  cordas  e  a  levam  re- 
stando  casi  em  peso.  Em  o  alto  esta  huma  porta  e  casa,  em  que 
moram  as  g^ardas:  dentro  ha  muytas  humas  como  salas  cumpridas 
e  largas,  outras  redondas,  mas  todas  terreas  e  pobres  cubertas  de 
palha;  no  meio  esta  hum  tanque  grande  de  agoa  doce,  onde  labam 
os  pannos  e  hum  pouco  afastado  outro  piqueno,  de  que  bebem,  e 
segundo  alguns  dicem,  he  agoa  que  nace  alli,  meis  nam  corre,  nem 
ha  outra  nehuma  la  cima,  nem  peixe.  Perto  do  tanque  grande,  casi 
pera  o  leste,  se  vai  alevantando  hum  pouco  mais  a  terra  e  faz  como 
hum  oteiro  piqueno,  em  que  estam  edificadas  duas  igrejas  cubertas 
de  palha;  huma  se  chama  Egziabeher  Ab,  scilicet  «  Deos  Padre  >  e 
esta  he  de  madeira ,  a  outra  he  de  Nossa  Senhora,  e  hc  de  pedra 
muyto  boa  e  esta  pera  o  sul;  a  outra  casi  pcra  o  norte;  do  que 
trataremos  no  capitulo  siguinte.  Perto  dellas  pera  huma  vanda  mo- 
ram  os  frades  e  os  debteras,  que  sam  como  conigos,  mas  casados ; 
e  pera  outra  parte  os  que  decendem  dos  Emperadores  antiguos,  com 
suas  molheres  e  filhos,  a  quem  chaniam  Isrraelitas. 

Em  toda  esta  Amba  nam  ha  arvore  nenhuma  de  fruto,  so  huma      4.  Arborespaucae, 

_^  ■,  >s  j  j_  .r-e  fructiferis  nuUae, 

sorte  que  chamam  C090,  e  nam  se  dam  se  nam  em  terra  muyto  tria.  y^g^  mcdicinalis.   E 

C.  Bbccari.  /ier.  Aeih,  Script,  occ,  tued,  —  II.  zi 


82  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

leguminibus  crescit  Sam  arvores  ordinariamente  nam  demasiado  altas,  de  muytos  ramos 

solum    hordeum    et        -  j  r  ii_  'j  _^    i  i 

f^^  e  bem  copados ;  a  folha  cumprida  e  nam  mu^rto  larga  e  com  alg^m 

cavelinho  branco  no  pe.  Seu  fruto  nam  ha  a  que  o  comparar  em 
Portugal,  mas  quer  se  parecer  com  a  espiga  de  laba^a,  porem 
muyto  meds  cumprida  e  grossa.  Sua  amargura  he  tam  extraordi- 
naria,  que  excede  muyto  a  da  alozna;  e  com  tudo  isso  cada  dous 
meses  o  bebem  todos  desfeito  em  agoa  pera  huma  grave  doen^a, 
que  geralmente  tem  os  naturaes  de  Ethiopia,  que  sam  huns  bi- 
chos  como  lombrigas,  mas  muyto  cumpridos,  que  Ihes  criam  no  esto- 
mago,  parece  que  da  came  crua  que  comem,  porque  os  estrangeiros 
nam  tem  tal  cousa  e  he  tam  forte  micinha  que  alguns  morrem 
della  em  poucos  dias  botando  sang^e  por  la  boca ;  mas,  se  nam  a 
tomam  ao  tempo  que  disse,  ficam  muyto  magros  e  Ihes  vem  a  sair 
aquelles  bichos  pollas  narices.  Outras  arvores  ha  que  chamam  Ze- 
guebas  *muyto  altas,  mas  nam  dam  fruto;  he  madeira  branca  e  boa  f.  34. 
pera  edificios.  Tambem  ha  cedros,  nam  como  os  de  Espanha,  se- 
nam  silvestres  de  pouca  copa  e  muyto  altos,  e  de  todas  estas  ar- 
vores  poucas,  porque  o  campo  he  piqueno.  Semeam  tambem  alguma 
cevada  e  favas  huma  so  vez  no  anno  e  a  fora  isto  nam  ha  la  outra 
sementeira  nem  arvore  nenhuma,  mas  por  algumas  daquellas  vai 
subindo  huma  cousa  como  jazmim,  que  chamam  endod;  seu  fruto 
he  como  cachinlios  de  pimenta  e  servelhes  de  savam  pera  labar  os 
pannos  de  algodam. 

5.  Ex  animalibus  Animaes  sylvestres  nam  ha  nenhuns    mais  que   bugios  e  coe- 

sylvestribus   solum- 

modo  simiae,    ser-  Ihos,  e  nam  tem  as  orelhas  cumpridas  como  os  de  Espanha,  e  os 
pentes  et  cuniculi :  e  dedos  dos  pcs  e  maos  tambem  differentes.  Dos  domesticos  ha  car- 

domesticis    oves    et  ^ 

caprac.  neiros  e  cabras  poucas.  por  nam  haver  campo  onde  comam.  Alguns 

bois  levam  a  cima  com  cordas  pera  lavrar  a  terra  onde  semeam 
aquella  pouca  de  cevada  e  favas  que  disse  e  depois  os  facem  de- 
cer  com  as  mesmas  cordas,  por  tercm  la  pouca  herva  que  Ihes  dar, 
que  ca  nam  comem  farinha  nem  mantimento,  senam  so  herva  ou 
palha  do  campo  seca  ou  de  huma  cousa  muyto  miuda  mais  que  mo- 
starda,  que  semeam  e  chamam  tef.  Nam  ha  mulas,  nem  cavallos, 
nem  outros   animais  a  fora  destes  e  algumas   cobras   pe^onhentas. 

6.  Unde  explodi-  Esta  he  toda  aquella  grande  multidam  e  variedade  de  animaes, 

tur  fabulosa  descri-  i-t-jtt.  t  ^  1  ^  j 

ptio  Urretae.  ^^^  ^^^Y  L^is  de  Urreta  poem  sobre  esta  pedra ;  estas  sam  as  de- 

fesas,  as  florestas  e  praderias  cheias  de  diversas  sortes  de  caga  pera 
todo  genero  de  montaria  e  entretenimento ;  este  aquelle  esmero  de 
todos  os  jardins  floridos ;  estas  sam  as  fontes  artificiaes  de  grande 


kt 


LIVRO   I,   CAPITULO  VI.  83 

labor  com  muytos  canos  e  palhas  de  agoa  agradeveis  a  vista ;  esta 
he  aquella  fonte  christalina  que  sae  do  oteiro  e  rega  todo  este  pa- 
rayso ;  os  dous  tanques  que  disse,  cuja  agoa  de  nenhuma  maneira 
corre.  Quanto  a  arvore  da  vida,  que  poe  em  este  parayso,  cuja  fruta 
he  de  tanta  do^ura  e  suavidade  como  a  do  manjar  branco  muyto 
bem  feito  e  ajuda  de  maneira  a  naturecja  do  homem,  que  os  que 
a  comem  vivem  muytos  annos  sem  as  doen^as  e  achaques  que  acom- 
panham  a  velhicie,  sera  a  que  chamam  C096,  porque  os  que  la 
moraram  muytos  annos  dicem  que  nam  [ha]  alli  outra  que  de  fruito ; 
mas  enganouse  no  que  diz  da  docjura,  porque  nam  ha  cousa  mais  amar- 
gosa  no  mundo,  e  posto  que,  como  ja  disse,  a  tomem  por  micinha, 
f.  34»v.  se  se  descuidam  hum  pouco  acrecentando  *a  medida,  cortalhes  os 
figados  e  morrem  em  poucos  dias,  lan^ando  sangue  poUa  boca,  como 
eu  tenho  visto.  Tampouco  ha  quem  saiba  dar  novas  da  outra  my- 
steriosa  arvore,  que  diz  que,  quando  o  sol  anda  da  vanda  do  sul, 
a  metade  da  arvore,  que  cae  pera  aquella  parte,  tem  folhas  e  da 
fruto,  e  a  outra  metade  esta  como  seca,  e  quando  o  sol  passa  a 
vanda  do  norte,  a  metade  da  arvore  desta  parte,  que  antes  ficava 
como  seca,  produce  folhas  e  da  fruto  e  a  outra  metade  esta  como 
seca,  e  quando  o  sol  esta  em  a  equinocial,  a  copa  da  arvore  tem 
fruta,  ficando  os  ramos  das  ilhargas  sem  folha.  Nenhum  de  muytos, 
a  quem  preguntei,  por  terem  entrado  em  Guixem  Amba,  nem  dos 
que  la  moraram  muytos  annos  achei  que  tivese  visto  esta  maravi- 
Ihosa  arvore,  nem  ouvido  nunca  falar  nella ;  antes  alguns  se  riram 
muyto,  como  se  Ihes  preg^ntara  algum  gran  disparate.  Por  onde 
ja  que  nam  se  acha  no  parayso  de  Guixen  Amba,  onde  o  Author 
a  poe,  certo  he  que  nam  se  ha  de  achar  em  parte  nenhuma  do 
mundo.  Os  pa^os  reays,  que  faz  como  grandes  alca^ares,  altos  e  sum- 
ptuosos,  ja  disse  que  sam  tristes  casas  terreas  cubertas  de  palha  ; 
nem  ha  la  cima  aquelle  fermoso  muro  que  pinta,  nem  ainda  de  pe- 
dra  ensosa,  nem  menos  aquella  artificiosa  escada  pera  subir  por- 
dentro ;  pois  o  caminho  e  entrada  he  por  fora  e  tam  aspero  como 
dissemos ;  nem  os  soldados  habitam  em  tendas,  nem  ao  menos  em  as 
invemadas,  que  sam  muyto  grandes,  as  puderam  ter. 

Todas  estas  cousas  da  a  entender  pag.  91,  que  escreveo  por  7-  Quae  de  ferti- 
rela^am  de  Joam  Balthesar,  de  quem  diz  que  esteve  em  Guixen  Balthesar^ctulitper- 
Amba  muyto  tempo  sirvindo  a  Alexandre,  antes  que  fosse  empe-  P*"™  Urreta  trans- 

•^  ^  T  x-        tulitadMontemOui- 

rador,  e  depois  subio  muytas  veces  por  seu  mandado.  Mas  eu  nam  x6m  quem  ipse  Mon- 
me  posso  persuadir  que  Joam  Balthesar  (posto  que  mentiroso)  Ihe  **"    ™"  *^^*    ** 


84  HISTORTA   DE   ETHIOPIA 

dissese  que  estavam  em  Guixen  Amba  todas  aquellas  cousas,  se- 
nam  que  Ihe  falou  de  todo  o  reyno  Amhara,  e  elle  entendeo  de 
so  Guixen  Amba;  porque,  ainda  que  algumas  cousas  sejam  fjbu- 
losas,  como  que  aja  aquellas  duas  arvores  e  pereiras,  camuesos, 
palmeiras,  balsamos,  fontes  artificiaes  e  jardins  como  os  que  pinta, 
outras  muytas  das  que  diz  se  acham  em  aquelle  reyno,  que  he  muyto 
fertil  de  frutas  e  mantimentos  e  ha  muytos  dos  animaes,  que  nomea, 
domcsticos  c  bravos.  Tambem  o  paassaro  [stc]  que  diz  que  he  como 
hum  tordo  com  crista  e  barbas  como  gallo,  se  acha,  nam  em  Guixen 
Amba,  senam  perto  em  terra  quente ;  mas  nam  Ihe  saem  as  penas 
que  diz  da  cresta,  senam  de  detras,  e  viram  sobre  ella ;  nem  *sam  f.  35- 
de  tanta  ostima  como  affirma,  posto  que  fermosas.  E  o  mesmo  au- 
thor  mostra  que,  falandolhe  Joam  Balthesar  das  cousas  do  reyno, 
entendeo  que  de  so  Guixen  Amba ;  porque  o  titulo  do  cap.  8,  onde 
trata  esta  materia,  diz:  «  Do  montr  Amara  e  de  sua  fortaleca  e  fer- 
«  tilidade  »;  e  este  nome  nam  pertence  a  aquelle  monte  so,  se  nam 
a  todo  o  reyno.  E  pag.  97  diz:  que  ate  o  nome  que  os  theologos 
dam  ao  parayso  terreal,  que  ho,  hortus  delitiarum,  pertence  a 
este  monte,  porque  em  a  lingoa  de  Ethiopia  a  dicgam  «  Amara  »  si- 
gnifica  esto  mesmo  «  horto  de  mimos,  deleitos  e  recrea^oes  » .  Por 
onde  he  certo  que  se  equivocou,  entendendo  de  so  aquelle  monte 
o  que  Ihe  disseram  de  todo  o  reyno,  ainda  que  nam  se  ha  de 
escrever  Amara,  nem  menos,  como  elle  emmenda,  Zahamahahra, 
senam  Amhara,  que  assi  se  chama  aquelle  reyno,  e  quer  dicer, 
se  em  todo  rigor  declaramos  esta  palavra  Amhara,  «  pareceo  bem  > 
ou  «  fermosa  »  ;  mas  tomase  por  cousa  fermosa,  e  por  isso  Ihe  de- 
ram  este  nome  [a]  aquelle  reyno  que  he  muyto  fertil  e  fermoso. 

8.  Canes   in   Ac-  Com  tudo,  ainda  que  o  author  se  eqiiivocase  com  este  verbo 

thiopia  non  rari,  ut.,A«  .  jj^-r. 

Urretadizit  sed  in-  Amhara,  huma  cousa,  que  aqui  poe,  ouvera  de  advertir  bem,  pera 

numeri.    Item    non  ^am  se  contradiccr  adiante,  e  he  a  que  diz  pag.  96,  que  os  Prin- 

Alexander,  sed  Na6d  ^    .    a       *         a 

ultimua     imperator  cipes   que   se   guardam   em   Guixcn  Amba   tem   caes  ventores,  le- 
^ucms    ab    Ambft  j^j-gQg  g  sabusos  pera  suas  monterias  e  entretenimento ;  e  pag.  254 

affirma  que  em  toda  Ethiopia  nam  ha  caes  e  que,  se  tracem  alguns, 
como  acontece  chegar  naos  de  Europa  e  deixar  alguns  caes  de  Ir- 
landa  e  Inglaterra,  dentro  de  hum  mes  se  vam  consumindo  e  mor- 
rem.  Mas  a  verdade  he  que  em  toda  Ethiopia  sam  tantos  os  caes, 
que  nam  tem  conto,  como  adiante  diremos.  Tambem  he  falso  o 
que  aqui  diz  que  Joam  Balthesar  sirvio  em  esta  fortale^a  Guixen 
muyto   tempo   a   Alexandre,  antes   que   fosse  Emperador;   porque, 


LIVRO   I,   CAPITULO    VI.  85 

como  ja  notamos  no  cap.  i,  o  derradeiro  principe,  que  de  la  tira- 
ram  pera  Emperador,  foi  Naod,  o  qual,  como  consta  dos  Catalogos 
dos  Emperadores,  que  pusimos  no  capitulo  precedente,  avia  1 1 8  an- 
nos  que  saira  de  la,  quando  frey  Luis  de  Urreta  imprimio  sua  Hi- 
storia,  que  foi  o  anno  de  610,  e  Joam  Balthesar  caminhava  entam 
pera  os  70  como  elle  diz  pag.  7;  por  onde,  alguns  50  annos  antes 
que  nacese  Joam  Balthesar,  tiraram  a  este  principe  de  Guixen  Amba 
pera  que  fosse  Emperador  e  nunca  mais  saio  de  la  outro  pera  isso. 

Tambem  se  enganou  muyto  Francisco  Alvarez  no  que  diz  fol.  77,      9«  Franciscus  Al- 

*ji  1'^«  ^  '      '  ^  jj  t_  varcz  quoque  erravit 

f-  35»v.  *de  sua  histona,  que  estes  pnncipes  cstavam   guardados   em   hum  circa  Guixto  Ambft 
valle  entre  duas  serras  muyto  asperas,  que  se  fecha  com  duas  por-  prop^cr    imperitiam 

•^  *^  ^  '^  Imguae  aethiopicae. 

tas  e  que  a  serra  tem  a  roda  quince  dias  de  caminho  e  elle  cami- 
nhara  poUo  pe  della  dous  dias.  Mas  os  Principes  nam  estam  em 
valle,  senam  no  alto  de  Guixen  Amba,  e  as  serras,  que  elle  vio, 
seriam  humas  muyto  altas,  que  estam  nao  muyto  longe  e  se  cha- 
mam  Habela  e  tem  passos  muy  asperos  e  estreitos,  onde  moram 
muytos  dos  que  sam  obrigados  a  vigiar  Guixen  Amba,  porque  alli 
tem  suas  terras,  e  como  Ihe  disseram  que  ninguem  podia  passar 
dalli  pera  dentro  so  pena  de  morte  e  nam  se  via  daquella  parte 
Guixen  Amba,  entenderia  que  no  valle  que  esta  entre  aquelias  ser- 
ras  se  guardavam  os  Principes;  o  que  facilmente  Ihe  podia  suce- 
der,  pois  nam  sabia  a  lingoa  da  terra. 


^ 


CAPITULO  VII. 

Em  que  se  trata  das  duas  igrejas  e  mosteiros 

que  ha  em  Guixdn  Amb&. 


Pera  que  milhor  possamos  declarar  de  onde  tiveram  principio       x.  Amiquitus  Ae- 

^.  .  V  .  •      thiopes    more    alio- 

estas   igrejas  e  quam  antiguas  sejam,  seia   bem  tracer  a  memoria  rum  gentilium  supra 
o  que  comummente  todos  sabem,  que  sempre  foi  costume  da  cega  yertices      montium 

^  ^      ,  idolis  sacnficare  so- 

gentilidade  adorar  seus  falsos  idolos  e  ofFerecerlhes  sacrificios  em  iiti:quodettamnunc 

os  altos  montes  e  debaixo  das  arvores  frescas  e  sombrias ;   o  que     ^*'"  praestant. 

tocou   o   propheta   Hieremias,  quando,  reprehendendo  ao   povo  de 

Isrrael,  por  ter  caido  na  mesma  cegueira,  Ihe  disse  com  grande  dor 

e  sentimento  :   «  In  omni  coUe  sublimi  et  sub  omni  ligno  frondoso 

tu   prosternebaris    meretrix  »  ;  cap.  2^,  O  que   sempre  esteve  muy 

arraigado  em  Ethiopia  como  may  da  idolatria,  se  for  certo  que  seu 

rey   Menna   a   inventou,  como   teve   pera   si  Diodoro  livro  i  e  4, 

segundo  refer  frey  Luis  de  Urreta  pag.  29;  e  quando  Ethiopia  nam 

fosse  inventora,  he  certo  que  entraram  nella  muytos   generos  dia- 

bolicos  de  idolatria,  que  ainda  agora  estam  tam  fixos  em  muytas 

terras  de  christaos,  onde  ha  gentios,  que  nam  ha  poder  acabar  de 

tirar  que  nam  adorem  as  cobras  e  outros  animaes,  nem  ofFere<;am 

muytcis  sortes  de  sacrificios  ao  demonio  em  as  fontes  do  Nillo  e  nos 

mais  altos  montes  que  podem  achar.  Nem  Ihe  faltam  ao  demonio 

ministros,  que   enganem  esta   barbara   gente,  antes   ha   entre  elles 


88  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

muytos  feiticeiros,  que  com  artes  diabolicas  Ihe  facem  crer  suas 
falsedades  e  mentiras,  particularmente  com  huma  que  acostumam 
os  que  chamam  Agous  do  reyno  de  Gojam,  e  he  que  em  huma 
das  festas  que  facem  a  seus  idolos,  em  que  sacrificam  *muytas  f.  36. 
vacas,  ajuntam  muyta  lenha  por  mandado  de  seu  feiticeiro  e,  como 
acava  o  sacrificio,  se  cobre  com  a  tea  de  sebo  de  huraa  ou  duas 
vacas  e  asentandose  em  huma  cadeira  de  ferro  no  meio  de  toda 
aquella  lenha,  manda  dar  fogo  e  esta  entre  aquellas  chamas  ate 
que  se  acava  de  queimar  a  lenha,  sem  se  Ihe  derreter  o  sebo  que 
tem  cuberto,  com  o  que  aquelles  miseraveis  ficam  enganados. 

2.  Eventus  mira-  Contando  estas  cousas  hum  gentio,  homem  grande,  a  hum  cle- 
bilis   cuiusdam   cle-  .  t  i*^  ^       11  ji  1      • 

rici    cum     quodam  J"!?*^»  pera  engrandecer  sua  maldita  secta,  Ihe  respondeo  o  clerigo, 
circulatore  Agaus.      q^^^^  ge  elle  o  levase  la  seguramente  o  dia  daquella  festa,  mostraria 

claramente  como  tudo  aquilo  era  engano  e  falsidade  daquelle  feiti- 
ceiro,  que  tinha  pacto  com  o  demonio.  Aceitou  o  gentio,  por  estar 
muy  confiado  que  nenhum  poder  tinha  o  clerigo  contra  seu  feiti- 
ceiro,  e  prometio  do  defender  de  maneira  que  ninguem  Ihe  ficesse 
mal;  e  chagando  o  dia,  foi  com  o  gentio  ao  lugar  do  sacrificio,  le- 
vando  escondido  hum  corninho  de  agoa  benta,  e  acendendose  o  fogo, 
como  acostumavam,  vio  que,  por  mais  que  se  alevantava  a  chama, 
nam  facia  dano  ao  feiticeiro;  pollo  que,  tirando  a  agoa  benta,  a  botou 
sobre  o  fogo,  dicendo  aquellas  palavras  do  Psalm,  67:  «  Exurgat 
Deus,  et  dissipentur  inimici  eius,  et  fugiant  qui  oderunt  eum  a  facie 
eius.  Sicut  deficit  fumus  deficiant,  sicut  fluit  cera  a  facie  ignis,  sic 
pereant  peccatores  a  facie  Dei  ».  Nam  tinha  bem  dito  isto,  quando 
ja  o  feiticeiro  ardia,  e  sem  Ihe  poderem  valer  os  circunstantes,  em 
pouco  espa^o  se  fez  em  cin^a.  O  que  causou  a  todos  grande  espanto ; 
mas  em  lugar  de  se  converterem,  vendo  aquella  maravilha,  se  acen- 
deram  em  tam  grande  raiba  e  ira,  que  ouveram  de  despeda^ar  o 
bom  clerigo,  se  o  gentio,  que  era  poderoso,  nam  o  defendera  como 
tinha  prometido. 

3.  Ad   toUendam  Este  infernal  fogo  da  idolatria  ardeo  sempre  em  Ethiopia  sem 

memoriam  idoli  Da-  ...  -r^  ji 

rhft  aedificat  Laliba-  ^  averem    nunca  podido   apagar  os  Emperadores,  por  mais  que  o 
la  in  vertice  Guixftn  prucuraram  assi  com  armas  como  con  doctrina,  ainda  que,  polla  mise- 

templum   Deo   Patri 

et  aliud  B.  Virgini.   ricordia  do  Senhor,  se  vai  agora  apagando  entre  os  Agous  do  reyno 

de  Gojam,  por  meio  de  dous  Padres  meus  companheiros  que  la  an- 
dam,  como  diremos  na  fim  desta  historia  e  tem  edificado  igrejas 
nos  principaes  lugares  onde  faciam  suas  feiticerias,  pera  tirar  a 
memoria  dellas,  que  he  o  meio  de  que  tambem  usaram  os  Empe- 


r 


LIVRO  I,   CAPITULO   VII.  89 

radores  pera  o  mesmo  fim,  edificandoas  em  os  montes  onde  oife- 
reciam  sacrificios  a  seus  idolos;  o  que  particularmente  ficeram  em 
f.  36,v.  Guixen  Amba  onde,  por  *ser  monte  tam  sinalado  em  altura  e  for- 
talecja,  como  dissemos  no  capitulo  precedente,  faciam  os  gentios 
antiguamente  grandes  sacrificios  a  hum  celebre  idolo,  que  la  tinham, 
a  quem  chamavam  Darhe,  nam  dentro  de  sumptuosos  edificios, 
como  diz  frey  Luis  de  Urreta  cap.  9,  senam  debaixo  de  liuma  mota 
muylo  grande  que  chamam  Endod,  que,  como  ja  dissemos,  nam  se 
faz  arvore,  mas,  se  acha  em  que  se  encostar,  sobe  como  jazmin  ou 
edra  e  faz  boa  e  fresca  sombra.  Mas  pera  tirar  a  lembran^a  deste 
maldito  idolo  edificou  no  mesmo  lugar  huma  igreja  pera  Ethiopia 
grande  e  formosa  o  emperador  Lalibela,  que  reinou  pollos  annos 
de  1210,  e  a  dedicou  a  Deos  Padre  e  assi  Ihe  pus  nome  Egzia- 
beher  Ab,  scilicet  «  Deos  Padre  »  ;  e  porque  em  esta  nam  deixavam 
entrar  as  molheres  a  comungar,  fez  a  gente  da  terra  outra  piquena 
nam  muyto  afastada  com  invoca^am  de  Nossa  Senhora. 

Estas  foram  as  primeiras  igrejas  que  sc  edificaram  em  Guixen  4*  Na6d  et  OnAg 
Amba.  Depois  fez  oragam  em  a  de  nossa  Senhora  o  emperador  aedificat  in  amplio- 
Na6d  sendo  principe,  e  prometeo  de  facer  alli  igreja  grande  se  a  remformamprimum 

templumy     quod     a 

Virgem  gloriosa  Ihe  alcan^ase  o  imperio :  e  dalli  a  hum  anno  o  ti-   Granh   postea   igne 

raram  pera  Emperador.  PoUo  que  mandou  derrubar  aquella  igreja  ^^™  ustum  est. 

e  facer  outra  grande;  mas  antes  que  se  acabase    morreo,  e  depois 

a  acabou  seu  filho  Onag  Qagued,  que  primeiro  se  chamava  David. 

He  redonda  como  meia  laranja,  de   pedra   branca  muyto   fermosa, 

e  tem   duas  ordens  de  colunnas  de  pedra  a  roda.   Sobre   as  intc- 

riores  huma  abobeda  da  mesma  pedra,  e  no  meio  esta  hum  altar  a 

que  se  sobe  por  sete  degraos.  O  retablo  sam  quatro  paineis  de  pincel 

nam  muyto  grandes,  hum  de  nossa  Senhora,  outro  de  Christo  N.  S.°' 

crucifigado,  outro  de  sam   Miguel,  e  outro  de  sam   Jorge,  e  todos 

se  tiram  e  poem    quando   querem.   A  segunda   ordem  de  colunnas 

faz  tambem  circulo,  mas  nam  tem  abobeda,  senam  madeira.  Entre 

huma   ordem  e  outra  ha  sete   covados  de  distancia;  depois  outros 

sete  covados  mais  pera  fora  esta  fcita  parede  a  roda  com  suas  por- 

tas,  e  dalii  pera  dentro  nam  pode  entrar  quem  nam  tem  ordens  de 

diacono ;  que  as  de  subdiacono  nunca  as  dam  os  Abunas  separada- 

mente,  antes  muytos  tem  peia  si  que  nam  dam  mais  que  de  diacono, 

como  veremos  no  2  livro.  Os  demais  homens  e  molheres  ficam  fora 

em  hum  alpendre,  que  esta  a  roda  e  toda  a  igreja  por  cima  esta 

cuberta  de  palha,  pollo  que  fica  tam  escura  dentro  que  nam  se  pode 

C.  Bbccari.  Rer,  Aetk,  Script,  occ,  tned,  —  II.  12 


90  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

ler  sem  candea.  Esta  igreja  dicem  que  quis  queimar  hum  capitam 
del  Rey  de  Adel  que  se  chamava  Granh,  que  la  subio,  como  adiante 
diremos,  mas  nam  pode,  ainda  que  tomou  fogo  *a  madeira  do  tecto  f.  37. 
do  alpendre  e  oje  se  vee  comegada  a  queimar ;  que  de  proposito  a 
deixaxam  assi  pera  lembran^a  de  que  nossa  Senhora  librou  sua  casa 
do  fogo  dos  mouros.  Mas  a  de  Deos  Padre,  que  fez  Lalibela,  quei- 
maram  toda  e  depois  ficeram  outra  de  madeira  piquena  e  cuberta 
de  palha. 

5.  De  monachis  et  Destas  duas  igrejas  tem  cargo  frades  e  clerigos:  estes  sam  ca- 

clericis     qui    custo-         ja^-  ^^  n/  jj-  j 

diunt  ambas  Eccle-  sados.  Antiguamente  estavam  nellas  (segundo  dicem  quando  muyto 
8****  catorce  frades  e  moravam  perto  dellas  em  casinhas  terreas  cubertas 

de  palha ;  agora  estam  seis  e  de  certo  em  certo  tempo  se  vam  estes 
e  vem  outros  dos  mosteiros  que  estam  embaixo  no  campo.  Os  cle- 
rigos  sam  trinta  e  o  superior  delles  se  chama  Lica  Cahenat,  sci- 
licet  «  Lica  dos  clerigos  ».  Parece  que  corresponde  a  Prior.  Estes 
estam  de  ordinario  la  cima  e  moram  com  suas  molheres  em  casi- 
nhas  como  as  dos  frades,  cujo  superior  se  chama  Memeher,  scilicet 
«  mestre  ».  Toda  quanta  gente  mora  a  cima,  homens  e  molheres, 
seram  docentos,  mas  antiguamente  eram  muytos,  como  diremos 
adiante  no  capitulo   10. 

6.  Refenintur    ea  Do  que  temos  dito  se  vee  claramente  quam    enganossa  infor- 
vh^^cYK»  ^orii^nem  ma^am  deo  Joam  Balthesar  a  frey  Luis  de  Urreta  sobre  estes  edifi- 

et  stnicturam   ista-  cios,  pois  diz  pag.  93  que  sam  dous  templos  tam  antiguos,  que  se  edi- 
rum  ecclesiarum   et  <-.  1  1  j  1 

confutantur.  ficaram  antes  da  reynha  Sabba,  hum  em  honrra  do  sol  e  outro  em 

honrra  da  lua,  os  mais   sumptuosos  e  magnificos   que  ha  em  toda 

Ethiopia;  os  quaes  a  reynha  Candace,  quando  se  convirtio  e  bau- 

tizou  polla  prega^am  do  eunucho,  os  consagrou  em  honrra  do  Santo 

Spirito  e  da  sancta  Cruz,  porque,    subindo  ella  la  cima  a  bautizar 

os  da  linea   imperial  e  estirpe  de  David,  que  alli  estavam    guar- 

dados,  como  estam  agora,  estando  ella  em  este  santo  exercicio  bau- 

tizando  aos  Principes,  vio  que  andava   avoando  huma  fermosisima 

pomba  toda  ardendo  em  vivo  fogo  e  lanQando   raios  de  luz  seme- 

Ihante  a  aque  representou  o  S.  Spirito  em  sua  vinda  sobre  os  Apo- 

stolos,  e  depois  de  bom  espa^o  que  audou  pollo  ar  a  vista  de  todos, 

se  asentou  sobre  o  mais  alto  do  templo  do  sol.  Por  isto  a  Reynha 

consagrou  aquelle  templo  ao  Santo  Spirito,  e  o  da  lua  a  s."'*  Cruz. 

E  deppis  os  consagrou  o  Evangelista  s.  Matheus  com  a  mesma  ad- 

voca^am,  quando  foi  a  pregar  a  Ethiopia.  E  mais  adiante  pag.  loi, 

onde  trata  isto  de  proposito,  diz  assi: 


LIVRO   I,    CAPITULO    VII.  91 

«  Estas  dos  iglesias,  que  la  una  se  intitula  del  S.  Spiritu  y  la 
«  otra  de  S.**  Cruz,  son  las  mas  sumptuosas  y  magnificas  que  ay 
«  en  toda  la  Ethiopia,  los  mas  altos,  hermosos  y  apuestos  edificios, 
«  los  de  mejor  tra^a,  artificio  y  architectura,  y  los  mas  ricos;  por- 
«  que,  como  los  antigxios  los  hicieron  en  honrra  del  sol  y  de  la 
f.  37.V.    «  luna,  que  eram  sus  dioses  mayores,  echaron  el  resto  de  *sus  ri- 

<  que^as  los  Emperadores  antiguos  i^era  su  adorno  y  hermosura,  y 
«  despues  aca  siempre  se  han  ido  perficionando.  Sera  cada  una  de- 
«  stas  dos  iglesias  en  grandega  y  tamaiio  a  la  medida  de  la  santa 
«  y  magnifica  iglesia  mayor  de  Sevilla ;  solo  se  diferencian  en  que 
«  no  tienen  sino  tres  naves,  cuya  cubierta  es  de  bobeda  de  piedra, 
«  y  carga  sobre  paredes  muy  anchas  y  fuertes,  sobre  muchas  co- 
«  lunas  muy  hermosas  y  ricamente  labradcis ;  las  piedras  todas  son 
«  preciosas,  jaspes,  alabastros,  marmoles,  porfidos  y  muchas  de 
«  granate  fino,  que  en  ciquel  tiempo  no  las  conocian.  Hallanse  gran- 
«  des  peda^os  en  el  Rio  Negro,  y  otras  muchas  piedras  de  mucha 

<  hermosura  y  valor,  que  puestas  en  orden  hacen  obra  y  atavian 

<  mucho  el  hedificio.  Ay  muchas  capillas  muy  doradas  con  sus  cor- 

<  nijas,  labores,  relexos  .de  grande  tra^a  y  architectura,  con  sus  al- 
«  tares  de  pictura  de  pincel.  Y  junto  con  estos  dos  templos  se  han 
«  labrado  dos  monasterios  de  religiosos  monges  de  s}^  Anton,  los 
«  quales  son  de  los  mas  hermosos  y  gallardos  que  tiene  la  dicha 
«  orden,  teniendo  muchos  y  de  mucha  magestad.  En  cada  uno  dellos 
«  ay  cavalleros  militares  comendadores  de  la  Cruz  de  s.*°  Aiiton  y 
«  ay  monges  sacerdotes  que  tambien  son  cavalleros  de  la  misma 
«  orden,  y  tambien  tienen  legos  y  familiares  que  llevan  el  Tau  en- 
«  tero  de  santo  Anton  sin  las  florecitas  que  llevan  los  cavalleros 
«  y  monges  sacerdotes.  Avra  en  cada  convento  entre  todos,  com- 

<  prehendiendo  estos  tres  estados,  cerca  de  mil  y  quinientos,  de 
«  suerte  que  entre  los  dos  monesterios  avra  tres  mil  Religiosos,  los 
«  quales  siempre  estan  en  lo  alto  del  monte  assistiendo  al  servicio 
«  de  sus  iglesias  y  monesterios  y  al  de  aquellos  illustrissimos  Prin- 
«  cipes.  Ay  en  cada  monesterio  dos  abbades,  uno  espiritual,  que  le 
«  llaman  en  su  lengua  Abbas,  y  otro  abbad  militar  de  solos  los 
«  cavalleros  y  nombranle  Abbas  Coloham,  y  el  mayor  es  el  espi- 

<  ritual  *. 

Ate  aqui  sam  palavras  do  Author,  que  se  se  cotejarem  com  o 
que  a  cima  dissemos,  se  vera  quam  g^ande  ficcjam  e  patranha  he 
o  que  aqui  meteo  em  cabe^a  a  frey  Luis  Joam  Balthesar ;  pois  nam 


92  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

somente  antes  da  reynha  Sabba,  mas  nem  ainda  depois  ouve  nunca 
templos  de  idolos,  nem  menos  igrejas  ate  o  emperador  Lalibela, 
que  ha  pouco  mais  de  400  annos  que  as  come^ou  a  hedificar.  Por 
onde  mal  as  podia  dedicar  a  reynha  Candace  ao  S.  Spirito  e  a  santa 
Cruz,  pois,  demais  de  que  nam  tem,  nem  tiv^eram  nunca  taes  nomens, 
senam  Egziabeher  Ab,  scilicet  «  Deos  Padre  »  e  Nossa  Senhora,  a  rey- 
nha  foi  mais  de  mil  annos  antes  em  tempo  dos  Apostolos,  porque  santo 
Philippe  bautizou  ao  eunucho  que  a  convirtio,  nem  ella  podia  bau- 
tizar  em  aquelle  monte  de  Amhara  os  da  linea  imperial  e  estirpe 
de  David,  porque  o  primeiro  que  os  comegou  *a  meter  la  foi  Udm 
Arad,  que  meteo  seus  irmaos  poUa  re^am  que  dimos  no  fim  do  ca-  f.  38. 
pitulo  I,  e  isto  foi  pollos  annos  de  1295.  Nem  sam  Matheus  podia 
consagrar  aquellas  igrejas,  pois  se  ficerao  tantos  tempos  depois  de 
sua  morte.  Antes  muytos  frades  velhos,  que  sabem  as  historias  de 
Ethiopia,  me  disseram  por  veces  que  s.  Matheus  nam  chegara  a 
aquellas  terras  do  reyno  do  Amhara. 

Quanto  ao  que  diz  dos  cavalleiros  militares  comendadores  da 
Cruz  de  s.*°  Antam  e  os  monges  sacerdotes,  que  tambem  sam  ca- 
valleiros  e  da  mesma  Ordem,  no  fim  do  z^  livro  veremos  quam  fa- 
bulosa  fabula  seja  esta,  porque  nem  ha,  nem  ouve  nunca  em  Ethiopia 
tal  modo  de  Religiam. 


CAPITULO  VIII. 


£m  que  se  trata  da   livraria  de  Guix6n  Ambli. 


As  fabulas  e  mentiras  de  Joam  Balthesar  (se  todas  sam  suas)      x.  Cur  Auctor  rc- 

rT-jTT^  ■!_  j.  j.     '      futet  ea,  quae  com- 

que  moveram  a  frey  Luis  de  Urreta  a  escrever  sobre  esta  matena  nientus   est    Urreta 
hum  capitulo  muy  cumprido,  me  obrigaram  a  mi  a  facer  este,  pu-  c*^.*^     bibliothecam 

existentem    in    Gui- 

dendose  declarar  tudo  no  precedente  junto  com  o  que  dissemos  das  xftn  AmbA. 
igrejas  (onde  elle  affirma  que  esta  a  livraria  e  se  guardam  os  the- 
souros  do  Emperador),  nem  fora  necessaria  muyta  escriptura,  se  se 
ouvera  de  contar  singelamente  a  verdade  do  que  passa.  Mas  por- 
que  diz  muytas  cousas  tam  fora  della,  que  nam  he  bem  que  fiquem 
sem  se  declarar,  fa^o  esta  distingam  de  capitulos,  em  que  primei- 
ramente  porei  o  que  elle  diz,  com  a  mayor  brevedade  que  puder, 
e  depois  o  que  passa  a  cerca  desta  materia. 

Tendo  pois  falado  o  Author  da  livraria  de  Alexandria,  em 
que  diz  avia  setecentos  mil  volumens  de  livros,  e  da  livraria  de  Con- 
stantinopla,  em  que  estavam  cento  e  vinte  mil  livros,  diz  assi  pa- 
gfina  103: 

«  Estas  famosas  librerias  y  todas  quantas  han  tenido   nombre      a.  Descriptio   Bi- 

r  . .  j  1      r  1      •         •  bliothecae  ab  Urre- 

«  y  fama,  no  tienem    que  ver  y  perderan   la  fama  y  gloria,  si  se  ^  facta. 
«  pusieren  en  cotejo  con  la  libreria  que  el  Preste  Juan  tiene  en  el 
«  monesterio  de  s.'*  Cruz  del  monte  Amara,  porque  los  libros  que 
«  tiene  son  innumerables  y  no  ay  quenta.  Basta  saber  que  la  reynha 


94  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  Sabba  empego  a  juntar  libros  de  muchas  partes  y  por  en  ella 
«  muchos  libros  que  le  dio  Salomon  y  otros  que  le  embiava  a  la 
«  contina,  y  de  aquellos  tiempos  siempre  los  Emperadores  han  ido 
«  afiadiendo  libros  con  grande  cuidado  y  curiosidad.  Son  tres  salas 
«  grandissimas  cada  una  de  mas  de  docicntos  passos  de  largo,  donde 
«  ay  libros  de  todas  ciencias,  todos  en  pergamino  muy  sutiles,  delga- 
«  dos  y  brunidos,  con  mucha  curiosidad  de  letras  doradas  y  otros  la- 
«  bores  y  lindec^as,  unos  enquadernados  ricamente  con  sus  tablas, 
«  otros  estan  sueltos  como  processos  rollados  y  metidos  dentro  de 
«  unas  *bolsas  y  talegas  de  tafetan.  De  papel  ay  muy  pocos,  y  es  f.  38,v. 
«  cosa  modcrna  y  muy  nueva  entre  los  de  Ethiopia.  El  aranzel, 
«  que  se  truxe  al  Sumo  Pontifice  Gregorio  13°  es  el  siguiente  ».  Aqui 
poe  hum  Catalogo  de  livros  muyto  cumprido,  que  me  pareceo  des- 
necessario  trcsladar,  porque  os  menos  dos  que  aponta  se  acha- 
ram  em  toda  Ethiopia,  que  nam  ha  sciencia  nenhuma  de  que  nam 
ponha  muytos  authores  e  de  so  hieroglificos  e  symbolos  diz  que 
ha  mais  de  quinhentos  livros.  E  no  fim  do  catalogo  pag.  107  diz: 
«  Esta  tabula,  que  he  puesto  en  este  capitulo  es  parte  de  un 
«  indice  y  aranzel  que  higo  de  todos  ellos  Antonio  Grico  y  Lo- 
«  rengo  Cremones  embiados  por  el  papa  Gregorio  13  a  instancia 
«  del  cardenal  Zarleto,  los  quales  fueron  a  la  Ethiopia  solo  para 
«  reconocer  la  libreria  en  compaiiia  de  otros  que  eran  embiados 
«  para  lo  proprio,  y  vinieron  admirados  de  ver  tantos  libros  que 
«  en  su  vida  [no]  vieron  tantos  juntos  y  todos  de  mano  y  en  parga- 
«  mino  y  todos  niuy  grandes,  porque  son  como  libros  de  coro  con 
«  el  pargamino  entero,  con  los  estantes  de  cedro  muy  curiosos  y 
«  en  tan  diferentes  lenguas. 

«  La  causa  por  donde  ay  tantos  libros  es  por  la  curiosidad  y 
«  diligencia  que  han  tenido  siempre  los  Emperadores  de  cogellos 
«  desde  el  tiempo  de  la  reynha  Sabba  y  en  todos  los  trabajos  que 
«  padecieron  los  Judios  por  los  Babylonios,  Assirios,  Romanos  siem- 
«  pre  los  Emperadores  de  la  Ethiopia  procuraron  aver  los  libros. 
«  Tan  grande  ha  sido  el  cuidado,  que  quando  supo  el  Emperador  de 
la  Ethiopia  llamado  Mena  que  el  emperador  Carlos  Quinto  avia 
ganado  la  ciudad  de  Tunez,  teniendo  noticia  que  el  rey  Muleases 
«  tenia  una  copiosa  y  rica  libreria,  embio  a  los  mercaderes  de  Egypto, 
«  de  Roma,  Venecia,  Sicilia  y  otras  partes  que  a  su  costa  compra- 
«  sen  los  libros  que  llevavan  los  soldados,  que,  como  eran  en  ara- 
«  bigo,  los  davan  devalde ;  y  desta  manera  junto  mas  de  tres  mil 


LIVRO   I,    CAPITULO  VIII.  95 

4  libros  de  astrologia,  medicina  y  yerbas,  mathematicas  y  otras 
«  curiosidades ;  y  con  esta  diligencia  continuada  por  tantos  mil  anos, 
«  desde  los  tiempos  de  la  reyna  Sabba  hasta  el  dia  de  oy,  no  ay 
«  que  espantar  que  diga  yo  que  ay  mas  de  un  millon  de  libros  y 
«  aun  pienso  quedar  corto  y  muy  corto. 

«  Tienese  con  esta  libreria  muy  grande  cuidado,  porque  es  la 
«  cosa  mas  preciosa  que  tiene  el  imperio.  Y  de  los  monges  de  la 
«  Abbadia  dc  la  Cruz  ay  seiialado  mas  de  docientos  monges,  que  son 
«  libreros  y  acuden  a  la  limpie^a,  guardia  y  incolunnidad  de  los  li- 
«  bros;  y  cada  lunes  hacien  subir  trecientos  o  cuatrocientos  soldados 
«  de  los  de  la  guardia,  que  residen  al  pie  del  monte  Amara,  los  qua- 
«  les  barren  las  salas,  limpian  los  libros  y  sacuden  el  polvo,  y  hacen 
«  todo  lo  que  les  mandan  estos  Religiosos.  wSon  libreros  conforme 
4  a  las  lengucs  que  saben,  porque  todos  son  muy  doctos  en  ellas; 
f.  39.  «  tienen  quenta  *de  los  libros  que  estan  escritos  en  la  lengua  de 
«  la  qual  ellos  tienen  noticia;  los  quales  los  miran  no  se  coman  de 
«  polilla,  reconocen  las  letras  no  se  borren.  porque,  como  son  en  par- 
«  gamino,  es  cosa  facil,  y  acuden  a  todo  lo  que  falta. 

«  Quando  coronan  a  los  Emperadores,  les  dan  las  llaves  del 
«  thesoro  y  juntamente  la  llave  de  la  libreria,  y  el  Emperador  la 
«  da  al  Abbad  espiritual  del  monesterio  de  la  s}"^  Cruz,  donde  esta 
«  la  libreria  y  le  encarga  mucho  el  cuidado,  custodia,  vigilancia  y 
«  curiosidad  de  los  libros,  diciendo  que  los  precia  mas  que  todos 
«  sus  thesoros,  pues  esos,  aunque  falten  minas,  tiene  el  imperio, 
«  pero  los  libros  de  aquella  libreria  son  unicos  en  el  mundo  ^. 

Ate  aqui   sam   palavras  de  frey  I.uis   de   Urreta,    em    que  ha      3.  Antiquitus    ad 

_^  j.  j    j      j  summum  aoo   volu- 

muytopoucas  que  digam  com  a  verdade  do  que  passa;  porque  pn-    mina  msa.  prope  Ec- 

meiramente  toda  esta  tam  grande  e  famosa  livraria  que  pintou  Joam  clesiam   Dei    Patris 

servabantur:  sed  post 

Balthesar,  ou  quem  informou  ao  Author,  se  resolvia  antiguamente  incendium   tempore 
em  obra  de  docentos  livros,  que  os  Emperadores  foram  la  pondo.  ^pUu^Jfuam  viSn^ 

Porque  he  costume,  que  dura  ate  oje,  quando  entra  hum  Emperador,   ti   volumina    modo 

asservantur  ibi. 

facer  tresladar  os  livros  que  tinha  seu  antecessor,  e,  ficando  com  os 
novos,  da  os  outros  a  igreja  que  quer;  e  destes  e  alguns  se  Ihes 
vinham  de  fora,  que  disso  nam  achei  quem  me  soubese  dar  re(;am, 
juntaram  la  aquelles  livros  casi  todos  em  pargaminho,  que  pera 
Ethiopia  sam  muytos,  porque  nam  ha  impressam  e  tardam  muyto 
em  escrever  hum  livro,  por  ser  sua  letra  vagarosa,  que  nam  se  en- 
cadea  huma  com  outra,  que  he  casi  do  corte  da  hebraica.  Mas  nam 
escrevem  pera  a  mao  izquerda  comc  os  Ilebreos  e  x\rabios,  senam 


96  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

pera  a  dereita  como  nos.  Mas  poUos  annos  de  1528  saio  do  reyno 
de  Adel  hum  mouro  por  nome  Mahamed  e,  por  ser  izquerdo,  o  cha- 
mam  comummente  em  Ethiopia  Granh,  scilicet  izqnerdo  e  a  sa- 
(;tom  era  Guazir  del  Rey  de  aquellas  terras,  que  he  tanto  como  Go- 
vernador,  e  entrou  por  estas  com  exercito  e  foi  tomando  ate  chegar 
a  Guixen  Amba,  e  hum  seu  capitam  subio  por  huma  parte  que  Ihe 
mostrou  a  gente  da  terra  e  queimou  a  igreja  de  Deos  Padre,  onde 
se  perderam  muytos  livros  e  outros  levaram  os  soldados  pera  os 
venderem  a  a  gente  da"*terra  que  se  Ihes  tinha  sugetado.  Pollo  que, 
se  Joam  Balthesar,  como  diz  frey  Luis,  hia  pera  os  70  annos  no 
de  610,  mal  podia  dar  regam  de  vista  desta  livraria,  mas  ouviria 
dicer  que  era  muyto  grande,  que  cousas  piquenas  *engrandecem  f.  39.v. 
muyto  os  Ethiopes,  e  por  isso  falaria  con  tanto  encarecimento.  Quanto 
agora,  nam  estam  em  amas  as  igrejas  mais  que  vinte  livros  pouco 
mais  ou  menos,  e  cuatro,  que  sam  os  maiores,  nam  sam  de  parga- 
minho  enteiro  se  nam  de  meio,  mas  hum  que  trata  de  milagres  de 
nossa  Senhora  tem  muytas  letras  de  ouro.  C)s  estantes  nam  sam 
como  os  pinta  frey  Luis,  senam  muyto  ordinariamente  lavrados. 
4   Reliquae  fabu-  Acerca  do  que  diz  que  a  reynha  Sabba  come^ou  a  juntar  alli 

lae  Urretae  circa  bi-    ,.  ,  ^  ,  ivjoi  'j- 

bliothecam  refutan-  hvros  de  muytas  partes  e  pos  os  que   Ihe  deo  balomam,  ja  disse- 
^'  mos  no  capitulo  precedente  que  em  Guixen  Amba  nam  ouve  nunca 

templo  de  idolos,  nem  edificio  onde  se  guardasem  os  livros;  nem 
a  reynha  tinha  neccssidade  de  guardar  la  os  livros  que  Ihe  daria 
Salomam,  nem  os  mais  que  ella  quisese  guardar,  quando  possuia 
tam  pacificamente  seu  imperio,  como  vimos  no  cap.  3,  e  estando 
em  huma  cidade  tam  forte  e  de  edificios  tam  sumptuosos  e  insi- 
gnes,  como  mostram  agora  bem  as  ruinas  de  Ag^um ;  e  se  nam  os 
queria  ter  com  sigo  (o  que  nam  parece  provavel,  pois  eram  tam 
preciosos  os  de  Salomam),  ouvera  os  de  por  em  Amba  Damo,  hum 
dia  de  caminho  de  Ag^um,  que  he  muyto  mais  forte  que  Guixcn 
Amba,  a  qual  esta  catorce  dias  de  caminho,  e  pode  ser  que  naquelle 
tempo  ninguem  sabia  parte  della,  senam  que  eram  matos  fechados. 
As  igrejas  ja  la  tambem  dissemos  que  come^aram  pollos  annos 
de  1210,  em  tempo  do  emperador  Lalibela,  e  nenhuma  se  dedicou 
a  s.'*  Cruz,  senam  a  Deos  Padre  e  a  Nossa  Senhora.  Nem  pude 
nunca  achar  quem  tivesse  ouvido  que  os  Emperadores  mandasem 
tracer  livros  de  outros  reynos  pera  juntar  alli,  c  muyto  menos  que 
outros  o  ouvera  de  facer  Minas,  a  quem  elle  chama  Mena,  porque, 
demais  de  ser  pouco  curioso  de  livros  e  nam  ter  comercio  nenhum 


LIVRO   I,     CAPITULO   VIII.  97 

com  os  mais  das  terras  que  nomea  o  Author,  cuatro  annos  que 
durou  no  imperio,  teve  bem  que  facer  em  se  defender  dos  Turcos, 
que  o  desbarataram  no  reyno  de  Tigre,  e  de  seus  mesmos  capitaes 
que  se  Ihe  revelaram  em  muytas  partes,  por  ser  tam  aspero  e  in- 
tractavel  como  era. 

Nem  os  soldados  do  emperador  Carlos  Quinto  se  haviam  de 
carregar  em  Tunez  de  tantos  livros  em  arabio,  que  nam  Ihes  apro- 
veitavam  pera  nada,  e  quando  levasem  alguns,  ja  os  aviam  de  ter 
botado  ou  espalhado  de  maneira  que  nam  se  pudesem  juntar,  quando 
come^ou  a  reynar  Minas,  que  entam  se  chamou  Adamas  Qagued; 
porque  elle  entrou  no  imperio  em  margo  de  1559,  e  Tunez  foi  to- 
mado  24  annos  antes  no  anno  de  1535.  E  se,  como  o  Author  af- 
f.  40.  firma  pag.  156,  *todos  os  livros,  que  estam  em  aquellas  tres  salas, 
sam  em  lingoa  grega,  arabia,  egipcia,  sira,  caldea,  hebraica  e  abes- 
sina,  os  mais  delles  aviam  de  ser  de  papel  e  ainda  muytos  impressos, 
porque  estas  na^oes  estrangeiras  casi  nunca  escrevem  em  parga- 
minho;  e  toda  via  elle  affirma  que  de  papel  ha  muyto  poucos;  e  o 
mesmo  dicem  os  parentes  do  Emperador  a  quem  preguntei. 

Quanto  aquelle  tam  grande  numero  de  tres  mil  livros  de  astro- 
logia,  medicina,  hervas  e  mathematicas,  que  diz  que  estam  la,  ainda 
que  nam  falara  de  agora  que  ha  tan  poucos,  senam  dos  de  pri- 
meiro,  nem  se  podia  verificar,  pois  todos  nao  eram  mais  que  como 
200,  nam  os  que  entam  estavam,  nem  os  que  agora  estam  em  arabio 
me  souberam  dicer  de  que  tratavam.  Mas  o  que  eu  achei  ainda  em 
os  mais  letrados  he  que  de  estas  sciencias  sabem  pouco  mais  de 
nada,  tanto  que  fa[la]ndo  com  elles  sobre  cousas  muyto  ordinarias  de 
meteuros  e  do  curso  do  sol,  se  Ihes  faciam  muyto  novas  e  alguns 
deciam  que  o  sol  nam  dava  volta  por  debaixo  da  terra,  senam  que 
se  pondo  a  nosso  orizonte  virava  a  roda  della,  e  que  o  facer  sombra 
a  terra  era  por  causa  de  huns  altos  montes  que  la  avia;  ate  que 
Ihes  mostrei  como  isto  nam  podia  ser;  e  muyto  mais  se  maravi- 
Iharam  porque,  falando  eu  com  o  Emperador  sobre  os  effeitos  da 
lua,  Ihe  disse :  De  oje  en  1 5  dias  avera  ecclipse  da  lua  toda  e  co- 
megara  aqui  a  as  duas  horas  e  tres  quartos  depois  da  meia  noite 
pouco  mais  ou  menos,  e  em  Portugal  a  as  12  horas  e  dous  mi- 
nutos  (que  foi  o  de  26  de  agosto  de  16 16).  Disseram  todos  que  como 
se  podia  saber  o  que  estava  por  vir  e  sinalar  nam  somente  o  dia, 
senam  a  hora  [?].  Respondi  que  muytos  annos  antes  escriviam  os  ec- 
clipses  que  avia  de  aver  do  sol  e  a  lua  sem  errar  hum  ponto,  poUo 

C.  Bbccari.  R€r.  Aeik,  Scrt^»  occ,  ined,  —  II.  13 


gS  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

conhecimento  que  tem  de  seu  curso,  e  que  atentasem  por  este,  e 
veriam  se  era  certo  ou  nam.  O  que  elles  ficeram  com  tanto  cui- 
dado,  que  ate  o  Emperador  se  alevantou  muyto  antes,  e  em  come- 
gando  a  se  escurecer  a  lua,  saio  ao  terreiro  diante  da  porta  do  pa^o 
e  esteve  em  pe  olhando  grande  espago.  Depois  me  disse  que  Ihe 
escrevese  em  sua  lingua  quando  avia  de  aver  outras,  e  dandolhe 
juntamente  pintado  o  que  avia  de  tomar  da  lua,  folgou  muyto  de 
ver  e  disse  que  nada  disto  sabiam  os  seus.  Nem  de  medecina  sabem 
cousa  nenhuma,  e  assi,  quando  adoecem,  nam  so  a  gente  pobre,  mas 
os  ricos  e  senhores  grandes,  *morrem  sem  facer  remedio  nenhum,  f.  4o,v. 
ainda  que  a  doen^a  seja  cumprida.  E  achando  pouco  tempo  ha  o 
Emperador  hum  livro  de  ^urugia  [sic^  em  castelhano,  que  trouxe  dom 
Christovao  da  Gama,  quando  veio  com  os  Portugueses  a  socorrer 
este  imperio,  me  pidio  Ihe  tresladase  em  sua  lingoa  algumas  cousas 
de  que  agora  se  aproveitam;  pollo  que  cuido  que  nenhuns  livros 
de  medicina  ha  em  Guixen  Amba;  que  nam  he  possivel  que  nam 
os  ouveram  tresladado,  ou  ao  menos  souberam  algiima  cousa  delles. 
7.Fal8ume8tpon-  O  que  o  Author  affirma  que  o  Catalogo  dos  livros  que  aponta 

tificem      Greeorium        j-  a     ^.      •      /-'    •  t  /-^  -r:«^i_  • 

XIII  misisse  Roma  ^  "Ceram  Antonio  Grico  e  Louren^o  Cremones,  que  vieiam  a  Ethio 
duos  doctos  viros  ad  pja  mandados  polla  Santidade  de  Grecforio  1 3  so  pera  reconhecer 

faciendum      catalo-  .  , 

gum  iUius  bibliothe-  esta  livraria,  saberse  ha  milhor  em  Roma  onde  estaram  os  papcis, 

^stoder  ^rfo^^o!  P^^^^^  ^^  "^"^   h^  lembran^a   disso,  antes   preguntando  a  muytos 
Hi  non  sunt  nisi  14  frades   velhos  e  gente  da   terra  e  a  alguns    Portugueses  e  a  hum 

pro   utraque    Bccle- 

8ia  et  clerici  30.        Veneciano,  que  se  chama  Joam  Antonio  e  ha  muytos  annos  que  ca 

esta,  todos  disseram  que  nunca  taes  homens  vieram,  senam  hum 
que  se  chama  Claudio,  que  morreo  ca,  e  outros  dous  Hieronino  e 
Contarino,  que  poUos  annos  de  1596  pouco  mais  ou  menos  se  foram 
pera  India.  Mas  seja  o  que  for  de  Antonio  Grico  e  Lourengo  Cre- 
mones,  a  huma  cousa  nam  sei  dar  saida,  que,  avendo  em  tempo  de 
Gregorio  1 3  em  esta  livraria  mais  de  hum  milhom  de  livros  (como 
o  Author  diz),  aja  agora  tam  poucos  como  a  cima  dissemos,  sendo 
cousa  certa  e  sabida  de  todos  os  de  Ethiopia  que,  daquelle  tempo 
pera  ca,  nem  se  tiraram,  nem  se  perderam  nenhuns,  segundo  testimun- 
haram  principalmente  os  que  de  muyto  antes  ate  agora  moraram  la. 
Tambem  o  numero  de  mais  de  docentos  monges  da  abbadia 
da  Cruz,  que  diz  estam  sinalados  pera  livreiros,  he  muyto  grande ; 
pois,  como  ja  dissemos  no  cap.  7,  nunca  os  frades,  que  estavam  la 
cima  em  amas  as  igrejas,  passaram  de  catorce,  nem  os  clerigos  de 
trinta,  nem  ha,  nem  ouve  nunca  tal  abbadia  da  Cruz. 


CAPITULO  IX. 

Em  que  se  mostra  que  nenhum  thesouro  teve  nunca  o 
Preste  Joam  guardado  em  Guixdn  Ambli. 


Se  foi  cumprido  frey  Luis  de  Urreta  en  falar  da  livraria  de  x.  Fabulae  Urre- 
Guixen  Amba,  muyto  mais  o  he  em  tratar  dos  thesouros,  que  ima-  ^j^ntitotc  aiS*^  quae 
ginou,  ou  Ihe*  meteram  em  cabe^a,  que  tinha  la  guardados  o  Preste  asscrvatur  in  Ambft 

.  Quixta    coUecta     a 

f.  41-  Joam,  *porque  faz  dous  capitulos,  lo  e  ii,sobre  esta  matena  tam  temporc  reginae  Sa- 
cumpridos,  que  nam  he  piquena  penitencia  serlhe  for^ado  lerlos  a  **** 
quem  tem  outras  cousas  que  facer,  principalmente  se  sabe  quam 
fabulosas  sejam  todas  quantas  nelles  diz ;  poUo  que,  ainda  que  re- 
fera  suas  palavras,  nam  seram  mais  que  aquellas  que  ficerem  mais 
a  proposito,  pera  em  soma  dar  noticia  de  seu  intento,  que  he  an- 
tepor  os  thesouros  e  rique^as  do  Emperador  de  Ethiopia  aos  de 
quantos  reys  ha  e  ouve  no  mundo;  e  assi  depois  de  advertir  que 
nam  quer  falar  das  muytas  minas,  de  que  he  abundante  e  rica  Ethio- 
pia,  diz  pag.  112:  <  Solo  pretendo  dicer  el  thesoro  que  esta  guar- 
«  dado  en  el  monte  de  Amara  en  el  monasterio  de  la  Cruz  junto 
«  con  la  libreria,  el  qual  es  de  tan  inmensa  rique^a,  que  me  atrevo  a 
«  decir  y  digo  confiadamente  que  ningun  Rey  del  mundo,  ni  an- 
«  tiguos,  ni  presentes,  ningun  imperio  ni  monarchia,  aunque  entren 
«  en  esta  cuenra  los  cuatro  nombrados  en  el  orbe,  babylonios,  per- 
«  sas,  griegos  y  romanos,  con  todas  sus  victorias,  triumphos  y  de- 


ICO  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

<  spojos  ricos,  tuvieron  tanto  oro  junto,  ni  piedras  preciosas  como  ay 
«  recogido  en  el  monte  Amara  » .  E  mais  adiante  pag.  114:  c  El  the- 
c  soro,  que  esta  en  este  monte,  es  tradicion  en  toda  la  Ethiopia  que 
«  come<;ou  a  juntarse  desde  la  reyna  Sabba  y  desde  aquellos  tiem- 
«  pos  tan  antiguos  cada  aiio  ponen  y  athesoran  tantas  rentas  y  ri- 
«  que^as,  como  tienen  los  Emperadores  dc  la  Ethiopia,  y  nunca 
«  sacan  cosa  ninguna,  porque  dello  no  tiene  necessidad  el  Preste 
«  Juan,  porque  las  ciudades  del  imperio,  segiin  la  costumbre  antigua, 
«  pagan  toda  la  gente  de  guerra,  la  guardia  de  su  persona  y  pa- 
«  vellones  y  monte  de  Amara,  y  para  el  gasto  de  su  corte  y  casa 
«  estan  senaladas  las  rentas  de  tres  poderosos  reynos,  el  de  Saba, 
«  Zambra  y  Gafate,  los  quales  sobradissimamente  contribuyen  para 
«  estos  gastos;  y  la  renta  de  los  otros  reynos,  que  son  59,  queda 

<  libre  y  horra,  que  siendo  tan  pingue,  porque  todos  los  reynos 
«  son  ricos  de  minas  de  oro  y  plata  y  muy  poblados,  recogiendose 
«  en  el  thesoro  del  monte  Amara  por  espa^o  de  tres  mil  anos,  con- 
«  sidere  el  letor  quc  de  oro  se  abra  recogido  y  guardado,  que  certo 
«  excede  toda  medida  y  cuenta.  Pues  si  en  tiempo  de  la  reyna  Sabba 
«  (diz  pag,  115)  avia  tantas  riquecjas  de  oro  y  plata  y  desde  entonces 
«  hasta  el  dia  de  oy  se  recogen  y  guardan  las  rentas,  el  oro  y 
«  plata  a  que  numero  de  millones  avra  Uegado?  Los  mismos  the- 
«  soreros  y  contadores  del  imperio  no  lo  saben  apreciar,  sino  que 
«  siempre  hablan  con  admiracion  y  encarecimiento.  Las  salas  donde 
«  se  guarda  el  thesoro  son  cuatro  bastantemente  g^andesy  espaciosas. 

«  Antiguamente  se  guardava  el  oro  en  estas  salas  *de  la  manera  que  f.  4^^. 

«  lo  sacavan  de  las  minas  con  toda  su  escoria:  lo  mas  puro  era  lo  que 

«  sacavan  del  Rio  Negro  y  otros  rios  en  pedagos  y  a  veces  harto 

«  grandes.  Duro  esta  custumbre  hasta  el  emperador  David,  al  qual 

«  un  portugues  Uamado   Miguel  de   Silva  le  dio   por    consejo   que 

«  fundiese  todo  aquel  oro  en  tijuelos  y  barras   para  que  se  g^ar- 

«  dase  con  mas  comodidad.  Hi^olo  el  Emperador  y  Ueno  todas  aquel- 

«  las  cuatro  salas  desde  el  suelo  hasta  la  techumbre  de  rimeros  de 

«  ladrillos  de  oro  en  quadro  de  un  palmo  de  largo  y  ancho  y  tres 

«  dedos  de  canto.  El  oro  es  finissimo,  porque  ay  ladrillos  que  se  do- 

«  blan  y  roUan  como  se  fueran  de  masa,  que  ya  tiene  fama  el  oro  de 

«  Arabia  y  de  la  Ethiopia  de  muy  fino  y  precioso.  Abra  en  cada  sala 

«  echando  el  juicio  a  monton,  segun  dicen  personas  que  lo  han  visto, 

«  Venecianos  y  Portugueses,  mas  de  trecentos  millones,  que,  siendo 

«  quatro  las  salas,  seram  mas  de  doce  veces  cen  millones  ». 


LTVRO   T,   CAPITULO   IX,  lOI 

Diz  mais  pag.   iiS:   «  El  emperador  Alexandro  3°,  que  murio       a.  De nummis au- 
«  ano  de  606,  vendo  que  todos  lo  principes  christianos  hacem  batir  "*'  ^*  argcnteis. 
«  moneda,   gravando  en  ella  su  figura  y  armas,   determino   batirla 
«  con  parecer  del  g^an  Consejo  y  de  todo  el  clero  y  sacerdotes  de 
«  la  Ethiopia,  los  quales  viendo  que  era  muy  grande  policia  y  jun- 

^  «  tamente  mucho  provecho  y  comodidad  para  los  que  contratavan, 

«  salio  determinado  y  resuelto  del  Consejo  que  se  acunase  moneda 
«  por  todo  el  imperio,  pero  que  la  figura  no  fuese  redonda  sino 
«  larga  como  un  ovado  y  en  la  una  parte  esta  gravada  la  imagen 

1  «  del  glorioso  apostol  y  evangelista  san  Mateo  patron  de  la  Ethio- 

«  pia,  y  'en  el  reverso  de  la  moneda  la  figura  de  un  leon  con  una 
«  cruz  empunada  en  las  manos,  que  son  las  armas  de  los  Empera- 
«  dores.  La  letra,  que  anda  por  la  orla,  es  a  la  parte  del  leon :  '  Vi- 
«  cit  Leo  de  tribu  Juda ',  y  donde  esta  la  figura  de  san  Mateo: 
«  *  Aethiopia  praeveniet  manus  eius  Deo  \  La  plata,  de  la  qual  se 
«  ha  hecho  poca  mencion,  es  porque  ay  poca  en  comparacion  del 
«  oro:  y  antiguamente  no  la  sabian  lavrar  ni  cuidavan  mucho  della. 
«  Agora  se  lavra  y  sirve  de  moneda  y  se  aprovechan  della  para 
«  contratar  con  mercaderes  de  otras  naciones,  porque  no  se  puede 
«  sacar  oro  del  imperio,  sino  solo  la  plata  ». 

I  Em  a  mesma  pagina,  come<;:ando  a  tratar  das  pedras  preciosas 

do  thesouro,  diz  assi : 

«  Quiero  hacerme  una  vez  lapidario  sin  serlo,  pues  nos  da  mo-  3,  De  lapidibus 
«  tivo  el  presente  capitulo  y  la  corriente  de  la  historia,  tomandonos  ^^j^^"  *  *^^*  ^^" 
«  de  la  mano,  nos  ha  entrado  en  la  sala  delas  joyas  y  piedras  pre- 
«  niosas,  que  junto  a  las  salas  del  oro  en  el  monte  Amara  en  el  mo- 
«  nasterio  de  la  Cruz  tiene  el  Preste  Juan.  La  qual  sala  esta  ro- 
f  42.  «  deada  de  caxones  muy  grandes,  de  cedro  unos,  otros  *de  evano 
«  muy  guarnecidos  y  con  fuertes  cerraduras :  en  cada  uno  de  los  ar- 
«  caces  esta  el  nombre  de  las  piedras  que  ay  dentro.  La  sala  es 
«  muy  grande  y  estando  llena  de  piedras  preciosas  es  inestimable 
«  el  valor  y  precio  della.  No  se  sabe  quando  los  Emperadores  dela 
«  Ethiopia  empegaron  a  juntar  piedras  preciosas,  porque  l£is  que 
«  tenia  la  reyna  Sabba  se  guardan  oy  dia  en  la  ciudad  de  Sabba 
«  en  la  iglesia  del  Spiritu  Santo,  donde  ella  se  enterro.  En  entrando 
«  por  la  sala,  luego  se  ofFrecen  unos  caxones  muy  grandes  llenos 
«^  de  esmeraldas  muy  ricas,  las  quales  piedras  son  de  mucho  valor, 

^  «  por  ser  verdes  resplandecientes  y  tanto   que   no  ay  cosa  criada 

«  tan  verde  como  ellas,  ni  que  mas  recree  y  deleite  la  vista.    Ay 


I02  HTSTORIA   DE   ETHIOPIA 

c  en  estas  arcas  grandissimos  pedagos,  porque  entre  todas  las  pie- 
«  dras  preciosas  la  esmeralda  es  de  la  qual  se  han  hallado  mayores 
«  piedras  ». 

Pouco  mais  adiante  vai  dicendo  que  hum  Rey  de  Babylonia 
presento  a  otro  de  Egypto  huma  esmeralda  que  tinha  cuatro  co- 
vados  de  cumprido  e  tres  de  largo,  e  que  na  cidade  de  Tyro  no 
templo  do  Deos  Hercules  avia  huma  colunna  muy  grande  toda  de 
huma  esmeralda,  e  outra  em  Egypto  no  templo  de  Deos  Jupite[r]  de 
40  covados  de  cumprido  e  por  huma  vanda  cuatro  de  largo  e  por 
outra  dous,  de  sos  cuatro  esmeraldas,  e  em  hum  dos  labyrintos  de 
Egypto  avia  huma  estatua  que  tinha  nove  covados  de  alt#  de  huma 
so  esmeralda;  e  que  he  tradi<;;am  em  Ethiopia  e  o  tem  por  certo 
quc  estas  tam  grandiosas  esmeraldas  se  levaram  de  Ethiopia,  e  ainda 
ojc  se  acham  e  se  guardam  entre  as  outras  joyas  peda^os  gran- 
dissimos  de  esmeraldas;  e  que  el  Preste  Joao  tem  pratos,  tixellas 
e  jarros  foitos  de  esmeraldas  e  outras  pedras  preciosas.  Daqui  vai 
discurrendo  por  todos  os  nomens  que  ha  dc  podras  preciosas,  e  de 
cada  sorte  dellas  henche  grandes  cofres  dicendo :  «  Hay  otras  arcas, 
«  unas  de  diamantes  muy  preciosos,  otras  de  rubis  los  mejores  del 
«  mundo  y  algunos  tan  grandes  com  un  dedo  pulgar.  Las  piedras, 
«  de  las  quales  ay  muy  grande  abundancia  en  esta  sala,  son  tur- 
«  quesas,  zaphiros,  topacios,  bageles;  hay  jacintos,  y  algunas  ama- 
«  tistas;  tambien  ay  arcas  de  ctysolitos,  aunque  no  las  tienen  en 
«  tanto  precio.  De  calcedonias  ay  mina  y  de  la  piedra  agata  ay 
«  muchas;  pero  no  se  sabian  aprovechar  hasta  que  unos  oficiales 
«  embiados  por  el  duque  de  Florencia  Francisco  de  Medicis  la- 
«  vraron  muy  hermosos  camafeos.  De  perlas  ay  muchas  arcas 
«  llenas,  assi  de  la  India  oriental,  como  de  Ormuz,  como  del  Rio 
«  Negro.  Ay  perlas  muy  grandes  de  tal  suerte,  que  quando  las  vido 
«  Bernardo  Vecheti  famoso  *lapidario  que  fue  embiado  por  el  duque  f.  42.V. 
«  Francisco  de  Medicis,  dixo  que  Lenia  por  cierto  que  las  perlas  tan 
«  nombradas,  que  servian  por  (^arcillos  a  la  reyna  Cleopatra,  no  po- 
«  dian  ser  mayores  que  las  que  alli  estavan  guardadas  ». 
4.  De quodam pre-  Diz   mais   pag.    127:    «  Entre   las   muchas   piedras   ricas  y   de 

tioso   lapide    mirae    ^  orrande  precio  que  tiene  el  Preste  Juan  de  quien  se  pudiera  hacer 

magnitudinis  et  ope-        &  x-  ^  j  -1  i- 

ris  singularis.  «  aqui  memoria,  ay  un  penasco  y  peda^o  de  roca  de  piedra  guija- 

«  reiia,  que  se  hallo  dentro  del  Rio  Negro  (que  es  el  rio  que  cria 
«  mas  piedras  preciosas  de  quantos  tiene  el  mundo),  en  cuya  lavor 
«  no  parece  sino  que  la  industriosa   naturale^a  se   desocupo  y  de- 


LIVRO   I,   CAPITULO   IX.  103 

«  sembara^o  de  las  obligaciones  forgosas  y,  esmerando  sus  dedos  y 
«  repuliendo  sus  manos,  labro  un  cielo  estrellado  y  quiso  poner  jun- 
«  tas  todas  las  piedras  preciosas  que  por  diversas  partes  del  mundo 
«  suele  criar  repartidas.  Es  este  penasco  cuadrado,  tiene  dos  palmos  y 
«  medio  y  cerca  de  tres  por  cuadro;  de  canto  tiene  por  ordinario  de  mas 
«  un  palmo  y  por  donde  menos  cuatro  dedos :  la  piedra  es  aspera  y 
«  grossera  como  la  de  los  escoUos  donde  baten  las  olas  del  mar;  en  el 
*  qual  engasto  la  naturale^a  mil  dlfFerencias  de  piedras  preciosas.  Ay 
«  mas  de  ciento  y  sesenta  diamantes,  unos  tan  grandes  como  la  palma 
«  dela  mano,  otros  de  dos  y  tres  dedos  de  ancho,  otros  como  un  dedo 
«  pulgar  largo,  y  el  menor  sera  como  una  abellana  gruessa,  todos  finis- 
«  simos  y  de  subidos  quilates.  Ay  mas  de  trecientas  esmeraldas  gran- 
«  des  y  pequenas ;  rubies  los  mayores  del  mundo  ay  mas  de  cinquenta, 
«  algunos  como  el  dedo  indice ;  ay  zafiras,  turquesas,  balaxes,  ama- 
«  tistas,  espinelas,  topacios,  jacintos,  crysolitos,  enfin  todo  genero 
«  de  piedras  preciosas.  Sin  esso  veense  encaxadas  algunas  pedre- 
-s  citas  pequenas  muy  hermosas  que  no  se  les  sabe  nombre;  enfin 
«  es  un  milagro  y  prodigio  de  la  naturale(;a.  Puesto  al  sol  es  tanta 
«  la  refulgencia  y  belle^a  que  tiene,  que  no  ay  vista  en  el  mundo, 
«  ni  hermosurai  que  se  le  iguale.  Quando  le  vido  Bernardo  Vecheti 
«  embiado  par  el  duque  de  Florcncia  Francisco  de  Medicis,  con 
«  ser  hombre  muy  cntendido  en  piedras,  quedo  admirado  y  dixo  que 
«  no  tenia  precio  y  que  excedia  toda  estima.  Tiene  la  el  Empe- 
«  rador  dentro  de  un  encaxc  de  oro  cubierto  con  un  tablon  de  oro 
«  fino  y  por  persuasion  del  dicho  Bernardo  hi^o  lavrar  dos  bufetes 
«  de  oro  y  en  ellos  ha  engastado  millares  de  piedras  preciosas,  esco- 
«  giendo  las  mas  ricas  y  hermosas  que  ay  en  el  guardajoyas,  y 
«  dellos  se  sirve  para  quando  vienen  embaxadores  de  los  reys  de 
«  Europa,  a  los  quales  recibe  arrimado  y  apoyado  en  un  bufete 
«  destos  *. 
f.  43.  Ate  aqui  sam   palavras  de  frey  Luis  de  Urreta,  a  que  *facil-      5.  Auctor  deridet 

mente  puderamos  responder,  que  este  tam  immenso  e  inestimavel  the-      ^^^^^    *     *"*™ 


inventorem. 


souro  era  como  aquelles  thesouros  que  fingem  encantados,  que  nam 
se  podiam  ver;  e  mais  seus  encarecimentos  e  modo  de  referir  a 
historia  sam  muyto  semelhantes  aos  que  usam  os  que  tratam  de- 
stas  fie^oes;  pois  affirma  que  estan  cuatro  salas  grandes  e  espa- 
^osas  cheias  do  cham  ate  cima  de  tijolos  de  ouro  de  tres  dedos  de 
grosso  e  ta:u  fino  que  se  dobra  como  masa:  cousa  maravilhosa  que 
demais  de  tam  grande  multidam  de  ouro  seja  tal  que  tijolos  de  tres 


I04  HISTORIA  DE   ETHIOPIA. 

dedos  de  grosso  se  dobre  e  enrole  como  se  fora  de  masa.  Nem 
nos  ouvera  de  ser  de  menor  admira^am,  se  nos  fora  concedido  en- 
trar  em  aquella  sala  das  piedras  preciosas,  onde  a  corrente  da  hi- 
storia  meteo  polla  mao  ao  Author ;  pois  de  huma  e  outra  parte  esta 
rodeada  daquelles  tam  grandes  e  bem  gnarnecidos  caixoes,  cheios 
de  tam  fermosa  e  rica  pedraria.  Mas  sobre  tudo  ouveramos  de  ficar 
atonitos  e  pasmados,  se  nos  levantaram  aquelle  tablom  de  fino  ouro, 
com  que  esta  cuberto  o  penhasco  em  que  a  industriosa  nature^a, 
disocupandose  das  obriga^oes  forgosas,  se  esmerou  tanto  que  pus 
nelle  juntas  todas  as  pedras  preciosas  que  por  diversas  partes  do 
mundo  acustuma  a  criar  repartidas.  Sem  duvida  que  vendo  a  reful- 
gencia  e  vellega  de  tam  varia  e  inestimavel  pedraria,  ouveramos 
por  forcja  de  confessar,  que  nunca  avia  chegado  com  muyta  parte 
a  idea  de  nosso  pensamento  ao  que  nossos  olhos  tinham  presente 
e  que  ouveramos  de  notar  huma  grande  mamaravilha  em  este  mi- 
lagre  e  prodigio  da  nature<;a;  e  he  que  em  huma  pedra  de  dous 
palmos  e  meio  ou  pouco  mais  em  cuadro,  estejam  engastadas  tan- 
tas  como  nomea  e  as  que  diz  que  nam  tem  nome,  humas  como  a 
palma  da  mao  e  outras  como  dous  e  tres  dedos ;  se  nam  quiser  al- 
gum  dicer  que  estas  pedras  tem  a  propriedade  dos  anjos  que  nam 
ocupam  lugar;  o  que,  ainda  que  nam  se  possa  verificar  de  cousas 
corporaes,  facihnente  concederei  eu,  que  estas  nam  ocupam  lugar, 
pois  na  verdade  nam  sam  mais  que  imaginarias  c  fabulosas.  Com 
tudo  ja  quc  alega  testimunhas,  que  diz  sam  de  vista,  sera  bem  de- 
clarar  a  diligencia  grande  que  fiz  pera  tirar  em  limpo  esta  verdade. 
6.  Demonstrat  Re-  Primeiramente  he  cousa  muyto   certa  que  de  muytos  annos  a 

quam^habuisse^ne-  ®^^^  parte,  por  causa  das  guerras  dos  Turcos,  dos  Mouros  e  dos 
que   tunc   temporis  Galas  e  as  cyvis,  que  ate  pouco  tempo  ha  ardeo  este  imperio,  se 

babere  thesauros  re- 

conditos    in   Ambft  diminuiram  suas  rendas  de  maneira  que  nam  tiveram  os  Empera- 
SS^^defe  tu  -  dores  sobeixo  que  athesorar,  nem  ainda  achavam  muytas  veces  *de  f.  43,^. 

niae,   vendidit    ali-  onde  tirar  bastantemente  pera  as  necessidades  que  se  Ihes  ofFereciam. 

PoUo  que  o  emperador  Claudio,  a  quem  em  Ethiopia  chamam  Glau- 
deos  e,  como  Ihe  deram  o  imperio,  se  intitulou  Atanaf  (^agued,  de- 
sejando  mandar  contentos  e  em  alguma  maneira  remunerar  os  grandes 
servi^os  que  Ihe  tinham  feito  alguns  Portugueses  da  companhia  de 
dom  Christovao  da  Gama,  que  depois  de  Ihe  ter  recuperado  seu  em- 
pcrio,  sc  queriam  ir  pera  India,  nam  teve  que  Ihes  offerecer  senam 
as  propiias  joyas  da  Emperatriz  sua  may  e  de  alguns  dos  seus  que 
pode  ajuntar,   pidendolhe    muytos   perdocs  por  nam  ter   mais  com 


LIVRO   I,     CAPITULO   IX.  I05 

que  poder  satisfacer  a  obriga^am  que  Ihes  tinha ;  mas  se  quisessem 
ficar,  Ihes  daria  terras  muyto  cumpridas.  Os  Portugiieses  porem  Ihe 
agardeceram  muyto  a  boa  vontate  com  que  Ihe  oflferecia  aquellas  jo- 
yas,  mas  nada  Ihe  quiseram  tomar ;  nem  por  derradeiro  teve  eflfeito 
sua  ida  pera  India.  Tambem  me  aflfirmaram  por  cousa  muyto  certa 
que  o  emperador  Seltan  Qagued,  que  agora  vive,  chegou  a  tanto  o 
anno  de  614,  que  mandou  cortar  algumas  cadeas  de  ouro  de  sua  pes- 
soa  pera  acudir  a  algumas  cousas  que  Ihe  eram  necessarias.  O  que 
facilmente  creo,  porque,  demais  de  ser  muy  livoral  com  todos,  teve 
grandes  gastos  em  as  gnerras;  nam  poique  Ihe  seja  for^ado  de 
justi^a  conforme  ao  costume  antiguo  de  Ethiopia  facellos  com  os 
soldados,  porque  a  estes  reparte  as  terras  da  coroa  e  em  quanto 
as  comem  tem  obriga^am  de  servir  na  guerra  e  nam  porque  as  ci- 
dades  Ihes  dam  o  soldo,  como  por  falta  de  informa^am  disse  frey 
Luis  de  Urreta;  mas  com  tudo,  pera  os  ter  contentes  e  honrrar  aos 
que  mais  se  sinalam,  da  sempre,  particularmente  aos  Capitaes  e  ho- 
mens  grandes,  vestidos  de  borcado,  velludo,  damasco  e  outrcis  pecjas 
que  compram  aos  Turcos  por  muyto  mais  do  que  valem,  e  junta- 
mente  punhaes  de  ouro  como  os  dos  Turcos,  ou  manilhas  de  ouro, 
que  comummente  tem  docentos  ou  trecentos  cru^ados  e  algumas 
veces  da  duas  juntas  por  mais  honrra,  afora  de  peitas  e  outros  ga- 
stos  que  se  oflFerecem. 

Mas  para  que  venhamos  ao  particular  do  que  toca  ao  thesouro       7.   Quid  dizerint 
do  monte  de  Amhara.  que,  como  ja  disse  muytas  veces.  se  chama  t^-^^^^^^:: 
Gnixen   Amba,  eu  preguntei  a   muytos   velhos  e  principalmente  a  porc  morati  fu6runt 
aquelles  dous  senhores  parentes  do  Emperador,  Abeitahum  Memeno  q^id  ipse  SeltAn  Sa- 
e  Abeitahum  Taquela  Haimanot,  que  acima  nomeei,  e  hum  sera  de  ^^' 
perto  de   70  annos  e  outro   de  60,   que   estiveram  la  cima   muyto 
tempo,  ainda  que  agora  residem  na  corte  com  beneplacito  do  Em- 
perador;  e  me  aflRrmaram  que  nunca  os  Emperadores  guardaram  em 
f.  44.   Guixen   Amba   ouro  *nem   pedras   preciosas  e  que   ainda  antigua- 
mente,  quando  os  principes  que  la  estavam  tinham  mais  fato,  nam 
se  acharia  entre  todos  elles  dez  mil  cru^ados  de  ouro  juntos,  por- 
que,  ainda   que  tinham  prometido  os  Emperadores  de  Ihes   darem 
a  3*  parte  das  rendas  do  imperio,  nunca  esto  se  cumpria.  O  mais 
que  Ihes  chegava  a  as  maos  eram  pannos  de  algodam,  mel  e  man- 
timentos.  Nem  me  contentei  com  isto,  senam  que  preguntei  ao  me- 
smo  Emperador,  contandolhe  como  por  gra^a,  que  deciam  que  tinha 
em  Guixen   Amba   tantas  casas  cheias  de  tijolos  de  ouro  e  caxas 

C.  Bbccaiu.  Her.  Atik,  Scripi.  occ,  ined,  —  II.  14 


Io6  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

de  pedraria,  e  respondeo  rindo:  Bastavame  huma,  ainda  que  nam 

fora  mayor  que  esta  cama  (que  era  huma  de  cortinas  em  que  en- 

tam  estava  encostado).   Bem  engrandeceo  esse  as  rique^as  de  meu 

imperio,  mas  a  verdade  he  que  nunca  se  gnardou  nada  disto  em 

Guixen  Amba.  Tam  fora  de  caminho  e  de  toda  verdade  he  dicer 

que  o  Emperador  de  Ethiopia  tenha  thesouro  de  pedras  preciosas, 

que  nem  pera  huma  coroa  de  Emperador,  que  quis   este   facer  a 

nosso  modo,  achou  senam  humas  falsas  muyto  ruins,  que  aqui  tra- 

cem  os  mouros  nam  sei  se  da  India ;  e  assi  me  encomendou  muy to 

Ihe  ficesse  vir  algumzis  e  ainda  que  as  que  me  mandaram  tambem 

eram  falsas,  com  tudo  por  serem  mais  lustrosas,  folgou  muyto;  e 

juntamente  vieram  alguns  aljofares  que  tinhapedido  pera  os  remates 

de  cima,  que  nem  estes  achou  ca,  quanto  mais  arcas  cheias  de  pe- 

rolas  e  tam  g^andes  como  as  que  punha  em  as  orelhcis  a  reynha 

Cleopatra.  Antes  me  mostrou  o  Emperador  por  grande  cousa  dous 

aneis  em  que  tem  engastados  dous  aljofares,  que  ambos  nam  valem 

na  India  seis  cru^ados. 

8.    Dc    lapidibus  Quanto  dos  pratos,  tixehis  e  jarros  de  esmaraldas  e  outras  pe- 

pretiosis  non  est  me-     ,  -.^  t-^.t  j-ii 

moria  in  Ethiopia.  dras  preciosas,  que  diz  tem  o  Freste  Joam,  poderei  eu  dar  boa  re- 

SeltAnSagAdprosuo  (j^am,  porque,  demais  de  preguntar  por  elles,  tenho  visto  por  veccs 
diademate  falsos  la- 

pides   pretiosos    ex  toda  sua  baxela  e  muytas  comido  em  seus  mesmos  pratos  e  mesa; 
m^nL*Xpe^i^^^^^    porque,  em  levantandose  della  (que  com  elle  ninguem  pode  comer, 

Auctor  nunquam  vi-  nem  ainda  assistir  a  mesa,  afora  os  officiaes  que  acima  disse),  me 
dit  aurum,  neque  ar-  -----     ^  ,  , 

gentum.  mandou  chamar  da  sala  de  fora  e  asentar  com  dous  ou  tres  senhores 

seus  parentes,  a  quem  algumas  veces  faz  este  favor  e  merce ;  e  dei- 
xando  o  serviQo  que  tem  de  alatam  e  de  cobre,  como  sam  pratos 
e  aguamanis  [su],  que  disto  nam  falta  e  mais  muyto  bem  lavrado,  po- 
sto  que  feitio  de  Turcos,  tudo  o  de  mais  he  alguma  lou^a  da  China, 
pratos  e  porcelanas  finas;  e  dos  da  terra  muytos  que  sam  pretos 
como  acebique  [szc] ;  e  em  isto  se  resolve  toda  a  baxela  do  Empera- 
dor;  porque  nam  come  em  cousa  de  prata,  nem  ouro.  Bidros  nam 
Ihe  faltam,  que  tracem  os  Egypcios  e  Mouros  que  vem  do  Cairo; 
mas  pratos  e  jarros  de  esmeralda,  ou  de  *outras  pedras  preciosas  f.  44,v. 
nem  os  tem,  nem  ha  quem  saiba  dar  re^am  de  que  os  ouvese  nunca 
em  Ethiopia,  nem  que  se  descubrisem  tres  minas  de  esmeraldas  e 
calcedonias,  como  Ihe  meteram  em  cabega  ao  Author.  Nem  ha  me- 
moria  das  pedras  preciosas  da  reynha  Sabba,  quc  diz  se  guardam 
na  cidade  de  Sabba;  nem  ainda  ha  tal  cidade,  senam  huma  aldea 
muyto  triste  deste  nome  no  reyno  de  Tigre,  onde  ella  naceo:  que 


i 


LIVRO   I,     CAPITULO   IX.  107 

se  la  estivcram,  nam  se  Ihe  encubriram  ao  Emperador,  e  entam  ten- 
doas  tam  ricas  em  sua  terra,  nam  Ihe  fora  necessario  trabalhar  pera 
que  Ihe  viesem  da  India  pedras  falsas  pera  sua  coroa. 

Do  que  temos  dito  se  vee  claramente  quam  fabulosa  cousa  g.  Etniriae  Duces, 
seja  que  viesem  a  este  imperio  Bernardo  Vecheti  e  os  demais  lapi-  s^!|L  ^^^jfi^^^*^?* 
dairos,  que  o  Author  diz  que  mandou  dom  P>ancisco  de  Medicis  annum  161  x  nun- 
duque  de  Florencia,  pois  Joam  Antonio  veneciano,  que  ha  muytos  serant  ad  Reges  Ae- 
annos  que  ca  esta,  e  os  Portuffueses  velhos  e  cfente  da  terra  affir-  ***jop^*c     multoque 

^  ^  °  minus  Legatos. 

mam  que  nenhuns  outros  entraram  ca  mais  que  os  que  acima 
nomeamos. 

Tambem,  se,  como  o  mesmo  Author  affirma  pag.  91,  he  certo 
que  o  estrangeiro  que  mais  chegou  a  alcauQar,  foi  ver  de  longe  o 
monte,  onde  diz  que  estava  o  thesouro  e  livraria,  que  nam  se  per- 
mite  chegar  perto  delle,  segiiese  que  nenhum  dos  estrangeiros  que 
affirma  que  vieram  a  ver  o  thesouro  e  livraria,  entrou  la ;  nem  he  ne- 
cessaria  mais  prova  pera  isto  que  saber  que  nunca  ouve  em  Ethiopia 
tal  thesouro  de  perolas  e  pedras  preciosas  como  deciam.  Ate  o  Em- 
perador  me  affirmou  que  nam  avia  memoria  de  que  seus  anteces- 
sores  tivesem  nunca  communicaQam  com  os  Duques  de  Florencia, 
dandolhe  eu  huma  carta  do  duque  dom  Cosme  de  Medicis,  que 
os  Padres  da  nossa  Companhia  me  mandaram  da  India  em  julho 
de  16 16,  porque  hum  frade  Abexi,  que  a  tracia,  ficou  la,  e  era 
de  7  de  abril  de  1 6 ii ,  em  que  decia  que  el  Serenissimo  gram 
duque  Ferdinando  seu  pay  era  grande  amigo  e  servidor  de  sua  Ma- 
gestade  e  muy  affeigoado  a  sua  nagam,  e  que  elle,  como  seu  filho 
herdeiro  e  sucessor,  tinha  a  mesma  vontade  e  affei^am,  com  outras 
muytas  palavras  de  amor  e  benevolencia,  em  que  mostrava  o  desejo 
que  tinha  de  renovar  a  amizade.  Do  que  o  Emperc  dor  folgou  muyto 
e  disse  ao  secretario  o  que  avia  de  responder,  e  elle  acrecentou 
que  folgava  de  que  se  Ihe  offerecesse  tam  boa  ocasiam  de  renovar 
a  amizade,  que  seus  antepassados  tiveram  com  os  antecessores  do 
Gram  Duque.  E  levando  a  carta  ao  Emperador,  disse  diante  de  mi 
que  tirase  isto,  porque  nam  ouvera  nunca  dicer  que  seus  antepas- 
sados  tivesem  communica^am  com  os  Duques  de  Florencia.  Re- 
spondeo  o  secretario  que,  ja  que  o  Duque  escrivia  em  aquella  forma 
f-  45-  por  amizade,  *que  nam  era  nada  que  bem  podia  ir,  e  por  isto  o 
deixo  passar. 

Nem  tem  forca  nenhuma  o  que  o  Author  alecfa  paj?.   114,  que       "•  Perperam  ab 

^  ^  o      r-   o  -r   ^         Urreta  allegatur  au- 

Pero  de  Covilham  portugues  disse  a  Francisco  Alvares,  como  elle  ctoritasPrancisciAl- 


Io8  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

varez  et  Petri  de  Co-  refer  fol.   167  de  sua  Htstoria,  que  o  Emperador  de  Ethiopia  tinha 
^     ™'  tam  grande  thesouro  que  podia  comprar  hum  mundo  com  elle ;  por- 

que  de  quanto  encerravam  nunca  tiravam  nada.  Isto  bem  se  deixa 
ver  que  he  encarecimento  e  modo  de  falar,  e  que  o  podemos  chamar 
muyto  grande  hyperbole  com  mais  re<;am  do  que  elle,  tomando 
demasiada  licen^a,  pag.  113,  chama  hyperbole  o  que  a  Sagrada 
Escriptura  dis  das  riquecjas  de  Salomam;  porque  nam  foram  as 
maiores  do  mundo.  E  todavia  42,  Paral,  i  prometeo  Deos  de  Ihe 
dar  tantas  riquegas  que  nenhum  Rey  antes  nem  depois  delle  Ihe 
fosse  semelhante.  «  Sapientia  et  scientia  data  sunt  tibi,  divitias  au- 
tem  et  substantiam  et  gloriam  dabo  tibi  ita  ut  nuUus  in  regibus 
nec  ante  nec  postea  fuerit  similis  tui  »  ;  e  3,  Reg.  10  mostra  a  Sa- 
grada  Escriptura  que  Ihe  foi  cumprida  esta  promesa,  dicendo : 
«  Magnificatus  est  igitur  Salomon  super  omnes  reges  terrae  di- 
vitiis  et  sapientia  >  ;  e  frey  Luis  antepoe  a  as  rique^as  de  Sa- 
lomam  e  a  as  de  quantos  Reyes  ouve  e  ha  oje  em  o  rnundo  os 
thesouros  que  o  Preste  Joam  tem  em  Guixen  Amba,  a  que  elle 
chama  monte  Amara  sendo  tudo  tam  fabuloso  como  acima  temos 
mostrado.  Nem  Francisco  Alvares  diz  que  estava  aquelle  thesouro 
em  Guixen  Amba  em  as  salas  que  o  Author  pinta,  senam  longe 
de  alli  em  huma  coba,  perto  da  qual  tinha  suas  casas  Pero  de  Co- 
vilham.  Nem  avia  la  o  thesouro  que  elle  cuidava,  senam  cabayas 
de  borcado,  de  velludo  e  damasco  e  outras  pe<;:as  ricas,  que  Ihes 
traciam  aos  Emperadores  de  Meca  e  do  Cairo  e  alguns  esquifes, 
como  me  affirmou  o  Emperador  Seltan  (^agued,  a  quem  preguntei 
isto;  e  disse  que  tudo  se  queimou,  quando  veio  aquelle  mouro  de 
Adel  a  quem  chamam  Granh ;  nem  as  rendas  de  ouro  foram  nunca, 
nem  sam  oje  tam  grandes  que  os  Emperadores  pudesem  athesorar 
muyto,  como  adiante  veremos,  quando  trataremos  dellas. 
XX.  Elena  impera-  Tambem  foi  grande  encarecimento  o  que   a  emperatriz  Elena 

ad^e^emLus^niae  ^^^^^  ^^  ^"^  ^^  carta,  quc  escreveo  al  rey  dom  Manoel  de  Portu- 
hsrperbolice  loquuta  gal,  que,  se  quisese  armar  mil  naos,  ella  daria  os  mantimentos  e  so- 

est  de  divitiis  Reg^zn 

Aethiopiae.  coreria  em  abundancia  com  tudo  o  que  fosse  necessario  pera  a  ar- 

mada;  e  frey  Luis  Ihe  acrecenta:  pera  tudo  o  tempo  que  durase  a 
guerra,  e  diz  que  ella  era  avo  do  emperador  David;  mas  enga- 
nouse,  porque  nam  era  senam  molher  do  emperador  Naod,  cujo 
filho  era  David,  mas  bastardo,  como  pouco  ha  me  disse  o  Empe- 
rador.  E  muyto  mayor  encarecimento  foi  o  que  escreveo  este  Da- 
vid,  que  depois  se  chamou  Onag  (^agued,  em  a  carta  que  mandou 


i 


LIVRO   I,     CAPirULO   IX.  109 

al  rey  dom  Joam,  que  tinha  ouro,  homens  e  mantimentos  como  as 
areas  do  mar  e  as  estrellas  do  ceo.  Queria  engrandecer  as  cousas 
f.  45.V.  de  sua  terra,  que  posto  que,  muyto  fertil,  esta  longe  de  le  cuadra- 
rem  *taes  palavras;  e  pouco  Ihe  aproveitou  depois  aquella  tam 
grande  multidam  de  gcnte  que  decia,  pois,  entrando  aquelle  mouro 
Granh  com  exercito,  Ihe  tomou  casi  todas  as  torras  e  elle  andou 
fugindo  de  huma  parte  a  outra  ate  que  morreo  cm  o  reyno  de  Tigre, 
e  se  entam  nam  viera  Dom  Christovao  da  Gama  com  400  Portu- 
gueses  de  socorro,  os  mouros  se  ensenhoreavam  do  imperio,  sem 
aver  quem  Iho  pudesse  impedir.  xa.  Quid  sit  veri 

Ai  j*/>T*jiTT^  1A1  ineo  quod  affirmat 

cerca  do  que  diz  frey  Luis  de  Urreta,  que  o  emperador  Alexan-   urreta   de   nummis 

dre  3°  que  morreo  o  anno  de   1606,  bateo  moeda  como  ovada  e  em   cxcusis  ab  Alezan- 

dro:    Auctor    loqui- 

huma  parte  a  imagem  de  s.  Matheus  e  na  outra  hum  liam  com  cruz  na  tur  ex  propria  expe- 

mao  etc,  tudo  foi  falsa   informacjam  que  Ihe  deram;   porque   pri-  "*"***• 

meiramente  ja  tenho   declarado  muytas  veces  que   nunca  ouve  em 

Ethiopia  Alexandre  3°,  e  que  eu  entrei  em  mayo  de  1603  e  o  Em- 

perador  se  chamava  Jacob;  este  era  nome  do  bautismo  e  o  do  im- 

perio  Malac  (^agiied  como  seu  pay,  e,  sendo  elle  menino,  governava 

a  emperatriz  Mariam  Cina  e  seu  jenrro  Eraz  Athanatheus,  o  qual 

persuadio  a  todos  os  Grandes  que  era  bem  batir  moeda,  que  antes 

nam  se  usava  em  Ethiopia,  e  come^aram  por  cobre.  A  figura  era 

redonda  e  tam  grande  como  hum  veneciano ;  em  huma  parte  tinha 

gravada  a  imagem  do  emperador  Jacob  da   cinta  pera   cima,   com 

coroa   na   cabec^a,  e   da  outra   vanda  seu  nome,   sem    outra   cousa 

nenhuma.  Isto  me  disseram  os  que  viram  a  moeda  e  hum  dos  [que] 

ficeram  os  cunhos  e  os  abriram,  que  he  hum  orivez  grego,  que  ainda 

vive ;  e  tam  longe  estavam  em  Ethiopia  de  gravar  na  moeda  a  ima- 

gem  de  sam  Matheus  que  estranham  muyto  gravarse  a  de  sam  Mar- 

cos  em  os  venecianos.  Esta  moeda  nam  quis  receber  o  povo  por  ser 

de  cobre,  e  assi  nam  se  bateram  mais  que  3000  arrates  de  cobre, 

como  me  disse  este  Grego,  que  os  fez  pesar  e  isso  ficou  perdido: 

logo   se   tornaram    ao    antiguo,   que   he   trocar   humas   cousas   por 

outras,   ou  comprar  com  ouro  pesado. 

Nam  menos  se  enganou  o  Author,  no  que  diz  que  se  lavra  ca 
prata  e  servia  de  moeda  pera  contratar  com  os  mercadoures  de  outras 
na<;oes,  porque  nam  se  podia  tirar  ouro  do  imperio  senam  so  prata. 
Milhor  dissera  que  so  ouro  saia  do  imperio,  porque  com  esto  con- 
tratam  com  os  mercadoures  de  outras  na^oes,  e  prata  nenhuma  ha 
que  possa  sair,  antes  a  tracem  sempre  comprada  do  porto  dos  Tur- 


HO  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

cos ;  e  estes  annos  passados  davam  aqui  por  cinco  patacas  peso  de 
ouro  de  huma  dellas,  ainda  que  o  ordinario  sam  sete,  nam  porque 
faltem  minas  de  prata,  senam  porque  parece,  que  nam  a  sabem 
tirar,  que  ja  provaram  por  veces,  depois  que  eu  vim,  e  era  muyto 
boa  alguma  que  me  mostraram;  mas  dessistiram  porque  Ihes  cu- 
stava  muyto  trabalho  e  tiravam  pouca. 


f.  46.  CAPITULO  X. 

Em  que  se  declara  a  causa  porque  se  come^aram  a 
meter  os  filhos  dos  Emperadores  em  Guixdn  Amb& ; 
ate  que  Emperador  durou  este  costume  e  como  se 
guardam  agora  os  descendentes  de  aquelles  primeiros. 


A  principal  regam  e  causaporque  Guixen  Amba  tem  tam  grande  i.  Filius  impera- 
nome  e  de  muytos  tempos  a  esta  parte  foi  tam  celebrada,  nam  so  fuh^primua^qui^fra- 
dos  estrangeiros,  mas  ainda  dos  naturaes  de  Ethiopia,  avendo  nella  tres  suos  in  AmbA 

Guix6n      custodien- 

outros  lugares  mais  fortes  c  de  nam  menos  commodidade  pera  se-  dos  misit. 
rem  habitados,  he  porque  este  monte  ou  fortale^a  (nam  feita  por 
arte  senam  polla  mesma  naturega),  que  esta  em  o  reyno  de  Amhara, 
foi  escolhida  dos  antignos  Emperadores  nam  pera  por  nella  em  cu- 
stodia  os  malfeitores  e  enemigos,  senam  seus  proprios  filhos  e  ir- 
maos,  que  ate  destes  se  arrecea  o  desejo  de  reynar.  Mas  pera  que 
milhor  se  entenda  isto,  se  ha  de  saber  que  o  emperador  Icunu  Amlac, 
de  quem  ficemos  men^am  no  fim  do  cap.  1,  teve  cinco  filhos  ou, 
como  outros  dicem,  nove,  e,  estando  pera  morrer,  Ihes  encomendou 
encarecidamente  que  tivesem  muyto  amor  e  uniam  entre  si,  e  que 
cada  hum  reinase  hum  anno,  come^ando  o  mais  velho,  e  assi  hiam 
facendo.  Mas  chcgando  o  imperio  ao  segundo,  ou,  como  os  que  di- 
cem  que  eram  nove  irmaos,  chegando  ao  septimo,  se  enfadou  o 
mais  piqueno,  que  se  chamava  Frehecjan,  porque  o  Emperador  e 


112  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

o  que  ja  o  tinha  sido  comiam  sempre  juntos  em  huma  mesa,  e  como 
acavavam,  se  asentavam  a  ella  os  demais  irmaos,  mas  nam  Ihes  per- 
mitiam  labar  as  maos  alli  diante,  senam  que  os  obrigavam  a  sair 
fora  do  aposento  a  se  labar  e  depois  entravam  a  comer.  Enfadado 
disto  Frehe^an,  disse  a  seus  amigos:  Eu  nam  he  de  facer  desta  ma- 
neira,  senam,  quando  me  cTiegar  o  imperio,  prender  todos  estes 
meus  irmaos  e  poUos  em  lugar  de  onde  nam  possam  mais  sair.  Nam 
faltou  quem  dissese  isto  ao  que  era  Emperador;  pollo  que  mandou 
logo  prender  todos  seus  irmSos  e,  sabendo  que  Guixen  Amba  era 
muyto  forte  e  acommodada  pera  os  ter  nella,  porque  os  moradoures 
ja  eram  christaos  e  tinham  la  igrejas  do  tempo  do  emperador  La- 
libela,  que  foi  70  annos  antes  pouco  mais  ou  menos,  os  mandou  le- 
var  e  dar  la  tudo  o  necessario  abundantemente  e  que  tivesem  boa 
guarda,  para  que  nam  pudesem  sair;  e  ainda  oje  ha  em  Guixen 
Amba  gera<;am  de  Frehe^an,  segundo  me  disse  o  emperador  Sel- 
tan  (J)agued,  que  foi  hum  dos  que  me  contaram  esta  historia. 
a.  Ez  eo  tempore  Daquelle  tempo  ate  o  emperador  Naod,  que  seram  212  annos 

usque   ad  Na6d  vi-  r  •  .  .  t^  •      • 

guit  ille  mos.  Filii  pouco  mais  ou  menos,  sempre  101  costume  meterem  os  Prmcipes 
Imperatorum    pote-  qjj^  Guixen  Amba,  e  levavamos  como  checfavam  a  idade  de   *oito  f.  46,v. 

rant  nubere,  lUis  da-  ^ 

batur  cibus  et  potus  annos,  e  por  tempo  multiplicaram  tanto  que  chegaram  a  ser  mais 
cunU  ^rca.  MaiK!i-  ^^  quinhentos  com  molheres  e  filhos,  porque  sempre  casaram  e  ti- 
piisutebanturadser-  veram  la  cima  suas  molheres  e  filhos,  como  oje  tem  osque  ficaram; 

vitia,     commercium  t..,.  •  ^j 

cum  nobilibus  et  ho-  nias  a  as  nlhas  nunca  se  Ihes  prohibio  sair  a  casar  a  sua  vontade 
vedtum  ^*^*"'  *^^'*  onde  quisesem,   porque  os  filhos  destas  nam  podem  herdar  o  im- 

perio,  nem  ainda  os  filhos  das  filhas  do  Emperador,  porque,  se  elie 
nam  tiver  filhos  varoes,  ham  de  buscar  depois  de  sua  morte  a  quem 
perten^a  o  imperio  por  via  masculina  dos  que  estam  fora  de  Gui- 
xen  Amba,  e  se  nam  ouver,  tirar  algum  dos  que  la  estam.  A  estes 
Principes  dicem  que  tinham  prometido  pera  seus  gastos  a  3*  parte 
das  rendas  do  imperio,  mas  muyto  pouco  ouro  Ihes  davam,  posto 
que  mantimentos,  pannos  de  algodam,  mantega  de  vacas  e  mel  pera 
comer  e  facer  vinho  tinham  em  abunduncia,  porque  senlioreavam 
muytas  terras  a  roda  de  (Tuixen  Amba,  cujos  moradoures  os  proviam 
de  todas  estas  cousas  abundantemente  e  tinham  obriga^am  de  Ihes 
facer  suas  casas  e  cercas,  mas  terreas  e  cubertas  de  palha,  como  ja 
dissemos,  e  ainda  barrerlhas  e  limpar  tudo  o  que  fosse  necessario. 
A  demais  gente,  de  que  se  serviam,  ordinariamente  eram  escra- 
vos,  e  nam  podiam  ter  outros  criados  de  nenhuma  maneira;  porque 
nam  somente  Ihes  eram  prohibidos  os  filhos  dos  homens  grandes, 


LIVRO   I,   CAPITULO   X.  II 3 

mas  ainda  dos  baixos,  pera  evitar  o  que  podiam  machinar  em  suas 
pretensoes,  ajudandose  pera  com  os  de  fora  destes  criados  e  de 
seus  pays. 

Tinham  posta  muyto  grande  vigia  e  guarda,  pera  que  nem  os  3.  A  militibus  ar- 
Principes  pudesem  decer  daquella  amba,  nem  pessoa  nenhuma  su-  ^r.Duohomines^ 
bir  sem  espressa  licenca  do  Emperador.  Estas  cfuardas  moravam  no  biles,  vocati  AcahA 

,  ,  ,  ,.  AmbAet  Xobhftrjan 

alto  em  huma  casa  que  tem  na  porta  da  entrada   (como  dissemos  cirAr,  eoram  curam 
no  capitulo  6)  e  mudavamse  de  certo  em  certo  tempo,  decendo  huns  ?*'**>*^*»  *™^°  "® 

^  '  xr   f  imperabant.    Bzem- 

e  subindo  outros,  que  estavam,  nam  .ao  pe  da  Amba,  que  alli  nam  plum  notabile  aeve- 
ha,  nem  ouve  nunca  povoa^am,  senam  afastados  como  dous  tiros 
de  espingarda  a  longo  de  humas  serras,  onde  Ihes  tinham  dado 
terras  pera  sua  comedia,  que  se  chamam  Habela.  Afora  estes  esta- 
vam  alguns  homens  nobres,  que  por  re^am  de  seus  officios  se  cha- 
mavam  Acaha  Amba,  Xobher  Jan  Cirar,  a  cujo  cargo  estava  guar- 
dar  o  fato  dos  Principes,  facer  que  se  arrecadeusem  as  rendas  de 
suas  terras  e  que  fossem  providos  de  tudo  o  necessario  a  seu 
tempo,  de  maneira  que  nam  ouvese  falta  em  seu  servi^o.  A  estes 
se  davam  todos  os  recados  e  cartas  que  vinham  pera  os  Princi- 
pes,  e  depois  das  verem,  as  davam  ou  nam,  como  milhor  Ihes 
parecia,  e  as  cartas  que  os  Principes  escriviam  tambem  as  aviam 
elles  de  ver,  e,  se  Ihes  parecia  bem,  as  mandavam,  e  se  nam,  as 
rompiam.  Era  tanto  o  que  sugetavam  estes  aos  Principes  que  nem 
Ihes  deixavam  facer  mudan^a  em  o  vestido  ordinario,  e  assi,  vendo 
hum  delles  a  hum  Principe  mais  curiosamente  vestido  do  que  se 
usava,  Ihe  deo  huma  bofetada  e  reprehendeo  asperamente,  dicendo 
f  47.  que  aquilo  mostrava  bem  que  andava  *com  o  cora^am  inquieto 
e  desejoso  de  reynar,  e  fezlhe  tirar  o  vestido,  Sucedeo  todavia 
que,  morrendo  dalli  a  pouco  o  Emperador,  foi  aquelle  principe 
escolhido;  o  que  vendo  o  que  Ihe  deo  a  bofetada,  se  afastou 
com  medo  e  vergonha  do  que  tinha  feito,  sem  se  atrever  a  apa- 
recer  mais  diante  delle;  mas  o  Emperador,  como  se  vio  em  sua 
cadeira,  o  mandou  chamar  e,  vindo  com  grande  medo,  se  Ihe  lan^ou 
aos  pes  pidindolhe  perdam  do  que  com  tam  grande  atrevimento 
ficera.  O  Emperador  mandou  que  se  alevantase  e  fez  tracer  ricos 
vestidos  e  huma  manilha  de  ouro  e  com  palavras  brandas  Ihe  disse, 
que  nam  tivese  medo,  que  sirvira  muyto  bem  naquilo  a  seu  senhor, 
que  se  vistise  e  pusese  aquella  manilha  e  tornase  pera  seu  mando, 
porque  esperava  que  o  avia  de  servir  a  elle  com  a  mesma  fideli- 
dade  que  tinha  sempre  servido  a  seu  antecessor. 

C.  Bbccari.  Rer,  Aeth,  Script,  occ»  iued,  —  II.  15 


114  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

4.     ZAra     jacob  Correndo  as  cousais  dos  Principes  em  esta  forma,  chegou  o  im- 

omnes  pertinentes  P^rio  a  Zara  Jacob,  e  nam  sei  porque  se  enfadou  dos  da  familia 
ad  familiam  impera-  ^^  emperador   Hezb   Inanh,  que  mandou  que  os    tirasem  daquella 

Bftda  MarilLm  resti-  amba  e  os  levasem  a  humas  terras  baixas  muyto  quentes  e  doen- 

tuit  in  pristinum  8ta-    ..  ,  /^iam-j.^  2.  j 

tum  •  sed  illi  rebel-  ^'^^'  ^^^  chamam  Cola,  scilicet   ^  terra  quente  » ,  onde  nam  moravam 

lant.  B6da  MariAm  senam  viUoes,  e  disse  que  fossem  Isrraelitas  do  Cola,  que  era  tanto 

per    fraudem    expu- 

gnat  Amba  Guixto  como  dicer  que  Ihes  tirava  a  nobre(;a  dos  IsrraeUtas,  que  decen- 
ratorum  oit  ^°]^I  diam  dos  Emperadores,  e  os  facia  villoes.  Sintiram  elles  muyto  esta 
tit.  injuria  e  a  incommodidade  e  trabalho  da  morada,  mas,  como  os  le- 

vavam  com  boa  guarda,  nenhum  se  pode  afastar ;  e  alli  os  tiveram 
ate  que  por  morte  de  Zara  Jacob  entrou  no  imperio  seu  filho  Beda 
Mariam.  Este  Ihes  mandou  dicer :  Por  bentura  o  filho  nam  perdoara 
aquilo,  porque  se  airou  seu  pay?  Tornai  a  vossa  primeira  mourada 
de  Guixen  Amba  e  nam  tenhais  paixam,  que  eu  vos  farei  bem.  E 
depois  que  entraram  na  amba,  Ihes  mandou  preguntar  por  tres  cria- 
dos,  que  visem  o  que  queriam,  que  em  tudo  Ihes  daria  gosto  e  faria 
merce.  Mas  elles,  que  tinham  ainda  viva  a  memoria  da  injuria  pas- 
sada  e  muyto  mais  o  desejo  de  se  vengar,  nam  ficeram  caso  do  que 
Ihes  ofFerecia,  antes  tomaram  todos  tres  criados  e  os  mataram  e  se 
ficeram  fortes  la  cima,  sem  Iho  poderem  impedir  as  guardas  que 
estavam  descuidadas,  por  nam  imaginar  tal  cousa,  e  elles  eram  muy- 
tos.  Sabendo  isto  o  Emperador,  teve  grande  sentimento  e  acesso  em 
ira  determinou  de  destruir  e  acabar  a  gera<;am  de  aquella  casa,  e 
com  este  intento  parteo  logo  pera  la  com  muyta  gente,  e  chegando, 
trabalhou  muyto  porque  sua  gente  subise;  mas  os  de  cima,  que 
entendiam  bem  sua  pretensam,  que  era  vengarse,  defenderam  com 
pedras  a  subida,  que  he  muyto  estreita  e  aspera,  dc  maneira  *que  f.  47»v. 
todos  os  do  Emperador  tiveram  por  impossivel  a  entrada,  e  assi 
elle,  posto  que  com  muyto  desgosto,  determinava  de  se  tornar;  mas 
em  esto  vieram  huns  moradoures  da  terra  e  disseram  ao  Empera- 
dor  que  elles  mostrariam  por  onde  se  podia  subir  e,  prometendo- 
Ihes  grandes  premios,  mostraram  huma  entrada  que  chamam  Me- 
stanquer,  que  a  entrada  ordinaria  se  chama  Macaraquer,  e  ainda 
que  por  aquella  parte  he  rocha  tam  ingreme  que  nenhum  dos 
da  cima  se  arreceava  de  que  Ihes  pudosem  entrar,  com  tudo  su- 
biram  de  noite,  pegandose  a  as  arvorecinhas  e  raices  que  saiam 
por  entre  as  juntas  das  rochas,  e  pouco  antes  de  amanhecer,  deram 
de  subito  em  os  de  cima,  que,  como  estavam  desarmados  e  sem  ar- 
receio  de  tal  asalto,  facilmente  os  rindiram  e  levaram  ao  Empera- 


LIVRO   I,   CAPITULO  X.  II5 

dor.  Elle  entam  mandou  cortar  as  cabe^as  a  80  e  pus  boas  guarda[s] 
em  a  Amba  e  com  isto  se  tomou. 

O  terceiro  Emperador  depois  deste   Beda  Mariam  se  chamou      5«  Na6d,   ultimus 

xTAjr-j  j-  !••  j  ^  ^.A       qui  ad  impcrium  fuc- 

Naod,  e  foi  o  derradeiro  que  eligiram  dos  que  estavam  em  Guixen   ^t  evcctus  cx  Amb& 

Amba.  A  causa  disto  dicem  que  foi,  que  entrando  hum  dia  diante   Guixftn,  prohibuit  nc 

"  ^  8U1  filii  codem  custo- 

p  delle  hum  seu  filho,  disse:  Ja  este  menino  creceo.  Respondeo  elle:   dircntur,  ct   cx    co 

Creci  pera  Guixen  Amba;  o  que  magoou  tanto  ao  Emperador  que  aimiT^vetus  consuc- 
jurou  de  nam  meter  la  mais  a  ninguem,  e  fez  escomungar  os  Gran-  ^^0  ccssavit. 
des,  pera  que,  nem  ainda  depois  de  sua  morte,  nam  metesem  a  nen- 
hum  de  seus  filhos,  mas  que  se  gnardasem  todos  os  que  pri- 
meiro  la  estavam  dos  de  Isrrael ;  e  assi  o  ficeram  ate  oje ;  porque, 
ainda  que,  quando  morreo  o  emperador  Malac  Qagued,  que  foi  pollos 
annos  de  1596,  prenderam  a  seu  sobrinho  Za  Denguil,  nam  o  le- 
varam  a  Guixen  Amba,  senam  a  huma  ilha  que  chamam  Dec,  que 
esta  na  lagoa  de  Dambia,  e  deram  o  imperio  a  Jacob  filho  ba- 
stardo  do  emperador  Malac  Qagued ;  e  depois  no  anno  de  603  pren- 
deram  a  Jacob  e  o  mandaram  com  guarda  ao  reyno  de  Narea,  nam 
a  Guixen  Amba,  e  deram  o  imperio  a  Za  Denguil ;  e  ao  emperador 
Seltan  Qagued,  que  oje  vive,  Ihe  morreo  hum  filho  de  20  annos  aos 
24  de  decembro  de  616,  e  tem  agora  hum  de  18  annos  e  outro  de 
^  1 7  e  outros  dous  mais  piquenos,  e  nenhum  delles  entrou  nunca  em 

Guixen  Amba;  sempre  estiveram  e  estam  em  a  corte  com  o  Em- 
perador,  por  cessar  este  costume  desde  o  emperador  Naod,  que  ha 
114  annos  que  passou  este  de  1622. 

Ainda  porem  que  daquelle   tempo  pera  ca  nam   meteram  em      .6.  Prognati  tamcn 

^.yv.,/s  ntx         jt:»  j  ^j*  j  vcterum     Imperato- 

Guixen  Amba  os  nlhos  dos  Emperadores,  todavia  guardaram  com  ^^  adhuc  in  AmbA 
muyta  dilicfencia  os  que  primeiro  la  estavam  ate  o  emperador  Ata-  Q*"»*i».  ii»,  libcriori 

^  ^  ^        ^  ^  licetcu8todia,rclicti. 

naf  Qagued,  que  primeiro  se  chamalva  Glaudeos,  scilicet  Claudio,  Tempore    Auctoris, 
e  comegou  a  reynar  pollos  annos  de  1540.  Este  foi  facendo  pouco  ^Vnumerabatur  in- 
caso  delles  e  nSlo  Ihe  dava  nada  quc  decescm  alguns  da  amba,   e  clusis    uxoribus    ct 
f.  48.     estivesem  em  *algumas  aldeas  onde  tinham  suas  comedias.  Depois 
se  foi  alargando  isto  de  maneira  que  a  sos  quince,  que  ficaram  dos 
da  familia   do  emperador   Hezb    Inanh,   prohibem  agora  a  decida, 
por  se  temerem  delles.  Todos  os  outros  decem  de  ordinario  em  o 
inverno  e  estam  em  suas   aldeas,   porque  em  tempo  de   chuva  he 
muyto   trabalhosa  a  subida  pera  a  gente  de  servi^o,  que  Ihes  leva 
lenha  e  mantimentos  etc;  mas  no  verao  tornam  a  subir  por  medo 
►  dos  Galas  gentios,  de  quem  falamos  no  capitulo  i ,  que  por  alli  par- 

ticularmente  facem  muytas  entradas  roubando  e  cativando  molheres 


Il6  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

e  mininos,  que  aos  homens  todos  matam,  e  ainda  algumas  veces  as 
molheres  com  grandes  crueldades.  Seram  por  todos  os  que  estam 
em  Guixen  Amba,  quando  no  verSo  se  juntam,  200,  contando  mo- 
Iheres  e  mininos,  mas  dicem  que  antiguamente  eram  mais  de  500. 

7.  Quae     rctulit  Isto  he  brevemente  o  que  passa  sobre   o  que   propusimos   no 

Auctor   circa  AmbA   a_'^    1      j     ^  «^   i  j  •    r  j 

Guixto  scivit  a  Sel-  ^itulo  deste  capitulo,  segxmdo  a  mforma^am  que  me  deram  os  prm- 
t4n  SagAd  et  a  qui-  cipes,  que  estiveram   muytos   tempos  em  Guixen  Amba,  e  outros 

busdam  Principibus  a  a 

qui  longo  tempore  senhores  da  corte  e  o  emperador  Seltan  Qagued,  a  quem,  pera  mais 
lanr  Ei^"«"u°^^  »"«  certificar.  por  ter  muyta  confianga  pera  falar  com  elle,  Ihe  pre- 
tae  et  Alvarez  circa  guntei  de   proposito  as  cousas  principaes,   dicendo   que  as  queria 

originem    consuetu- 

dinis  praedictae.        escrever,  e  as  refirio  da  maneira  que  aqui  as  tenho  escritas,  concor- 

dando  com  o  que  os  outros  senhores  me  tinham  dito.  Por  onde 
o  que  escreveo  frey  Luis  de  Urreta  no  cap.  1 2  sobre  esta  materia 
tudo  he  muyto  contrario  a  verdade,  por  carecer  della  a  informa- 
<;iam  que  siguio ;  e  pera  que  o  leitor  tenha  mais  particular  noticia 
de  suas  cousas,  refirirei  algumas  das  muytas  que  alli  conta,  come- 
<;ando  polla  pagina  132,  onde  diz  que  o  meter  os  filhos  dos  Em- 
peradorcs  em  o  monte  Amhara  he  costume  tam  antiguo  que  o  in- 
stituyo  el  rey  Josue  neto  de  Salomam,  filho  de  Menilehec,  pera  ti- 
rar  as  ocasioes  de  ambicpam,  vandos  e  guerras  civis,  e  que  depois 
alguns  Emperadores,  enternecidos  com  o  amor  de  seus  filhos  e  for- 
^ados  dos  rogos  das  mays,  deixaram  hum  pouco  de  tempo ;  mas  o 
emperador  Abraham  teve  revela^am  de  Deos  que  restaurase  o  co- 
stume  antigiio  e  tornase  a  por  e  fechar  em  aquelle  monte  os  Prin- 
cipes  heredeiros,  se  queria  perpetuar  o  ceptro  e  monarchia  em  sua 
gera^am  e  estirpe  de  David. 

8.  Ex  dictis  supra  Bem  se  vee  quam  contrario  he  isto  ao  que  temos  dito,  pois  tan- 

tos  centos  de  annos  depois  dos  filhos  de  Menilehec  se  come^aram 
a  meter  em  Guixen  Amba,  a  que  elle  chama  monte  Amhara,  os  fi- 
Ihos  dos  Emperadores;  nem  Menilehec  teve  filho  que  se  chamase 
Josue,  como  se  pode  ver  em  os  catalogos  dos  Emperadores,  que  pu- 
simos  no  cap.  5;  nem  em  todos  elles  se  acha  Emperador  que  se 
chame  Abraham,  nem  ha  quem  saiba  dar  re^am  delle,  senam  quise- 
rem  dicer  que  Abraha  e  Abraham  he  tudo  hum.  Mas  ainda  que 
fora  assi,  este  Abraha  foi  tambem  muytos  centos  de  annos  antes 
do  filho  do  *emperador  IcQnu  Amlac,  que  come^ou  a  meter  os  prin-  ^-  48,v. 
cipes  em  Guixen  Amba.  Bem  sei  que  Francisco  Alvares  em  sua 
Iltstoria  Ethiopica  fol.  66  e  73  diz  que  a  hum  emperador  Abra- 
ham  Ihe  foi  revelado  que  metese  em  huma  serra  todos  os  Princi- 


LIVRO   T,   CAPITULO  X.  117 

pes,  excepto  o  que  ouvese  de  herdar  o  imperio,  e  nam  sabendo  que 
serra  podia  ser  aquella,  Ihe  foi  outra  vez  revelado  que  ficese  olhar 
pollas  serras  mais  altas,  e  que  onde  visem  andar  cabras  do  mato 
como  que  se  despenhavam  alli  era  a  serra  onde  os  Infantes  de 
Ethiopia  se  aviam  de  guardar;  e  mandando  buscar  a  serra,  achou 
ser  aquella  que  he  tam  grande  que  tem  bem  hum  homem  que  su- 
bir  dous  dias  do  pee  ate  o  alto,  toda  ella  penha  talhada  e  tam 
dereita  e  alta  que,  quando  homem  vai  pollo  pee  e  olha  ao  alto,  pa- 
rece  que  o  ceo  esta  sentado  sobre  ella.  Atc  aqui  Francisco  Alva- 
res;  e  mais  adiante  fol.  77  diz,  que  no  alto  daquella  serra  se  facem 
outras  serras  e  montes,  que  sam  causa  de  que  aja  alguns  valles, 
entre  elles  hum  entre  duas  asperissimas  serrcis,  que  em  nenhuma 
maneira  se  pode  sair  delle,  porque  esta  fechado  com  duas  portas, 
e  em  este  valle  metem  aquelles  que  sam  mais  chegados  ao  Empe- 
rador,  como  sam  irmaos,  tios,  sobrinhos  e  os  demais  que  ha  pouco 
que  estam  fechados,  pera  que  alli  estejam  com   mayor   resguardo. 

Toda  esta  historia  he  apocrifa,  porque  nem  ouve  tal  empera- 
dor  Abraham,  nem  os  Principes  se  meteram  em  aquella  serra  por 
revela^am,  senam  polla  causa  que  ja  dissemos,  nem  metiam  la  pri- 
meiro  sos  os  principes  que  nam  aviam  de  herdar,  senam  tambem 
o  herdeiro;  nem  estiveram  nunca  em  valle,  senam  em  o  alto  de 
Guixen  Amba,  que  nam  he  serra  como  elle  a  pinta,  senam  como 
a  descrevemos  em  o  capitulo  6.  Mas  nam  he  maravilha  que  errase, 
porque,  como  era  estrangeiro  e  hia  tam  de  passo  e  com  tanto  tra- 
balho,  como  elle  diz,  por  aquelles  caminhos,  nam  se  podia  infor- 
mar  tam  en  particular  das  cousas,  nem  examinar  tanto  como  era 
necessario  as  rela<;oes  que  Ihe  davam;  que,  ainda  que  fossem  al- 
gumas  tiradas  dos  livros  da  terra,  pediam  muyto  examem,  por  esta- 
rem  casi  todos  cheios  de  patranhas. 

Diz  mais  frey  Luis  de  Urreta  pag.  133:   «  Juntanse  estes  Prin-      9.  Alia  commenta 

Urretae  risu    diena. 

<  cipes,  siempre  que  quieren,  a  jugar,  ca^ar,  pescar  y  entretenerse 
«  en  lo  que  mas  les  da  gusto;  pero  de  obligacion  se  han  de  juntar 
«  todos  pera  oyr  missa  los  dias  de  fiesta,  y  los  demas  officios  di- 
«  vinos;  a  la  qual  junta  no  pueden  faltar  sino  por  enfermedad,  y 
«  el  orden  que  en  esto  guardan  es  el  siguiente.  Ay  una  sala  de- 
«  putada  para  este  ajuntamiento  muy  espaciosa  y  ricamente  ador- 
«  nada  de  panos  preciosissimos  y  colgaduras  de  grande  valor,  y 
«  quando  ja  estan  todos  los  Principes  juntos,  salen  en  orden  ha- 
«  ciendo  una  procesion  desta  manera.   Van  cuatro  maceros  delante 


Il8  HISTORTA   DE   ETHIOPIA 

«  con  mantos  de  damasco  negro  todos  muy  plegados  *al  cuello  y  f.  49. 
«  tan  largos  que  les  rastran  por  el  suelo  con  grandes  faldas  y  co- 
«  las,  las  mangas  largas  hasta  el  suelo,  que  llaman  mangas  de  punta, 
«  Uevando  alos  hombros  sus  ma^as  de  oro.  Despues  se  sigue  un 
«  mancebo  vestido  de  damasco  hecho  a  girones  de  negro  y  ama- 
«  rillo:  la  ropa  le  Uega  hasta  media  pierna,  con  una  almohadilla  en 
«  las  manos,  y  sobre  ella  una  corona  de  oro  forrada  de  raso  a^ul, 
«  para  dar  a  entender  con  esta  insignia  que  todos  aquellos  princi- 
«  pes  son  del  linage  y  descendencia  de  David  y  aptos  por  ser  ele- 
«  gidos  por  Emperadores.  Luego  se  siguem  de  dos  en  dos  los  Prin- 
«  cipes,  Uevando  los  mayores  en  edad  el  mejor  lugar,  que  es  la 
«  mano  derecha,  vestidos  de  negro,  cada  uno  con  su  cruz  a^ul  al  pe- 
<  cho  y  cairelada  con  un  hilo  de  oro  por  las  orlas.  La  cruz  es  el 
«  Tau  de  s.  Anton  con  unas  florecillas,  y  un  bonete  de  clerigo  en 
«  la  cabe^a  de  cuatro  picos ;  y  esto  se  usa  desde  Paulo  III,  que  lo 
«  mando,  que  antes  los  Uevavan  redondos,  que  es  el  habito  delos 
«  comendadores  de  s.  Anton.  Detras  de  ellos  se  siguen  todos  los 
«  pages  y  criados,  los  quales  son  todos  gente  principal  hijos  de 
«  Reyes,  y  despues  la  demas  gente.  Con  este  orden  caminan  para 
«  la  iglesia  del  Sp."  S.'°,  a  cuya  puerta  esta  aguardando  el  Abad 
«  espiritual  de  aquella  abadia,  vestido  de  pontifical,  con  el  baculo 
«  pastoral  en  la  mano,  y  un  cavallero  militar  junto  a  el  con  un 
«  estoque  desnudo ;  que  este  modo  de  assistencia  es  ordinario  a  los 
«  Abades  espirituales ;  y  echandoles  a  todos  los  principes  agua 
«  bendita,  entran  en  la  iglesia,  puniendose  el  Abad  a  la  mano  yz- 
«  quierda  del  mas  anciano  de  los  principes,  con  el  qual  se  hacen 
«  las  mismas  ceremonias  en  el  discurso  de  la  missa  que  se  aco- 
«  stumbran  a  hacer  con  el  Emperador  ». 
10.  Iterum  alia.  Mais  adiante  diz  que  os  monges  de  aquella  abadia,    que  sam 

1500,  tem  cuidado  do  insino  dos  Principes  e  do  governo  de  seus 
pa^os  e  criados,  os  quaes  poem  e  tiram  a  sua  vontade  e,  pera  mi- 
Ihor  acudir  a  este  ministerio,  sincilam  cada  semana  cuatro  de  los 
monges  que  tem  cuidado  de  assistir  e  acudir  ao  servigo  dos  Prin- 
cipes,  mandando  o  que  se  ha  de  facer;  e  que  cada  hum  dos  prin- 
cipes  tem  dez  criados  pera  o  servi^o  ordinario  de  sua  pessoa,  e  sam 
filhos  ou  descendentes  dos  Reys  vassallos  do  imperio,  e  tem  obri- 
ga^am  de  servir  alli  hum  anno,  aos  quaes  escolhe  o  Abade  espi- 
ritual,  e  acabado  o  anno,  se  tornam  a  suas  abadias  onde  residiam 
e  Ihes  *deram  a  cruz;   mas  cada  hum  com  huma  muyto  boa  joya  f.  49,^. 


futantiir. 


LIVRO   I,   CAPITULO  X.  II9 

que  os  Abades  espiritual  e  militar  de  s.  Cruz,  juntamente  com  o 
Principe  a  quem  sirviram,  escolhem  do  thesouro  das  pedras  pre- 
ciosas,  conforme  aos  servigos  de  cada  hum;  e  como  estes  decem 
de  cima,  sovem  outros  dez  a  servir  ao  Principe.  Sem  estes  criados, 
estam  em  sua  companhia  algumas  pessoas  graves,  sinaladas  em 
conselho,  letras  e  virtude,  embiadas  por  o  Emperador  e  seu  con- 
selho,  de  cuja  discre^am  e  virtude  se  aproveita  o  Principe. 

Estas  e  outras  muytas  cousas  diz  alli  o  Author,  que,  se  foram  n.  Breviter  re- 
certas,  eram  de  grande  policia  e  governo,  suposto  que  aviam  de 
ter  alli  os  Infantes;  mas  tudo  he  mera  fic^am  de  quem  Ihe  infor- 
mou,  porque  primeiramente,  como  dissemos  no  cap.  6,  la  cima  do 
monte  nam  ha  animaes  de  ca^a,  excepto  huns  que  nos  chamamos 
coelhos,  por  se  parecerem  com  os  de  Portugal,  e  estes  ninguem  os 
come,  e  tambem  bugios ;  nem  ha  peixe  nenhum.  Por  onde  os  Prin- 
cipes  nam  se  podem  juntar  pera  ca(;:ar  e  pescar,  nem  menos  se  jun- 
tam  pera  ir  a  missa  em  aquella  sala,  que  pinta  tam  ornada  com 
pannos  ricos,  porque  nam  ha  tal  sala,  e  quando  muyto  dous  da- 
quelles  Principes,  se  sam  amigos,  vam  juntos  a  missa,  e  se  nam  a 
quiserem  ouvir,  ninguem  Ihes  preguntara  o  porque :  tam  longe  estam 
de  ir  a  missa  por  obriga^am  em  aquella  tam  bem  ordenada  proces- 
sam  que  fingio  Joam  Balthesar.  Nem  levam  cruz  a^ul  no  peito, 
nem  paiece  que  se  vio  nunca  em  Ethiopia  varrete  de  cuatro  can- 
tos,  quanto  mais  tracello  elles  em  a  cabega.  Huns  poem  touca,  outros 
varrete  redondo  ou  que  acabe  acima  em  ponta,  da  cor  que  acham ; 
e  mais  ordinario  he  andar  com  a  cabe^a  descuberta  e  o  cavello 
cumprido.  O  vestido  comummente  he  branco  de  algodam ;  .  e  nam 
se  sirvem  de  filhos  de  reys,  senam  de  escravos,  como  acima  disse; 
nem  sei  onde  aviam  de  achar  tantos  filhos  ou  descendentes  de  reys, 
se  cada  Principe  avia  de  ter  dez  e  cada  anno  Ihe  aviam  de  dar 
outros  novos. 

Do  que  se  ve  quam  grande  fabula  seja  que,  cumprido  o  anno, 
se  juntam  os  Abades  espiritual  e  militar  da  abadia  de  s.**  Cruz  com 
o  Principe  a  quem  sirviram  e  vam  a  sala  do  thesouro  das  pedras 
preciosas  e  dam  a  cada  hum  a  sua  conforme  a  seus  merecimentos; 
pois  nam  ha  taes  criados,  nem  ouve  la  nunca  thesouro  nenhum,  nem 
abadia  do  Sp.'°  S.'**,  nem  da  s.^''  Cruz,  nem  ha  tal  religiam  de 
f.  50.  Cavaleiros  Monges  e  militares  de  s.  Antani;  *nem  de  outros  frades 
ouve  la  cima  nunca  mais  que  quando  muyto  14  e  30  clerigos,  como 
fica  declarado  tudo  no  cap.  6,  septimo  e  9. 


I20  HISTORIA   DE   ETIIIOPIA 

la.  Faisum  deni-  Em  o  fim  do  cap.  12  pag.  139  diz  mais  o  Author  que  esta  pro- 

que  mulieres  nullas    ••  •    • -i  .     .  ,  n  ji  1 

subiisse     unquam  hivido  com  gravissimas   penas  que  nenhuma  molher,  de  qualquer 
Amb&  Guixftn.  estado  ou  condicjam  que  seja,  possa  subir  a  este  monte,  e  que  nam 

subio  nenhuma  desda  reynha  Candace,  que  foi  em  tempo  de  Christo, 
que  subio  a  bautizar  os  Principes  que  la  estavam;  e  refuta  Fran- 
cisco  Alvares,  porque  disse  que  os  Principes  estavam  la  cima  do 
monte  casados  com  filhos,  os  quaes  tambem  casavam,  porque  Joam 
Balthesar  falava  como  testemunha  de  vista,  que  fora  criado  do  em- 
perador  Alexandre  3°,  que  morreo  anno  de  1606,  quando,  sendo  prin- 
cipe,  estava  em  o  monte,  e  depois  subio  e  residio  muytas  veces  nelle. 
Porem  Francisco  Alvares  escreveo  a  certe^a  do  que  entam  passava 
e  dura  ate  agora,  porque  he  cousa  patente  e  sabida  de  todos  em 
Ethiopia,  quc  os  Principes,  que  se  guardavam  em  Guixen  Amba, 
casavam  e  seus  descendentes  sempre  casaram  e  tiveram  e  tem  suas 
molheres  e  filhos  la  cima,  como  ja  dissemos.  Tambem  falou  como 
quis  Joam  Balthesar  em  o  que  disse  que  sirvio  ao  emperador  Ale- 
xandre  3°,  que  morreo  o  anno  de  1606,  que,  sendo  principe,  estava 
no  monte,  porque  nunca  ouve  em  Ethiopia  mais  que  hum  Empe- 
rador  deste  nome,  a  que  elles  chamam  Escander,  e  este  morreo 
pollos  annos  de  1475,  tanto  tempo  antes  que  nacese  Joam  Balthe- 
sar;  pois  diz  o  Author  pag.  7,  que,  quando  chegou  a  Europa  e  Ihe 
deo  estas  informa^oes,  caminhava  pera  os  70,  e  ainda  o  derradeiro 
principe  que  tiraram  daquelle  monte  pera  Emperador,  que  se  cha- 
mou  Naod,  saio  de  la  algxms  50  annos  antes  que  nacese  Joam  Bal- 
thesar;  porque  de  entam  ate  os  annos  de  610,  que  se  imprimio  o 
livro  de  frey  Luis,  sam  118  annos.  Eu  tambem  entrei  em  Ethiopia 
em  mayo  de  603  e  nam  achei  tal  Alexandre,  como  declarei  em 
o  cap.  i^,  mostrando  quantas  veces  se  contradiz  no  que  poUo  di- 
scurso  da  historia  fala  de  Alexandre  3°.  Nem  os  Principes  se  po- 
diam  servir  la  de  pagens  como  Joam  Balthesar,  senam  de  escravos, 
como  fica  declarado  no  capitulo.  Nem  ha  pera  que  determe  em  re- 
futar  o  que  diz  que  a  reynha  Candace  subio  a  bautizar  os  Principes ; 
pois  tenho  mostrado  no  fim  do  cap.  i  e  do  7,  que  o  primeiro  que 
os  comegou  a  meter  naquelle  monte  foi  Udm  Arad  poUos  annos 
de   1295, 


r 


f.  5o,v.  CAPITULO  XI. 

£m  que  se  trata  do  modo  que  tinham  antiguamente 
em  Ethiopia  em  eligir  Emperador,  escolhendo  hum 
dos  Principes  de  Guix^n  Ambli,  e  do  que  agora 
se  usa. 


Mu)rto  grandes  e  bem  ordenadas  foram  as  cousas  que  frey  Luis       i.  Refemntur  fa- 

«TT^j*  j  •  ••jij.  bulae   Urretae  circa 

de  Urreta  disse  que  se  guardavam  em  a  cnacjam  e  insmo  de  lotras  clectionem   impera- 
e  bons  costumes  dos  Principes,  que  estam  em  Guixen  Amba,  como  torum     eiusdemque 

caeremonias. 

vimos  no  capitulo  precedente.  Mas  muyto  maiores  e  de  nam  menor 
concerto  sam  as  ceremonicis,  que  affirma  em  o  cap.  1 3  se  giiardam 
em  a  elei^am  do  Preste  Joam  emperador  de  Ethiopia,  porque,  como 
elle  diz  pag.  141,  «  Entre  los  de  la  EthiopiH,  la  dignidad  imperial  se 
«  da  por  sucession  y  juntamente  por  eleccion ;  la  qual  se  hace  con 
«  tanta  christiandad  y  virtud,  que  mas  parece  eleccion  de  prelado 
«  entre  religiosos  que  no  eleccion  de  Emperador  entre  seculares. 
«  Cuyo  estilo,  observancia  y  ceremonias  vera  el  que  me  acompa- 
«  iiare  en  este  capitulo. 

«  Concluidas  las  obsequias  del  Emperador  precedente,  aviendo 

«  encomendado  el  alma  a  Dios  y  el  cuerpo  a  la  tierra,  se  da  luego 

«  orden  a  la  futura  eleccion  del  Emperador,  para  la  qual  se  publica 

w  €  ayuno  por  todo  el   imperio   de    30   dias   continuos,  a   los  quales 

«  estan  obligados  por  costumbre  no  solo  los  ecclesiasticos,  sino  tam- 

C.  BKCiAlu.  /frr.  Ae/A.  Script,  occ,  ined,  —  II.  lO 


122  IIISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  bien  los  seculares  de  qualquier  estado  y  condicion  que  sea.  Estos 
«  dias  de  ayuno  comien^am  del  dia  que  se  publica  la  niuerte  del 
«  Emperador  y  por  todos  estos  30  dias  se  canta  por  las  iglesias  del 
«  imperio,  que  son  innumerables,  missa  del  Spiritu  S.***  .  Entre  tanto 
«  el  gran  Consejo,  el  qual,  mientras  dura  la  vacante,  tiene  todas  las 
«  veces  y  poder  absoluto  sobre  todo  el  imperio,  ordena  que  cuatro 
«  Reyes  de  los  sugetos  al  imperio  vajan  al  monte  de  Amhara,  los 
€  quales  con  tres  Patriarchas,  tres  Ar<;:obispos  y  tres  Obispos  y  los 
«  embaxadores  de  los  otros  Reyes  assistan  en  la  eleccion.  Los  qua- 
«  les  no  pueden  aloijar  en  ciudad,  ni  pueblo  alguno,  sino  baxo  de 
«  sus  pavellones  y  tiendas,  aunque  las  ciudades  circunvecinas  les 
«  embian  todo  lo  necessario  para  su  comida  y  de  la  gente  que  va 
f  en  su  compania  con  mucha  abundancia  y  regalo.  En  llegando  al 
«  monte  Amhara,  se  alojan  baxo  sus  pavellones  y  estan  aguardando 
«  que  esten  juntos  todos  los  que  son  necessarios  y  tienen  officio  en 
«  la  tal  eleccion.  Entretanto  los  dos  *Abades  espirituales  de  las  dos  f.  51, 
«  abadias  del  monte,  que  son  los  electores  del  Emperador,  baxan 
«  a  recibir,  visitar  y  regalar  a  los  del  Gran  Consejo,  Reyes  y  Per- 
«  lados,  que  estan  al  pie  del  monte,  y  han  ido  para  la  futura  elec- 
«  cion.  Juntos  todos  los  que  estan  obligados  a  assistir,  el  embaxa- 
«  dor  del  gran  Abad  o  Maestre  de  la  orden  de  santo  Anton  senala 
«  el  dia  competente  para  la  eleccion  del  Emperador.  Entretanto  to- 
«  dos  los  Perlados,  Ar^obispos  y  Obispos  cantan  missas  del  Spiritu 
«  Santo  en  los  pavellones,  dando  la  comunion  no  solo  a  los  electo- 
«  res,  sino  tambien  a  todos  los  que  quieren  del  pueblo.  Cada  dia 
«  de  mafiana  y  de  tarde  predican,  exortando  y  amonestando  a  to- 
t  dos  que  con  lagrimas  y  oraciones  pidan  a  Dios  les  de  a  los  elec- 
«  tores  su  espiritu,  favor,  gracia  y  sabiduria  para  que  elijan  per- 
«  sona  tal  qual  conviene  al  bien  espiritual  y  temporal  de  todo  el 
«  imperio  ;  y  este  estilo  de  comulgar  y  predicar  se  guarda  por  toda 
«  la  Ethiopia  hasta  que  llegan  las  nuevas  de  la  eleccion  del  Em- 
«  perador. 

«  Llegado  el  dia  senalado,  en  que  se  ha  de  hacer  la  eleccion, 
-  confiessan  y  comulgan  en  la  abadia  del  Sp.'"  S.*''  los  principes 
^v  del  linage  y  estirpe  de  David,  de  los  quales  se  ha  de  hacer  la 
<^  eloccion  para  Emperador.  Dcspues  de  aver  comulgado,  los  llevan 
>  cada  uno  a  su  palacio  y  en  el  los  encerran  como  en  conclavi,  de 
<i  tal  suerte  que  nadie  los  puede  hablar,  ni  ver,  ni  ellos  recebir,  ni 
'^  embiar  recaudo  alguno ;  y  para  esto  ay  muy  diligente  y  vigilante 


LIVRO   I,   CAPITULO   XI.  123 

♦  guardia.  Encerra-dos  los  Principes,  los  quatro  Reyes,  Abades  y 
«  Embaxadores,  Perlados  y  parte  del  Gran  Consejo,  que  estavan 
«  baxo  de  pavellones  a  pie  del  monte,  suben  a  lo  alto  a  la  abadia 

«  del  Sp.*"*  S.***  y  estando  en  la  iglesia  los  cuatro  Reyes,  se  visten 

j 

I  «  un  habito  largo  hasta  el  suelo  de  color  a^ul  con  una  cadena  de 

^  «  oro  pendiente  del   cuello  y  della  colgando  un  joyel  de  oro,  que 

4  es  la  figura  del  apostolo  s.  Mateo,  y  sus  coronas  en  la  cabega 
«  se  asientan  en  un  lugar  alto,  que  tienen  aparejado  para  este  efecto 
«  al  lado  del  Evangelio;  y  al  lado  de  la  Epistola  se  asientan  un  Pa- 
«  triarcha,  un  Argobispo  y  un  Obispo  vestidos  de  pontifical,  los 
«  quales  tienen  delante  una  mesa  y  en  cima  della  un  libro  de  los 
«  evangelios;  y  junto  a  estos  asientos  estan  los  del  Gran  Consejo  con 
f.  5'»v«  «  los  otros  perlados,  y  detras  dellos  los  embaxadores  de  los  *otros 
«  Reyes,  conforme  a  la  dignidad  y  antiguedad  de  cada  uno.  Este 
«  mesmo  orden  guardan  los  cuatro  Reyes  a  los  quales  segun  su  an- 
«  cianidad  asignan  los  lugares ;  el  qual  cuidado  incumbe  a  los  Aba- 
«  des  espirituales  de  las  dos  abadias  del  monte,  y  estos  dos  Aba- 
«  des,  que  son  los  electores,  estan  en  medio  de  la  iglesia  en  sus 
«  asientos  en  compania  de  los  dos  Abades  militares  y  de  doce  con- 
«  sejeros  de  las  abadias. 

^  «  Quando  todo  esto  esta  hecho  y  sentados  todos  en  sus  luga- 

«  res,  entra  el  embaxador  del  gran  Abad  y,  sentandose  en  una  silla 
«  alta  dos  grados  en  medio  de  los  perlados  y  Reyes,  les  hace  a 
«  todos  una  breve  platica  acerca  de  la  eleccion.  Acabada  esta  pla- 
<  tica,  el  Patriarcha,  que  esta  a  la  parte  de  la  Epistola  junto  al  altar, 
«  hace  cantar  un  hymno  em  lengua  chaldea,  que  es  casi  el  mismo 
«  que  canta  la  iglesia  latina  del  Sp.'"  Santo,  *  Veni,  creator  Spi- 
«  ritus  '.  Concluido  el  hymno,  Uama  a  los  dos  Abades  espirituales 
«  del  monte  y  haciendoles  jurar  sobre  el  libro  de  los  evangelios, 
«  que  tienen  abierto  sobre  la  mesa,  que  responderan  segun  su  con- 
«  ciencia-  y  que  en  la  vocacion  del  Emperador  miraran  solo  al  ser- 
«  vicio  de  Dios,  al  pro  ccmun  del  reyno,  sin  interes  ni  passion,  ni 
«  afi^ion,  les  pregunta  quantos  principes  de  la  casa  y  linage  de  Da- 
«  vid  ay  en  el  monte  y  que  edad  sera  la  de  cada  uno,  que  incli- 
«  naciones  son  las  suyas,  en  que  virtudes  se  senalam  mas,  que 
«  defectos  son  los  de  cada  uno,  que  mas  puedan  ofender  al  bien 
«  comun  del  imperio,  y  abiendo   respondido  a  todo,    se   arrodillan 

W  «  en  tierra  los  Abades  espirituales  y  el  Patriarca,  al<?ando  la  voz, 

«  les  dice:    Padres,  vosotros,  que,  como  confessores,  como  ayos  y 


124  HISTORIA    DE   ETHIOPIA 

«  maestros,  que  aveis  tenido  officio  de  padres  espirituales  y  tem- 
€  porales,  governando  y  ensenando  a  estos  principes,  conoceis  y  sa- 
«  beis  sus  naturales  inclinaciones  y  costumbres,  y  entendeis  las  ne- 
*:  cessidades  que  al  presente  se  ofrecen  en  el  imperio  y  juntamente 
«  deseais  su  remedio,  nombrad  entre  ellos  el  que  os  parezca  mas 
«  idoneo  y  apto  para  el  govierno  del  imperio  y  para  mayor  ser- 
«  vicio  de  Dios  y  bien  de  todos  nosotros. 

«  Concluida  esta  habla,  el  Abad  del  Sp '"  S.*°  dice :  Fulano 
«  tiene  estas  prendas,  se  sefiala  en  tal  y  en  tal  virtud,  y  assi  me 
«  parece  digno  de  tal  dignidad  y  merecedor  de  la  corona  y  cetro 
«  de  toda  la  Ethiopia,  y  como  a  tal  le  nombro  por  Emperador.  Y 
«  si  el  otro  Abad,  que  esta  a  su  lado,  que  es  de  la  *abadia  de  la  f.  52. 
«  Cruz,  es  del  mismo  parecer,  ipso  facto  esta  hecha  la  eleccion  en 
«  el  principe  nombrado ;  y  si  a  caso  no  concordasen  estos  dos  Aba- 
«  des  (lo  qual  nunca  ha  sucedido),  passa  la  eleccion  a  los  otros  dos 
«  Abades  militares  de  las  abadias  del  monte  con  los  doce  cavalle- 
«  ros  de  su  consejo  ». 
a.Itenimaliacom-  Ate  aqui  sam    palavras  do  Author,  e  pouco  mais  adiante  diz 

inenta  Urretae. 

que  guardam  tal  christandade,  tanta  virtude  e  religiam  em  suas 
elei^oes  que  nunca  ouve  vandos,  nem  pretensoes,  nem  cismas,  nem 
parcialidades ;  e  que,  como  os  Emperadores  sam  de  tantas  virtudes, 
os  de  Ethiopia  Ihes  sam  tam  obedientes  que  nunca  entre  elles  ouve 
tredos  nem  homicidas  e  agressores  contra  seus  principes.  E  pag.  1 46 
diz,  que,  feita  a  elei^am  e  nomeado  o  principe  que  ha  de  ser  Em- 
perador,  vam  os  dous  Abades  eleitores  onde  tem  ao  principe  re- 
colhido  e  o  vestem  com  o  habito  dos  cavalleiros  de  s.  Antam  e  o 
levam  a  igreja  do  Sp.*°  S.'*',  onde  estam  os  outios  eleitores,  e  de- 
pois  de  muytas  ceremonias  Ihe  poem  huma  rica  coroa  de  ouro  na 
cabe^a  e  dam  na  mao  o  coptro,  que  he  huma  cruz  de  ouro,  que 
entre  todos  os  reys  e  monarchas  do  mundo  nenhum  leva  cruz  por 
ceptro  senam  o  Emperador  de  Ethiopia.  E  por  aqui  vai  contando 
tantas  cousas  que  se  [se]  ouveram  de  referir,  fora  multiplicar  muyta 
escriptura  e  cansar  ao  lector  com  o  que  he  muyto  alheo  e  diiFe- 
rente  do  que  em  Ethiopia  se  usa.  Com  tudo,  porque  no  fim  do 
cap.  pag.  151  poe  algumas  cousas,  que,  se  foram  certas,  faciam 
muyto  pera  o  que  principalmente  pretende  em  sua  Historia,  que  he 
provar  que  os  de  Ethiopia  sempre  foram  e  sam  muyto  obedientes 
a  s.'''  Igreja  romana,  e  nunca  admitiram  doctrina  contraria  a  sua, 
as  referirei  por  suas  mesmas  palavras,  que  sam  as  siguintes: 


LTVRO  I,   CAPITULO   XI.  125 

«  Acabada  la  platica,  el  Patriarcha,  llegandose  al  Emperador, 
«  tomandole  juramento,  le  dice :  Jurais  de  guardar  todas  las  leyes 
<  divinas  y  de  procurar  que  se  guarden  por  todo  vuestro  imperio  ? 
«  Jurais  de  guardar  los  cuatro  concilios  generales  Niceno,  Ephesino, 
«  Chalcedonense  y  Constantinopolitano  ?,  y  jurais  de  guardar  el  con- 
«  cilio  Florentino  celebrado  por  Eugenio  4°[?|.  Jurais  de  guardar  la 
f.  52,v.  «  observancia  e  obediencia  *a  la  s.^*  romana  Iglesia  de  los  apo- 
«  stolos  s.  Pedro  y  s.  Pablo?  y  jurais  de  guardar  las  constituciones 
«  e  estatutos  del  emperador  y  senor  Juan  el  Santo  y  Phelipe  7°[?]. 
«  A  todo  lo  qual  el  Emperador  jura  como  le  esta  demandado  ». 

Depois  de  Ihe  dar  este  juramento,  diz  que  se  alevantam  todos 
e  levam  ao  Emperador  em  procissam  poUa  crasta  cantando  hymnos 
e  psalmos,  e  tornando  a  entrar  em  a  igreja,  se  asenta  o  Emperador 
em  seu  throno,  e  todos  os  outros  em  seus  lugares  com  o  mesmo 
ordem  que  antes  estavam,  e  os  seis  do  magistrado  com  os  Abades 
e  seu  conselho  vam  a  tracer  os  outros  principes  dos  pacjos  onde  os 
tinham  fechados  e,  vestidos  com  o  habito  dos  cavalleiros  de  s.  An- 
tam,  vem  a  igreja,  e  quando  entram,  se  alevantam  todos  e  Ihes  fa- 
cem  reverencia,  e  elles  de  dous  em  dous  vam  onde  esta  o  Empe- 
rador  e  Ihe  beixam  a  mao  e  juram  fidelidade  e  obediencia.  Logo 
os  4  Reys  facem  o  mesmo  e  depois  delles  todos  os  prelados  e  em- 
baixadores  conforme  a  dignidade  e  antiguedade  de  cada  hum.  E 
concluido  este  juramento,  se  recolhe  o  Emperador  aos  aposentos 
do  Abade  daquella  abadia,  Ihe  dam  de  comer  e  descansa  o  que  fica 
daquelle  dia  e  dorme  aquella  noite. 

Com  isto  acava  o  Author  o  cap.  13,  onde,  como  temos  visto,      3.  Electio  Impera- 
diz  sobre  a  eleicjam,  a  jura  e  coroa^am  do  Emperador  tantas  cousas,  b^C^st^^ln  "Guixftn 

mas  casi  nenhuma  dellas  he  conforme,  nem  tem  que  ver  com  o  que  AmbA    neque    eam 

praeceasit  ieiunium. 

se  acostuma  em  Ethiopia ;  porque  primeiramente  nunca  em  Guixen 
Amba  se  juntaram  pera  a  eleigam  do  Emperador,  nem  la  o  jura- 
ram,  nem  coroaram,  nem  ha  mais  ceremonias  que  as  que  logo  di- 
remos,  nem  se  pubricam  os  30  dias  de  jejum  que  diz,  nem  pregam, 
nem  ha  rey  nenhum  sugeto  ao  imperio,  mais  que  o  de  Dancali,  que 
he  mouro  e  nunca  veio  a  corte  mais  que  huma  vez,  pouco  tempo 
ha,  a  pedir  socorro  ao  Emperador,  porque  outro  seu  parente  o  des- 
varatou  em  batalha  e  se  apoderou  do  reyno;  mas  o  Emperador  Ihe 
deo  gente  com  que  o  tornou  a  recuperar.  Tambem  antiguamente  (se- 
gundo  dicem)  era  sugeto  el  Rey  de  Dequin  mouro,  que  agora  o 
nam  he,  so  corre  com  amizade ;  e  a  estes  nam  aviam  de  meter  na 


126  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

elei^am,  pois  sam  mouros,  nem  os  que  ouvese  gentios,  nem  o  que 
ate  oje  ficou  do  reyno  que  chamam  Zenyero  entra,  que  he  gentio. 
E  tambem  frey  Luis  de  Urreta  mostra  que  os  Rey[s],  de  quem  fala, 
sam  christaos,  porque  diz  pag.  1 6 1  que  os  que  levam  a  cada  Rey 
diante  *do  Emperador  pera  que  jure,  dicem :  Senhor,  eis  aqui  el  f.  53. 
rey  de  tal  reyno,  que  vem  a  vos  jurar  fidelidade  e  obediencia,  diz 
aver  vivido  catholicamente  e  que  ha  guardado  puntualmente  o  sacro 
concilio  florentino  etc,  e  que  todos  juram  desta  maneira.  Mas  agora 
nenhum  rey  christao  ha  mais  que  o  do  reyno  de  Narea,  que  avera 
32  annos  pouco  mais  ou  menos  este  de  622  que  o  emperador  Ma- 
lac  Qagued  foi  la  com  exercito  e  o  fez  christao,  e  este  nam  vem. 
Se  antignamente  os  avia  nam  sabem  dar  re^am. 
4.  Numquam  Re-  Enganouse  o  Author  por  Ihe  parecer,  ou  por  Joam  Balthesar 

ges  alii  interfuerunt    1«  a^  r%  •  ^r* 

electioni,  neque  Ar-  ^"®  affirmar,  que  eram  Reys  os  que  nam  sam  mais  que  Vissorreys ; 
chiepiscopi  et  Epi-  e  assi  diz  pag.  162  que  aos  que  Francisco  Alvares  em  sua  Historia 

scopi,  quia  unu8  Bpi- 

scopus  in  tota  Ae-  chama  Vissorreis  nomea  elle  Reys,  porque  o  sam  verdadeiros,  e  assi 
nec^miquam  ^^v^-  ^  reyno  se  herda  de  pays  a  filhos,  e  se  o  Emperador  priva  a  al- 
triarcha.  gfuni  do  reyno,  sucede  o  filho  ou  o  parente  mais  chegado.  Mas  nam 

ha  tal  cousa,  porque  o  Emperador  tira  a  todos  quando  quer,  e  muy- 
tas  veces  sem  estarem  tres  annos,  e  poe  outros,  que  nem  sam  seus 
filhos  nem  parentes,  como  eu  tenho  visto  muytas  veces.  Nem  achei 
quem  disese  que  entrasem  nunca  Reys,  nem  no  livro,  que  elles  tem 
muyto  antiguo  das  ceremonias,  que  ham  de  guardar  e  dos  que  por 
obrigaQam  se  ham  de  juntar  a  coroar  o  Emperador,  se  acha  feita 
mengam  de  Rey  nenhum,  nem  de  Patriarchas,  Argobispos,  nem  Bi- 
spos ;  que  em  Ethiopia  os  nam  ha  mais  que  o  prelado  que  Ihes  vem 
mandado  pollo  Patriarcha  de  Alexandria,  a  quem  chamam  Abuna, 
que  he  nomem  arabio  e  quer  dicer  «  Padre  nosso  » ;  nem  este  he 
Patriarcha,  segundo  me  disse  o  abuna  Simam,  que  mataram  pouco 
tempo  ha,  como  adiante  diremos ;  a  quem  entre  outra^  cousas  pre- 
guntei  se  era  Patriarcha,  e  respondeo  que  nam,  senam  Bispo  e  que 
nem  seus  antecessores  tiveram  nunca  tal  tittulo. 

Este  Abuna  so  he  o  que  da  ordens;  mas  o  anno  de  16 15  Ihe 
fez  demanda  hum  frade,  que  he  como  Geral  da  religiam  que  cha- 
mam  de  Taquela  Haimanot,  scilicet  «:  planta  da  fe  »  e  se  intittula 
Ichegue,  dicendo  que  a  elle  pertencia  dar  as  ordens,  e  ao  Abuna 
bencer  os  olios;  e  dando  o  Emperador  juices,  depois  que  cada  hum 
alegou  cumpridamente  de  sua  justicja,  julgaram  que  so  o  Abuna 
podia  dar  Ordens;  o  que  declararemos  mais  em  o  livro  2°,  onde  tra- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XI.  127 

taremos  do  modo  com  que  da  as  Ordens  e  dos  Ar^obispos  e  Bi- 
spos  que  Ihe  meteram  em  cabega  a  frey  Luis  de  Urreta  que  avia  em 
f  53»v.  Ethiopia.  Quanto  aos  Abades  espirituales  e  militares  *da  Ordem  de 
s.  Antam,  ja  disse  no  fim  do  capitulo  precedente  e  do  7°,  como  em 
Ethiopia  nam  ouve  tal  modo  de  religiam,  e  o  veremos  cumpridamente 
no  fim  do  2^  livro. 

Acerca  do  que  diz  que  em  as  elei^oes  dos  Emperadores  nunca 
ouve  vandos,  nem  cismas,  nem  parcialidades,  nem  tredos,  nem  ho- 
micidas  e  agressores  contra  seus  principes,  ja  vimos  no  capitulo  5 
como  os  da  familia  de  Zagne  tiveram  usurpado  o  imperio  340  annos, 
e  adiante  veremos  quantas  revoltas,  parcialidades  e  alevantamentos 
ouve  em  Ethiopia  particularmente  de  60  annos  a  esta  parte. 

Em  o  que  diz,  que  entre  todos  os  Reys  e  monarchas  do  mundo      5.  Imperatores 

i_  1  .  T-  j       j     T^^i_«      •      a.  praefcnmt     Cnicem 

nenhum  leva  cruz  por  ceptro  senam  o  Emperador  de  Ethiopia,  tam-  ^^^^  ^^  sccptmm  sed 
bem  se  enganou  muyto,  porque  nam  tracem  a  cruz  por  ceptro  (nem  ^^  insigne  diacona- 

tU8. 

cuido  que  souveram  nunca  que  cousa  era  ceptro),  senam  pera  mo- 
strar  que  sam  diaconos ;  que  estes  e  os  sacerdotes  tracem  de  ordi- 
nario  cruces  em  as  maos  como  de  hum  palmo  e  meio  de  cumprido, 
as  mais  de  ferro.  Estas  ordens  de  diacono  tomam  os  Emperadores 
e  homens  grandes  somente  pera  poderem  entrar  a  comungar  e  ouvir 
missa  onde  a  dicem,  porque  os  que  nam  tem  ordens  todos  ficam  fora 
no  alpendre,  que  tem  a  rcda  da  igreja,  sem  ver  o  que  se  faz  dentro, 
porque  estam  humas  cortinas  diante  e  alli  Ihes  tracem  a  comunham. 

Mas  vindo  a  cousa  mais  essencial  que  o  Author  refer  em  este  6.  Nequc  iurant  se 
capitulo  sobre  o  juramento  que  da  o  Patriarcha  ao  Emperador,  que  Slla^una^cuin  Flol 
guarde  os  4  concilios  geraes  e  o  florentino  e  a  obediencia  a  santa  '«»*»»<>     observatu- 

ro8.        Contumcliae 

Igreja  romana,  digo  que  prouvera  a  divina  misericordia  que  assi  quaccontraCalcedo- 
o  ficeram  e  guardaram,  porque  nam  se  perderam  tantos  milhares  S^^^^SbitS 
de  almas,  como  por  falta  disto  ate  oje  se  perderam  e  se  ham  de  Masaquftbt    Haima- 

n6t  ct   aliac   contra 

perder,  se  sua  divina  Magestade   nam  aplacar  sua  ira  e  Ihes  der  g.  Lrconcm  Papam  in 

particular  gracja  pera  que  se  sugetem  a  sua  s.*^  Igreja  romana  e  a  •^***  At^!ujb6^***  "**" 

doctrina  que  ella  insina.  Porem  nam  se  da  tal  juramento  ao  Em- 

perador  de  nenhuma  maneira,  nem  no  livro,  que  tem  das  ceremonias, 

que  usam  na  coroagam  do  Emperador,  se  faz  men^am  de  tal  jura- 

mento ;  e  por  ser  esta  cousa  de  tanto  momento,  nam  me  contentei 

com   a   preguntar  a  muytos  velhos  e  senhores  grandes,  senam  ao 

mesmo  emperador  vSeltan  (^agued  que  oje  vive;  e  me  disse  que  nam 

se  dava  aos  Emperadores  tal  juramento,  nem  a  elle  Ihe  deram  nen- 

hum ;  mas  que,  quando  ouvese  dous  competidores  em  o  imperio,  o 


iz8  HESTORIA   DE   ETHIOPIA 

que  o  levase  avia  de  jurar  de  cumprir  as  condi(;oes  que  concedese 
a  seu  competidcr.  E  mais  como  aviam  de  facer  jurar  ao  Emperador 
que  guardase  o  concilio  chalcedonense,  se  elles  nam  o  admitem,  *an-  i 
tes  falam  delle  com  palavras  tam  alheas  de  christaos  que  o  chamam 
concilio  de  Judeos?;  e  em  hum  livro  que  elles  intitulam  Mazaguebt 
Haimanot,  que  quer  dicer  t  Thesouro  da  fe  > ,  falando  deste  concilio, 
diz  assi:   *  Juntaramse  mestres  parvos  630  com  vanagloria  e  soberva 

*  querendo  ser  dobrados  que  os  318  justos  da  fe  1;  e  pouco  mais  ad- 
iante  diz:  «  Tiraram  huma  palavra  da  fe  de  Nestor,  que  pus  duas 
1  pessoas  em  Chisto,  huma  do  filho  de  Maria  e  outra  do  filho  de  Deos, 
«  e  disseram  que  polla  uniam  se  ficeram  huma  pessoa.  Isto  disseram 

*  polla  escomunham  do  patriarcha  Cyrillo  e  compuseram  das  pala- 
«  vras  do  patriarha  Cyrillo  e  das  palavras  de  Nestor  e  assi  disse- 
«  ram  Christo  huma  pessoa,  duas  vontades,  duas  naturcpas,  duas 
«  complacencias  da  divindade  e  da  humanidade.  Disseram  que  a 
t  divindade  faz  obras  de  divindade,  c  a  humanidade  obras  de  hu- 
«  mantdade  por  dous  caminhos:  hum  obra  maravilhas  e  outro  pa- 
t  dece  infirmidades,  e  por  isto  he  menor  a  humanidadc  que  a  di- 
t  vindade  >. 

Ate  aqui  sam  palavras  daquelle  livro,  em  que  quercm  mostrar 
que  se  juntaram  deproposito  muytos  no  concilio  chalcedonense,  pera 
com  forija  desfacer  o  que  os  Padres  do  concilio  niceno  tinham  de- 
terminado,  como  se  alli  se  tratara  das  duas  natureijas,  duas  vontades 
e  duas  opera^oes  em  Christo,  e  ccmo  se  isto  fora  erra  na  fe,  que 
elles  affirmam  que  o  he;  o  por  esta  re<;am  falam  de  s.  Liam  papa 
com  palavras  muyto  torpes,  dicendo  que  foi  como  Lucifer;  e  em 
hum  livro,  que  chamSo  Haimanot  Abbo  scilicet  *  fe  dos  Padres  > ,  diz 
Theodosio  patriarcha  de  Alcxandria  cap,  2  estas  palavras :  «  Nam 
afastamos  como  aquelle  enemigo  Liam  maldito,  que  afastou  a  quem 
nam  se  afastou,  e  disse  duas  naturei;as,  duas  complaccncias  e  duas 
obras  a  hum  Christo».  E  pouco  mais  adiante  diz:  «  Este  maldito  e 
tredo  Liam  disse  duas  naturegas  e  duas  obras,  e  dicendo  huma  pes- 
soa,  em  isto  quis  o  maldito  seu  erro  em  dicer  huma  pessoa  t.  Quer 
dicer  que  pera  encubrir  s,  Liam  seu  erro  das  duas  naturecas  etc, 
pus  huma  pessoa, 

Acerca  do  que  sentem  do  Concilio  Ephesino,  porei  as  palavras 
huma  carta  em  que  se  assinaram  os  padres  Manoel  Fernandez 
eus  companhoiros  de  nossa  Companhia,  que  entraram  em  Ethio- 

com  n  padrc  bispo  dom  Andre  de  Oviedo,  e  refer  o  padrc  Fer- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XI.  129 

nando  Guerreiro  cap.  5  fol.  296  da  Addi^am  que  faz  a  as  cousas 
de  Ethiopia  na  Rela^am  dos  annos  607  e  608,  que  dicem  assi: 
f.  54,v.  «  Ainda  que  o  Bispo  poUa  grac^a  divina  *sempre  a  elle  (convem 
€  a  saber  ao  emperador  Claudio)  e  a  todos  concluia,  ficavam  po- 
«  rem  gombando  e  bradando,  dicendo  que  elles  tinham  vencido, 
«  de  maneira  que  tudo  com  elle  ficava  em  vao.  Pollo  que,  vendo  o 
«  padre  Bispo  o  pouco  que  em  isto  se  facia,  tomou  todas  as  princi- 
«  paes  materias  e  pontos  de  seus  erros  e  se  deo  a  escrever  sobre 
«  elles,  e  depois  Ihe  apresentou  estes  escritos;  aos  quaes  el  Rey 
«  respondeo  com  facer  outros  sobre  elles,  resolvendose  juntamente 
«  que  nam  avia  de  ovedecer  a  Roma,  e  depois  de  ter  isto  asaz  de- 
«  clarado  e  se  mostrar  desgostoso  contra  o  Bispo  e  dicer  pubrica- 
«  mente  que  nam  queria  o  concilio  ephesino  1°,  pera  o  qual  o  Bispo 
«  o  chamava,  senam  somente  os  costumes  e  fe  de  seus  antepassa- 
«  dos,  o  Bispo  se  despidio  delle  com  determina^am  de  (saltem  ad 
«  tempus)  dar  lugar  a  seus  desgostos.  Estes  tam  claros  desenganos 
«  deo  el  Rey  no  fim  de  decembro  de  58  ^. 

Quanto  ao  que  frey  Luis  de  L  rreta  diz  que  o  Emperador  jura 
de  guardar  as  constitui^oes  do  emperador  Joam  o  Santo  e  Phe- 
lipe  7°,  respondo  que  nam  somente  nam  ha  taes  constituigoes,  mas 
nem  ainda  taes  Emperadores  ouve  nunca  em  Ethiopia,  como  adiante 
mostraremos. 

Ja  temos  visto  quam  fabulosa  foi  a  informagam  que  frey  Luis      8.  Quae  narrat  au- 

-TT^«'  "I  1»  j-i^  j  •  clor  circa  electionem 

de  Urreta  siguio  sobre  a  elei^am  do  Emperador;  vejamos  agora  a  habuit  ab  ipao  Sel- 
que  dam  alcfuns  dos  principes  de  Guixen  Amba,  com  quem  falei,  e  ^  SagAd,  ab  Abba 

^  6  r  r  »1  MarcA    et  aliis    fide 

outros  muytos  velhos,  assi  senhores  grandes  como  frades,  particu-  dignis.  In  libris  ae- 
larmente  hum  que  se  chama  Abba  Marca  e  tera  mais  de  80  annos,  re^nMmdo^Electores*^ 
homem  letrado  e  que  tem  muyta  noticia  das  cousas  antiguas  e  o  Em-  q^i  «*  Gubematores 

tempore    vacationis, 

perador  Seltan  Qagued  o  fez  Quez  Ace,  que  que  dicer  «  Sacerdote  novem,  scil.:  2  Be- 
do  Emperador  »   e  parece  responde  a  Capellam  mor.  Destes  me  in-  ^^4x^*^*11  dA  ^e* 
formei,  por  nam  achar  livro  que  tratase  desta  materia,  e  disseram   rAx,  a  GoitH,  et  i  Aca- 
que,  morto  o  Emperador,  se  juntavam  logo  na  corte  ordinariamente  nmicluin    electionis 
os  eleitores  do  principe,  a  quem  se  avia  de  dar  o  imperio,  que  eram  vocabatur  jAn  ^arar. 
alguns  dos  que  tinham  o  mesmo  titulo  dos  officiaes  que  Salomam 
deo  a  seu  filho  Menilehec  pera  governo  de  seu  imperio  e  servi^o 
de  sua  casa,  que  nomeamos  no  cap.  4,  e  sam  Behet  Oaded,  o  da 
mao  dereita  e  o  da  izquerda:  Uzta  Azax,  o  da  mao  dereita  e  o  da 
izquerda ;  Hedug  Eraz,  o  da  mao  dereita  e  o  da  izquerda :  Goita,  o 
da  mao  dereita  e  o  da  izquerda :  Acabi^at.  Estes  eram  os  eleitores 

C.  Bbccari.  Rer,  Aeth,  Seript,  oce,  tned,  —  II .  17 


IJO  IIISTORIA   DE  ETHIOPIA 

do  que  avia  de  ser  Emperador,  mas  sempre  metiam  pera  conselho 

alguns  religiosos  e  doctores  graves  a  que  chamam   Debteroch,    e 

todos  jup.tos  tratavam  entre  si  qual  doj  principes  de  Guixen  Amba 

seria  mais  apto  pera    o    bom  *governo  do   imperio    e  mais  util  e  f,  55. 

proveitoso  pera  seus   vassallos;  e  depois  de   responder   cada  hum 

conforme  a  noticia  que  tinha  dos   principes,  se  resolviam  os  elei- 

tores  e  nomeavam  o  principe  que  milhor  Ihes  parecia.  Mandavam 

logo  entrar  hum  senhor  grande,  cujo  officio  era  chamar  ao  prin- 

cipe  eleito,  e  por  retjam  de  seu  cargo  se  intitulava  Jan  (^arar,  *  cha- 

mador  do  Emperador  >• ;  e  Ihe  deciam  que  fosso  a  Guixen  Amba  e 

chamase  tal  principe;  e  juntamente  com  elle  hia  Tigre  Mohon,  que 

entam  tinha  muyto  mayor   poder  e  mando  do  que  tem  agora,   le- 

vando  grande  companhia  de  gente  de  armas,  e,  subindo  ao  monte, 

entravam  na  casa  do  principe  eleito  e  Ihe  docia  Jan  (^ararr   Cha- 

mam  vos   os  Governadores ;  porque   os   eleitores  o  cram   de   todo 

o  imperio  em  quanto  durava  a  vagante ;  e  punhalhe  logo  na  orolha 

dereita  hum  anel  de  ouro,  a  que  chamam   Belij],  que  era   insignia 

de  ser  escolhido  por  Emperador,  como  dissem'-s  no  cap.  5.  Depois 

se  juntavam  todos  os  Principes  do  monte  e  Ihe  davam  os  parabens 

de  sua  ditosa  sorte,  o  despidindose  delles  com  muytas  mostras  de 

amor,  decia  ao  campo,   onde  achava  huma  fermosa  tenda  armada 

com  tudo  o  necessario  de  mulas  e  cavallos  pera  o  caminho,  a  que 

o  siguinte  dia  dava  principio. 

Rec«ptio,    un-  Em  quanto  o  Principe  vinha,  aparelhavam  os  Governadores  o 

elecdiaReKem   fGcebimento  que  Ihe  aviam  de   facer  e,  chegando  perto,  saiam  ao 

flebant  a  4  e  primo-  rnininho  com  grande  acompanhamento  e  aparato,  todos  vestidos  de 

^  e,  apeandose  de  suas  mulas  e  cavallos,  Ihe  faciam  reverencia 

Ile  dava  logo  sinal  com  a  mao  que  tornasem  a  cavalgar  e,  to- 

ndoo  no  meio,  o  levavam  com  muytos  tangeres  e  modos  de  dan- 

ate  huma  tenda  de  campo,  que  tinham   armada,  muyto  grande 

edonda  casi  ao  modo  das  nossas,  a  que  chamam  Debana.  e  nin- 

:m  pode  ter  tenda  desta  maneira  senam    o  Emperador;    as  dos 

nais  nam  sam  redondas  senam  cumpridas  e  muyto  mais  pique- 

;  e  nam  se  apeava  senam  dentro  da  tenda  e  logo   o   tomavam 

meio  Quez  Ace,  Lfca  Debteroch,  Lica  Memeran,  Cerai  Ma^are, 

■  sam  dignidades  ecclesiasticas,  como  Priores.  e    muytos  sacer- 

es,  e  cantam  alguns  psalmos.  Depois  Cerai  Mai;are  o  unge  com 

I  cheiroso,  e  Ihe  vestem  huma  rica  vestidura  que  chamam  Leb- 

ahai,  que  quer  dicer  »  vcstido  do  sol  » ,  e  poemlho  na  cabei;a  *huma   f.  55.V, 


cdo 


LIVRO   I,   CAPITULO   XI.  131 

coroa  de  ouro,  que  tem  por  remate  huma  cruz,  e  damlhe  na  mao 
huma  espada  desenvainhada,  pera  significar  que  em  as  cousas  da 
justi^a  ha  de  cortar  rectamente,  sem  ter  de  ver  com  parentesco, 
nem  amizade,  por  grande  que  seja,  nem  dobrarse  por  outro  nenhum 
respeito  humano.  E  logo  Quez  Ace  e  as  demais  dignidades  o  le- 
vam  polla  mao  e  o  asentam  no  throno  imperial,  que  tem  ricamente 
adornado  e  alli  Ihe  dam  muytas  ben^oes. 

Acabado  isto,  sobe  Quez  Ace  em  huma  cadeira  alta  e  como 
quem  da  pregam  diz:  Ficemos  reynar  a  foam;  e  logo  os  circun- 
stantes  gritam  de  certa  maneira  que  usam  em  sinal  de  grande  fe- 
sta  e  alegria  e  tangemse  muytos  instrumentos.  Depois  chegam  os 
eleitores  e  os  demais  magistrados  por  ordem  a  Ihe  beixar  a  mao 
e  dar  a  obediencia.  O  mesmo  facem  Quez  Ace,  Lica  Debteroch, 
Lica  Memeran  com  todos  os  sacerdotes  que  se  acham  preser>tes  e 
come^anse  grandes  festas,  que  duram  por  muytos  dias.  Mas  nam 
se  acavam  com  isto  as  ceremonias  de  sua  coroa^am;  anfes  a  esta 
nam  a  tem  por  tal,  nem  se  pode  chamar  Emperador,  senam  Rey  (se- 
gundo  elles  dicem),  ate  que  se  unga  e  coroe  em  a  igreja  de  Ag^um 
do  reyno  de  Tigre  com  as  ceremonias  que  veremos  no  capitulo  si- 
gninte,  ou  ao  menos  em  huma  igreja  do  reyno  de  Amhara  que  se 
chama  Garangaredaz. 

Isto  he  o  que  se  usava  antiguamente,  quando  escolhiam  por       lo.Praedictaecae- 

T-'  ji  •  /-^•AAiA      remoniae  locum  ha- 

Emperador  algum  dos  pnncipes,  que  estavam  em  Guixen  Amba;  buenint    usque    ad 

mas  do  emperador   Naod  ate  agora  nam  tomaram  de  la  nenhum,  Na6d. 

sempre   deram  o  imperio  ao  filho  mais  velho  do  Emperador  que 

morria;  e  ao  emperador  Athanaf  Qagued,  que  nam  teve  filho,  Ihe 

sucedeo  Adamas  Qagued  seu   irmao,  e  a  este  Malac  Qagned  filho 

mais  velho  de  4  que  tinha.  Mas  morrendo  este  muyto  longe  de  sua 

corte,  vindo  de  huma  guerra,  nam  somente  os  grandes  que  estavam 

no  arrayal,  mas   os  capitaes  e  todas  as  cabc^as  das  familias   dos 

soldados,  que  sam  mu>^as,  se  juntaram  pera  eleger  Emperador  e  no- 

mearam  a  Jacob  filho  bastardo  do  Emperador  defunto,  porque  nam 

tinha  outro. 


i 


CAPITULO  XIL 

Das  ceremonias  que  usam  em  Ethiopia 
em  a  coroa^am  do  Emperador. 


Acabas  as  ceremonias  e  festas,  que  dissemos  no  capitulo  pre-       i.  Solemnis    un- 

,,j,3fej,.  .  -,  '  ^  ctio     ct      coronatio 

f.  56.  cedente,  *determmam  o  tempo  que  Ihes  parece  mais  oportuno  pera  imperatorum  fit  ab 
ungir  e  coroar  ao  Emperador  em  a  igreja  de  Ag-cum  do  reyno  de   immemorabili  in  ec- 

,      ^  0^0  ^  clesia  urbis  Axum. 

Tigre,  que,  ainda  que  algumas  veces  se  coroavam  em  a  igreja  Ga- 
rangaredaz  do  reyno  de  Amhara,  tinham  por  mais  honrra  coroa- 
remse  em  a  de  Ag^um,  por  aver  sido  asento  da  reynha  Sabba  e 
de  seu  filho  Menilehec  e  cidade  muy  sumptuosa,  posto  que  agora 
seja  povoacjam  piquena;  e  tinham  por  menos  inconveniente  dilatar 
muyto  o  tempo  de  sua  coroa^am  que  facer  isto  em  outra  parte; 
como  ficeram  muytos,  particularmente  o  emperador  Malac  (^agued, 
que,  depois  de  ter  muytos  annos  o  imperio,  se  foi  a  coroar  a  Ag- 
giim,  pudendoo  facer  facilmente,  se  quisera,  em  o  reyno  de  Amhara ; 
e  seu  filho  Jacob,  a  quem  eu  conheci,  nam  se  coroou  nunca,  com 
ter  o  imperio,  depois  que  o  eligeram,  dez  annos  ou  pouco  menos, 
contando  seis  ou  perto  de  sete  que,  por  ser  piqueno,  governou  em 
seu  nome  a  emperatriz  Mariam  Cina  molher  de  seu  pae,  que  elle 
nam  era  legitimo. 

Chegado  o  tempo,  em  que  o  Emperador  se  ha  de  coroar,  vai      a.  Nomina  digni- 

j  ^  A        A  j  j  1  •  j         tatum,  quae  iuxta  li- 

com  grande  aparato  a  Aggum,  onde  se  guarda  sempre  o  livro  das 


134  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

brum     caeremonia-  ceremonias,  que  se  ham  de  facer  em  a  coroa^am  dos  Emperadores, 

nim      coronationis,         •      ^  ^         ^  ■»  rn    >  i_   .  t_ 

adesse  debent  caere-  ^  juntamente  estam  os  nomens  dos  omciaes,  que  por  obnga^am  ham 
moniae^letquiduna-  (jg  assistir  a  ella ;  mas  da  maneira  que  os  nomiavSo  antigiiamente, 

quaeque  praestet. 

e  assi  os  porei  aqui.  Elahaquetat,  scilicet  «  cabec^a  do  povo  »,  ou 
«  Mordomo  mor  »;  Quelebas,  scilicet  «  conselheiro  »,  e  traz  huma 
buceta;  Ceraima^are:   este  traz   olio  pera  ungir   al  Rey  em  huma  i 

buceta  de  ouro  e  agoa  benta;  Quezagabez,  scilicet  «  thesourero  da 
igreja  »;  Lica  Diaconat  scilicet  «  Arcediago  »;  Arnes,  que  he  Ma- 
gare,  vai  diante  facendo  afastar  a  gente  com  huma  corda  grossa  e 
cumprida  de  retroz  amarrada  em  hum  pao  curto ;  Arnez,  que  traz 
o  sombreiro  ou  tirasol ;  Ceoacergoi,  scilicet  ^  compadre  » ;  Delcamoa 
e  Neguz  Hezbai,  scilicet  «  governadores  da  casa  del  Rey  »;  Rac- 
macera  e  Dec^af,  scilicet  «  estribeiro  dos  cavallos  »  e  *  estribeiro 
das  mulas  » .  Todos  estes  assistem  a  as  ceremonias  e  officios  da  co- 
roagam,  e  estam  em  pee,  quando  o  ungem,  com  as  cousas  de  seu 
cargo  em  as  maos,  seis  a  mao  dereita  e  seis  a  izquerda,  e  nenhum 
outro  entra  em  este  ministerio.  Elahaquetat  traz  animaes  sylvestres 
e  mansos  e  aves  que  se  possam  comer,  Quelabaz  traz  flores  do 
campo  e  frutas  e  todo  genero  de  semente  que  se  come,  Ceoacer- 
goi  traz  leite  e  vinho  de  ubas,  as  Doncelas  de  Syon  tracem  agoa 
e  vinho  de  mel  e  folhas  *cheirosas  ;  o  que  leva  a  buceta  traz  nella  f.  5^»^.  ^ 

mezque,  que  he   v  unguento  do  reyno  » ;  o  Quezagabez  e  o  Lica  Dia- 
conat    cstam    em   pee,   tendo  a  pedra  de  ara ;    Racmacera  tem  o 
cavallo  polla  redea  e  Dec^af  a  mula. 
3.  De  caeremoniis,  El  Rey  vem  em  seu  cavallo  pera  Ag<;um  polla  vanda  de  oriente, 

roi^tionem  l^peral  ^  ^^^^  ^^  ^""^  lugar  sinalado  esperam,  como  acostumam  a  esperar 
tor    interrogatur    a  sempre  aos  Reys,  todos  os  Grandes  e  o  povo,  cada  hum  em  seu  lu- 

pueUa  quisnam  sit ;  . 

responsio ;  ovationes  gar.  loda  e  clerecia  com  suas  vestimentas  e  aparato   e    tres  don- 

populi.      Imperator  QgU^g  ^q  meio,  huma  a  mao  dereita  e  outra  a  izquerda,  afastadas  e 
aunim  spargit:  qui-  *  ^  * 

nam  iUud  coUigant.   a  3"^  no  meio  de  ambas.  Estas  duas,  que  estam  a  as  ilhargas,  tem 

hum  cordam  de  retroz  poUas  pontas  de  maneira  que  fica  atrave- 
sado,  tomando  o  caminho  por  onde  el  Rey  ha  de  passar,  e  che- 
gando  el  Rey  perto,  Ihe  diz  a  do  meio:  Quem  sois  vos?   Elle  re-  l 

sponde:  Eu  el  Rey.  Diz  ella:  Nam  sois.  A  segunda  vez  pregunta: 
De  quem  sois  vos  Rey  ?,  e  elle  responde :  Sou  Rey  de  Isrrael.  Diz 
ella:  Nam  sois  vos  rey.  Na  3*^  vez  pregunta:  De  quem  sois  vos  Rey?  j 

Entam  tira  el  Rey  sua  espada  e  corta  o  cordam  dicendo:  Eu  sou 
Rey  de  Sion;  diz  ella:  Em  verdade,  em  verdade  sois  Rey  de  Sion;  f 

e  logo  todos  os  presentes,   grandes  e  piquenos,   dicem  da   mesma 


f 


LIVRO   I,   CAPITUl.O    XII.  135 

maneira  e  henchem  o  ar  com  voces  de  alegria  e  tangem  todos  os 
instrumentos.  El  Rey  vai  passando  botando  ouro  pollo  cham,  que 
recolhem  sos  aquelles  que  tem  costume,  e  chegando  a  porta  da  cerca 
da  igreja,  onde  estam  postas  no  cham  muytas  alcatifas,  torna  outra 
vez  a  botar  ouro  por  ellas  e  isto  recolhem  pera  igreja  que  he  pre- 
sente  de  Sion. 

Os  que  tracem  os  presentes  sam:  De  Belene,  que  he  a  terra  4.  Domestica  et 
de  Amacen  tracem  lora,  scihcet  «  vaca  do  mato  »;  de  Zalamt  e  de  ^^^  incolis  circum- 
Zagade  Gox,  scilicet  «  bufara  »  ;  de  Cemen  Hayel,  que  he  como  ve-  «taatium    regionum 

\  offenintur  viventia: 

ado,  mas  os  cornos  difFerentes ;  de  A^a  tracem  Agacen,  que  tambem  monachi  psalmos  et 
he  como  veado  mas  tem  os  cornos  torcidos ;  de  Torat  tracem  Jabedu,  pSu«°flor<M*sDaSit 
que  he  cabra  do  mato;  Tigre  Mohon  traz  Amba^a  scilicet  «  liam  »  e  supcr  thronum  rcgis. 
outros  animaes  bravos.  El  rey  Grabra  Mazcal  com  conselho  de  Jared 
sacerdote  acrecentou  a  isto  a  ceremonia  que  se  faz  domingo  de  Ra- 
mos,  mandando  que  os  do  povo  trouxesem  palmeiras  e  oliveiras 
com  fruto.  Os  religiosos  estam  em  pe  com  a  cruz  e  o  turibulo  e 
os  cantores  cantam :  «  Benedictus  qui  venit  in  nomine  Domini  etc.  » 
f.  s7-  e  *outras  cantigas  com  diversas  toadas  e  duas  em  louvor  particular 
del  Rey.  Isto  cantam  dando  voltas  a  roda  do  lugar  onde  facem  as 
ceremonias,  e  logo  tracem  o  Testamento  Velho  e  Novo  e  leem  os 
lugares  que  tratam  dos  Reys  e  dos  sacerdotes,  e  os  psalmos  de 
David  e  o  Cantico  de  Salomam  e  outras  cantigas,  e  entam  o  povo, 
que  esta  presente,  como  em  procissam  da  huma  volta  ao  lugar  onde 
esta  a  cadeira  real  e  botam  flores  e  cheiros  sobre  ella  e,  se  dentro 
do  lugar  das  ceremonias  esta  algum  que  nam  seja  dos  diputados,  o 
botam  fora.  E  alli  perto  estam  amarrados  em  colunnas  hum  liam 
e  huma  bufara,  e  el  Rey  com  sua  lan^a  fere  ao  liam,  e  logo  lar- 
gam  os  demais  animaes  mansos  e  do  mato  e  todas  as  aves,  e  a  gente 
do  arrayal  mata  por  festa  os  que  pode  alcan^ar. 

Entrando  el  Rey  no  lugar  onde  esta  sua  cadeira,  vai  botando      5«  Ante  thronum 

offertur  reg^i  in  va- 

ouro  pollas  alcatifas  que  estam  postas  no  cham,  e  asentandose  na  ^iB  aureis  Uc  et  vi- 
cadeira,  tracem  dous  pratos  de  ouro  e  dous  de  prata,  em  os  dous  °"°*  ?*  meUe,  m  ar- 

^  ^  genteis  aqua  et  vi- 

de  ouro  leite  e  vinho  de  mel,  e  nos  de  prata  agoa  e  vinho  de  ubas.  num  de  vite:  inde 
Entam  ungem  al  Rey  conforme  ao  costume  e  burrufam  todas  as  njoribus;  pergit  ad 
cousas  da  ceremonia  com  aeroa  que  tem  do  rio  Jordam  e  cortam  os  orandum   in   eccle- 

siam;  accipitabAbu- 

cavellos  da  cavega  del  Rey  como  aos  clerigos  em  a  primeira  ton-  na  et  singulis  cleri- 
sura ;  e  os  clerigos  levam  os  cavellos,  os  diaconos  a  pedra  de  ara  ritnl  *  bei^dictio- 
e  candeas  acessas  e  vam  cantando,  e  os  clerigos  com  turibulos  en-  nem;  denuoipsebe- 

nedicit   omnibus   et 

censando,  e  depois  de  dar  as  voltas  como  em  piocissam  a  roda  do  rsvertitur  domum. 


136  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

lugar  onde  esta  a  cadeira  real,  vam  pera  huma  pedra,  que  esta  a 
porta  da  igreja  Sion,  que  se  chama  Meidanita  Negestat,  scilicet  «  va- 
ledoura  dos  Reys  »  e  poem  em  cima  della  os  cavellos  e  botam  fogo 
dos  turibulos  e  logo  toda  a  clerecia  encomenda  el  Rey  a  Deos  e 
a  nossa  Senhora,  e  tornando,  dicem  al  Rey  tudo  o  que  ficeram.  En- 
tam  come^am  a  tanger  todos  os  instrumentos  do  arrayal,  e  o  povo 
da  grandes  voces  de  alegria.  Depois  vai  el  Rey  a  igreja  e,  chegando 
perto  do  altar,  encomenda  sua  alma  a  Deos  e  a  nossa  Senhora  e 
logo  torna  ao  lugar  onde  foi  ungido  e,  estando  em  pe  no  meio  dos 
douce  officiaes,  seis  a  mao  dereita  e  seis  a  izquerda  como  primeiro, 
chega  o  Abuna  e  os  Priores  das  igrejas,  clerigos  e  diaconos  e  cada 
hum  por  si  Ihe  da  sua  ben^am.  Depois  chegam  os  Grandes  e  da 
mesma  maneira  da  cada  *hum  sua  ben^am,  e  como  acavam,  da  el  t  57,v. 
Rey  tambem  a  todos  ben^am  e  logo  vai  a  sua  casa  acompanhado 
como  veio. 

Ate  aqui  sam  palavras  do  livro  e  nenhuma  outra  cousa  diz 
sobre  a  corc^a^am  do  Emperador.  Onde  se  ve  que  nomeando  os  que 
de  obriga^am  se  ham  de  achar  a  ella,  nam  faz  men^am  de  Reys, 
de  Patriarchas,  de  Argobispos,  nem  Bispos;  e  he  certo  que  nam 
ouvera  de  passar  em  silencio  taes  personagens,  se  elles  entraram 
em  este  acto,  nem  ouveram  de  deixar  de  entrar  pollo  menos  alguns, 
se  os  ouvera  em  Ethiopia.  Com  o  que  se  confirma  o  que  dissemos 
no  cap.  precedente,  que  foi  muy  fabulosa  a  informa^am  que  sobre 
esta  materia  teve  frey  Luis  de  Urreta. 
6.  Cur  Auctor  non  De  todas  estas  ceremonias  pudera  eu  dar  re^am  de  vista,  se  o 

potuit  interesse   co-  joi^'^/"'         aj  ••«  ^       ■%  .... 

ronationi  Sclt4n  Sa-  ©niperador  Seltan  vagned,  sem  elle  o  pretender,  mo  nam  impidira ; 
g4d:      caeremonias  porquc»  levantandose  hum  tirano  no  reyno  de  Ticfre  e  fincfindo  que 

tunc    habitas    refert    ^     ^  J  6  6  n 

ex  informatione  lo-  era  o  emperador  Jacob  (que  o  precedente  anno  morrera  em  bata- 
t^^^^^aui^ti^^caoito-  ^^^  ^  tinham  langado  fama  que  escapara),  se  Ihe  juntou  tanta  gente 
neus  et  amicus  im-  que  Ihe  foi  forc^ado  ao  Emperador  ir  de  Dambia  com  exercito  em 

peratoris  interfuit.  ^ 

mar^o  de  1608  e  de  passo  determinou  de  se  coroar  em  Ag^um. 
Do  que  eu  folguei  muyto,  por  desejar  de  ver  aquella  festa,  que 
aquelle  tempo  estava  em  Tigre,  e  assi  fui  com  outro  padre  ao  re- 
ceber  hum  dia  de  caminho ;  o  que  elle  agardeceo  muyto  e  nos  fez 
muytas  honrras.  Tinha  posta  sua  principal  tenda  entre  humas  ar- 
vores  a  longo  de  huma  ribeira,  e  todo  o  campo,  com  ser  muyto 
grande,  estava  cheio  de  tendas  com  grande  multidam  de  gente;  mas 
a  limpa  de  gu[e]rra,  que  depois  vi  em  ordem,  nam  me  pareceo  que 
passava  de  vinte  e  cinco  mil  homens.  Dalli  foi  pera  Ag^um  e  che- 


I 


LIVRO    r,   CAPITULO   XII.  137 

gou  hum  sabbado  polla  minha  e,  por  dicerem  que  a  quelle  mesmo 
dia  se  avia  de  coroar,  fui  diante  e  tomei  lugar  de  onde  pudesse  vor 
tudo;  mas  elle  nam  quis  entrar:  ficou  como  hum  4°  de  legoa  em 
hum  campo  muyto  chao,  e  antes  de  meio  dia  me  mandou  chamar 
e  disse,  que  so  domingo  avia  de  estar  alli,  e  2*  feira  queria  ir 
a  ouvir  missa  e  prega^am  em  nossa  igreja,  que  esta  como  duas  le- 
goas  dalli,  no  caminho  por  onde  avia  de  passar.  PoUo  que  me  fui 
logo  pera  poder  armar  a  igreja  e  aparelhar  o  necessario.  Mas  o 
capitam  dos  Portug^eses,  que  se  chama  Joam  Gabriel,  que  vinha 
com  elle,  me  disse  depois  que  aquella  tarde  foram  a  tenda  do  Em- 
perador  alguns  frades  com  o  Abade  do  mosteiro  que  ha  em  Agcjum, 
em  cuja  igreja  se  avia  de  coroar,  e  trouxeram  o  livro  onde  estam 
f.  5^'  *as  ceremonias  que  a  cinia  referimos  e  Ihas  leram  e  declararam 
todas,  pera  que  soubese  o  que  avia  de  facer;  o  que  elle  ouvio  com 
aten^am,  sem  Ihes  reprovar  nada;  mas  depois  que  sairam,  disse  ao 
Capitam:  Quanto  eu,  nam  hei  de  facer  todas  as  cousas  que  disse- 
ram  estes  frades,  porque  algumas  me  parecem  superstigoes  genti- 
licas.  Respondeo  o  Capitam :  Senhor,  nSo  enxerguei  nenhuma  contra 
a  fe  e,  nam  o  sendo,  se  V.  Mag.^®  nam  as  quiser  facer,  ha  de  ser 
muyto  notado,  porque  os  frades  se  ham  de  queixar,  e  outros  ham 
de  diccr  que  o  que  todos  os  Emperadores  ficeram  e  os  letrados 
tem  aprovado  V.  Magestade  o  reprova  e  desprepa.  Disse  o  Empe- 
rador  que  nem  elle  notara  nada  contra  a  fe,  mas  que  algiimas  da- 
quellas  cousas  Ihe  pareciam  muy  impertinentes. 

Domingo  polla  minha  saio  o  Emperador  ricamente  vestido  de  7.  Dcacriptio  cac- 
borcado  e  setim  carmesi  com  cadea  de  ouro  ao  coUo,  de  que  pen-  vaWe"  distat^ab*ca 
dia  huma  cruz  muyto  fermosa,  em  hum  poderoso  cavallo  muyto  bem  «upcrius  aUau  ez  li- 

.  bris  ecclesiae  Azum. 

enxae^ado,  e  por  ser  de  corpo  dos  mais  bem  despostos  de  sua  corte, 
de  cores  va^as,  o  rosto  cumprido,  os  olhos  grandes  e  fermosos,  a 
nariz  afilada,  os  beigos  delgados,  a  barba  preta  e  em  boa  propor- 
9am  cumprida,  mostrava  grande  magestade,  e  tinha  entam  32  annos. 
Levava  diante  todos  seus  capitaes  cada  hum  com  sua  gente  posta 
em  ordem,  a  de  pe  na  dianteira  e  logo  a  de  cavallo,  todos  vesti- 
dos  de  festa  com  muytas  vandeiras  e  tangendo  seus  atabales,  trom- 
betas,  cheremellas  e  frautas,  que  tem  a  seu  modo,  e  disparando 
muyta  espingardaria,  com  o  que  resonava  todo  aquelle  espa^oso 
campo.  Ultimamente  vinha  o  Emperador  com  muytos  senhores  de 
cavallo.  Estava  esperando  como  hum  tiro  de  besta  da  povoa^am  o 
Abuna  com  muytos  frades  e  clerigos  revestidos  e  com  cruces  e  tu- 

C.  BsccAlu.  Rer.  Aeih,  Scripi,  occ,  ined,  —  II.  18 


1^8  mSTORIA   DE   ETHI.  iPIA 

ribulos  e  grande  multidam  de  gente.  Tinhani  postas  n»  cham  muy- 

tas  alcatifas  a  longo  de  tiuraa  pedra  nam  mu^to  a)ta,  de  dous  co- 

vados  de  lai^o  e  de  grosso  menos  de  dous  palmos  de  huma  e  outra 

parte  cham,  e  toda  escrita  de  letras  tam  antiguas  que  agora  nam  ha 

qaem  as  saiba  ler;  e  como  hiam  chegando  alli  os  capitaes,  se  pun- 

ham  a  huma  c  outra   vanda   do  caminho,  apeandose  todos,  e  pas- 

sando  o  Emperador  poilo  meio,  se  apeo  hum  pouco  antes  de  che- 

aas  onde   estavam  os  sacerdotes,  e  foi   so  andando  ate  chegar  ao 

'dam  de  retroz  que  tinham  polias  pontas  as  duas  doncellas.  como 

semos  acima  quc  se  ordena  no  Ii\TO  das  ceremonias.  e  a  outra 

meio  Ihe  preguntou:  *Quem  sois  vos?  Respondeo:  Eu  el  Rey.  t.  58,^. 

ise  ella:  Xam  sois.  Entam  ^Hrou  elle  pera  atras  e  dando  cinco  oa 

s  passos  tor[noa]  a  voltar  pera  ella  (que  ainda  que  no  Uvro  nam 

a  isto,  disseramlhe  os  frades  que  assi  o  avia  de  facer)  e  como  che- 

i,  Ihe  torpou  a  preguntar  :  De  quem  sois  vos  Rey?;  elle  respon- 

) :  Sou  rey  de  Isrrael.  Disse  ella :  Xam  sois  nosso  Rey.  Deo  volta 

i  como  primeiro  e,  por  ser  esta  huma  das  cousas  que  Ihe  pare- 

m  impertinentes,  nam  pudo  deixar  de  dar  alguma  mostra  de  riso, 

da  que  poucos   Iha  enxergaram.   A  3*   vez   que  a  doncella  Ihe 

rguntou,  levou  elle  de  huma  espada  larga  muyto  rica,  que  tracia 

iracollo,  e  cortou  o  cordam    dicendo:   Eu   sou  Rey  de  Sion;  e 

nando  a  espada  a  vainha.  come<;ou  a  semear  pedacinh^js  de  ouro 

llas  alcatifas.  Disse  a  doncella  duas  veces;  Em  verdade  sois  rey 

Sion;  entrai.  E  logo  todos  em  alta  voz  disseram:  Vi^-a,  \-iva  el 

y  de  Sion,  e  come^aram  a  tocar  todos  os  instrumentos  musicos 

i  tinham  e  disparar  a  espingardaria  com  muyta  festa. 

Acabado  isto,  foram  em  procissam  ao  mosteiro  cantando  os  fra- 
i  e  clerigos:  ■■  Benedictus  qui  venit  in  nomine  Domini  etc.  »  com 
:ras  cousas,  ate  entrarem  a  primeira  cerca,  onde  esta  hum  patio 
inde  e  debaixo  de  humas  ar\'ores  12  asentos  de  pedra  bem  la- 
ida  postos  em  fieira,  e  hum  pouco  afastado  4  colunnas  de  pedra 
n  seus  capiteis  bem  fcitos,  e  parece  sustentavam  primeiro  alguma 
jbeda.  Entre  ellas  outros  dous  a.sentos  de  pedra,  e  dicem  que  so- 
•  estcs  e  os  outros  1 2  as'ia  antiguamrnte  cadeiras  de  pedra  mujto 
n  lavradas  e  que,  quando  se  coroava  o  Emperador,  as  cubriam 
las  de  sedas  e  borcados. 

Francisco  Alvaros  em  sua  IHsforia  fol.  45  diz  tambem  que  as 
a  e  que  eram  de  huma  so  pf^dra  f-  feiias  tam  ao  natural  que  pa- 
iam  de  madeira,  c  que  af^ucllas  \z  foram  dos  12  ouvidores,  que 


UVRO   I,   CAPITULO   XTI.  139 

o  Emperador  tracia  em  sua  corte.  Mas  agora  nam  ha  taes  cadeiras,  bua  flt  mentio  in  li- 
posto  que  em  as  pedras  se  veem  os  encaxes  onde  parece  que  esti-  ffj^storia^micla^ 
veram;  e  isto  da  tambem  a  entender  o  livro  das  ceremonias,  di-  Alvare». 
cendo  que  a  cadeira  real  estava  no  lugar  onde  se  faciam  as  cere- 
monias,  porque  onde  estam  aquellas  colunnas  se  acostumaram  a 
coroar  sempre  os  Emperadores  que  vieram  a  Ag^um.  Estes  dous 
asentos  de  entre  as  colunnas  somente  cubriram  com  pannos  de  seda 
e  o  cham  com  alcatifas  muyto  fermosas,  e  no  [da]  mao  dereita  se  asen- 
tou  o  Emperador  e  no  da  izquerda  o  Abuna.  Os  frades  e  clerigos  fica- 
f.  59.  ram  da  vanda  *de  fora  de  hum  parapeito  baixo  de  pedra,  que  de 
novo  tinham  feito  a  roda  das  colunnas,  e  cantaram  e  leram  em  os 
livros  grande  espa^o  de  tempo  e  em  certos  passos  se  alevantava  o 
Abuna  e  facia  suas  ceremonias :  humas  veces  ungia  ao  Emperador 
na  cabepa,  e  outras  Ihe  cortava  os  cavellos  onde  tinham  tocado  os 
olios;  e  os  sacerdotes  os  levaram  cantando  e  encensando  com  seus  tu- 
ribulos  e  os  queimaram  perto  da  porta  da  igreja  e  meteram  a  cin<;a 
dentro  de  huma  pedra,  que  tem  pera  isso,  e  fecharam  com  outra  e 
tomaram  pera  os  outros  que  ficaram  cantando  perto  do  Emperador. 
Acabadas  as  ceremonias,  que  duraram  muyto  tempo,  se  ale- 
vantaram  o  Emperador  e  o  Abuna  e,  levando  diante  os  frades  e 
clerigos  com  suas  cruces  e  turibulos  cantando,  foram  em  procissam 
a  igreja,  que  esta  dentro  da  segunda  crasta,  e  entrando,  depois  de 
facer  ora^am,  se  asentou  o  Emperador  em  hum  trono  que  Ihe  tin- 
ham  feito  com  cortinas  de  seda  a  roda ;  e  disseram  missa  solemne, 
em  que  comungou  o  Emperador;  e  como  se  acabou,  saio  muyto 
acompanhado,  com  hum  chapeo  de  velludo  a^ul  escuro  de  falda  larga 
em  a  cabe^a,  e  a  copa  toda  a  roda  chea  de  chapas  de  ouro  como 
flor  de  lis,  e  no  alto  seu  remate  com  algumsis  pedras  piquenas 
engastadas ;  que  este  he  o  modo  de  coroa  que  usaram  os  Empera- 
dores  ate  este,  que  em  setembro  de  616  fez  huma  coroa  de  ouro 
como  as  que  usam  nossos  Reys,  por  huma  forma  que  Ihe  veio  da 
India,  e  subindo  em  seu  cavallo,  foi  pera  as  tendas  com  o  mesmo 
ordem  que  veio,  e  ainda  que  me  tinha  dito  que  avia  de  passar  o 
siguinte  dia,  esteve  alli  tres  dias  com  muytas  festas. 

Quarta  feira  como  as  dez  horas  chegou  a  nossa  aldea,  que  se  9,  Post  coronatio- 
chama  Fremona,  onde  Ihe  estavamos  esperando  tres  padres  com  a  U^gj^  Auctorem 
igfreja  muyto  bem  concertada  pera  dicer  missa  e  pregar ,  mas  por  Fremonac  eique  au- 

.  rum  et  terras  dat  pro 

vir  encalmado,  disse  que  ficase  pera  o  dia  siguinte,  e  entrando  em  ecclesia  Patmm. 
nossa  casa  com  alguns    Grandes  esteve    praticando  comnosco    so- 


I40  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

bre  diversas  materias  com  tanta  familiaridade,  como  se  fora  algum 
senhor  dos  mais  devotos  que  ca  temos,  ate  que  se  punha  o  sol, 
sem  comer  nem  beber,  por  ser  cuaresma  (que  nella  nam  comem, 
nem  bebem  ate  entrado  o  sol),  e  aquellas  horas  se  foi  pera  as  tendas 
que  estavam  perto ;  onde  Ihe  mandamos  algumas  igoarias  e,  ainda 
que  poucas,  as  estimou  muyto  por  serem  temperadas  a  nosso  modo. 
Aquella  noite  Ihe  vieram  negocios,  sobre  o  que  Ihe  foi  necessario 
tomar  *conselho,  e  assi  poUa  minha  mandou  marchar  o  exercito  e  .  s^.v. 
ficou  elle  na  tenda  com  os  capitaes,  e  invio  nos  a  dicer  que  a  re- 
cobagem  e  gente  de  pe  hia  antes  que  entrase  muyto  o  sol,  msts  que 
elle  avia  de  ouvir  missa.  O  conselho  porem  nam  se  acabou  ate 
pouco  antes  de  meio  dia;  pollo  que  parteo  com  toda  a  cavalleria, 
que  era  muyta,  e  mandou  nos  dicer  que  Ihe  pesava  de  que  o  tempo 
nam  desse  lugar  pera  poder  ouvir  missa  e  deonos  peso  de  trecen- 
tos  cru^ados  em  ouro;  que  ca  (como  ja  tenho  dito)  nam  ha  moeda; 
e  a  as  terras  que  antes  tinhamos  nos  acrecentou  outras  muyto  maio- 
res,  que  se  continuavam  com  ellas. 
10.  Inde  aggredi-  Tendo  caminhado  dous  dias,   Ihe  vieram  novas  que  o  alevan- 

tur  cum  8UO  ezercitu   ^    ,  ^  ,  ^ 

rebelles     tigrenses,  ^ado  entrara  em  humas  terras  muyto  asperas  e  montuosas,  que  estam 
quorum  dux  tamen  perto  do  mar,  e  assi  determinou  de  ter  alli  a  Pascoa,  porque,  de- 

cum  paucis  fuga  sa-    '^     ^  mt      ^ 

lutem  invenit.  mais  de  que  nam  acostumam  a  caminhar  os  oito  dias,  antes  queria 

que  visem  a  que  parte  fora,  pera  saber  por  onde  avia  de  entrar ;  e 
mandoume  dicer  sabbato  de  Ramos,  que,  ja  que  primeiro  nam  pu- 
dera  ouvir  missa,  Ihe  fosse  a  pregar  a  semana  santa;  com  o  que 
folguei  muyto,  porque  em  Ethiopia  casi  nunca  pregam.  Mas  2^  feira, 
estando  eu  pera  partir,  chegou  outro  recado  que  nam  tomase  tra- 
balho  em  ir,  porque  Ihe  era  for^ado  caminhar  com  muyta  pressa, 
antes  que  o  alevantado  fugise  pera  humas  terras  de  gentios,  onde 
deciam  que  queria  entrar.  Foi  elle  logo  e  fez  tomar  os  passos,  de 
maneira  que  o  alevantado  nam  achou  outro  conselho  pera  poder  esca- 
par,  senam  deixar  a  gente  que  tinha  e  meterse  pollo  mais  basto  do 
mato  com  sos  cuatro  homens  de  quem  se  fiava,  e  sucedeolhe  tam 
bem  que  por  mais  diligencia  que  fez  o  Emperador,  nunca  o  pode 
achar,  porque  esteve  escondido  em  hum  lapa,  sustentandose  do  leite 
de  algumas  poucas  cabras  que  lebou  comsigo.  E  vendo  o  Empe- 
rador  que  se  Ihe  chegava  o  inverno,  que  ca  come^a  em  junho,  se 
tornou  pera  Dambia  sem  facer  nada ;  mas  depois  do  inverno,  pas- 
sandose  o  alevantado  a  outras  terras  com  obra  de  600  liomens,  o 
mataram,  como  adiante  veremos. 


r 


LIVRO  I,   CAPITULO  XII.  14I 

Em  o  que  temos  dito  se  ve  bem  quam  difFerentes  sam  as  cousas       ix.   Ez  dictis  au- 

r         T     '     j     TT       j.         r  1-  j-i^         pfA   dc  coronatione 

que  frey  Luis  de  Urreta  refer  no  cap.  13,  sobre  a  coroa^am  do  Em-  Bequitur  descriptio- 

perador  de  Ethiopia,  a  as  que  na  verdade  se  usam.   Tambem  no  ^*™  Urretae  fabulo- 

sam  ease. 
cap.   14  conta  como,  depois  que  o  coroam,  Ihe  entregam  os  thesou- 

ros  de  Guixen  Amba  com  grande  solemnidade  e  elle  reparte  libe- 

ralmente   com  os  presentes;    depois   dece  do  nionte   acompanhado 

dos  senhores  do  Gram  Conselho,  dos  Reys,  cmbaixadores  e  prela- 

dos,  e  dos  demais,  que  subiram  a  elei^am,  e  vai  pera  a  cidade  de 

f.  60.   Zambra,  onde  Ihe  facem  grande  *recebimento  e  elle  entra  com  grande 

aparato  em  hum  elephante  ricamente  enjae^ado;  e  passados  15  dias 

que    gastam  em  festas,  se  parte   pera  a  cidade  de    Saba.   E  em  o 

capitulo  15  diz  que  todos  os  Reys  sugetos  ao  imperio  vem  a  ci- 

dade  de  Saba  a  dar  a  obediencia  ao  Emperador  e  cada  hum  de  por 

si  entra  em  hum  elephante,  e  esto   mesmo  tornam  a  facer   depois 

de   sete   em   sete   annos.   Mas    todas    estas   cousas   sam    fabulas   c 

meras  fic^oes,  porque,  como  dissemos  no  cap.  9,  nam  ha  en  Gui- 

xen  Amba  (a  que  elle  chama  monte  Amara),  nem  ouve  nuuica  the- 

souros  nenhuns ,  nem  la  se  juntaram,  nem  juntam  pera  eligir,  nem 

jurar  ao  Emperador,   nem  ha  taes  Reys,  como  vimos  em  os  dous 

capitulos   precedentes,  e  muyto  menos  ha  elephantes  mansos,  nem 

os  ouve  nunca  em  Ethiopia,  nem  taes  cidades  de  Zambra  e  Saba, 

como  adiante  diremos. 


CAPITULO  XIII. 

Em   que  se  trata   do  modo   com   que  o  Emperador  de 
Ethiopia  ouve  os  officios  divinos. 


Antiguamente,    quando  os  Emperadores   de   Ethiopia   nam  se       x.  Vetus  consue- 

tudo  iuzta  quam  ne- 

deixavam  ver  de  nmgiiem,  mais  que  de  trmta  minmos  de  servic^o  j^^  poterat  aspicere 
que  tinha  dentro  de  seu  paco,  de  suas  molheres  e  do  Behet  oaded  y'*!*^  Imperatoris 

^  ^    ^  iam  inde  a  tempore 

da  mao  dereita  e  o  da  izquerda  e  do  Acabipat,  que  se  algnm  outro   Prancisci  Alvare*  a- 

homem  grande,  ainda  que  fosse  cunhado  ou  jenrro,  alcancjava  licen^a 

pera  falar  com  o  Emperador,  avia  de  ser  de  noite,  e  tiradas  todas 

as  candeas,  de  maneira  que  nam   Ihe  via  o  rosto,   como  dissemos 

no  cap.  4,  quando    os  Emperadores  se  aviam   desta   maneira   com 

seus  vassallos,  tambem  indo  a  missa,  tinham  grande  resgnardo,  pera 

que  nam  os  visem ;  e  asi  o  emperador  Zara  Jacob  fez  hum  caminho 

com  cerca  muyto  alta  de  huma  e  outra  vanda  do  pa^o  ate  a  igreja 

(como  se  conta  em  o  livro  de  sua  historia),  e  por  alli  hia  sem  que 

o  visem ;  e  quando    entrava,  nam   avia  de  estar  em  a  igreja   mais 

que  os  superiores  de  alguns  mosteiros  grandes,  pera  cantar,  e  logo 

se  metia  entre  suas  cortinas  e  dalli  ouvia  missa,  e  quando   queria 

entrar  na  capella  pera  comungar,  saiam  todos,  sem  ficar  mais  que 

Acabicat,  e-  outros   cuatro    sacerdotes,    e  depois   tornava   ao    pa^o 

pollo  mesmo    caminho;    mas    assi  a  ida   como  a  vinda   dava  sinal 

hum  pagem  com  a  mao  de  dentro  do  pa^o,  aos  musicos  que  espe- 


144  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

ravam  fora  com  muytos  instrumentos,  pera  que  tangesem  e  ficesem 

festa,  e  com  isto  sabia  a  gente  de  fora  quando  entrava  e  saia  de 

missa,  como   dissemos  no  cap.  5.   Mas  depois   foram   deixando  os 

Emperadores  esta  superstif^am,  e  se  comei;aram  a  mostrar  *ao  povo  f.  6o,v. 

e  hiam  com  grande  aparato  a  missa,   como  affirma  Francisco  Al- 

res   em    sua   Historia  Ethiopica  fol.   147,  falando   do  emperador 

ivid,  que  depois  se   chamou   Onag  (^agued,  a  quem   dou   muyto 

lis  credito  em  este  particular  que  a  inforraaijam  da  gente  desta 

rra,  porque    diz,  que  o  vio   dia  de   Pascoa  de  resureitjam    antes 

amanhecer;   poUo  que   referirei  suas   palavras    que  sam  as   si- 

lintes : 

«  Despues  de  media  noche  fuimos  llamados  y  cn  llegando  a  la 
puerta  principal  de  su  gran  tienda,  vimos  que,  desde  ella  hasta  la 
iglesia  de  s."  Cruz  (que  estava  de  alli  hum  tiro  de  arcabuz),  avia 
por  los  lados  mas  de  seis  mil  candelas  encendidas  y  puestas  con 
^ande  orden  apartada  la  una  hacera  de  la  otra  casi  40  o  50  pas- 
jos;  detras  dellas  avia  inlinita  gcnte,  de  manera  que  los  que  las 
tenian,  les  hacian  reparo,  porque  tenian  caiias  atadas  en  hilera 
anas  dc  otras  y  puestas  ante  si,  sobre  las  quales  ponian  las  can- 
Jelas  en  gran  compas.  Delante  de  la  tienda  del  Emperador  andavan 
:uatro  sefiores  a  cavallo,  y  pusieron  nos  junto  a  ellos;  y  luego  salio 
3I  Emperador  sobre  un  hermoso  macho  mor»;ii]o,  tan  grande  como 
nn  gran  cavallo,  y  el  lo  tenia  en  muclin  trayendolo  siempre  con- 
iigo.  Venia  el  Emperador  vestido  de  unas  ropas  de  brocado  muy 
luengas  que  llegavan  al  suelo,  y  tambien  iva  cl  macho  cubierto 
3e  lo  mismo.  Llevava  en  la  cabe»;a  su  corona  y  en  la  mano  una 
:ruz.  Tras  del  lc  trayan  dos  poderosos  cavallos  enjae^ados  y  cu- 
biertos  de  brocado,  los  quales  con  la  lumbrc  de  las  candelas  pare- 
:iam  ser  todos  de  fino  oro,  y  cada  uno  llevava  su  diadema  bien 
:umplida  com  grandcs  penachos  cn  la  cabei;a,  Luego  que  el  Em- 
perador  salio,  se  iueron  aquellos  cuatro  de  cavallo  y  nos  pusieron 
3etras  del,  para  quc  fuessemos  alli,  sin  que  otra  persona  le  siguiese, 
ialvo  vinte  o  treinta  sefiores  que  ivan  delante  delle  a  pie,  Desta 
iuerte  llegamos  a  la  iglesia  de  s.'*  Cruz,  en  la  qual  luego  el  Em- 
perador  se  metio  en  sus  cortinas  y,  salida  la  clerecia  que  avia  den- 
:ro  y  juntandose  con  otra  mucha  que  eslava  fuera,  por  no  caber 
;n  la  iglesia,  sc  hi^o  una  procession  muy  solemne,  yendo  nosotros 
il  principio  della  entre  las  dignidades  mas  honradas  que  avia.  Buel- 
:os  que  fuoron  a  la  iglesia,  officiaron  la  missa  y  ya  que  era  aca- 


LIVRO   I,   CAPITULO  XIII.  145 

«  bada  y  querian  dar  la  comunion,  nos  dixeron  que  fuessemos  a  decir 
«  nuestra  missa,  que  ya  teniamos  una  tienda  armada  para  ello  junto 
«  a  las  tiendas  del  Emperador.  Nosotros  fuimos  luego  y,  como  vie- 
«  semos  que  nos  tenian  armada  una  tienda  negra,  pensamo[s]  que  se 
€  burlavan  y  assi  la  dexamos  y  fuimos  a  nuestras  tiendas  que  esta- 
«  van  junto  al  rio  ». 
f.  61.  *Ate  aqui  sam    palavras  de  Francisco  Alvares,  em  que  se  ve      3-  Quomodo  ircnt 

^  11-  ^  Imperatores  ad   au- 

o  aparato  com  que  o  Emperador   hia  a  missa ;   mas  entam  o  que-  dicndam       Missam 

reriam  mostrar  mayor  que  o  que  usava  de  ordinario,  por  ter  estran-  tempore  Auctoris. 

geiros  em  sua  corte.  Agora  raramente  vai  o  Emperador  de  noite 

a  igreja,  nem  Ihe  he  necessario  isso  pera  ouvir  missa;  porque,  ainda 

que  em  todas  as  igrejas  se  come^am  sempre  os  officios  duas  horas 

ou  mais  antes  de  amanhecer,  em  as  festas  sam  tam  cumpridos,  que 

nam  se  acavam  ate  saido  o  sol,  e  entam  se  come^a  a  missa,  e  al- 

gumas  veces  muyto  mais  tarde.  Porem  a  qualquer  hora  que  se  seja 

tempo  da  come^ar,  estam  obrigados  os  das  duas   igrejas,  que  tem 

o  Emperador  perto  fora  da  cerca  de  seu  pago,  a  dar  sinal  pera  se 

quiser  ir  a  ouvir  missa,  nam  com  sinos,  que  nam  os  ha,  como  dire- 

mos  no  segundo  livro,  senam  com  hum  atambor  de  cada  igreja  casi 

da  sorte   dos  nossos;  e  perto  da   porta  do  pa^o  dam   com  a  mao 

nelles  algumas  pan^adas,  e  logo  o  Emperador  Ihes  manda  recado 

se  ha  de  ir,  ou  nam.  Mas  quando  elle  quer  ouvir  missa,  ordinaria- 

mente  manda  recado  muyto  antes  que  se  comege  e  poem  la  com 

tempo  sua  cadeira, 

Este  de  agora  tem  como  as  nossas  de  damasco  carmesi  com      4«   Deacriptio  ca- 

-        .         -  '         n      n       t  j  i_  thedrae  Imperatoris 

franjas  de  retroz  carmesi  e  de  no  de  ouro;   os  pregos  de  cabe^a  j^  ecdesia  et  pom- 
cnrande,  muyto  bem  feitos,  dourados  e  no  alto  dous  pranchonos  de  P*«  ^?  rwlitu.   De- 

o  ^         j  '^  scriptio  seUae  impe- 

cobre  tambem  dourados.  Tem  outras  cadeiras  da   China  douradas,   rialis  in  regio  ten- 

com  os   asentos  de  velludo  verde  e  carmesi.  Sempre  vai  a  igreja 

a  pe,  porque  esta  muyto  perto  do  pa^o   e  quando  sae  delle,  leva 

diante  muytos  senhores  ricamente  vcstidos  e  detras  alguns  pagens 

piquenos,  tambem  muyto  bem  vestidos,  e  ordinariamente  de  huma 

e  outra  vanda  do  caminho  esta  cheo  de  gente  e  diante  de  aquelles 

senhores  vam  muytos  porteiros  do  pago  com  huns  paos  curtos  em 

que  tem  amarradas  correas  muyto  cumpridas,  com  que  facem  afa- 

star  a  gente  pera  que  de  caminho.  E  como  o  Emperador  entra  na 

igreja,  se  asenta  em  sua  cadeira,  que  esta  entre  cortinas  muyto  fer- 

mosas  de  seda,  c  de  alli  ouve   missa,  e  torna  da  mesma  maneira 

que  foi.  Mas  no  pago  nam  se  asenta  ordinariamente  em  estas  ca- 

C,  Bbccari.  /ifr.  Aeth,  Script,  occ,  insd,  —  II.  19 


146  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

deiras  senam  em  hum  esquife  dourado  com  quatro  colunnas  tam  altas 

como  hum  homem,  com  muyta  laceria  e  a  cabeceira  casi  tam  alta 

como  as  colunnas  com  algunas  figiiras,  conchas  e  folhagens,   que 

Ihe  dam   muyto  lustre,  e  seu  pavelham  de  seda  muyto  fermoso  e 

todo  elle  muyto  bem  omado  com  colchas  de  seda,  e  os  rodapes  de 

borcado  com  franxas  de  fio  de  ouro. 

5.  Descriptio pom-  *Isto  he  o  que  eu  vi  mu^rtas  veces  indo  a  missa  o  emperador  f.  6!,v. 

^  ^bT  contulit  ad  Seltan  (^agued.  Tambem  o  emperador  Atanaf  (^agned,  que  primeiro 

audiendam   miMam  g^  chamava  Za  Denguil,  em  junho  de  1604,  depois  de  eu  ter  por 

comm    ab  Auctore  muytos  dias  disputas  diante  del  com  seus  letrados  sobre  as  cousas 

e  ratam.  ^^  ^^^  contrariam  nossa  santa  fe  e  de  ter  muyto  bem  entendida 

a  verdade  e  estar  resoluto  em  dar  a  obediencia  a  s.**  Igrejaromana, 
me  disse  que  desejava  muyto  ouvir  nossa  missa  e  ouvir  pregagam. 
Respondi  que  nam  tinha  vinho,  que  o  tinha  mandado  a  huma  terra 
onde  estavam  os  Portugueses  dous  dias  de  caminho,  parecendome 
que  avia  de  ir  logo  pera  que  confessasem  e  comungasem.  Mandou 
elle  que  me  desem  pasas,  dfcendo  que.  por  falta  de  vinho,  nam 
deixase  de  Ihe  dar  aquelle  gosto,  parecendolhe  que  nos  deciamos 
missa  com  vinho  de  passas  como  seus  sacerdotes.  Respondi,  que 
faria  tracer  o  vinho  com  toda  pressa,  que  com  aquello  nam  se  po- 
dia  dicer.  Como  chegou  o  vinho,  mando  elle  armar  huma  tenda  muyto 
grande  de  tres  mastos,  dentro  da  cerca  do  pa^o,  que  era  muyto 
espa^osa,  onde  concertei  hum  altar  o  milhor  que  pude  com  algu- 
mas  imagens,  e  pera  a  vanda  do  evangelho  hum  pouco  afastado, 
puseram  outra  tenda  piquenha  muyto  fermosa  e  no  cham  ricas  al- 
catifas  e  sobre  ellas  sua  cadeira  com  dous  coxins  de  velludo  car- 
mesi  diante.  Depois,  como  foram  horas,  veio  o  Emperador  vestido  de 
setim  carmesi  do  mesmo  corte  de  Turcos  cumprido  ate  os  pes,  mas 
a  roupa  de  debaixo  com  colarinho  alto  como  os  nossos.  Tracia  diante 
muytos  porteiros  que  faciam  dar  caminho  com  correas  como  as  que 
a  cima  disse;  porque  a  gente  era  tanta  que  com  difficultad[e]  davam 
passo.  Tras  dos  porteiros  se  seguiam  muytos  senhores  ricamente 
vestidos,  e  no  ultimo  o  Emperador  com  o  governador  do  imperio 
e  seu  mordomo,  e  detras  alguns  pagens;  e  como  chegou,  se  asen- 
tou  em  sua  cadeira,  ficando  todos  aquelles  senhores  aos  lados  da 
tenda  piquena  sentados  no  cham  em  alcatifas,  de  maneira  que 
nam  o  podiam  ver;  sos  dous  pagens  piquenos,  vestidos  de  bofeta 
e  cabayas  de  tafi<;ira  de  seda  carmesi,  com  tocas  em  as  cabe^as 
e  espadas  em  as  maos,  nam   nuas  s^^nam    com  vainhas,  estavam  a 


LIVRO  I,   CAPITULO   XIIL  147 

porta  da  tenda  hum  de  huma  vanda  e  outro  de  outra;  e  desta 
maneira  ouvio  missa  e  pregagam  com  grande  silencio  de  todos;  e 
como  se  acabou,  se  foi  com  o  mesmo  ordem  que  veio.  Adiante, 
quando  tratar  deste  Emperador,  referirei  mais  en  particular  as  cou- 
sas  que  auve  em  esta  e  outra  vez  que  ouvio  missa;  que  agora  nam 
f.  62.  pretendo  *mais  que  mostrar  o  modo  com  que  os  Emperadores  vam 
a  igreja  e  estam  nella. 

Frey  Luis  de  Urreta  trata  esta  materia  no  capitulo  16  e  traz      6.  Festum  Inven- 

1  r    ^  •      •  jt'  T-  j       j     T-^v'      •      tionis  8.  Crucis  de- 

algnmas  festas  principaes,  em  que  diz  que  o  Emperador  de  Ethiopia  scriptum  ab  Urreta 

vai  com  pompa  e  aparato  a  igrejia.   A   primeira  he  da  inveuQam  commcntitium,   im- 

mo    ig^otum    apud 
da  ss.*  Cruz,  em  cuja  vespra   affirma  que  poem  huma  rica  tenda  Aethiope8,quitamen 

fora  da  cidade  e  dentro  armam  os  sacerdotes  hum  curioso  altar  e  J^brant  f^um^al- 

sobre  elle  poem  huma  cruz  de   cedro   em  memoria  da  que   achou  tationia  eiusdem. 

a  s.**  emperatriz  Elena ;  e  o  dia  siguinte  sae  o  Emperador  em  hum 

elephante  acompanhado  de  toda  sua  corte,  e  chegando  a  tenda,  en- 

tra,  e  posto  de  joelhos  diante  da  cruz,  adoura  com  grande  devoc^am 

e  facendo  o  mesmo  os  demais,  tiram  seus  vestidos  e  poem  outros 

pretos,  como  o  faz  o  Emperador;  o  qual  chega  logo  ao  altare,  to- 

mando  a  cruz  com  grande  reuerencia,  a  leva  a  cidade  a  pe  em  com- 

panhia  daquelles  cavalleiros  e  prelados,  que  vam  em  procissam  por 

ordem ;  e  chegando  ao  pa^o,  a  poe  decentemente  na  capella  impe- 

rial    onde  estam  ajoelhados  como  hum  4°  de  hora,  e  depois  se  va 

cada  hum  a  sua  estancia.   Isto  diz  frey  Luis;    mas  primeiramente, 

como  jam  temos  dito  e  me  affirmou  o  mesmo  Emperador,  nunca  em 

suas  terras  se  vio  elephante  manso,  nem  se  faz  de  nenhuma  maneira 

festa  da  inven^am  da  s.**  Cruz.  E  preguntando  eu  a  hum  frade  ve- 

Iho,  que  podia  dar  milhor  re^am  que  os  demais,  se  primeiro  fa- 

ciam   esta  festa,   me  disse   que   antiguamente  a  faciam,   mas  nam 

sabia  se  com  estas   ceremonias;   e  ainda  que  a  ficeram  assi,  nam 

aviam  de  levar  a  cruz  ao  pa^o,  porque  dentro  nunca  ouve  capella, 

senam  a  huma  de  duas   igrejas,  que  tem  o   Emperador   ordinaria- 

mente  hum  bom  tiro  de  pedra  afastadas :  huma  he  de  Jesu  e  outra 

de  Nossa  Senhora.  Nem  aviam  de  estar  de  joellios,  como  diz,  por- 

que  ca  nam  se  usa   facer  orapam   senam    em   pe  ou  asentados  no 

cham.  Porem  o  dia  da  exalta^am  da  s.**  Cruz  facem  muyto  grande 

festa,  balhando  toda  aquella  noite,  e  ainda  em  algumas  terras,  como 

no  reyno  de  Tigre,  come^am  hum  mes  antes  a  balhar  nas  ruas  to- 

das  as  noites,  e  o  mesmo  dia,  antes  de  amanhecer,  andam  os  mance- 

bos  e  mininos  com  fachas  acessas  muyto  cumpridas  feitas  de  pauci- 


148  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

nhos  delgados  muyto  secos  gritando  e  pidindo  a  Deos  com  palavras 
de  g^ande  alegria  que  os  deixe  chegar  a  outro  anno,  e  quando  aman- 
hece  acendem  muyta  lenha,  que  tem  junta.  Este  dia  vai  o  Empe- 
rador  a  missa  *com  o  acompanhamento  e  ordem  que  acima  dis-  f.  02,v 
semos ;  mas  nam  faz  ceremonia  nenhuma  das  que  frey  Luis  aponta, 
e  como  torna,  vam  muytos  mancebos  a  balhar  a  porta  do  pa^o,  e 
mandalhes  dar  oito  ou  dez  vacas.  Depois  andam  pollas  casas  dos 
senhores  balhando  e  tambem  Ihes  dam  vacas,  ou  fato,  com  que  as 
comprem.  Em  isto  gastam  oito  dias.  Ate  os  gentios,  que  nam  obe- 
decem  ao  Emperador,  facem  esta  festa,  acendendo  grandes  fogos  e 
matando  muytas  vacas. 
7.  Palsa   descrip-  A  2*  festa  que  poe  he  domingo  de  Ramos,  em  que  diz  que  o 

tio  festi  in  Dominica    -1-  j  •         •        •  ^  j  j  ^i 

Palmaram  ab  Urreta  Eniperador  vai  a  igreja  com  a  pompa  acostumada,  e  de  seu  throno 
tradita.  ouve  os  officios  ate  que  se  comecja  a  paixam,  que  dece  do  throno 

e,  tirado  o  vestido  imperial,  veste  o  que  tracia  no  monte  e  o  mesmo 
facem  todos  os  circunstantes  e,  tirados  os  vestidos  ricos,  poem  outros 
pretos  e  os  tracem  toda  a  semana  santa,  em  que  nam  trata  nego- 
cios,  nem  se  acompanha  com  pessoa  nenhuma  senam  com  os  em- 
baixadoures  de  Portugal  e  do  Vissorrey  de  Goa  e  do  Consul  dos 
mercadores  de  Italia,  e  com  elles  come  aquella  santa  feira,  e  dia 
de  Pascoa  vai  a  igreja  acompanhado  das  mesmas  pessoas  e  as  de 
sua  corte;  e  em  come^ando  «  Gloria  in  excelsis  Deo  »,  mudam  os 
vestidos  ordinarios  em  outros  ricos  assi  o  Emperador  como  os  ca- 
valleiros  que  o  acompanham;  e  como  acavam  de  ouvir  missa,  de 
comungar  e  dar  gragas,  torna  o  Emperador  a  pe  ao  pa^o  e  ao 
siguinte  dia,  de  pois  de  ouvir  missa,  se  poem  tres  grandes  mesas 
com  tres  aparadores  ricos,  hum  com  a  baxella  de  ouro,  outro  de 
prata  e  outro  de  porcelanas  e  barro  fino.  Em  a  primeira  mesa  come 
o  Emperador  com  dous  sacerdotes;  em  a  2*  os  embaixadores  e 
cavalleiros  da  terra  latina;  em  a  3*  os  filhos  dos  Reys  com  os  do 
g^an  conselho  do  Emperador,  e  como  se  alevantam  as  mesas,  Ihe 
ofFerece  cada  hum  alguma  pe^a  curiosa  como  de  christal  ou  cousa 
semelhante. 

Tudo  quanto  aqui  diz  frey  Luis  tambem  he  muyto  contrario 
ao  que  ca  se  usa,  porque  o  Emperador  e  os  que  o  acompanham 
domingo  de  Ramos  nam  mudam  os  vestidos  em  a  igreja,  nem  ouve 
nunca  consul  dos  mercadores  de  Italia,  nem  veio  embaixador  nen- 
hum  de  Portugal,  nem  do  Vissorrey  da  India,  depois  que  o  padre 
bispo  dom  Andre  de  Oviedo  entrou  em  Ethiopia,  que  foi  em  mar<;:o 


LIVRO   I,   CAPITULO   XIII.  149 

^^  ^557J  ^  como  foi  recibido  diremos  adiante;  nem  com  o  Empe- 
rador  come  nunca  ninguem  de  nenhuma  maneira,  ainda  que  seja 
sacerdote ;  nem  ha  taes  aparadores  com  baxella  de  ouro  e  de  prata 
f.  63.  *se  nam  de  hum  barro  preto  fino,  porcelana  e  cobre,  como  dissemos 
cap.  9.  Quanto  das  ceremonias  que  usam  em  a  semana  santa  os  ec- 
clesiasticos  e  seculares,  trataremos  em  o  segundo  livro. 

A  3*  festa  que  frey  Luis  poe  he  a  do  ss.**  Sacramento  e  diz  8.  Quam  absonum 
que  a  mandou  celebrar  em  Ethiopia  o  papa  Paulo  3°,  que  foi  eleito  reta^circa  fMtom^s" 
no  anno  de  1534;  e  chegando  seu  breve  em  tempo  do  Preste  Joam  Sacramenti   in   Ae- 

_       .j      j  ,      ,  ,      ,.  thiopia     celebratum 

David,   dous  annos   antes  que  morrese,   obedeceo  como   obediente  ex  mandato  pontifi- 

filho  da  igreja  romana  e  mandou  logo  que  por  toda  a  Ethiopia  se         ^*'^*  ^^^* 

celebrase.  E  diz  que  facjem  huma  solemne  procissam  poUa   cidade 

com  o  santissimo  Sacramento,  e  detras  del  vai  o  Emperador  e  que 

as  candeas  que  levam  sam  innumeraveis,  e  que  casi  todos  balham 

e  facem  muytas  dan^as,  e  tem  por  costume  que,  em  quanto  passa 

a  procissam  por  alguma  rua,  ninguem  pode  estar  em  janella  nem 

terrado,  senam  que  todos  ham  de  sair  a  rua,  descuberta  a  cabe^a, 

e  ajoelhamse  com  grande  devo^am  ehumildade;  e  guardam  isto  com 

tanto  rigor,  parecendolhes  que   ver  o  ss.™**  Sacramento  de  alguma 

janella  ou  lugar  alto  he  irreverencia ;  que  as  freyrais,  cujos  conventos 

sucede  estarem  em  as  ruas  por  onde  passa  a  procissam,  sendo  cousa 

forcjosa  avella  de  ver  de  seus  corredores,  he  costume  muy  recebida 

que  de^am  todas  a  porta  da  igreja  e  se  ponham  em  dous  coros  cu- 

bertas  com  seus  veos  e  com  candeas  em  as  maos  estam  ajoelhadas 

em  quanto  passa  a  procissam. 

Isto  que  diz  o  Autor   tambem   foi  inven^am  de  quem  o  infor-      9.    In    Aethiopia 

r  Tr-1.1-'       •      j.   1  •  r       nullae    domus    cum 

mou;  porque   nem  se  laz  em   Ethiopia  tal   procissam,  nem  se  fez  fcnestris  sedtantum 
nunca,  que  por  nenhum   caso  tiram  o  Sacramento  da  igreja;   so  o  parvae  casae  terreae. 

NuUa        monasteria 

tracem  ate  a  porta  onde  comungam  as  molheres  e  os  homens  que  monialium. 

nam  tem  ordem  sacro;  porque  sem  elle  nam  podem  comungar  nem 

ouvir  missa  la  dentro.  Se  o  summo  pontefice  Paulo  3°  mandou  que 

se  ficese  ca  esta  festa,  nam  se  executaria;   nem  os  edificios  de  ca 

sam  como  os  de  Europa,  pera  que  se  possam  por  as  janellas,  se- 

nam,  como  ja  por   veces  tenho  dito,  casas   terreas  algumas   como 

lojas  cumpridas  e  outras  redondas  muyto  baixas,  todas  cubertas  de 

palha  que  Ihes  chega  ate  muyto   baixo,   excepto  a  provincia   que 

chamam  Hamacen,  onde  acustumam  terrados;    mas  nenhuma   casa 

ha  sobardada  e  todas  muyto  baxinhas.  Este  emperador  Seltan  (^a- 

gued  fez  pouco  ha  huns  pa^os  de  dous  sobrados  com  terrado  e  no 


I50  .   KISTORTA   DE   ETHIOPIA 

mais  alto  huma  casa,   *que  Ihe  serve   de   mirador,  e  do  cham  ate  f.  63,v. 

cima  sam  60  palmos.  As  freiras  tambem  moram  em  estas  casinhas 

de  palha  nam  juntas,  senam  cada  huma  onde  quer  e  vai  por  onde 

quer,  sem  que  ninguem  Ihe  pregunte  porisso;  porque,  em  dando- 

Ihes  os  frades  o  veo,  se  tornam  a  casa  de  seus  pays  ou  parentes,  ou 

a  sua,  se  a  tinha  ja  afastada,  e  se  algumas  se  querem  ficar  enco-  ^ 

stadas  ao  mosteiro  dos  frades  que  Ihes  deram  o  veo,  tambem  mora 

cada  huma  afastada   em  sua   casinha  e  vai  pera   onde  quer;    mas 

dicem  que  antiguamente  estavam  algfumas  em  communidade. 


^. 


CAPITULO  XIV. 

Do  aparato  que  leva  o  Emperador  quando  caminha 
e  da  ordem  com  que  asenta  suas  tendas. 


Assi   como   antiguamente   o  Emperador   de  Ethiopia,   quando       i.  Modus  iter  ha- 

.....  bendi    Imperatonim 

estava  em  seu  pago,   nam   se   deixava    ver   de  ninguem    mais  que  tempore  antiquo. 

dos  que  dissemos  no  capitulo  precedente,  assi  tambem,  quando  ca- 
minhava,  ningnem  o  via;  porque,  como  diz  hum  livro  de  Ethiopia, 
que  trata  da  cousas  do  emperador  Zara  Jacob,  todos  hiam  muyto 
afastados,  excepto  tres  que  Ihe  tomavam  o  sol  e  o  cubriam  com 
tres  sombreiros  grandes  de  seda  e  alguns  que  abanavam  as  moscas. 
E  em  outro  livro,  que  trata  dos  officiaes  do  Emperador,.  diz  que, 
quando  se  apeava,  se  as  tendas  nam  estavam  armadcis,  tinham  apa- 
relhado  hum  panno  como  docel,  posto  em  humas  varas,  com  que  Ihe 
tomavam  o  sol  e  o  cubriam  alguns  filhos  de  parentas  suas,  que  tin- 
ham  sempre  isso  a  seu  cargo,  como  tocamos  no  cap.  4.  Mas  de- 
pois  em  lugar  de  aquelles  sombreiros  usaram  cortinas,  como  affirma 
Francisco  Alvares,  em  sua  Tlistoria  fol.  117,  que  se  facia  em  tempo 
do  emperador  David,  e  por  que  fala  de  vista,  porei  suas  mesmas 
palavras : 

€  Otro  dia  nos  fue  mandado  que  caminasemos  segun  el  orden       a.  Quomodo  sua 

..  .  ^  .    ^  .  itinera        instituerit 

€  que  se  nos   diese ;   y  Ja  causa   fue  porque   ya  el  Emperador  no  AtanAf  SagAd  iuxta 
€  queria   caminar    secretamente,   como   los   dias   passados,    que   se  ^««criptionem  Alva- 

rez. 

€  quedava  atras,  o  passava  adelante;  pero  agora  comencjo  a  cami- 
c  nar  a  vista  de  todos,  como  dire.  El  iva  sobre  una  mula  con  su 


152  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  corona  en  la  cabe^a  y  dentro  de  uncis  cortinas  coloradas  cubier- 
«  tas  con  un  cielo  de  lo  mismo,  de  suerte  que  estas  cortinas  le 
'.  cubrisen  los  lados  y  lcis  espaldas.  Eran  muy  altcis  y  cumplidas, 
«  y  los  que  las  llevavam  iban  de  la  parte  de  fuera  *teniendolas  f.  64. 
«  con  luengas  varas  en  las  manos.  I.a  mula  llevava  muy  ricas  ca- 
«  be^adas  sobre  el  freno  con  sus  chapas  o  puntas;  y  a  los  lados  della 
«  yban  dos  pages,  que  parecian  guiar  la  mula  por  el  freno.  Luego 
«  se  seguian  otros  dos,  cada  uno  tambien  de  su  lado,  con  una  mano 
«  sobre  el  pescue^o  de  la  misma  mula;  y  tras  destos  venian  otros 
«  dos  con  las  manos  en  las  ancas  cerca  del  arcjon  trasero.  Estos 
«  pages  llaman  ellos  en  su  lengua  legamoveos,  que  quiere  decir 
«  *  prges  de  diestro  '. 

«  Adelante  destos  iban  otros  20  pages  a  pie,  y  mas  adelante 
«  dellos  se  Uevavan  seis  cavallos  muy  poderosos  y  muy  ricamente 
«  enxae^ados  y  con  cada  uno  dellos  iban  cuatro  personas  princi- 
«  pales,  los  dos  a  los  lados  del  freno  como  los  otros  del  Empe- 
«  rador,  y  los  otros  dos  a  los  lados  de  la  silla  con  las  manos  encima 
«  della.  Adelante  destos  cavallos  se  Uevavam  otras  cuatro  mulas  tam- 
«  bien  cuatro  hombres  com  cada  una  dellas,  ni  mas  ni  menos,  a 
«  los  lados,  como  de  los  otros.  Mas  adelante  aun  dellas  jrvan  20  se- 
«  nores  de  los  principales  a  mula  con  sus  albomoces  vestidos,  y 
«  luego  delante  destos  yvamos  nosotros,  porque  alli  nos  senalaron 
«  lugar  y  a  ninguna  otra  persona  se  permitia  que  fuese  ni  adelante 
«  ni  a  los  lados  de  nosotros,  sino  eran  algunos  de  a  cavallo,  que 
«  andavan  galopeando,  porque  la  demas  gente  anduviese  apartada. 

«  Los  Betudetes  Ilevavan  la  guardia  de  la  persona  del  Empe- 
«  rador  y  yva  cada  uno  de  su  lado  con  mas  de  seis  mil  hombres  de 
«  guardia.  Yvan  apartados  de  los  lados  del  Emperador  comun- 
«  mente  tanto  como  un  tiro  de  arcabuz  y  a  las  veces  algo  mas  o 
«  menos,  segun  que  el  camino  se  ofFrecia.  Si  acontecia  que  no  avia 
«  mas  que  un  passo  en  alguna  parte,  por  donde  todos  avian  de  pas- 
«  sar,  entonces  se  adelantava  el  Betudete  de  la  mano  derecha  con 

♦  sus  soldados  y  despues  passava  el  otro  como  en  retaguardia,  yendo 
«  los  unos  de  los  otros  apartados  quanto  media  legoa.  Demas  desto 
^  se  llevam  tambien  los  cuatro  leones  con  sus  fuertes  cadensus,  como 

*  ya  tengo  dicho,  y  las  iglesias  con  toda  reverencia  ». 

3.  Quid  in  suo  ve-  Ate  aqui  sam  palavras  de  Francisco  Alvares,  em  que  se  ha  de 

ris  Lim™teverirscll  ^^vertir  que  os  que  levam  as  maos  sobro  o  collo  e  ancas  da  mula 
tftn  SagAd.  ^q  Emperador,  que  ordinariamente  o  facem  quando  vai  por  algum 


LIVRO   I,     CAPITULO   XIV.  153 

ruim  passo,  pera  que  nam  caia,  se  chamam  Dagafoch,  e  nam  Lega- 
f.  64,v.  moveos,  que  nam  ha  tal  nome,  e  *se  queria  dicer  Leguamoch,  estes 
nam  podem  chegar  ao  Emperador,  porque  sam  mo^os  da  estrebaria. 
Tambem  nam  ha  de  dicer  Betudete,  senam  Behet  Oaded,  que  quer 
dicer  «  soo  amado  » .  Em  o  ordem  e  modo  de  caminhar  o  Emperador 
diz  bem,  porque  asi  se  usava  entam ;  mas  ja  ha  muyto  tempo  que 
os  Emperadores  deixaram  as  cortinas  e  somente  levavam  na  cabe^a 
hum  chapeo  de  falda  larga  comummente  de  velludo  a^ul  escuro  com 
humas  chapas  de  ouro  e  algumas  pedras  na  copa,  que  era  sua  coroa ; 
o  que  tambem  usou  este  emperador  Seltan  Qagued  ate  agora  pouco 
tempo  ha,  que  pos  coroa  como  as  nossas  em  chapeo  de  setim  car- 
mesi  de  falda  curta  e  da  mesma  que  os  de  Portugal ;  porque  todo 
nosso  modo  Ihe  contenta  muyto;  e  mandou  facer  chapeos  pera  a 
coroa  das  cores  que  elle  acostuma  a  vestir,  pera  que  o  chapeo  diga 
sempre  com  o  vestido. 

Quanto  acerca  do  modo  com  que   este  caminha,  direi   o   que      4«  Auctor  descri- 

.^jj  ••j-jj-  ^bit  fuse  et  de  visu 

VI  muytas  veces,  nam  tratando  dos  primeiros  dias  depois  que  paite  modum  itcr  habendi 
da  corte,  porque  caminha  pouco,  e  assi  muytos  ficam  em  suas  casas  ScltAn  SagAd  tempo- 

re  beUi.  £xercitU8  in 

e  a  gente  que  vai  diante  delle  (que  sempre  he  muyta)  leva  pouca  quatuor  acies  distin- 
ordem,  posto  que  nam  os  que  acompanham  a  sua  pessoa,  que  sam  esampcrator^secim^ 
seus  officiaes  e  gente  de  guarda  com  outra   muyta  cavalleria;  fa-  dae  Fit  Aorarl,  ter- 

tiae  Cdnhe  AxmAcb, 

larei  so  de  quando  se  Ihe  juntou  a  gente  e  vai  por  terras  que  he  quartae   Querft  Az- 

necessaria  mais  ordem.  Mas  pera  que  milhor  se  entenda  isto,  se  ha  ^^- 

de  advertir  que  toda  a  gente  limpa  do  arrayal  do  Emperador  (nam 

tratando  da  que  tracem  os  Vissorreys  que  o  vem  a  acompanhar,  por- 

que  essa  segue  a  seu  Vissorrey)  esta  repartida  em  cuatro  partes: 

huma,  que  sam  os  officiaes  e  a  guarda  do  Emperador  com  alguns 

senhores  grandes  acompanham  sempre  sua  pessoa ;  outra  parte  se- 

gue  ao  capitam  da  dianteira,  a  quem  chamam  Fit  Aoran ;  outra  vai 

com  o  capitam  da  mao  dereita,  que  chamam  Canhe  Azmach,  e  a  outra 

com  o  capitam  da  mao  izquerda,  que  chamam  Guera  Azmach. 

Suposto  isto,  quando  o  Emperador  ha  de  caminhar,  sempre  o 
capitam  da  dianteira  da  sinal  com  seus  atabales,  quando  amanhece 
ou  hum  pouco  depois,  e  logo  todos  desarmam  suas  tendas  o  come- 
gam  a  carregar  seu  fato.  Dalli  a  pouco  sae  com  sua  bandeira,  tan- 
gendo  os  atabales,  que  ordinariamente  sam  cuatro  sobre  duas  mulas, 
huns  de  cobre  vermelho  e  outros  de  pao  cubertos  com  coiro  de 
f-  65.  vaca,  e  *seguemo  todos  os  que  tem  obriga^am.  Depois  cavalga 
diante  da  tenda  do  Emperador  seu  estribeiro  mor,  o  que  outro  nen- 

C.  Bbccaki.  /ier.  Ae/A.  Script,  occ,  ined,  —  11.  20 


154  mSTORIA  DE  ETHIOPIA 

hun:,  pr^  T  grande  que  seia,  pode  facer,  e  ^'ai  em  cavallo  ou  em  mula, 
conio  elle  c-er:  mas  ordinariamente  todos  vam  em  mulas  com  os 
cavallos  a  destro  diante.  hogo  saem  os  capitaes  da  mao  dereita  e 
da  izquerda  ccm  suas  vandeiras  e  atabales  e  espera  cada  hum  em 
seu  I-gar  com  soa  gente.  ate  que  saia  o  Emperaior.  Elle  cavalga 
der.tro  da  tenda  e  f-ma  o  estribo  o  estribeiro  piqueno;  outros  tem 
a  mula  p^lla  redea,  e  oatr«7s  a  cobrem  toda  a  roda  com  cortinas, 
de  maneira  que,  ainda  que  esteja  averta  a  porta  da  tenda,  ninguem 
de  fora  o  pi-de  ver  cavalgar.  O  freo  da  mula  leva  sempre  mu^^ta 
prata  la\Tada  em  pontas  que  Ihe  faz  parecer  mu\to  bem,  e  a  sella 
cuberta  de  borcado.  sobre  que  asentam  no  ar<;om  [sii]  traseiro  polla 
vanda  de  fora  prata  dourada,  em  que  abrem  rosas  e  flores  de  lis. 

O  Emperador  algumas  veces  sae  de  borcado,  nias  poucas,  por- 
que  pesa:  o  mais  ordinario  he  setim  ou  damasco  carmesi,  porque 
folga  com  esta  cor,  e  chegalhe  o  vestido  ate  mais  de  meia  pema, 
com  os  caU^oes  do  mesmo  hum  pouco  estreitos  e  cobremlhe  toda 
a  pema  ate  o  ^apato,  que  botas  nam  cal^a  nunca.  Sobre  tudo  veste 
albcmoz  de  veludo  carmesi  com  grande  capello  e  muj^tos  pasa- 
miios  de  fio  de  ouro  e  botoes  grossos  de  ouro;  chapeo  como  os 
nossos,  da  seda  que  veste,  e  sobre  elle  a  coroa,  que  he  de  ouro  muyto 
fino  com  algumas  pedras  engastadas  c  em  todas  as  pontas,  que  facem 
as  flores  de  lis  perolas  e  no  mais  alto  do  chapeo  por  remate  huma 
pedra  fermosa  engastada  na  ponta  de  hum  pioncinho  de  ouro,  que 
a  copa  delle  entra  dentro  da  coroa.  Em  a  cabe<;a  de  baixo  do  cha- 
peo,  poe  algumas  veces  huma  toca  branca  muyto  fina,  cujas  pontas 
decem  por  debaixo  da  barba  e  dam  volta  de  maneira  que  Ihe  co- 
brem  a  b^>ca  e  narices  por  causa  do  po ;  outras  veces  nam  poe  mais 
que  o  chapeo,  e  a  coroa  leva  hum  page  diante.  Como  sae  o  Em- 
perador  da  tenda,  come^am  a  tanger  suas  cheremelas,  que,'  ainda 
que  nam  sam  como  as  nossas,  facem  boa  musica  e  logo  o  capi- 
tam  da  mao  dereita  e  o  da  izquerda  e  os  de  mais  vam  marchando 
por  seu  ordem  afastados  bom  peda^o  do  Emperador ,  e  se  he  perto 
de  onde  ha  de  pelejar  ou  no  caminho  ha  algum  arreceo,  o  capi- 
tam  da  mao  izquerda,  |>assa  com  sua  gente  e  vai  perto  do  capitam 
dianteiro;  depois  se  sigue  o  capitam  da  mao  dereita,  e  com  este 
de  rigor  avia  de  ir  o  capitam  dos  Portugueses  com  sua  gente,  mas 
ordinariamente  fica  perto  do  *Emperador,  porque  elle  folga  de  levar  f.  65,^. 
alli  os  Portugueses. 

A  gente  dos  Vissorreys,  que  vem  a  acompanhar  ao  Emperador 


LIVRO  I,    CAPITULO  XIV.  155 

dos  reynos  vecinhos,  vai  em  os  lugares  que  Ihe  sinalam;  depois 
vam  comummente  alg^ns  sacerdotes,  que  levam  as  pedras  de  ara 
de  cuatro  igrejas,  que  sempre  traz  em  seu  arrayal  o  Emperador. 
Francisco  Alvarez  em  sua  Historia  112  diz  que  sam  trece,  mas 
parece  que  se  usaria  esto  em  aquelle  tempo ;  porem  de  muytos  an- 
nos  a  esta  parte  nam  foi  costume  levar  mais  que  4  (segundo  dicem 
todos)  e  carregam  as  sobre  a  cabega  ou  no  hombro,  e  vam  cuber- 
tas  com  pannos  de  seda  ou  borcado,  e  diante  de  cada  huma  dous 
acolitos  hum  com  cruz  e  turibulo  em  as  maos,  e  outro  tangendo 
com  huma  campainha,  e  tem  todos  tam  grande  respeito  e  reverencia, 
que,  se  estes  sacerdotes  se  apresam  pera  passar  adiante  (que  o  po- 
dem  facer,  porque  nam  tem  lugar  sinalado,  senam  que  vam  onde 
querem,  como  nam  seja  ficar  detras  do  Emperador),  todos  se  afa- 
stam  do  caminho  ate  que  passem.  Detras  dos  sacerdotes  hum  pouco 
afastado  vam  as  vandeiras  do  Emperador,  que  ordinariamente  sam 
tres  de  damasco  carmesi,  nam  tam  grandes  nem  quadradas  como 
as  vandeiras  de  campo,  que  se  usam  entre  nos,  senam  como  guioes 
e  na  ponta  da  vara  por  remate  huma  bola  de  cobre  dourada  e  so-  , 
bre  ella  huma  cruz  do  mesmo.  Logo  se  seguem  os  atabales  que  co- 
mummente  sam  oito  de  cobre  muyto  grandes  cubertas  as  bocas 
de  pelle  de  vaca  e  as  veces  leva  mais  carregados  em  mulas:  em 
cada  huma  dous ;  c  os  que  os  tangem  vam  sobre  as  ancas  das  mu- 
las.  Perto  delles  vam  os  desembargadores  do  pa^o  com  seus  criados. 
Depois  de  tudo  isto  vai  a  guarda  de  a  pe  do  Emperador,  que 
sam  agora  oitocentos  mancebos  de  adargas  brancas,  a  que  chamam 
Characa,  scilicet  c  lua  » ,  e  outros  tantos  de  adargas  pretas,  todas  de 
coiro  de  bufara,  e  a  estes  chamam  Cocab  scilicet  «  estrella  >,  ainda/jue 
nam  sam  tam  resplandecentes,  senam  pretos  como  suas  adargas.  Cada 
hum  destes  leva  dous  gargunchos  e  huma  macinha  de  pao  mu)rto 
duro  e  pesado :  esta  tira  primeiro  e  depois  hum  dos  gargunchos  que 
tem  o  ferro  como  de  gineta,  ficandolhe  sempre  na  mao  outro  que 
he  de  ferro  largo  e  de  dous  palmos  de  cumprido.  Demais  destes 
vam  muytos  de  espingarda  e  boa  parte  dellcs  mancebos  muyto  al- 
vos,  porque  sam  filhos  de  turcos  que  aqui  se  ficeram  christaos,  e 
ordinariamente  vam  juntos  em  esquadroes  em  hum  os  de  adargas 
brancas,  em  outro  os  das  pretas,  e  em  outro  os  de  espingarda,  ainda 
que  algumas  veces  vam  em  duas  fieiras.  Em  o  meio  dellas  levam 
f.  66,  polla  redea  *duas  mulas  do  Emperador  e  algumas  veces  4,  com 
freos  e  sellas  muyto  ricas.  Depois  seis  cavallos  de  destro  e  algumas 


156  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

veces  oito,  muyto  grandes  e  ricamente  enjaeijados ;  em  os  freos  tem 
muyta  prata  dourada  e  em  os  pesco^os  outros  arreos  do  mesmo 
como  os  traz  o  Gram  Turco,  porque  os  fez  pouco  tempo  ha  hum 
official  que  de  la  veio ;  as  cubertas  e  sellas  de  velludo  carmesi  e 
outras  de  borcado.  O  cavallo  que  vai  mais  perto  do  Emperador 
leva  o  ar^am  dianteiro  de  prata  dourada  muyto  bem  lavrada,  e  o 
ar^am  de  detras  do  mesmo  poUa  vanda  de  fora,  mas  com  laceria 
e  no  que  fica  vao  tem  por  dentro  seda  de  diversas  cores,  com  que 
se  real^a  mais  o  ouro.  Junto  a  este  cavallo  vai  o  pagem  de  lan^a  e 
outros  que  levam  as  armas  do  Emperador.  Logo  se  seguem  1 2  man- 
cebos  bem  estreados  filhos  dos  Turcos  que  ja  disse,  seis  por  vanda, 
vestidos  de  panno  vermelho  com  alxabas  [sic]  no  hombro  muyto  bem 
guarnecidas  de  ouro  e  nas  maos  arcos  turquescos  e  na  cabe^a  humas 
caraminholas  de  cobre  douradas  com  seus  penachos. 

Depois  vem  o  Emperador  e,  se  esta  o  que  he  Eraz,  que  quer 
dicer  «  cabecja  >  e  tem  o  mesmo  officio  que  tinha  o  que  antes  cha- 
mavam  Behet  Oaded,  elle  leva  a  mao  dereita,  ficando  hum  pouco 
detraz  do  hombro  do  Emperador,  e  o  que  he  como  Mordomo  mor, 
a  quem  chamam  Balatinoch  Gueita,  vai  a  mao  izquerda,  e  alli  perto 
outros  officiaes  do  Emperador,  os  Vissorreis  e  senhores  grandes.  E 
quando  o  Emperador  fala  com  algum  dellos,  se  traz  capa  ou  hum 
panno  de  seda  rico  que  acustuman  a  por  sobre  o  vestido,  o  abai- 
xam  ate  a  cinta.  Detras  destos  levam  o  leito  do  Emperador  cu- 
berto  com  hum  panno  de  seda,  porque,  quando  se  apea,  ordinaria- 
mente  se  asenta  ou  encosta  em  elle.  Aos  lados  e  detras  vai  muyta 
cavalleria,  mas  bom  peda^o  afctstada. 

Detras  do  Emperador  e  dos  senhores  que  vam  com  elle,  vem 
a  Emperatriz  como  hum  tiro  de  espingarda,  que  ordinariamente  o 
acompanha  com  outras  muytas  senhoras  e  levam  grande  multidam 
de  criadas  e  criados.  Depois  se  segue  a  recovagem  que  he  como 
outro  exercito,  porque  demais  das  tendas  e  matalotagem  e  fato  do 
arrayal,  que  levajn  carregado  em  mulas,  bois  e  jumentos,  vem  muyto 
grande  numero  de  taberneiros  e  mercadores.  Ultimamente  na  reta- 
guarda  vai  sempre  hum  capitam  com  muyta  gente  do  guerra,  mas 
cada  dia  se  muda  este  capitam  e  em  seu  lugar  entra  outro ;  e  dous 
ou  tres  dias  antes  *que  cheguem  onde  ham  de  pelejar,  se  arreceam  f.  66,v, 
que  a  guerra  sera  forte  fica  a  Emperatriz,  todas  as  senhoras  e  a  re- 
covagem  em  lugar  seguro  com  gente  de  guarda,  e  o  Emperador  vai 
com  seu  exercito. 


LIVRO   I,   CAPITULO   XIV.  157 

Esta  he  a  ordem  que  levam  quando  vam  por  terra  de  arreceio,      5-  Quomodo  Sel- 

^       ^  ^  ^  tAn    SagAd    iter    fa- 

mas  quando  nam,  nem  o  Emperador   leva  vandeiras  nem  capitam  ciat  tempore  pacis. 
nenhum,  senam  so  atabales  e  chercmelas;    e  a  Emperatriz  e  mais   «"'*^**!?*''     .  *  °^" 

'  *  ^  mero  et  armis  vali- 

senhoras  vam   muyto  cedo  diante,  se  querem;   e  os  capitaes  guar-  dus,  saepisaime  vin- 

-  .     -  ,./-•,,,  citur  ob  defectum  di- 

dani  pouca  ordem,  porque  sua  gente  vai  afastada  huma  de  outra,  sciplinae  et  ordinis. 
pera  andar  mais  a  sua  vontade,  e  como  he  tanta,  sempre  que  sae 
o  Emperador,  cobre  os  campos  de  maneira  que  raramente  podem 
escapar  os  animaes  sylvestres  que  se  alevantam  entre  elles,  ja  per- 
dices  e  outras  aves  que  ha  que  nam  avoam  muyto  de  nenhuma  ma- 
neira,  senam  a  certam  de  esconderse  em  parte  que  nam  as  vejam. 
Muytas  veces  desejei  saber  quanta  gente  limpa  de  guerra  iria  ordina- 
riamente  com  o  Emperador  (que  a  outra  com  difficultad[e]  se  podera 
contar),  e  nunca  me  souberam  dar  re^am,  pollo  que  huma  vez  man- 
dando  o  Emperador  a  seus  capitaes  que  Ihe  desem  mostra  de  sua 
gente,  Ihe  preguntei  a  elle  mesmo  quanta  teria,  e  respondeo  que 
de  certo  nam  o  sabia.  Quanto  a  vez  que  eu  vi  mais,  nam  cuido  que 
passavam  de  cuarenta  mil,  mas  se  quiser  juntar  toda  sua  gente 
(que  o  pode  facer  com  facilidade,  por  nam  aver  no  verSo  rio  que 
lo  possa  impedir),  parece  que  seram  muyto  mais  de  cem  mil  ho- 
mens ;  com  que  pudera  nam  somente  recuperar  as  terras,  que  tem 
tomado  os  gentios  que  chamam  Galas,  mas  sugetar  outras  muytas, 
se  pelejaram  unidamente.  Mas  guardam  muyto  pouca  ordem  militar 
e  se  os  dianteiros  come<;am  a  tornar  atras,  logo  biram  todos  os  de- 
mais,  que,  ainda  que  antiguamente  tinham  por  gran  deshonrra  o 
fugir  e  ao  que  fugia  o  castigavam,  facendolhe  as  afrontas  que  dis- 
semos  no  cap.  4,  ja  nam  tem  esse  primor  e  ponto  de  honrra,  com 
ser  gente  muyto  mais  lustrosa  e  bem  armada  que  seus  enemigos, 
porque  estes  vem  despidos  da  cinta  pera  cima  e  nam  tracem  mais 
que  huma  adarga,  dous  gargunchos  e  huma  macinha  de  pSo  e  seus 
cavallos  sam  mu)rto  curtos  e  ruins ;  e  elles  tem  muyto  boas  malhas 
e  capacetes  e  grandes  e  fermosos  cavallos,  muytas  langas,  arcos  e 
frechas  e  espingardas.  E  assi  vendoos  eu  hum  dia  postos  em  ordem, 
como  quando  querem  dar  batalha,  a  gente  de  pe  diante  em  esqua- 
droes  e  logo  a  cavalleria,  disse  ao  Emperador  que  me  maravilhava 
de  como  nam  venciam  sempre  seus  enemigos,  sendo  tanta  gente  e 
tam  lustrosa  e  tendo  tam  boas  armas  e  cavallos;  e  respondeo:  Nam 
cuide  V.  R.  que  esta  minha  gente  peleja  com  cora^am  nem  ordem, 
f.  67.  porque  huns  arremetcm  e  *outros  ficam  em  pe  olhando,  e  assi,  como 
nam  se  unem,  facilmente  os  desbaratam  os  Galas,  que  vem  sempre 


158  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

rauyto  unidos  e  resolutos  de  pelejar ;  mas,  quando  guardamos  ordem, 
poucas  veces  deixamos  de  alcan^ar  victoria. 
6.  D«8cribitur  mo-  Acerca  do  modo  e  ordem,  com  que  asentam  as  tendas,  o  ca- 

du8  castratnetandi.         .... 

pitam  dianteiro  tem  a  seu  cargo  escolher  o  lugar  onde  se  ham  de 
plantar,  e  sempre  procura  que  seja  algum  campo  graride,  onde  aja 
agoa  bastante  pera  o  exercito  e  herva  pera  as  mulas  e  cavallos  e 
jumentos  de  carga  e  no  meio  delle,  se  he  chao,  ou  em  alguma  parte 
mais  alta  poe  logo  huma  vandeira  branca  em  sinal  de  que  alli  se 
ham  de  armar  as  tendas  do  Emperador ;  pera  que  cada  hum  saiba 
o  lugar  que  ha  de  tomar.  Logo  se  armam  alli  poUo  menos  duas 
tendas  muyto  grandes,  nSo  redondas  senam  cumpridas  de  tres  ma- 
stos  com  as  portas  pera  occidente;  tracem  tambem  huma  tenda  re- 
donda  muyto  grande,  a  que  chamam  Debana  e  como  esta  nin- 
guem  pode  por  senam  o  Emperador,  mas  nam  sempre  a  armam. 
A  roda  destas  tendas  hum  pouco  afastado  cercam  com  cortinas  de 
panno  de  algodam  entretexidas  de  branco  e  preto,  que  se  susten- 
tam  em  varas  mais  altas  que  hum  homem  e  a  roda  deJlas  fica  hum 
campo  de  40  lan^as  de  largo  cada  huma  de  15  palmos,  e  dentro 
deste  circuito  nani  se  pode  armar  tenda  nenhuma,  excepto  a  que 
serve  de  igreja  de  nossa  Senhora,  que  fica  a  mao  dereita  pera  a 
vanda  do  norte;  e  a  da  igreja  de  Jesu  a  mao  izquerda  pera  o  sul. 
Detras  das  tendas  do  Emperador,  fora  dos  limites  daquelle  terreiro, 
estam  as  da  Emperatriz  cercadas  com  ccrtinas  da  mesma  sorte;  e 
logo  a  roda  por  huma  e  outra  vanda  se  vam  continuando  as  dos 
parentes  e  parentas  do  Emperador  com  as  da  gente  de  S3U  ser- 
viijo;  e  todas  as  destes  senhores  e  senhoras  tem  a  roda  cortinas. 

Detras  destas  tendas  se  poem  as  da  cocinha  do  Emperador, 
humas  a  mao  dereita  e  outras  a  izquerda.  Perto  das  da  Empera- 
triz  se  asontam  as  do  Balatinoch  Gueita,  que  he  como  mordomo 
mor  do  Emperador,  e  logo  as  do  principal  secretario,  thesoureiro 
e  outros  muytos  officiaes  do  Emperador  com  muyta  gente  de  guarda. 
A  mao  dereita  perto  das  tendas  das  parentas  do  Emperador  estam 
as  de  22  senhores  e  outros  tantos  a  mao  izquerda,  com  muyta  gente, 
a  que  chamam  Jan  Beit  tabacoch,  que  quer  dicer  «  giiardas  da  casa 
do  Emperador  *  ;  porque  ainda  que  Jan  propriamente  em  lingua  an- 
tigua  seja  «  elephante  »,  tomase  ja  por  «Emperador»,  como  dissemos 
no  cap.  5.  Perto  destes,  a  mao  *dereita,  se  poem  as  tendas  de  Eraz  f.  67,v. 
com  as  de  sua  gente  que  he  muyta,  porque  tem  a  suprema  hon- 
rra  e  mando  do  imperio.  Detras  destas  estam  as  do  capitam  da  mao 


LIVRO    I,     CAPITULO  XIV.  159 

dereita  com  as  de  toda  sua  soldadesca,  e  da  mesma  maneira  esta 
o  capitam  da  mao  izquerda.  Diante  pera  occidente,  perto  das  ten- 
das  dos  parentes  do  Emperador,  estam  as  dos  embargadores  do  pacjo, 
a  quem  chamam  Azaxoch,  scilicet  c  mandadoures  »  e  entre  elles  fica 
sempre  huma  rua  muyto  larga,  e  os  mais  principaes  estam  a  mao 
dereita  da  rua  e  os  outros  a  izquerda;  da  vanda  destes  estam  as 
tendas  do  capitam  da  dianteira  e  as  de  sua  gente.  Aqui  esta  huma 
igreja  de  sam  Miguel;  logo  se  continuam  de  huma  e  outra  vanda 
da  rua  as  dos  que  sam  como  ouvidores,  a  quem  chamam  Unbaroch 
scilicet  «  cadeiras  »,  porque  estes  juices  ccisi  sempre  estam  sentados 
em  cadeiras  pera  julgar.  Mais  adiante  se  poe  grande  multidam  de 
tendas  de  taberneiios  que  vendem  vinho  feito  de  mel  e  outro  de 
cebada  e  milho  e  de  outras  sementes,  a  que  chamam  ^aoa,  e  agas- 
salham  a  gente  de  fora  por  pouco  premio.  Logo  se  seguem  as  ten- 
das  dos  orivez  e  com  estas  se  continuam  as  dos  ferreiros,  que  tam- 
bem  sam  muytas. 

Esta  he  a  ordem  que  guardam  sempre,  em  asentar  suas  tendas, 
os  que  por  obrigacjam  andam  em  o  campo  do  Emperador  e  nam 
se  podem  passar  de  huma  parte  pera  outra,  como  da  mao  izquerda 
pera  a  dereita,  senam  que  cada  hum  ha  de  estar  em  seu  Ingar,  se 
o  Emperador  nam  o  muda  ou  Ihe  da  licen^a;  e  assi  com  muyta 
preste^a  asentam  todos  suas  tendas  sem  aver  comummente  difFe- 
rencias,  porque  se  conhecem  huns  vecinhos  a  outros,  e  se  da  vanda 
da  mao  dereita  tem  alguma  dififerenga  sobre  a  largura  do  lugar 
ou  sobre  alguma  rua,  logo  a  determinam  os  desembargadores  e  ca- 
pitam  daquella  vanda,  a  cujo  cargo  esta  isso;  e  o  mesmo  facem  os 
desembargadores  e  capitam  da  mao  izquerda,  se  la  se  ofFerece  al- 
guma  cousa. 

Afora  esta  gente,  que  de  ordinario  seg^e  ao  Emperador,  ha  outra 
muy ta  dos  Vissorreys  dos  reynos  vecinhos,  que  o  vem  a  acompanhar,  e 
estes  tambem  tem  seus  lugares  a  mao  dereita  ou  a  izquerda,  conformc 
manda  o  Emperador;  mas  suas  tendas  ficam  na  borda  do  arrayal, 
alg^mas  veces  em  terra  de  paz  hum  pouco  afastadas  de  maneira 
que  cada  hum  destes  Vissorreys  faz  arrayal  por  si ;  pollo  que  ocu- 
pam  muyto  grande  campo.  E  pera  a  vanda  de  diante  hum  pouco 
afastado  do  arrayal  ha  cada  dia  feira  (excepto  os  domingos  e  fe- 
stas),  a  que  se  junta  infinidade  de  gente,  e  alli  se  acham  roupas  de 
toda  sorte  mantimentos  e  as  demais  cousas  necessarias. 


••  -^ 


CAPITULO  XV. 

Em  que  se  declara  se  o  Preste  Joam  contrae  sempre 
matrimonio  com  algumas  das  familias  dos  tres  Reys 
Magos,  ou  com  a  senhora  que  milhor  Ihe  parece  em 
seu  imperio. 

Por  cousa  muyto  certa  e  averigiiada  supoe  frey  Luis  de  Ur-  x.  Fabulae  Urre- 
reta  no  cap.  1 7  do  i  livro  de  sua  Historia  que  o  Preste  Joam  sem-  q^g  ducunt  uzores 
pre  casa  com  molher  de  huma  das  familias  dos  tres  Reys  Magos,  R«g**  Aethiopiae. 
que  adoraram  ao  menino  Jesu  e  assi  diz  pag.  170:  «  Los  Empe- 
«  radores  de  la  Ethiopia  ham  procurado  contraer  matrimonio  con 
«  mugeres  de  linage  santo,  noble  y  illustre,  y  pareciendoles  que 
«  en  todos  sus  reynos  y  estados  no  avia  mejor  linage  que  el  de  los 
«  santos  Reyes  Magos,  presumiendo  y  con  mucha  probabilidad  que 
«  las  virtudes  heroicas  aquella  fervorosa  devocion,  aquella  santi- 
«  dad  unica  alfin  como  primicias  de  la  Iglesia  santa  resplandeceriam 
«  en  los  hijos,  se  hi^o  un  estatuto  que,  siempre  que  ubiesem  de 
«  tomar  esposa  y  muger,  fuese  de  uno  destos  tres  linages,  que  se 
«  hallan  oy  dia  en  Ethiopia.  Y  es  cosa  recibida  en  toda  ella  que 
«  estos  Reyes  uno  era  de  la  Ethiopia  y  los  otros  de  Arabia,  los 
«  quales  aviendo  vivido  christianamente  con  sus  familias  en  sus 
«  reynos  mucho  tiempo,  por  la  grande  persecucion  de  los  Aria- 
«  nos  les  fue  forgoso,  assi  a  los  descendientes  de  Melchior,  que 
«  fueron  reyes  en  Arabia,  como  a  los  de  Balthasar,  que  lo  fueron 
«  em  Persia,  recogerse  a  Ethiopia,  como  a  tierra  de  christianos. 
«  A  los  descendentes  de  Balthcisar  dio  el  emperador  Juan  el  Santo, 

C«  Bkccaju.  Rer.  Aeth,  Script»  occ,  ined,  —  II.  21 


l62  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

«  que  vivio  en  tiempo  de  san   Basilio,  el  reyno  de  Fatagar ;   y  a 

«  los  del  linage  de  Melchior  dio  el  de  Soa ;  pero  a  los  descendentes 

«  de  Gaspar,  que  tenian  el  reyno  de  Saba,   se  le  troco  por  el  tie 

«  Bernagasso  que  oy  tienen.  Desta  manera  han  venido  a  estar  jun- 

«  tas  estas  tres  familias  en  Ethiopia ;  y  es  cosa  milagrossa  que  de 

«  todas  ellas  nacen  los  varones  ligitimos  con  una  estrella  figurada 

«  en  un  lado  de  su  cuerpo;  y  esto  es  tan  certo  que  el  ano  de  1575, 

«  que  fue  del  Jubileo  en  tiempo  del  papa  Gregorio  13,  se  hallaron 

«  en  Roma  tres  cavalleros  de  todas  tres  familias  con  esta  seiial,  y 

«  haciendolo  saber  a  su  Santidad  el  senor  cardenal   Farnesio,  que 

«  aya  gloria,  protector  de  la  Ethiopia,  lo  quiso  ver  y  los  hallo  a 

«  todos  con  ella  en  presencia  de   muchos   principes   y  cardenales. 

«  Mas  aunque  esto  nos  cause  admiracion,  es  lo  mayor  el  ver  *que  f.  68,v. 

«  no  solo  nacen  con  esta  seiial  los  varones  destas  familias  que  son 

«  christianos,  sino  los  mahometanos  tambien,  siendo  legitimos;  que 

«  si  don  Juan  no  me  jurara  averlo  visto  em  Persia   y  en  Arabia, 

«  110  me  atreviera  a  referirlo.  Por  honrrar  estas  familias  instituyo 

«  el  mismo  Juan  el  Santo  y  Phelippe  7°  que  los  Emperadores  que 

«  se  hubiesen  de  casar  (que  no  todos  se  casan)   fuesse  con  muger 

«  de  una  destas  familias. 

«  Para  que  sc  effectuen  los  desposorios,  la  esposa  sale  del  reyno 
«  de  sus  padres  acompanada  con  su  madrc,  hermanos  y  parientes 
«  y  con  toda  la  noble^a  de  su  reyno,  y  camina  pera  la  ciudad  de 
«  Saba,  donde  esta  el  Emperador  esperando.  Ella  va  siempre  den- 
«  tro  de  una  litera  y  en  llegando  a  un  humilladero,  que  esta  mas 
«  de  legua  de  la  ciudad,  halla  plantados  muchos  pavellones  donde  de- 
«  scansa  aquella  noche.  A  la  mafiana  tiene  aparejado  un  hermoso 
«  elephante  ricamente  enjae^ado  y  en  cima  del  esta  asentada  una 
«  silla  alta  de  respecto,  donde  asientan  a  la  Emperatriz,  y  las  demas 
«  damas  y  senoras  que  la  acompafian,  unas  van  sobre  elephantes,  otras 
«  en  cavallos,  y  otras  a  mula,  y  todas  con  adere^os  costosos.  Cami- 
«  nando  desta  suerte,  salen  de  la  ciudad  quatro  Reynas,  que  para  este 
«  menester  son  llamadas  del  Emperador,  las  quales  cavalleras  en  ele- 
«  phantes  la  reciben  y  puniendose  a  los  lados,  la  acompafian  hasta 
«  cierto  puesto,  donde  esta  aguardando  el  Emperador  con  su  vestido 
«  ordinario,  a  cavallo,  acompafiado  de  los  primogenitos  de  los  Reyes, 
«  y  del  gran  Consejo  y  toda  la  corte,  y  en  llegando  la  Empera- 
«  triz,  se  hacen  entrambos  muchos  complimentos  y  cortesias,  y  de- 
«  jando  toda  la  corte  pera  que  acompanem  a  ella,  se  buelve  solo  con 


LIVRO  I,   CAPITULO   XV.  163 

«  quatro  hijos  de  Reyes  y  con  el  Ambajador  del  gran  Abad  y  se 
«  va  a  la  iglesia  donde  se  hacen  los  desposorios  y  alli  se  viste  con 
«  su  habito  imperial  y  en  una  silla  y  trono  real,  que  esta  fuera 
<  de  la  puerta  de  la  iglesia,  se  sienta  con  magestad  y  grandec^a  aguar- 
«  dando  a  la  Emperatriz ;  a  su  lado  esta  una  silla  rasa.  Acabado  el 
«  passeo,  que  hace  la  Emperatriz  por  las  calles  seiialadas  para  estas 
«  fiestas,  las  quales  estan  ricamente  adere^adas,  y  los  de  la  corte 
«  con  vestidos  costosos  y  todos  muy  de  fiesta  y  regocijo. 

«  En  llegando  al  trono  del  Preste  Juan,  apea  del  elephante  y 
«  el  Emperador  la  toma  de  la  mano  y  la  asienta  en  la  silla  rasa. 
«  Luego  sale  vestido  de  pontifical  el  Ar^obispo  mas  antiguo,  que 
«  tiene  las  veces  del  summo  Pontifice,  acompaiiado  de  dos  Obispos, 
«  y  se  pone  a  la  puerta  de  la  iglesia  y  el  Emperador,  algandose  del 
«  trono  Uevando  a  la  Emperatriz  de  la  mano,  se  van  para  el  Ar^obispo 
f  Gi).  «  y  arrodillandose  delante  del  los  desposa  *con  las  ceremonias  que 
«  usa  la  iglesia  romana.  Concluidos  los  desposorios,  se  quita  el  Empe- 
«  rador  el  habito  imperial  y  llevando  a  la  Emperatriz  de  la  mano  a 
«  pie,  sa  van  a  palacio  acompanados  de  toda  la  corte ;  por  las  calles 
«  les  echan  flores,  aguas  de  olores  y  con  mil  bendicciones  los  signen  » . 

Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta  e  a  mesma  ma-  a.  Magoram,  qui 
teria  em  o  que  toca  aos  tres  Reys  Magos  trata  difusamente  no  3  stum,  nulla  memoria 
livro  da  pacf.  628  pordiante.   Mas  tudo  quanto  delles  diz  que  passa  ^^  Acthiopia.  impc- 

^   °  ^  1       ^  ratorcs  sempcr   nu- 

em  as  terras  do  Preste  Joam  sam  fabulas  e  meras  fic^oes ;  porque  pscrant   et   nubunt 

t_^^j.  T\       ^     r  nunc  cui  volunt. 

nam  somente  nam  ha  estatuto  que  o  Preste  Joam  case  sempre  com 
molher  de  huma  das  familias  destes  santos  Reys,  mas  nenhuma  ha 
em  todo  seu  imperio,  nem  memoria  de  que  a  ouvese  nunca.  E  pera 
averiguar  esta  verdade,  nam  me  contentei  com  preguntar  a  muytos 
que  podiam  dar  regam  disso,  e  disseram  que  nunca  tinham  visto  em 
iivros  nem  ouvido  tal  cousa;  mas  cheguei  a  falar  com  o  mesmo 
Emperador  e  refirindolhe  en  soma  todas  estas  cousas,  rio  muyto  de 
que  tam  facilmente  dessem  credito  a  hum  homem  nam  conhecido 
pera  as  authori^ar  imprimindoas,  e  disse,  que  nam  avia  tal  estatuto, 
nem  nenhum  de  seus  antecessores  se  chamara  Joam,  nem  em  suas 
terras  ouve  nunca  familia  nenhuma  dos  tres  Reys  Magos,  nem  ti- 
nham  mais  noticia  delles  que  a  que  dava  o  s^°  evangelho ;  e  que  os 
Emperadores  sempre  casaram  com  a  molher  que  milhor  Ihes  pareceo, 
e  que,  se  quissesem,  ainda  con  mouras  podiam  casar,  facendose  chri- 
staas.  Isto  me  disse  o  emperador  Seltan  Qagued,  e  eu  sei  que  de 
facto  trouxe  o  emperador  Jacob  huma  moura  dos  Hadcas  mouros 


tia. 


164  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

no  anno  de  1 605  pera  casar  com  ella,  segundo  me  affirmou  entam 
hum  capitam  grande  e  muyto  intimo  seu,  e  conforme  ao  que  facia 
o  Emperador  e  ao  modo  que  eu  vi  que  tratava  com  ella  se  deixava 
isso  bem  entender,  mas  antes  que  casase  o  mataram. 

3.  Exempla  recen-  Tambem  conheci  e  tratei  muyto  a  emperatriz  Mariam  Cina  mo- 

Iher  que  foi  do  emperador  Malac  Qagued,  e  nam  era  de  sangiie  real, 

ainda  que  senhora  grande  natural  da  provincia  de  Sirei;  e  muyto 
menos  o  era  a  senhora  com  quem  casou,  depois  que  eu  ca  entrei, 
o  emperador  Za  Denguil,  e  a  Emperatriz,  com  quem  agora  he  ca- 
sado  o  emperador  Seltan  Qagued,  nam  he  de  muyto  alto  sangue; 
porque,  ainda  que  casem  com  filhas  dos  senhores  de  seu  imperio, 
por  estarem  (jercados  de  mouros  e  gentios  e  nam  Ihes  poderem  vir 
*molheres  de  outros  reynos  de  christaos,  com  tudo  isso  mais  aten-  f.  69.V. 
tam  a  que  sejam  bem  parecidas,  que  nam  em  serem  filhas  dos  ma- 
yores  senhores,  que  ainda  que  sejam  de  menos  qualidade,  bastalhes 
chegar  a  casar  com  o  Emperador  pera  terem  quanta  honrra  podiam 
desejar;  e  assi,  ainda  que  a  Emperatriz  seja  filha  do  mayor  senhor 
de  Ethiopia,  quando  se  ofFerece  falar  della  em  historia  ou  praticas 
particulares,  nam  a  nomeam  por  seu  proprio  nome,  se  a  querem  hon- 
rrar,  dicendo  a  Emperatriz  foam,  senam  acrecentam  ao  nome  do 
Emperador  esta  palavra  «  Mogo^a  »,  que  significa  suprema  honrra, 
pera  declarar  que  do  Emperador,  con  quem  casou,  Ihe  veio  toda  sua 
honrra.  E  assi  a  molher  do  Emperador  Adamas  (^agued  a  nomeam 
«  Adamas  Mogo^a  >  e  a  de  seu  filho  o  emperador  Malac  (^agued,  «  Ma- 
lac  Mogo^a  »,  chamandose  ella  Mariam  Cina,  e  a  a  deste  emperador 
Seltan  (^agued,  que  se  chama  Oade^ala,  nomeam  «  Seltan  Mogoija  » . 

4.  Refutatur  alia  Quanto  ao  que  diz  o  Author,  que  todos  os  varoes  que  por  linea 

dlena  Ae^l^pes^^so-  ^^^^^  ^^^  ^®  aquellas  ties  familias,  nacem  com  huma  estrella  em 
lent,  sicut  ct  Maho-  hum   lado  e  que  em  tempo  do  papa   Gregorio    1 3  se  acharam  em 

xnedani,  varia  einble-  _ 

mata  in  brachiis  et  Roma    tres  cavalleiros  de  todas  tres  familias  com  este  sinal,  nam 
alibi  sibi  imprimere  t^nios  que  dicer:  isso  saberam  la;  mas,  se  for  certo  que  se  viram, 

elegantiae  causa.  ^  ^ 

tambem  o  he  que  nam  eram  das  terras  do  Preste  Joam ;  pois  nellas 
nam  ha  taes  familias.  O  que  eu  sei  e  tenho  visto  muytas  veces  he  que 
cm  estas  terras  e  pera  a  vanda  do  Cairo,  faz  a  gente  muytos  si- 
naes  por  galanteria,  huns  picando  com  agulha  e  botando  anil  e  outras 
cousas  em  o  sangue  e  fica  o  sinal  a^ul,  outros  com  navalha  facem 
o  sinal  que  querem  e  sem  botar  tinta  Ihes  fica  sinalado  de  maneira 
que  casi  parece  natural.  Ate  o  Abuna,  que  mataram  os  annos  pas- 
sados,  tracia  liuma  cruz  muyto  bcm  sinalada  no  brago  izquerdo  com 


LIVRO  I,   CAPITULO   XV.  165 

humas  como  estrellas  a  roda,  o  que  eu  Ihe  vi  por  veces  falando 
com  elle;  por  que  ordinariamente  vestia  camisa  de  mangas  largas 
aguisa  de  turcos  e  assi  discubria  o  braQO. 

Acerca  do  que  diz  que  a  esposa  do  Emperador  vem  de  suas  ter-       5.  Mulieres  etir.in 

,  -.^  j.  ^  .jj  j  e  nobilioribus  equi- 

ras  em  huma  htera  e   depois  pera  entrar  na  cidade,   onde    espera  ^^^  solent  in  mulis, 
o  Emperador,  sobe  em  hum  fermoso  elephante  e  4  reynhas  a  saem  ^^^  ^^  equis,   mul- 

•  i  T       .^  toque  minus  m  ele- 

a  reciber  em  elephantes  e  outras  senhoras  tambem  a  acompanham  phantis,  qui  in  Ae- 

11  11  A         i_*  z  j.'  thiopia  sunt  omnes 

em  elles  e  em  cavallos,  e  que  o  Ar^obispo  mais  antigno  acompa-  gyiyegtres. 
nhado  de  dous  Bispos  os  desposa,  ja  tenho  dito  algumas  veces  que 
nam  ha  Ar^obispo  nem  Bispo  mais  que  o  Abuna,  nem  Reynhas 
e  por  testimunha  de  muytos  e  do  mesmo  emperador  Seltan  Qa- 
f.  70.  gned,  que  nam  ha  em  todo  seu  imperio  elephante  manso,  *nem  me- 
moria  de  que  ouvese  nunca;  nem  as  senhoras  sobem  em  cavallo 
de  nenhuma  maneira,  nem  viram  nunca  litera,  nem  sabem  que  cousa 
he :  todas  andam  em  mulas  com  sellas  hum  pouco  largas,  cubertas 
com  pannos  de  seda  ou  outros  somenos,  conforme  a  qualidade  da 
pessoa,  e  cada  huma  leva  dous  homens  perto  do  axQam  dianteiro, 
hum  de  huma  vanda  e  outro  de  outra,  e  cada  hum  sua  mao  sobre 
o  pescocjo  da  mula,  e  ella  muytas  veces  se  encosta  pondo  a  mao 
no  hombro  do  que  quer.  Outros  dous  vam  detras  da  mesma  ma- 
neira  com  huma  mao  no  ar^am,  assi  por  honrra  como  pera  que 
nam  tenha  perigo  de  cair;  mas  as  que  nam  podem  tanto  levam 
hum  so  homem  a  mao  dereita. 

O  modo  e  ceremonias  de  que  usam  em  seus  casamentos  he  o      6.  Descriptio  cae- 

.^A^  X-  j  !_•  j^'j      remoniae  nuptiarum 

sigumte.  Antes  que  o  Emperador  pubnque  com  quem  determma  de  impcratoris. 

casar,  se  informa  com  muyta  diligencia  se  aquella  senhora  decende 

de  gente  que  em  algum   tempo  tivese  alguma   doenpa   contagiosa, 

como  levra,  ou  outra  semelhante,  e  achando  que  nam,  se  ella  nam 

esta  na  corte,  a  faz  tracer  com  grande  acompanhamento  e  a  enco- 

menda  a  alguma  sua  parenta  de  quem  se  fia,  pera  que  a  tenha  em 

sua   casa  e  a  tente   muyto  bem   por   seu  natural,  se  he  aspera  ou 

branda  de  condigam,  e  Ihe  insinhe  as  ceremonias  do  paQO  e  o  niodo 

que  ha  de  guardar  com  os  principes  e  grandes  o  com  os  que  sam 

de  menos   qualidade.   Depois  que  se  acha  ser  de  boa  condigam  e 

que  esta  bem  instruida,  sinala  o  Emperador  o  dia  em  que  a  ha  de 

receber,  e   polla   minha   vam  amos  a  huma   igreja.   O  Emperador 

sae  do  pago  a  pe   ricamente   vestido  e  acompanhado  de  todos  os 

grandes  da  corte;  e  ella  vem  da  casa,  onde  estava,  tambem  muyto 

costosamente  vestida  e  acompanhada  das  senhoras  mais  nobres  da 


l66  HISTORIA  DE   ETJIIOPIA 

corte,  e  amos  ouvem  missa  e  confessain  e  comungam,  e  logo  vam 
ao  paQO  com  todo  aquelle  acompanhamento,  e  alli  ordinariamente 
o  Abuna  acompanhado  de  muytos  fracjes  e  clerigos  Ihes  da  as  ben- 
^oes,  regando  o  que  pera  isso  tem  ordejiado  em  Ethiopia,  que  sam 
algumas  oragoes  e  psalmos,  e  como  ac^va,  tangem  a  porta  do  pacjo 
as  cheremelas  do  Emperador  e  outros  instrumentos  musicos.  Logo 
se  poe  a  mesa  pera  o  Emperador  e  cojne  so,  como  faz  sempre.  A 
Emperatriz  em  outra  mesa  com  algumas  senhoras  grandes  paren- 
tas  do  Emperador  e  a  todos  os  sacerdotes  e  aos  grandes  do  im- 
perio,  que  estam  juntos,  se  Ihes  da  eiplendido  banquete  em  outra 
casa;  e  como  acabam,  entram  na  sala  onde  esta  o  Emperador  e  a 
Emperatriz  com  as  demais  senhoras  e  todo  aquelle  dia  e  outros 
muytos  passam  em  festas  e  se  dam  grandes  banquetes. 
7.    Post   nupdas,  *Demais  destas  festas  se  facem  depois  outras  o  dia  que  o  Em-  f.  7o,v. 

statuto  die,  solemEi-  ,  .      1  j  t-  ^  •  _^  j      i_ 

ter  imponitur  Impe-  perador  smala,  em  que  se  da  a  Emperatriz  certo  nome  de  honrra 
ratricinomenltegue,  g^^  j^g  Itegrie,  porque  ordinariamente  nam  se  Ihe  da  o  dia  que  casa 

cuius    interpretatio-    ^  o         ^      ^  ^ 

nem  frastra  Auctor  pera  que  seja  com  novo  aparato  e  pera  isto  vam  todos  os  grandes 
inquisivi .  ^^  corte  ao  pa^o  ricamente  vestidos  e,  estando  em  a  sala  do  Em- 

perador  em  pe,  postos  em  ordem  cada  hum  conforme  a  seu  estado 
e  o  Emperador  asentado  em  seu  throno,  entra  a  Emperatriz  acom- 
panhada  de  muytas  senhoras  grandes  e,  chegando  perto  do  Empe- 
rador,  Ihe  facem  mesura,  e  logo  elle  manda  que  vistam  a  Emperatriz 
vestidos  imperiaes;  o  que  facemalli  diante  do  Emperador,  e  depois 
se  asenta  no  estrado  que  Ihe  tem  aparelhado  perto  do  Emperador, 
e  logo  hum  dos  mayores  senhores  da  corte  sae  ao  terreiro  do  pa^o 
acompanhado  do  outros,  onde  esta  grande  multidam  de  gente  espe- 
rando  e,  subindo  em  huma  cadeira  alta  de  ferro,  diz  em  alta  voz, 
de  parte  do  Emperador :  Anegucgana  Danguecerachen,  que  quer  di- 
cer :  «  ficemos  reynar  nossa  serva  » .  E  logo  todos  os  circunstantes  le- 
vantam  grandes  voccs  de  alegria  e  se  come^am  os  tangeres  e  festas. 
E  dalli  por  diante  chamam  todos  a  Emperatriz  Itegue,  que  parece 
nome  de  magestade;  que  sua  propria  significa^am  nam  me  soube- 
ram  deciarar,  com  preguntar  a  muytos,  como  tam  pouco  a  sabem 
dar  a  outro  nome  que  tem  o  Emperador,  que  he  Azegue.  Mas  nem 
quando  dam  este  nome  de  Itegue  a  Emperatriz  nem  em  outro  tempo 
nenhum  Ihe  poem  coroa  na  cabe^a. 

Das  ceremonias  que  guardam  e  das  festas,  que  se  facem  em 
os  casamentos  da  demais  gente,  falaremos  em  o  livro  2  quando 
tratarmos  dos  erros  que  tem  no  sacramento  santo  do   Matrimonio. 


CAPITULO  XVL 

Em  que  se  trata  dos  juices  que  tem  o  Preste  Joam,  do 
modo  de  proceder  em  a  justi^a  e  do  castigo  que 
dam  aos  delinquentes. 


Todos  os  juices,  que  o  Preste  Joam  tem  em  seu  imperio,  a  que  x.liidices  supremi 
chamam  Azaxoch,  que  quer  dicer  «  mandadoies  »,  c  Umbaroch,  scili-  umbar6ch  i^c^tur 
cet  «  cadeiras  »  (porque  ordinariamente  estam  em  cadeiras  pera  ouvi-  «*  eliguntur  ex  anti- 

quis  familiis  nobili- 

rem  £is  partes  e  julgar),  decendem  por  Imea  recta  daquelles  juices  bus:  ludexaulae  re- 
que  Salomam  deo  a  seu  filho  Menilehec,  segundo  elles  affirmam  por  ^*®  ^  dicitur. 
cousa  muyto  certa  e  averiguada  e  o  testificam  seus  livros,  do  que 
se  pre^am  muyto,  e  procuram  tanto  que  se  conserve  esta  descen- 
dencia  em  o  officio  de  julgar  que  de  nenhuma  maneira  admiten  a 
f.  71.  elle  se  nam  sos  *os  que  vem  de  aqucUes  antiguos  por  via  mascu- 
lina,  de  sorte  que,  se  as  filhas  destes  casam  com  homens  que  nam 
sejam  daquellas  familias,  a  seus  filhos  nam  os  deixam  entrar  em  este 
officio,  porque  dicem  que  se  Ihe  cortara  logo  a  linea  dereita  de  seus 
antepassados,  como  declaramos  no  fim  do  capitulo  4,  por  testemunho 
de  muytos  e  do  mesmo  Emperador  e,  ainda  que  elle  da  este  titulo 
de  Azax  a  alguns,  que  nam  sam  daquellas  familias,  nam  por  isso 
ficam  sendo  juices  como  estes,  que  nam  se  Ihes  da  senam  por 
honrra.  Estes  Azages  sam  como  supremos  desembargadores,  mas 
nam  podem  mandar  matar,  nem  cortar  membro,  nem  desterrar,  sem 


l68  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

o  Emperador  confirmar  sua  sentencia.  A  hum  destes  chamam  Fara 
Cemba  e  he  como  corregidor  da  corte.  Os  Umbares  sam  como  ouvi- 
dores  de  menos  al^ada,  e  destes  tem  sempre  em  seus  desembargos 
os  Vissorreys. 

2.  L.OCU8  iudicum  Os  da  corte  moram  sempre  de  fronte  do  pa^o  do  Emperador, 

in  residentia  Impe-  j-'  ^t  -j^  j-i^  i  j 

ratori8.  Unus  est  V^^  ordmanamente  he  pera  occidente,  e  quando  o  Emperador  anda 
praeses   in  utroque  gm  campo,  de  fronte  de  sua  tenda  asentam  as  suas,  como  dissemos 

tribunali. 

no  cap.  14;  e  entre  elles  fica  sempre  huma  rua  muyto  larga,  e  os 
Azages  todos  sam  como  de  conselho  real  e  facem  hum  so  tribunal, 
mas  os  Umbares  da  mao  dereita  da  rua  sam  como  de  mais  tribunal 
que  os  da  izquerda,  e  perto  da  cerca  do  pa^o  de  huma  e  outra 
vanda  da  rua  tem  casas  ou  sombreis  onde  ouvem  as  partes  e  julgam, 
posto  que  muytas  veces  o  fa^am  dentro  dsis  suas.  Dos  Umbares  que 
mais  se  senalam  em  facer  bem  seu  officio  tomam  pera  Azages  com 
beneplacito  e  aprova^am  do  Emperador.  Em  cada  tribunal  dos  Um- 
bares  esta  hum  como  presidente  e  assi  tambem  em  o  tribunal  dos 
Azages.  A  estes  presidentes  pertence  dar  juiz  a  quem  o  vem  a  pe- 
dir  pera  qualquer  negocio  que  seja;  mas  elle  nam  tem  obriga^am 
do  pedir  aos  presidentes  dos  tribunaes  inferiores,  senam  a  quem 
.  quiser,  porque  bem  pode  pedir  ao  presidente  dos  Azages  e  ainda 
ao  mesmo  Emperador.  Elle  logo  manda  dar  a  quem  Ihe  parece, 
porque  nam  he  necessario  que  estes  juices  sejam  das  familias  dos 
Umbares  e  Azages,  ainda  que,  quando  he  cousa  de  importancia, 
ordinariamente  vai  hum  Umbar,  e  se  for  de  muyta,  hum  Azax. 

3.  ludicia   omnia  Tirado  o  juiz,  se  a  demanda  he  dentro  da  corte,  elle  so  ouve 

etiam  de  eravioribus  ^  , .  ^     ^  1. 

deiictis  oretenus  ^  partes  e  o  que  dicem  as  testemunhas  que  presentam,  sem  se 
nonscriptohabentur.  escrever  cousa  nenhuma,  porque  nunca  escrevem  *nada,  por  mais  f.  7i,v. 

Quid  sit  Barcaf&ch.  r-      t  i-  /    » 

Rei  de  levioribus  grave  que  seja  o  negocio,  mas,  se  a  demanda  se  ha  de  facer  em 
rcT^de^^ravioribuB  ^^^^^  lugar,  este  juiz,  ainda  que  seja  mandado  por  o  Emperador, 
vinciuntur    catena :   tem  obriga^am  de  chegar  ao  senhor  do  lugar,  (que  todas  as  terras 

omnibus  datur  f acul-  ,  .     ,  1  /-1,  -r- 

tas  sibi  defensorem  tem  senhores,  amda  que  nam  vam  de  paes  a  tilhos,  porque  o  Em- 
eligendi.  perador  os  muda  todas  as  veces  que  quer)  e  pedir  que  Ihe  de  hum 

homem  (a  quem  chamam  Barcafach)  que  assista  com  elle  pera  ouvir 
aquella  justi^a,  e  se  o  senhor  do  lugar  tem  algum  previlegio  do 
Emperador  (que  acostuma  a  dar  a  alguns,  como  nos  tem  dado  a  nos), 
nam  deixa  entrctr  aquelle  juiz,  mas  manda  ao  que  elle  tem  posto  no 
lugar  que  ou^a  a  justi^a,  e  se  nam  tem  previlegio,  sinala  hum  lio- 
mem,  o  qual  se  asenta  juntamente  com  o  juiz,  e  amos  ouvem  as 
partes;  e  se  aquelle  a  quem   demandam  pede   tempo  pera  buscar 


LIVRO   I,   CAPITULO  XVI.  169 

procurador,  Ihe  dam  tres  dias,  se  nam  for  sobre  cousa  de  hereiKja, 
de  adulterio,  de  traigam,  ou  de  morte,  porque  entam  Ihe  dam  dez, 
e  entretanto  o  juiz  come  a  custa  do  que  o  levou,  e  o  outro,  se  nam 
da  fian<;a  pera  estar  a  justipa,  fica  presso ;  e  se  Ihe  acusam  de  al- 
gum  destes  casos  graves,  nam  admitem  fian^a,  senam  que  o  pren- 
dem  e  muytas  veces  de  amas  as  maos,  porque  sua  prissam  he  por 
huma  argola  de  ferro  no  brago  dereito  com  huma  cadea  curta  aper- 
tada  de  maneira  que  nam  possa  tirar  a  mao,  e  outra  argola,  que 
esta  na  outra  ponta  da  cadea,  metem  no  bra<;o  izquerdo  de  algum 
de  que  se  fiam  pera  que  o  guarde,  que  se  chama  coranha,  e  se  o 
prendem  de  ama^  as  maos,  poem  pressos  com  elle  dous,  hum  de 
huma  vanda  e  outro  de  outra. 

Como  se  cumpre  o  tempo  que  deram  pera  buscar  procurador,  4.  Modus  proce- 
se  asentam  amos  os  juices  em  cadeiras  ou  na  cham  sobre  alguma  *******  ^  ^*  ■• 
alcatifa  ou  outra  cousa,  e  as  partes  com  seus  procuradores  ficam 
em  pe  diante,  e  o  que  demanda  come^a  primeiro  a  falar  ou  seu 
procurador  por  elle,  e  diz  quanto  quer,  sem  que  nimguem  Ihe  in- 
terrumpa.  Depois  responde  o  accusado  ou  seu  procurador,  dicendo 
tambem  o  que  quer,  sem  que  o  interrumpam,  e  como  acaba,  se  o 
que  demanda  tem  que  replicar,  o  fciz,  e  se  pedem  tempo  pera  tra- 
cer  testimunhas,  Iho  dam  conforme  Ihes  parece  necessario,  e  dalli  por 
diante  comem  os  juices  a  custa  do  acusado,  mas,  se  depois  se  achar 
nam  ter  culpa,  ha  de  pagar  tudo  o  que  acusou ;  e  como  presentam 
as  testimunhas,  ha  de  dicer  a  outra  parte  se  tem  alguma  suspei^am 
que  por  e  a  ha  de  provar,  e  se  nam,  Ihes  dam  juramento  e  teste- 
f.  72.  munham  *diante  das  partes,  e  ellas  alegam  logo  de  seu  dereito,  se 
tem  alguma  cousa,  e  depois  julga  o  que  deo  por  companheiro  o 
senhor  do  lugar  dicendo :  Fetna  Neguz  aiatafa  Egziabehez,  que  quer 
dicer:  «  A  justi^a  e  el  Rey  nam  perca  Deos  >,  scilicet  c  nao  per- 
mita  que  se  perca  »  ;  e  logo  da  a  sentencja  que  Ihe  parece;  e  o  outro 
juiz  diz  tambem  as  mesmas  palavras  e  julga;  e  se  as  partes  sc  dam 
por  satisfeitas,  alli  se  acava  a  demanda,  e  se  nam,  agravam  pera 
o  tribunal  que  deo  o  juiz  e,  se  o  deo  o  Emperador,  ham  de  ir  de 
for^ado  ao  infimo  que  he  o  dos  Umbares  da  mao  izquerda.  Nem 
porque  vam  primeiro  a  outro  tribunal  alto  que  deo  o  juiz,  se  Ihe 
tira  a  parte  que  depois  de  julgarem  os  daquelle  tribunal  nam  su- 
plique  se  quiser  da  senten^a,  pidendo  que  julguem  tambem  os  do 
tribunal  inferior,  porque,  ainda  qne  antiguamente  replicaram  muyto 
a  isso  os  tribunaes  supremos,  com  tudo  ordenaram  os  Emperadores 

C.  Bbccaki.  /ier,  Aeik,  Scri^i,  occ,  ined,  —  II.  22 


I70  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

que  nam  se  prohivisse,  dicendo  que  queria  que  se  ouvise  o  parecer 

de  todos,  pera  que  milhor  pudesem  dar  a  justiga  a  quem  a  tivese. 

5.  Modus  ferendi  Supondo  pols  que  levam  a  senten^a  a  os  Umbares  da  mao  iz- 

sententiam.  ludices,  j         n  ^  j    •  j  j»        • 

nonstantes  uti  retu-  Querda,  elles  se  asentam  em  suas  cadeu^as  e  de  ordmano  sam  tres 

lit  Alvarez,  aed  ae-  qu  4,  e  os  dous  juices  com  as  partes  e  seus  procuradores  ficam  em  pe 

dendosententiamdi- 

cimt.  e  o  que  pus  o  senhor  da  terra,  onde  se  fez  a  demanda,  fala  primeiro 

refirindo  tudo  quanto  disseram  as  partes  e  as  testimunhas  e  o  que 

elle  julgou.  Depois  repete  o  mesmo  o  outro  juiz  e  diz  o  que  elle 

julgou  e,  se  aos  juices  Ihes  ficou  por  referir  alguma  cousa,  a  acre- 

centam  as  partes  ou  seus  procuradores  e  alegam  de  novo  tudo  o  que 

Ihes  parece  pera  bem  de  sua  justi^a,  sem  interrumpir  hum  a  outro, 

e  entam  se  he  necessario  facer  alguma  nova  diligencia,  sinalam  os 

Umbares  tempo  pera  ella,  e  se  nam,  julga  o  inferior  asentado  como 

esta  em  sua  cadeira.   Bem  sei  que  diz   Francisco   Alvarez  em  sua 

Historia  fol.   164  que  os  Ouvidores  se  alevantam  pera  julgar;  mas 

foi  engano,  equivocandose  com  os  que  nam  o  sam ;  porque  algumas 

veces  os  Ouvidores  dicem  por  cortesia  a  alguns  dos  que  estam  pre- 

sentes   que  julguem,  e  aquelles  se  alevantam   em  pe  pera  julgar; 

mas  os  Ouvidores  nam  se  alevantam,  nem  convinha,  pois  estam  em 

lugar  do  Emperador  e  assi   ninguem  se  pode    asentar  alli  em  ca- 

deira  senam  elles.  Depois  vam  julgando  os  Ouvidores  hum  e  hum 

comegando  o  inferior  por  aquellas   palavras:   A  justi^a  e  el   Rey 

nam  perca  Deos:  e  assi    facem  todos  os  demais,  julgando   sempre 

*o  presidente  por  derradeiro.  E  se  a  parte  condenada  quer,  agrava  f.  72,^. 

pera  os  Umbares  da  mao  dereita  e  entam  o  presidente  dos  da  mao 

izquerda   vai   com  as  partes  e  refer  tudo  da  maneira   que  se  pro- 

cedeo  e  o  que  se  julgou  em  seu  tribunal,  declarando  se  ouve  pa- 

receres  diferentes  ou  nam;  e  logo  julgam  aquelles  Umbares  poUa 

mesma  ordem  que  os  primeiros  e,  se  confirmam  a  sentenga  e  o  con- 

denado  quer   estar  por  ella,   parecendolhe  que  julgaram   bem,  alli 

se  acava,  e  se  nam,  agrava  pera  os  Azages,  e  os  dous  presidentes 

dos  Umbares  vam  com  as  partes  e  referem  por  ordem  todas  as  cou- 

sas  e  o  que  julgaram,  e  logo  julgam  os  Azaxes,  ficando  sempre  o 

presidente  por  derradeiro,  e  alli  se  acava  a  demanda,  se  nam   for 

sobre  cousa   de  trai^am  contra  o  Emperador,    adulterio,  morte  ou 

heran^a  ou  alguma  outra  cousa  muyto  grave ;  porque  estas  nam  po- 

dem  acabar  os  Azages  sem  chegar  ao  Emperador,  nem  julgao  diante 

das  partes :  somente  ouvem  o  que  disseram  as  testimunhas  e  o  que 

julgaram  os  jui^es,  e  logo  vam  ao  Emperador  e  Ihe  referem  tudo 


LIVRO   I,  CAPITULO   XVI.  171 

por  ordem  e  julgam  hum  e  hum,  come<;ando  os  da  mao  izquerda  e 
ultimamente  julga  o  Emperador. 

Antiguamente,   quando   o   Emperador  avia  de  julgar   alguma      e.Ordoconfirman- 

,.  -j^jiA  «j  ...  di  sententiam  a  tri- 

causa,  hia  o  presidente  dos  Azages  com  seis  dos  mais  prmcipaes  e  ^ujiaii   supremo   et 
o  Behet  Oaded  da  mao  izquerda  e  o  da  mao  dereita  e,  ficando  as  •*>  Imperatore  quis 

fuerit  antiquitua  et 

partes  e  seus  procuradores  fora  do  pago,  entravam  elles  e  postos  quig  sit  nunc. 

em  pe  diante  do  Emperador,  referia  hum   todo  o  processo  do  ne- 

gocio  e  o  que  se  julgou  em  cada  tribunal,  e,  se  ouve  pareceres  di- 

ferentes  e  se  Ihe  esquecia  alguma  cousa,  Iha  lembrava  outro,  e  de- 

pois  julgavam  hum  e  hum,  come^ando  o  menos  antiguo,  e  o  ultimo 

era  o  Behet  Oaded  da  mao  dereita,  que  ainda  que  elle  c  seu  com- 

panheiro  nam  sejam  da  familia  dos  Azages,  com  tudo,  por  serem  as 

supremas  cabe^as  do  imperio,  julgavam  juntamente  em  cousas  gra- 

ves.   Depois   o  Acabi^at,   cuja  dignidade  e  officio   declaramos  no 

cap.  4,   asentado   perto   do   Emperador,  julgava,  e  ultimamente  o 

Emperador,  e  logo  se  executava  sua  senten^a  sem  mais  replica. 

Agora  ordinariamente  (como  eu  tenho  visto  muytas  veces)  nam 
entram  mais  que  o  presidente  dos  Azages  com  dous  dos  mais  prin- 
f.  73-  cipaes  e  como  referem  o  negocio  e  julgam  pollo  ordem  *que  temos 
dito,  julga  o  Emperador,  sem  o  Acabi^at  estar  presente,  ainda  que 
em  as  cous£us  mais  g^aves  sempre  manda  o  Emperador  que  se  jun- 
tem  outros  Azages  e  o  que  he  Eraz,  se  esta  na  corte,  e  o  Balati- 
noch  Gueita. 

Isto  facem  sempre  em  4*  e  6*  feira,  que  sam  dias  mais  acom-  7.  Dies  asaignati 
modados,  porque  jejuam  e  nam  comem  ate  a  seis  horas  da  tarde  frp^SirLS',': 
pouco  mais  ou  menos.  Digo  entre  anno,  que  na  coaresma  nam  co-  ^^  *<1®™  ^^^^  *c  in 

aula  regia. 

mem  ate  posto  o  sol.  Mas  se  algum  negocio  nam  sofre  dilac^am, 
tambem  em  outro  dia  ouve  o  Emperador  e  tal  pode  ser  o  caso,  que 
sem  passarem  por  estes  tribunaes,  mandem  ao  delinquente  que  ar- 
ra<;oe  logo  de  final,  como  eu  vi  duas  veces  a  huns  alevantados,  que 
trouxeram  dentro  da  primeira  cerca  do  pa^o  e  o  Emperador  man- 
dou  muytos  Azages  com  o  Balatinoch  Gueita  e  Ihes  ficeram  muy- 
tas  preguntas  e  vieram  com  sua  reposta  ao  Emperador;  depois  tor- 
naram  a  Ihes  preguntar  e  assi  gastaram  em  idas  e  vindas  boa  parte 
do  dia  ate  que  deram  senten^a  que  Ihes  cortasem  as  cabe^as,  e  logo 
se  executo. 

Os  Vissorreys  tambem  tem  destes  Umbares  em  seus  desembar- 
gos  e  nelles  se  ham  casi  com  o  mesmo  ordem  que  os  da  corte  e 
como  julga  o  Vissorrey   alli  sc  acava,    ainda   quc  de  senten^a  de 


172  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

morte,   porque  esta  em  lugar  do  Emperador;   mas  algiimas  veces 

remitte  alguns  casos  ao  Emperador,  particularmente  de  heran^a  e 

trai<;am. 

8.    ludex    localis  A  fora  destes  Azages  e  Umbares,  que  estam  em  os  tribunaes 

vocamr  ^Xum^^ereH-  ^^  Emperador  e  de  seus  Vissorreys,  ha  em  cada  villa  e  aldea  po- 

gitur  e  qualibet  fa-  g^Q  pQ^  o  Senhor  della  a  que  chamam  Xum.  Este  nam  he  das  fa- 

xnilia  ab   ipso    pagi 

domino.   Ordo  pro-  milias  dos  Umbares,  senam  outro  qualquer  que  o  senhor  do  lugar 
istis^iudicib^r"  *     quer.  Este  juiz  ouve  todas  as  demandas   daquelle   lugar,  se  o  que 

ha  de  facer  a  demanda  nam  traz  juiz  da  corte  do  Emperador  ou 
do  Vissorrey  daquella  terra,  porque,  se  o  trouxer,  nam  entra  na 
justi^a  senam  por  companheiro  sinalandoo  o  Senhor  do  lugar,  como 
acima  dissemos ;  e  entam  leva  elle  de  tres  partes  huma  do  que  ga- 
nha  o  juiz  que  veio  de  fora.  Mas  nam  tracendo  outro  juiz,  elle  se 
asenta  em  lugar  pubrico  e  ordinariamente  com  elle  os  velhos  e  mais 
honrrados  do  lugar,  ainda  que  nam  por  obriga^am,  e  ouve  as  par- 
tes  e  sucis  testemunhas,  e  como  acavam  de  arragoar,  diz  a  hum 
dos  que  estam  sentados  que  julgne.  Este  se  elevanta  em  pe  e  refei 
o  que  as  partes  alegaram,  e  logo  julga  o  que  Ihe  parece  e  da  me- 
sma  maneira  vam  facendo  os  outros,  posto  que  os  mais  honrrados 
nam  se  alevantam  pera  *julgar,  e  ultimamente  julga  elle,  e  se  a  parte  f-  73»v. 
condenada  quer  estar  poUa  senten^a,  alli  se  acava  e  paga  poucas 
custas,  e  se  nam,  agrava  pera  os  Umbares  da  corte,  se  o  lugai'  esta 
em  seu  districto,  ou  pera  os  do  Vissorrey  a  quem  pertence  a  terra; 
e  este  juiz  vai  com  as  partes  e  diante  dellas  refer  aos  Umbares 
tudo  o  que  alegaram  e  provaram  e  o  que  elle  julgou,  e  dalli  por 
diante  vai  correndo  a  causa  em  a  forma  que  acima  dissemos,  e  os 
Umbares  pera  quem  primeiro  foi  a  sentenga  tem  certo  premio  com- 
forme  for  a  demanda,  que  paga  a  parte  que  for  condenada;  mas 
ainda  que  agrave  pera  os  outros  tribunaes  nam  se  Ihe  acrecentam 
mais  custas  que  as  que  ha  de  pagar  no  primeiro;  que  todos  tem 
suas  comedias  do  Emperador. 

g.Poenaesuntexi-  Os  castigos  mais   ordinarios  que  dam  aos  delinquentes,   ainda 

lium,  abscissio  ma-  ^  t^  j  ^     j. 

nus,  vel  pedis,  vel  P^^  cousas   graves,  que   toquem  ao  Emperador,   sam   desterrar  ou 

auris,  capitis  obtrun-  mandar  pressos  a  huma  ilha,  que  chamam  Dec,  da  alagoa  de  Dam- 

Hom'icidae    aliquo-  bia,  a  que  elles  chamam  mar,  ou  a  alguma  serra  forte ;  e  alli  estam 

ties  tradmitur  vindi-  ^^^  guarda  ate  que  os  perdoam,  que  comummente  nam  he  muyto 

tui.    Selt&n   SagAd,  tempo.  Antiguamente  botavam  alguns  poUas  rochas  a  baixo,  como 

rogatus  ab  Auctore,  ,r  jaja/^aj 

ne  in  posterum  hoc   niandou  facer  o  emperador  Adamas  vagued,  mas  agora  nam  se  usa 
fieret  prohibuit.  senam    cortar  a  cabega  ou  pe,  ou  mao,   ou  enforcar.    Aos  ladroes, 


LIVRO  I,   CAPITULO  XVI.  173 

polla  primeira  vez,  se  o  furto  nam  he  muyto  grande,  os  acoitam 
com  humas  correas  cumpridas,  e  na  2^  vez  Ihe  cortam  as  orelhas 
ou  narices  e  as  veces  huma  mao  ou  pe,  e  na  3"  o  enforcam ;  e  tal 
pode  ser  o  furto  que  a  primeira  vez  o  mandem  enforcar.  Tambem 
enforcam  por  outros  delictos,  como  por  matar,  se  a  pessoa  he  baixa, 
e  algumas  veces,  quando  hum  matou  a  outro,  depois  que  julgaram 
que  morra  e  o  Emperador  confirmou  a  sentencja,  o  entregam  aos 
parentes  do  morto  pera  que  fa^am  delle  o  que  quiserem,  e  alguns 
o  perdoam  por  rogos  ou  fato,  outros  o  levam  ao  campo  e  o  ma- 
tam  as  lan^adas  ou  as  cutiladas.  Mas  algumas  veces,  porque  a  gente 
que  alli  se  junta  da  grandes  voces  com  piedade  de  ver  aquilo,  el- 
les  se  afastam  de  pressa  deixandoo  por  morto,  sem  o  estar,  como 
sucedeo  a  hum  o  anno  de  16 14,  que  tendolhe  dado  muytas  feridas 
e  duas  que  o  atravesamam  de  vanda  a  vanda,  o  deixaram,  pare- 
cendolhes  que  ficava  morto ;  e  levandoo  seus  parentes  pera  o  en- 
terrarem,  o  acharam  vivo  e  assi  o  esconderam  e  curaram  e  me  vie- 
ram  a  pedir  Ihe  alcangase  perdam  e  seguro  do  Eroperador,  porque 
seus  contrarios  o  aviam  de  matar  onde  quer  que  o  achassem.  Pedi 
eu  este  seguro  ao  Emperador,  e  respondeo  que  de  boa  vontade  o 
f.  74-  daria,  porque  ja  aquelles  *o  deixaram  dandose  por  satisfeitos  do 
mal  que  Ihes  tinha  feito,  e  mandou  logo  ao  presidente  dos  Azages 
que  alli  estava  que  lan^ase  pregam  que  ninguem  ficesse  mal  a  aquelle 
homem,  so  pena  de  morte.  Disse  elle  que  nam  era  cousa  nova,  por- 
que  ja  aquelle  caso  estava  julgado  outras  veces  daquella  maneira. 
Com  esta  ocasiam  falei  ao  Emperador,  que  seria  bem  mandar  que 
nam  entregasem  os  juices  os  matadores  daquella  maneira,  porque 
os  matavam  com  crueldade  e  nam  careceria  de  odio.  Respondeo, 
que  tinham  este  costume,  porque  quando  Ihos  entregavam,  ordina- 
riamente  os  perdoavam;  mas  que  nem  a  elle  Ihe  parecia  bem;  e 
dalli  por  diante  nunca  mais  ouve  que  se  ficesse  isto. 

Tambem  dicem  que   antiguamente   botavam   aos   lioes  os   que       10.  Antiquitus  rei 

^     j,  T^  A  ^  etiam  leonibus  obii- 

eram  tredos  ao  Emperador,   mas  agora  nam  se  acostuma,   nem  se  ciebantur.  Morte  da- 
fez  muytos  tempos  ha  senam  a  huma  molher  muyto  nobre,  que,  por  ter  ninati,    sacramends 

E^clesiae    non    ren-' 

tomado  nossa  santa  fe,  a  mandou  botar  aos  lioes  o  emperador  Ada-  ciuntur. 
mas  Qagued,  mas  nam  Ihe  ficeram  mal,  como  adiante  veremos.  O 
que  vai  a  padecer  por  algum  delicto  nam  se  confessa,  nem  ha 
quem  Ihe  lembre  como  se  ha  de  aparelhar  pera  aquelle  passo;  o 
que  tambem  adverti  ao  Emperador  e  Ihe  contei  o  que  se  faz  em 
nossas  terras,  e  Ihe  pareceo  muyto  bem  e  disse  que  mandaria  que 


174  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

Ihe   desem   tempo   pera  se  aparelhar,  e  aos   Azages   Ihes  pareceo 

muyto  bera. 

XI.  Mulier adulte-  O  adulterio  nunca  se  castiga  com  morte,  senam  com  pena  de 

nia.  Vir  potest  Mm-  ^^^^'  ^^  ^  marido  pede  justi^a,   julgam  que  o  adultero  Ihe  pague 

per  eam  dimittcre.     f^^o  conforme  a  sua  pessoa  e  que  a  adultera  rape  a  cabe^a  e  deixe 

ao  marido  o  fato  que  tinha,  e  feito  isto,  pode  ir  a  casar  com  quem 
quiser.  Tambem  todos  os  que  querem  deixam  as  adulteras  e  casam 
libremente  com  outras,  porque  dicem  que  Christo  N.  S.  deo  licen^a 
pera  isso  no  evangelho ;  mas  com  as  continuas  praticas  e  disputas, 
que  temos  com  elles  e  seus  letrados  sobre  esta  materia,  muytos  en- 
tendem  ja  que  nem  Christo  N.  S.  quis  dicer  tal  cousa,  nem  se  pode 
facer,  como  declararemos  no  2°  livro. 
12.  Fabulae  Urrc-  Do  que  temos  dito  se  vee  claramente  quam  falsa  informa^am 

tae  circa  iudicia  ex  ^.     -      r  t     •      j      tt       ^  •      j» 

dictis  refutatur.         ^^ve  sobre  esta  materia  frey  Luis  de  Urreta,   pois  diz  no  cap.  19 

que  o  Gram  Conselho  do  Preste  Joam,  o  qual  conhece  de  todos  os 
negocios  do  imperio  assi  civis  como  criminais,  porque  tem  sobre 
tudo  suprema  authoridade,  consta  de  30  conselheiros.  seis  Patriar- 
chas,  seis  Ar^obispos,  seis  Bispos,  seis  Abades  da  ordem  de  s.  An- 
tam  e  seis  cavalleiros  seculares,  todas  pessoas  de  muyta  prudencia, 
letras  *e  virtude  escolhidos  entre  os  nobres.  Isto  he  muyto  diife-  f.  74»^' 
rente  do  que  ca  passa ;  porque  em  nenhum  tribunal  ou  conselho  do 
Emperador  entram  mais  que  os  que  acima  dissemos  e  dos  Um- 
bares  sobem  a  Azages  e  todos  sam  homens  casados ;  nem  em  Ethio- 
pia  ha  Patriarchas,  nem  Ar^obispos,  nem  Bispos,  como  ja  decla- 
ramos,  senam  o  que  elles  chamam  Abuna,  scilicet  «  Padre  nosso  »  e 
sempre  Ihes  vem  mandado  por  o  Patriarcha  de  Alexandria. 

Pouco  mais  adiante,  pag.  179,  diz  que  nam  tem  necessidade 
de  letrados  nem  jurisperitos,  porque  nam  tem  leys  escritas  fora  de 
127  estatutos  qui  ficeram  os  emperadores  antiguos  Joam  o  Santo 
e  Phelipe  7°,  os  quaes  estam  postos  em  pubrico  na  pra^a  maior  de 
qualquer  cidade,  e  segundo  elles  dam  as  senten^as,  e  o  demais  vai  a 
jui^o  de  bom  varam ;  e  a  este  proposito  conta  huma  historia  de 
huns  letrados  de  Portugal  por  estas  palavras: 

«  En  tiempo  del  Preste  Juam,  que  se  llamy  va  Panusio,  llegaron 
«  a  la  Ethiopia  muchos  doctores  en  leyes,  los  quales  embiava  el 
«  Rey  de  Portugal  con  grandes  librerias  de  sus  Baldos  y  Bartu- 
«  los,  con  proposito  de  introducir  la  doctrina  de  sus  derechos.  El 
«  Emperador,  viendo  tantos  libros,  pregunto  que  de  que  sciencia 
«  tratavan  y  fuele  respondido  que  eran  libros  de  leyes    inperiales, 


LIVRO   I,   CAPITULO    XVI.  175 

«  civiles  y  canonicas,  y  que  ellos  eran  doctores  en  leyes,  cuyo  of- 
«  ficio  era  ayudar  al  buen  govierno  de  las  ciudades,  provincias  y 
«  reynos,  determinar  pleytos,  proseguir  causas  y  dar  su  derecho  a 
«  quien  se  le  deve;  y  para  aquel  fin  avian  traido  aquellos  libros. 
«  Respondio  o  Emperador  como  se  escupieria  en  ayunas :  En  fin 
«  que  lo  que  sacamos  de  todo  lo  dicho  es  que  vosotros  os  Uamais 
«  Doctores :  yo  no  co[no]zco  otros  Doctores  sino  los  de  la  Iglesia, 
«  s.  Augustin,  s.  Athanasio,  s.  Hieronimo  y  s.  Basilio,  ni  en  mis 
«  tierras  se  permite  que  nadie  se  Uame  doctor  sino  sean  los  sa- 
«  grados  theologos.  Estos  libros  son  de  leyes :  yo  no  se  que  aya 
«  otra  ley  que  la  de  Jesu  Christo,  y  harto  sabios  seriamos,  si  su- 
«  piesemos  esta ;  que  a  las  demas  no  las  Uamamos  nosotros  leyes, 
«  sino  constituciones ;  y  pues  vuestro  ofl&cio  es  perseguir  causas,  in- 
«  formar  de  la  justicia,  yo  no  he  menester  pleitos  en  mi  reyno.  Y 
«  assi  hallo  que  conviene  a  la  quietud  de  mi  imperio  que  os  vol- 
«  vais  a  Portugal,  y  que  dentro  de  tantos  dias  salgais  de  todas  mis 
«  tierras,  llevandoos  todos  essos  libros,  porque  los  echare  a  todos 
«  en  el  Nilo  sin  remission,  y,  si  porfiaredes,  a  vosotros  tras  ellos. 
«  Viendo  ellos  la  resolucion  del  Preste  Juan  y  que  les  hablava  com 
«  semblante  airado,  la  vista  severa,  quexoso  en  las  palavras.  ame- 
<  na^ando  com  ellas,  tuvieron  por  mas  acertado  embarcarse  pera 
«  Goa,  sin  aguardar  mas  replicas  ni  dilaciones  del  derecho  ». 
f.  75.  'Ate  aqui  sam  fabulas  de  Joam  Balihesar,  ou  de  quem  infor-       13«  Ante  Petrum 

r  A     .1  .        .  ^  -xtjjx  •  de  Covilham  nullus 

formou  ao  Author ;  porque  primeiramente  nunca  ouve  em  ilthiopia  lugitanus  in^essus 
taes  emperadores  Joam  o  Santo,  Phelipe  7,  nem  Panusio,  nem  vie-  «^st  Aethiopiam.  Im- 

'^  peratoresanteadven- 

ram  a  ella  taes  letrados  portugueses,  porque  o  primeiro  Portugues  tum  Patrum  e  s.  I. 
que  descubrio  esta  Ethiopia  e  entrou  nella  foi  Pero  de  Covilham,  buertmt^codicis  le- 
a  quem  mandou  el  rey  de  Portucral  dom  Joam  o  2°  nos  7  de  mayo   gum  lusitanarum.  A- 

,  ^         .  -^  *  ,        '  ^    -^       tanAf  SagAd  et  Sel- 

de  1487  e  depois   entrou  outro   portugues,   que  se  chamava  Joam  tAn  SagAd  iiium  pe- 

Gomes  com  hum  clerigo  que  mandou  Tristam  de  Acunha,  como  diz  ^®""^*  *  P*  ^*^*' 

Francisco  Alvares  fol.  94  de  sua  Historia\  e  no  anno  de  1520  en- 

trou  o  embaixador  dom  Rodrigo  de  Lima,  mandado  por  el  rey  dom 

Manoel,  e  Francisco  Alvares  seu  capelam  com  outros  que  os  acom- 

panhavam,  e  estiveram  seis  annos  em  Ethiopia.  Depois  no  annb  de 

1541  entrou  dom  Christovam  da  Gama  com  400  soldados  e  torna- 

ram  a  recuperar  o  imperio,  que  casi  todo  o  senhoreavam  ja  os  mou- 

ros;  e  o  anno  de  1555  entrou  o  embaixador  Diogo  Dias,  que  mandou 

o  vissorrey  da  India  e  com  elle  o  padre  mestre  Gon^alo  Rodri- 

guez  com  seu  companheiro;  e  em   margo  de   1557  entrou  o  padre 


] 


l-jt  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

bispo  dom  Andre  de  Oviedo  com  cinco  da  Companhia  e  algiins 
poucos  Portugueses.  Ultimamente  do  anno  de  1603  ^tte  este  de  1622 
entramos  sete  Padres  e  nenhuns  outros  Portugueses  cuido  que  en- 
traram  em  Ethiopia  ate  oje.  Mas  como  quer  que  isto  seja,  he  cousa 
muyto  certa  que  nunca  entraram  em  Ethiopia  os  letrados  que  o 
Author  diz,  e  se  vieram,  nam  sam  os  Emperadores  tam  pouco  apri- 
morados  que  tratasem  daquella  maneira  os  letrados  que  hum  tam 
grande  principe  como  el  Rey  de  Portugal  Ihe  mandava  a  sua  terra, 
antes  ate  os  mouros  e  gentios,  que  vem  de  outras  partes,  os  rece- 
bem  e  tratam  muyto  bem,  como  eu  vi  facer  a  muytos,  antes  huma 
das  cousas  com  que  mais  ouveram  de  folgar  sam  leys  de  Portugal, 
segundo  eu  tenho  visto  sempre  nelles ;  porque  o  Emperador,  que  fice- 
ram  pouco  depois  que  cheguei,  que  se  chamava  Za  Denguil  e  depois 
se  intitulou  Ata[na]f  (^agued,  me  escreveo,  antes  que  me  juntase  com 
elle,  que  Ihe  levase  o  livro  da  justi^a  dos  Reys  de  Portugal,  porque 
desejava  muyto  do  ver;  e  Eraz  Athanatheus  jenrro  do  emperador 
Malac  ^agiied,  que,  por  sua  morte  e  o  principe  Jacob  ser  piqueno, 
governou  o  imperio  com  e  emperatriz  Mariam  Cina  sete  annos,  me 
pidio  muyto  por  veces  que  ficesse  vir  os  livros  d^is  Ordena^oes  de 
Portugal,  porque  os  desembargadores  nam  sabiam  julgar,  e  muyto 
menos  os  Emperadores,  e  assi,  quando  Ihes  levavam  as  senten^as,  or- 
dinariamente  confirmavam  *o  que  os  desembargadores  tinham  jul-  f.  75,^. 
gado;  e  o  emperador  Seltan  Qagued,  que  oje  vive,  me  tem  dito  muy- 
tas  veces  que  trabalhe  porque  Ihe  venham  estes  livros. 
14.  Rcfutatur  ca-  Outra  cousa  diz  pag.   183,  que  pudera  bem  escusar,  ainda  que 

lumnia     ab     Urreta    r  jjji.t^i'  cn  r  -jj 

apposita  quibusdam  *^^^  verdade,  de  huns  Italianos,  que  amrma  foram  convencidos  do  pec- 
mercatoribus   italis.  cado  mao,  de  que  nunca  se  tivera  noticia  na  terra  do  Preste  Joam,  e 

assi  foi  tal  o  escandalo  e  turba^am  que  causou  entre  os  Abexins,  que 
o  Gram  Conselho  se  achou  confuso,  sem  saber  que  castigo  Ihes  da- 
riam,  e  assi  por  mandado  do  Emperador  os  remitiram  ao  Conselho 
Latino  para  que  julgase  conforme  as  leys  de  Europa,  e  os  conse- 
Iheiros,  considerando  a  gravedade  do  delicto  e  o  escandalo  que  ^via 
causado,  julgaram  que  fossem  queimados,  mas  o  Gram  Conselho 
nam  quis  que  se  ficesse  em  Ethiopia,  senam  que  os  levasem  a 
Mo^ambique  e  alli  executasem  a  senten^a.  Porem  o  Emperador  os 
mandou  levar  pressos  a  Goa,  onde  em  chegando  os  queimaram  pu- 
bricamente. 

Tudo  isto  he  mera  fic^am,  porque  nem  em  Ethiopia  ouve  nunca 
Conselho    Latino   (como  depois  diremos),  nem  ha    memoria  de  tal 


LIVRO   I,  CAPITULO   XVI.  177 

caso,  e,  se  sucedera,  ouverao  de  ter  ouvido  os  Portugueses  velhos 
que  ca  ha:  e  todos  affirmam  que  nunca  tal  cousa  ouveram;  nem  se 
ouvera  de  esquecer  disso  a  gcnte  da  terra;  e  os  que  sam  contra- 
rios  a  nossa  santa  fe,  nos  ouveram  de  dar  cada  dia  em  rosto  com 
elle;  que  ainda  outras  cousas  falsas  inventam  pera  desacreditar  a 
s.  Liam  e  aos  da  fe  catholica;  por  onde  he  certo  que  nunca  tal 
ouve.  Tambem  dicer  que  os  mandavam  pressos  a  Mo^ambique  hc 
cousa  ridicula,  se  entende  que  aviam  de  ir  por  terra,  poUos  innu- 
meraveis  desertos  e  sortes  de  gente  que  ha  no  meio ;  nem  por  mar 
ha  embarca^am  pera  la;  nem  ainda  pera  Goa  os  puderam  mandar 
pressos  senam  com  grande  dificultad. 

Tambem  he  fabula  o  que  diz  pouco  mais  adiante,  que  aos  he-       is.Falsoaaseritur 

« .  4    -n  T  apoatataa  in  Aethio- 

reges  e  apostatas  botam  aos  hoes  e  que  el  Preste  Joam  tem  con-  ^g^  iconibua  obiici 
certos  com  todos  os  Reys  mouros  seus  vecinhos,  como  o  de  Borno,  pactionem    interce- 

deie  inter  Imperato- 

o  Baxa  de  Egypto,  os  Reys  de  Arabia,  que  se  algum  de  Ethiopia  rem  et  Reges  mahu- 
renega  a  fe,  facendose  mouro,  Iho  tornem  a  entregar,  e  o  botam  mac^^S  pretio'ha! 
vivo  aos  lioes,  [e]  ou  se  reddu^a  a  fe  catholica  ou  fique  pertinaz  em  bere  Patres  Domini- 

canos  monasterii  de 

sua  apostasia,  de  toda  maneira  ha  de  morrer;  e  que  o  Preste  Joam  Alleluia. 
tambem  esta  obrigado  a  entregar  aos  Reys  mouros  a  qualquer  mouro 
que  se  ficer  christao,  pera  que  facjam  justica  delle.  Mas  ha  huma 
aventagem  de  parte  dos  christaos  que  comsintiram  os  mouros,  e  he 
que,  em  facendose  algum  infiel  christao,  logo  o  entregam  aos  re- 
ligiosos  de  s.  Domingus,  os  quaes  o  catequi^am  e  poem  hura  esca- 
f.  76.  pulario  piqueno  com  certo  senete  *do  Prior,  com  o  qual  ninguem 
pode  dicer  nada,  nem  o  Preste  Joam  esta  obrigado  a  entregar  a  seu 
Rey,  e  sabendo  os  mouros  que  o  novamente  convertido  leva  as  in- 
signias  de  sam  Domingus,  calam  e  desistem  de  sua  demanda,  por- 
que  he  tam  grande  a  opiniam  que  tem  dos  Religiosos  da  Alleluya, 
que  o  dam  por  bem  feito,  parecendolhes  que  estando  em  poder  de 
taes  Religiosos  nam  pode  ser  senam  que  vam  muyto  acertados. 

Isto  diz  frey  Luis  de  Urreta,  mas  nada  passa  assi,  porque  nam 
ha  tal  concerto  entre  o  Preste  Joam  e  os  Reys  mouros  nem  os  de 
Arabia  nem  o  Baxa  de  Egypto,  que  estam  tam  longe,  ouveram  de 
entregar  os  que  se  ficessem  mouros;  mas  nem  ainda  os  Turcos,  que 
estam  em  Alquico,  a  que  elles  chamam  Adecono  com  scr  terra 
firme  de  Ethiopia,  nam  entregaram  de  nenhuma  maneira  ao  chri- 
stao  que  se  ficer  mouro,  e  muyto  mcnos  entregara  o  Emperador 
ao  mouro  que  se  ficer  christao;  antes  vindo  por  aca  fugido  hum 
mancebo   mouro  de  casta  real  das   terras  que  aqui  parece   chama 

C.  Bbccari.  Mer,  AetA,  Script,  occ,  ined,  —  II.  aj 


178  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

frey  Luls  Bomo,  que  nam  se  chamam  senam  Dequin,  e  pidindo  el 
Rey  destas  terras  ao  Emperador  que  Iho  tomase  a  mandar,  se  queria 
que  correse  o  contrato  dos  cavallos  (porque  dalli  Ihe  vem  muytos  e 
muyto  bons  ao  Emperador),  com  ser  o  mancebo  mouro,  respondeo 
o  Emperador  diante  de  mi :  He  muy to  parvo  esse  mouro,  se  cuida 
que  eu  hei  de  entrcgar  aos  que  se  vem  a  valer  de  mi:  cousa  que 
nem  os  gentios  facem.  E  mandoulhe  logo  dar  mujrto  boas  terras, 
e  depois  se  fez  christ^io.  Nem  aos  hereges  e  apostatas  botam  aos 
lioes,  senam,  quando  algimi  que  se  fez  mouro,  ou  gentili^ou,  vem 
e  diz  que  errou  e  que  se  quer  redducir,  tomamo  a  bautizar  e  quando 
muyto  Ihe  dam  alguma  penitencia.  Nem  em  Ethiopia  ha  frades  de 
sam  Domingus,  como  veremos  no  2°  livro,  nem  dos  frades  que  ha 
nem  dos  christSlos  facem  conta  nenhuma  os  mouros,  antes  nos  tem 
a  todos  por  homens  sem  ley  nem  conhecimento  de  Deos. 
16.  Faisum  pari-  Diz  mais   pag.  185  que  as  feiticeras   entaipam  pera  sempre  e 

ter  hariolas  ct  blas- 

phemos  magnis  af-  ^.os  blasphemos  castigam  a  i*  vez  com  reprehensam  de  palavra,  a 
fici  poems.  2^  com  o  por   meio   num  a  porta  da  igreja  em  dia  de  festa   com 

huma  candea  na  mao,  e  a  3*  vez,  tendoo  por  besta  irracional,  o 
vestem  de  amarelo  e  Ihe  poem  hum  cabresto  no  collo  e  boca  e  o 
levam  por  toda  a  cidade  e  depois  o  deg^adam  pera  huma  ilha  de- 
spovoada  do  mar  vermelho  ou  la  perto  do  cabo  de  Boa  Esperan^a, 
onde  morra  de  fome.  Porem  nam  ha  tal  cousa,  porque  nem  entai- 
pam  as  feiticeras  nem  sabem  *que  cousa  he,  nem  aos  blasphemos  f.  7<>. 
levam  a  taes  ilhas,  nem  ainda,  que  o  Emperador  quisera,  o  podia 
facer,  porque  no  Mar  Roxo  nam  senhorea  nada  e  muyto  menos 
pera  o  cabo  de  Boa  Esperan<ja,  e  fora  muyto  bom  se  Ihes  deram 
castigo,  mas  muytas  veces  se  ouvem  blasphemias,  sem  aver  quem 
atente  por  ellas  pera  as  castigar. 


CAPITULO   XVII. 

Da  residencia  que  tomam  aos  Ouvidores  do  Emperador 

e  aos  de  seus  Vissorreis. 


Nam  fora  necessario  facer  capitulo  particular  pera  tratar  da 
residencia  que  tomam  aos  Desembargadores  e  Ouvidores  do  Em- 
perador  e  aos  de  seus  Vissorreys,  porque  tudo  o  que  sobre  esta  ma- 
teria  ha  que  dicer  se  pudera  declarar  em  poucas  palavras,  se  frey 
Luis  de  Urreta  nam  me  obrigara  a  referir  algumas  cousas  das  que 
diz  no  capitulo  20  de  seu  1°  livro,  porque,  passando  eu  sem  facer 
men^am  dellas,  nam  cuide  alguem  que  tem  fundamento  o  que  nam 
he  mais  que  mera  ficgam  inventada  e  tra^a  do  no  entendimento  de 
quem  o  informou.  Diz  pois  desta  maneira: 

«  Entre  todas  las  naciones  del  mundo,  una  de  las  que  mas  abo-  x-  Refenintur  so- 
«  minan  dadivas  y  donativos  son  los  Ethiopes,  tanto  que  por  tener  rcicgationcm  ludi- 
«  noticia  el  Emperador  Phelipe  g  que  avian  recebido  un  presente  ^^^  *"  Amb&  Gui- 

^  '^       "^    ^  ^  xftn  dum   m  conim 

«  en  la  vacante  de  su  antecessor,  mando  que  de  7  en  7  anos  la  mi-  administrationem 

«  tad  del  Gran  Consejo  fuesse  al  monte  de  Amara  a  estar  en  resi-  '"^^^*" 

«  dencia  de  su  govierno  y  administracion  de  justi^a,  lo  qual  se  guarda 

«  el  dia  de  oy  en  la  forma  y  manera  que  se  dira.  Estando  el  Em- 

«  perador  con  todos  los  del  Consejo  en  una  sala,  manda  los  1 5  de- 

«  Uos  ir  al  monte  de   Amara  con  uno  de  los   primogenitos  de  los 

«  Reyes  que  le  sirven  en  compania  de  mil  cavalleros  de  su  guarda. 


l8o  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  y  al  punto  que  se  despiden  del  Emperador,  se  ponen  en  camino, 
«  yendo  delante  dellos  un  cavallero  con  su  estandarte  de  tafetan 
«  amarillo  y  en  el  las  armas  del  imperio.  Llegando  al  monte  (donde 
«  son  recibidos  de  los  Abades  militares),  los  consejeros  se  apean 
«  de  sus  cavallos  y  quedandose  en  el  suyo  el  primogenito  dice  estas 
«  palavrgis  a  los  Abades :  Sefiores,  yo  os  entrego  los  1 5  del  Gran 
«  Consejo  que  aqui  estan  por  orden  y  mandado  del  Emperador  el 
«  mayor  Rey  sobre  todos  los  Reyes  abissinos,  Emperador  de  la 
«  Ethiopia,  siempre  David  mi  senor.  Y  en  diciendo  esto,  da  la  buelta 
«  a  la  corte  donde  refiere  al  Emperador  el  discurso  de  su  camino. 
«  Luego  el  Emperador  lo  hace  saber  a  todas  las  ciudades  del  im- 
«  perio  por  medio  de  sus  procuradores,  *que  de  continuo  residen  f.  77 
«  en  la  corte,  para  que  qualquiera  que  se  sintiere  agraviado  de  los 
«  tales  consejeros,  manifieste  su  agravio  y  pida  satisfacion  del,  para 
«  que  le  sea  hecha  justicia.  Llegado  este  mandato  a  las  ciudades, 
«  los  nobles  dellas  con  parte  de  su  clero  se  juntan  y  lo  hacen  pre- 
«  gonar  publicamentc,  mandando  que  los  que  ubieren  recibido  algun 
«  ag^avio  lo  escrivan  en  un  memorial  con  su  nombre  y  el  del  con- 
«  sejero,  de  quem  se  tiene  por  agraviado,  y  la  ocasion  y  el  tiempo 
«  en  que  sucedio ;  lo  qual  ellos  hacen  y  echando  los  papeles  de  sus 
«  quexas  en  una  arca  bien  cerrada,  que  esta  puesta  en  publica  pla^a 
«  por  espacio  de  8  dias  continuos,  con  una  boca  angosta  a  modo  de 
«  cepo,  por  donde  pueden  entrar  los  papeles  y  memoriales,  pero  en 
«  ninguna  manera  se  pueden  sacar.  Passados  los  ocho  dias  seiiala- 
«  dos,  cada  ciudad  embia  su  arca,  assi,  como  esta  sin  abrilla  (por- 
«  que  solo  el  Emperador  tiene  la  llave)  a  la  corte  con  buena  guar- 
«  dia  de  soldados  y  por  guia  va  un  ciudadano  que  lleva  un  estan- 
«  darte  tendido  con  las  armas  de  aquella  ciudad.  Llegando  a  la 
«  corte  van  camino  derecho  a  palacio,  y  el  Emperador  da  una  Uave 
«  a  su  camarero  (que  es  el  que  mas  le  ha  servido  de  los  primoge- 
«  nitos),  mandandole  abra  con  ella  una  sala  grande,  donde  se  ponen 
«  estas  caxas  y  metiendola  el  cavallero  en  ella,  da  licencia  a  los 
«  soldados  y  gente  que  la  traen  para  volverse  a  su  ciudad ;  y  este 
«  estilo  y  modo  de  proceder  se  guarda  con  todas  las  arcas  que  traen 
«  las  ciudades. 

«  Despues  de  recogidas  todas  las  arcas  en  la  sala,  quando  al 
«  Emperador  le  parece,  entra  en  ella  acompanhado  de  todos  los 
«  primogenitos  de  los  Reyes  sus  vassallos  y  de  otros  20  cavalleros 
«  de  su  casa,  y  mandando  abrir  las  dichas  arcas,  se  sacan  los  pa- 


LIVRO   I,    CAPITULO   XVII.  l8l 

«  peles  y  puniendo  los  de  cada  ciudad  de  por  si,  hacen  dellos 
<  un  libro  y  volumen  y  en  cima  del  escriven  el  nombre  de  la  ciu- 
«  dad  que  lo  embio,  y  juntos  los  de  todas  ellas,  se  meten  en  otra 
«  caxa  grande,  la  qual  embia  con  el  embaxador  del  gran  Abad  de 
«  la  orden  militar  de  s.  Antonio,  que  llamamos  Gran  Maestre,  en 
«  compania  de  trecientos  de  cavallo,  a  los  sacerdotes  de  Saba,  que 
«  han  de  ser  los  jueces,  en  una  litera  cubierta  de  raso  negro.  Quando 
«  llega  a  la  ciudad,  la  salen  a  recebir  con  mucha  pompa  y  la  po- 
«  nen  con  buena  gnardia  en  el  Consistorio,  que  es  el  lugar  donde 
«  se  junla  la  noble^a,  y  el  embaxador  se  buelve  a  la  corte  con  toda 
«  su  compania.  Luego  los  sacerdotes  de  Saba  salen  fuera  de  la  igle- 
«  sia,  donde  estan,  bien  acompanados,  cubiertas  las  caras  segun  la 
«  costumbre  de  los  sacerdotes  abissinos  y  Uegando  al  consistorio, 
f.  77.V  «  se  sientan  a  una  mesa  redonda  y,  echada  la  demas  *gente  fuera, 
«  abren  la  caxa  y  sacan  todos  los  papeles  y,  leyendo  unq  por  uno 
«  los  agravios  alli  escritos,  los  sacerdotes  de  Saba  los  escriven  y 
«  embian  con  buen  recaudo  a  los  sacerdotes  y  nobles  de  la  ciudad 
«  donde  vino  la  demanda  o  quexa,  para  que,  hecha  informacion  del 
«  caso,  les  embien  relacion  del,  y  pareciendo  tener  el  consejero  algxma 
«  culpa,  los  sacerdotes  de  Saba  le  dan  dello  aviso,  para  que,  si  tienc 
«  descargo  contra  lo  que  le  imputan,  le  de  dentro  de  cierto  tiempo, 
«  en  el  qual  embia  a  dar  ra^on  de  si  con  un  cavallero  del  monte, 
«  y,  si  para  su  defensa  es  menester  provanga,  embian  al  mismo  ca- 
«  vallero  los  sacerdotes  para  que  se  haga  donde  fuere  menester,  y 
«  constandoles  estar  el  consejero  inocente  de  los  capitulos  puestos, 
«  mandan  a  los  sacerdotes  de  la  ciudad,  de  do  vinieron  las  quexas 
«  y  acusaciones,  hagan  luego  castigar  a  quien  las  embio  conforme 
«  a  la  gravedad  del  crimen,  segun  la  pena  del  talion  para  exemplo 
«  de  todos. 

«  Hecho  esto  y  lo  demas,  que  para  concluir  la  residencia  es 
«  necessario,  los  sacerdotes  de  Saba  encierran  los  cargos  y  descar- 
«  gos  de  los  consejeros  junto  con  su  sentencia  o  parecer  en  una 
«  caxa  de  cedro,  la  qual  embian  al  Emperador  con  los  sacerdotes 
«  que  nombran  por  comissarios  para  esto,  los  quales  la  llevan  a  la 
«  corte  y,  antes  de  llegar,  se  aloyan  baxo  de  pavellones,  y  al  punto 
«  el  Emperador  manda  un  primogcnito,  que  los  salga  a  recibir,  en 
«  compafiia  de  cien  cavalleros  de  su  guardia,  y  el  primogenito,  des- 
«  pues  de  los  aver  recibido  y  saludado  cortesemente,  los  acompana 
«  con  su  gente  liasta  Palacio,  yendo  ellos  cubiertas  las   caras  con 


l82  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  sus  velos  y  apeandose  de  sus  cavallos,  y  subidas  las  escaleras,  el 
«  Emperador  los  recibe  con  muchas  muestras  de  amor,  y  dandole 
«  los  Comissarios  la  arca,  la  manda  guardar  en  su  camara  y  les 
«  da  Hcencia  para  tornarse;  lo  que  hacen  en  la  misma  forma  que 
«  vinieron. 

«  Aviendo  visto  el  Emperador  el  parecer  de  los  sacerdotes  de 
«  Saba,  embia  una  carta  y  provision  al  mas  antiguo  de  los  Prin- 
«  cipes  del  imperio,  que  habitan  en  el  monte  de  Amara,  para  que 
«  haga  bolver  los  consejeros  a  sus  plagas  y,  si  algtmo  dellos  se 
«  escluye  por  la  carta,  es  visto  por  el  mismo  caso  ser  privado  del 
«  gran  consejo  para  siempre  sin  remission.  Esto  hecho,  se  buelven 
«  los  consejeros  a  la  corte  acompanados  del  cavallero  que  llevo  la 
«  carta  y  de  doce  mil  de  a  cavallo  de  la  guardia  del  Emperador, 
«  y  llegando  los  consejeros  cerca  de  la  ciudad  de  Zambra,  se  alo- 
«  jan  baxo  de  pavellones  y  tiendas  aquella  noche.  Al  otro  dia  de 
«  manana  los  bienen  a  acompanar  los  nobles  y  ciudadanos  de  la 
«  corte  con  mucha  fiesta  de  trompetas  y  otros  instrumentos  musicos. 
«  Con  esta  fiesta  y  aplauso  los  llevan  al  palacio,  donde  hallan  *al  f.  78. 
«  Emperador  sentado  en  un  alto  trono  de  doce  grados,  cubierto  de 
«  alhombras  y  tapetes  ricos,  vestido  con  magestad  imperial,  y  al  re- 
«  dedor  delle  todos  los  primogenitos  de  los  reyes  sus  vassallos  y, 
«  en  Uegando  los  consejeros  delante  del  Emperador,  levanta  una 
«  cruz  que  tiene  en  la  mano  por  cetro,  y  ellos  se  arrodillan  en  tierra 
«  arrimados  a  unos  banquillos  largos,  y  entretanto  el  embaxador  del 
«  gran  Abad  sube  en  un  pulpito  y  hablando  con  el  Emperadorle 
«  dice :  Veys  aqui,  senor,  los  que  para  beneficio  de  vuestros  pue- 
«  blos  subditos  os  aconsejan,  y  aviendo  estado  en  el  monte  de  Amara 
*  por  vuestro  mandado  en  residencia,  no  se  ha  hallado  contra  ellos 
«  cosa  alguna;  aora  con  orden  vuestro  han  buelto  a  vuestro  Gran 
«  Consejo  para  serviros  en  el  como  solian.  Entonces  todos  los  cir- 
«  cunstantes  a  una  dan  voces,  diciendo:  Viva  el  Emperador  que  con- 
«  serva  las  constituciones  de  su  imperio  a  gloria  de  Dios  y  de  los 
«  principes  de  los  Apostoles,  con  observancia  de  las  leyes  institui- 
«  das  por  Juan  el  Santo  y  por  Philipe  7.  A  todos  los  quales  el 
«  Emperador  con  rostro  alegre  y  risueno  da  muestras  de  condecen- 
«  der  con  lo  que  dicen  y  que  recibe  contento  del  que  sus  pueblos 
«  han  mostrado,  y  con  esto  se  da  fin  a  la  residencia  ». 
a.  Confutantur  Ate  aqui  sam  palavras  do  Author,  em  que,  tirado  o  que  diz  no 

prac  icta.    zponitur  pj.jj^^jpJQ  (jg^g  peitas  (que  ainda  isso  encarece  demasiadamente),  nam 


LIVRO  I,    CAPITULO    XVII.  183 

ha  cousa  nenhuma  que  diga  com  a  verdade  do  que  ca  passa  com  quomodo  in  Aethio- 

.      V         .   .  o  t_  j.     '  j.     '  '      pi*  agantur  recuraus 

que  eu  tenho  visto  em  18  annos  que  ha  que  entrei  em  este  impeno  ^^  -^  fructu. 
e  o  mais  deste  tempo  gastei  na  corte.  E  pera  mais  me  enteirar  das 
cousas,  as  preguntei  miudamente  ao  presidente  do  supremo  conselho 
e  a  outros  dous  seus  companheiros,  e  me  affirmaram  que  nenhum  dos 
que  estam  agora  em  este  e  em  os  demais  tribunaes  (com  alguns  se- 
rem  muyto  antiguos)  foram  ao  monte  de  Amhara,  pera  Ihe  toma- 
rem  residencia,  nem  ouviram  dicer  que  seus  antepassados  fossem 
la  nunca  pera  isso,  nem  avia  tal  estatuto,  nem  tempo  limitado 
pera  se  Ihes  tomar  residencia,  nem  se  Ihes  tomava  a  todos  em 
forma  de  residencia,  mas  que  todas  as  veces  que  alguma  pessoa 
se  queixava  de  hum  ou  de  mais  delles,  Ihe  dava  logo  o  Empe- 
rador  juiz  e  diante  delle  propunha  seus  agravos  e  facia  sua  de- 
manda.  e  o  juiz  dava  sua  senten^a,  e  se  algiima  das  partes  nam  se 
dava  por  satisfeita  e  queria  agravar,  vinham  a  seu  tribunal,  e  o 
juiz  referia  todo  o  discurso  da  demanda,  e  o  que  julgara,  e  as  par- 
tes,  que  estam  presentes  com  seus  procuradores,  acrecentam,  se  o 
i".  78,v.  juiz  se  esqueceo  de  alguma  cousa  *que  Ihes  releve  pera  sua  justi^a 
e  propoeni  de  novo  o  demais  que  Ihes  parece;  e  logo  os  Azages 
vam  ao  Emperador  e  Ihe  referem  tudo,  e  julgam  diante  delle  o  que 
a  cada  hum  Ihe  parece,  e  ultimamente  o  Emperador,  e  logo  se  pu- 
brica  e  executa  sua  senten^a. 

Se  o  Emperador  tem  ruim  informa^am  daquelle  Ouvidor,  con- 
tra  quem  Ihe  pedem  juiz,  nam  somente  o  da,  mas  alg^mas  veces, 
posto  que  raramente,  manda  lan^ar  pregam  nam  mais  que  na  ci- 
dade  ou  arrayal  onde  elle  esta,  que  todos  os  que  tiverem  agravo 
daquelle  Ouvidor,  o  demandem ;  e  assi  o  facem  os  que  querem,  e 
muytas  veces  o  acusam,  sem  se  dar  este  pregam,  de  que  tem  to- 
mado  peitas,  com  ter  o  Emperador  feito  por  escomunham  que  nam 
as  tomem.  Mas  casi  nunca  chegam  com  estas  demanda^  de  peitas 
a  que  julgue  o  Emperador,  porque  ainda  que  a  parte  possa  bem 
provar,  antes  disso  dessiste  ou  se  concerta  por  rogos  dos  outros  ou 
por  medo  de  nam  Ihe  vir  depois  a  cair  em  as  maos  em  alguma 
ocasiam.  E  pouco  tempo  ha  que  demandaram  a  hum  dos  do  su- 
premo  conselho  que  as  tinha  tomado,  e  nam  faltava  prova,  porque 
era  certo  que  tomava  muytas,  e  com  tudo  isso  nam  chegou  a  cousa 
a  que  o  juiz  do  Emperador  desse  sentenga.  Logo  isso  se  atabafou 
por  rogos  ou  por  algum  fato  que  daria  em  segredo. 

.    Em  a  mesma  forma  se  facem  as  demandas  aos  Ouvidores  dos 


} 


184  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Vissorreys,  que,  quando  algum  esta  agravado,  pede  juiz  ao  Vissor- 
rey  e  diante  de  quem  elle  da,  faz  sua  demanda  e  se  he  neces- 
sario  julga  tambem  o  Vissorrey ;  mas  se  a  parte  quer,  pode  agra- 
var  pera  o  Emperador ;  e  aqui  se  encerram  todos  os  misterios  que 
faz  frey  Luis  de  Urreta  na  residencia  dos  do  Gram  Conselho.  Nem 
ouve  nunca  em  Ethiopia  taes  emperadores  Joam  e  Philippe  7,  nem 
ainda  Philippe  i^,  como  me  affirmou  o  emperador  Seltan  Qagued  e 
se  vee  em  os  catalogos  dos  Emperadores,  que  pusimos  no  capitulo  5. 


CAPITULO    XVIII. 

Em  que  se  declara  se  ha  em  Ethiopia,  ou  ouve  Conselho 
Latino  pera  se  tratarem  os  negocios  tocantes  a  Europa. 


Muytas  e  varias  cousas  conta  frey  Luis  de  Urreta,  em  o  cap.  21,  i.  De  Consilio  La- 
de  seu  1°  livro,  sobre  o  Conselho  Latino,  que  affirma  aver  em  Ethio-  notitia^n  Aethiopia! 
pia  pera  os  negocios  que  se  offerecem  aos  que  de  Europa  em  ella 
residem ;  a  que  brevemente  puderamos  responder  que  todas  sam  fa- 
f.  79.  bulas  inventadas  por  *Joam  Balthesar  ou  imaginadas  por  quem  a  o 
Author  deo  a  informa<;am  (i);  mas  pera  que  milhor  se  entenda  o  que 
ouvermos  de  dicer,  referirei  primeiro  alguma  cousa  do  que  o  Au- 
thor  diz  do  Conselho  Latino,  que  o  demais  nam  vem  aqui  a  pro- 
posito. 

Diz  pois  no  cap,  21:«  Aviendo  escrito  el  orden  del  Gran  Con- 

(i)  Hic  in  ms.  Auctor  delevit  quae  sequuntur:  «  mas  porque  redundam  em  descre- 
dito  de  pessoas  muyto  graves  e  dignas  de  venera^am  como  sam  o  Christianissimo  ze- 
lador  do  augmento  da  sancta  Tgreja  Romana  el  Rey  de  Portugal  dom  Joam  o  3°,  o 
rev.mo  s.'  dom  Joam  Nunez  Barreto  patriarcha  de  Ethiopia,  o  padre  Bispo  Melchior 
Cameiro  e  outros  Padres  de  nossa  Companhia,  convem  que  as  declaremos  mais  em  par- 
ticular,  pera  que  se  manifeste  a  verdade  do  quc  passou  e  nam  fique  escurecida  diante 
dos  que  nam  advirtirem  que  cn  cousa  tan  grandc  nam  se  ouvera  de  dar  credito  a  in- 
fcrma^am  de  hum  homem  nam  conhecido  pera  se  imprimir  e  pubricar  ao  mundo  por 
verdadeira,  que  ainda  refirindo  eu  outras  cousas  que  diz  o  livro  de  muyto  menos  im- 
portancia,  se  maravilho  muyto  o  emperador  SeltAn  (J!agued  de  que  tam  facilmente  des- 
sem  credito  a  homem  que  nam  conheciam  pera  authenticar  suas  mentiras  imprimindo  ». 

C.  HeccARi.  Rer.  AeiA,  Scripi,  occ,  ttted,  —  II.  24 


1 


l86  HISTORTA   DE   ETHIOPIA 

«  sejo,  viene  a  proposito  tratar  del  otro  Consejo  menor,  que  tiene 
«  el  Emperador  em  su  corte,  Uamado  latino,  el  qual  fundo  Alexan- 
«  dro  3°,  porque  viendo  que  cada  dia,  despues  de  su  descubrimiento, 
«  acudian  muchas  naciones  y  mercaderes  de  tierra  latina  a  sus  esta- 
«  dos,  le  parecio  no  solo  util,  sino  cosa  muy  necessaria  al  buen 
«  govierno  hacer  y  fundar  un  consejo  latino  para  la  gente  latina, 
«  que  de  su  nombre  se  llamo  el  consejo  latino,  y  a  los  consejeros 
«  sefialo  grandes  estipendios  y  muy  pingues  salarios,  y  eligio  de 
«  cada  nacion  que  acudia  al  imperio  dos  personas  de  ciencia  y  con- 
«  ciencia  experimentados  y  temerosos  de  Dios,  que  fueron  dos  Ve- 
«  necianos,  dos  Florentines  y  dos  Portugueses.  Los  Venecianos  y 
«  Fiorentines  vienen  los  mas  por  el  Cairo,  y  los  Portugueses  de  Goa 
«  y  algunos  de  Portugal.  Destos  seis  consejeros  consta  el  Consejo 
«  Latino,  que  sirve  de  informar  al  Emperador  de  las  cosas  de  Eu- 
«  ropa,  en  especial  llegando  algunos  destas  partes  a  contratar  o  a 
«  ver  el  imperio  con  cartas  de  algunos  Principes  u  de  los  mismos 
«  Abissinos  que  havitan  en  Roma.  En  tal  caso  uno  u  dos  de  los 
«  consejeros,  a  quien  por  el  consejo  se  comete,  van  al  Emperador 
«  a  darle  cuenta  por  menudo,  no  solo  del  fin  y  motivo  que  el  fo- 
«  rastero  tubo  para  entrar  en  el  imperio,  sino  tambien  de  su  tierra,  f.  79,%-. 
«  calidad  *y  condicion ;  porque  segun  la  relacion  deste  consejo  trata 
«  el  Emperador  a  los  forasteros  y  a  veces  los  acaricia  y  regala,  si 
«  lo  requiere  su  calidad.  Tiene  tambien  a  su  cargo  este  Consejo  el 
«  interpretar  las  cartas  que  van  al  Emperador  de  tierra  latina  y 
«  responder  a  ellas  en  la  lengua  que  fuere  menester.  Este  consejo 
«  se  hi^o  a  instancia  y  persuasion  del  muy  R.*^°  padre  Andres  de 
«  Oviedo  religioso  de  la  Compania  de  Jesus,  que  por  ser  tan  docto 
«  y  exemplar,  fue  embiado  de  la  Sede  Apostolica  con  titulo  de  Pa- 
«  triarcha,  y  en  esta  dignidad  vivio  muchos  anos  con  mucho  exem- 
«  plo  y  provecho  espiritual  de  los  Abissinos,  y  el  Preste  Juan  le 
«  honrro  muchissimo  y  le  dio  el  cargo  de  presidente  deste  coti- 
«  sejo;  el  qual  exercito  el  buen  padre  con  tanta  satisfacion,  con- 
«  tento  y  aplauso  de  los  Abissinos  qual  ellos  pudieran  dessear  >. 
Ate  aqui  sam  palauras  de  frey  Luis;  mas  nenhuma  cousa  ha  nel- 
las  que  diga  com  a  verdade ;  porque  primeiramente  ninguem  sabe  dar 
re^am  de  tal  Alexandre  3^,  nem  nos  catalogos  dos  Emperadores, 
que  pusimos  uo  cap.  5,  ha  mais  que  hum  Alexandre,  a  quem  elles 
chamam  Escander,  e  este  foi  muyto  antes  que  os  Portugueses  de- 
scubrisem  Ethiopia,  porque,  como  dissemos  no  cap.   16.  o  primeiro 


LIVRO  I,   eAPITULO  XVIII.  187 

Portugues,  que  descubrio  Ethiopia  e  entrou  em  ella,  foi  Pero  de 
Covilham,  que  partio  de  Portugal  a  7  de  mayo  de  1487,  e  o  em- 
perador  Alexandre  ja  era  morto  no  anno  de  1475;  e  falando  o  Au- 
thor  deste  mesmo  Alexandre  3°  pag.  118  e  139,  diz  que  morreo  o 
anno  de  1606,  e  eu  entrei  em  Ethiopia  em  mayo  de  1603  ^  n^tm 
achei  tal  Alexandre,  senam  Jacob  filho  do  emperador  Malac  Qa- 
gued,  que  avia  7  annos  que  morera,  tendo  reinado  33 ;  nem  depois 
pera  ca  ouve  quem  se  chamase  Alexandre,  e  dado  que  ouvera  tal 
Alexandre  3°,  o  que  aqui  diz  delle  que  fundou  o  Conselho  Latino 
a  instancia  do  padre  patriarcha  Andre  de  Oviedo,  e  que  a  elle  deo 
o  cargo  de  presidente  deste  Conselho  Latino,  nam  concerta  com  o 
que  diz  adiante  pag.  616,  que  o  emperador  Mena  (que  nam  se  cha- 
mava  se  nam  Minas)  escreveo  ao  papa  Pio  V  que  o  padre  Andre 
de  Oviedo  era  presidente  do  Conselho  Latino  e  que  o  reverencia- 
vam  como  a  Santo,  porque  logo  na  pag.  617  affirma  que  Alexan- 
dre  3°  sucedeo  a  Mena,  e  assi  he  muyto  clara  contradigam ;  porque, 
se  Alexandre  3°  fundou  o  Conselho  Latino,  como  Mena,  que  foi 
antes  delle,  escreveo  a  Pio  V  que  o  padre  patriarcha  Andre  de 
Oviedo  era  presidente  do  Conselho  Latino,  que  ainda  nam  era  feito  [?]. 
f.  80.  *Outras  muytas  veces  se  contradiz  o  Author  falando  deste  Alexan- 
dre  3°,  como  mostramos  no  capitulo  i ,  que,  se  elle  as  advirtira,  ba- 
stara  pera  nam  dar  credito  a  as  informagoes  de  Joam  Balthesar, 
por  mais  que  affirmara  que  eram  papeis  autenticos,  como  diz  pa- 
gina  211. 

Mas,  deixando  a  parte  as  contradigoes  e  a  Alexandre  3*^,  he  cousa 
muyto  certa  que  nem  ha,  nem  ouve  nunca  em  Ethiopia  Conselho 
Latino,  e  assi  o  affirma  hum  veneceano  que  se  chama  Joam  An- 
tonio,  que  diz  ha  32  annos  que  ca  entrou,  e  o  capitam  dos  Portu- 
giieses  pcr  nome  Joam  Gabriel,  homem  de  66  annos,  que  de  menino 
se  criou  com  o  padre  patriarcha  Andre  de  Oviedo,  diz  que  nunca 
vio,  nem  ouvio  que  em  Ethiopia  ouvese  tal  conselho.  O  mesmo  te- 
stificam  muytos  homens  velhos  filhos  de  Portugueses,  que  tambem 
se  criaram  na  casa  do  padre  Patriarcha,  e  outros  desta  terra  a  quem 
preg^ntei;  e  quanto  do  anno  de  603  a  esta  parte,  eu  sou  testimu- 
nha  de  vista  que  nam  ha  tal  cousa;  e  toda  via  o  Author  affirma 
pag.  210  que  perseverava,  quando  elle  escrivia,  que  seria  pollos 
annos  de  608.  Por  onde  tudo  quanto  diz  do  Conselho  Latino  he 
falso,  e  nam  menos  carecem  de  verdade  casi  todas  as  cousas  que 
logo  conta  sobre  a  missam,  que  ficeram   trece  Padres  da  Compa- 


|88  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

nhia  ii  Ethiopia,  tomando  ocasiam  do  que  tinha  dito  que  o  padre  Ao- 
dre  de  Oviedo  fora  presidente  do  Conselho  Latino,  pera  mostrar 
como  entrou  em  Ethiopia,  e  principalmente  pera  refutar  a  Nicolao 
Sandeiro,  ao  padre  Fero  Mafei  e  outros  padres  da  Companhia,  que 
escreverara  sobre  esta  materia ;  mas  quam  sem  re^am  o  fez  veremos 
no  livro  3",  onde  elle  tambem  trata  de  proposito  do  padre  patriar* 
cha  Andre  de  Oviedo. 


CAPITULO  XIX. 

Em  que  se  declara  se  o  Preste  Joam  visita  pessoalmente 

as  cidades  de  seu  imperio. 


Depois  de  aver  pintado  frey  Luis  de  Urreta,  no  cap.  22  de  seu  x.  Commento  Ur- 
1°  livro,  o  aparato  e  pompa  grande  com  que  diz  que  o  Preste  Joam  jj^nj  civitatum  Ae- 
vai  a  visitar  as  cidades  de  seu  imperio,   hum  anno   depois  que  se  t*i-opi*«  <v^^  a^  i*»- 

peratore  fiebat. 

coroa  em  Saba,  e  dalU  por  diante  de  7  em  7  annos,  continua  sua 
Historia  pag.  221  por  estas  palavras:  «  Llegado  el  Emperador  a  una 
«  ciudad,  se  aloja  en  su  pavellon  junto  a  ella  y  aviendo  descansado 
«  en  el  aquella  noche,  luego  a  la  mafiana,  vestido  de  habito  imperial, 
«  cavallero  en  un  elephante,  con  toda  la  magestad  y  grandega  (que 
«  para  ser  jurado  fue  a  Saba),  camina  a  la  ciudad,  en  la  qual  no  puede 
f.  8o,v.  c  estar  el  Rey  *ni  residir,  antes  le  obligan  a  que  se  vaya  luego  a  otra 
«  parte,  mientras  dura  la  visita,  y  al  entrar  el  Emperador  estan  a  la 
<  puerta  los  seis  Regidores  o  Jurados,  de  quien  depende  el  govierno 
«  de  la  ciudad,  aguardando  con  ropones  de  damasco  negro,  y  un  ca- 
«  vallero  con  un  estandarte,  en  que  Ueva  las  armas  de  la  ciudad,  y 
«  assi  mismo  todos  los  sacerdotes,  entre  los  quales  esta  uno  con  un 
«  missal  en  la  mano,  y  el  Corregidor  de  la  ciudad  con  una  vara 
«  corta  y  una  beca  negra  como  de  collegial  en  los  hombros,  salvo 
«  que  esta  se  echa  al  cuello  y  cae  por  delante  a  manera  de  estola, 
«  con  unas  borlas  de  oro  por  remate  y  las  armas  del  Emperador,  el 


igo  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

«  qual  se  apea  del  elephante  y,  puniendo  la  mano  en  el  missal,  jura 
€  de  guardar  las  constituciones  del  Concilio  Florentino  y  de  toda  la 
«  Sede  Apostolica  con  las  de  Juan  el  Santo  y  Phelippe  7**.  Hecho 
€  esto,  los  sacerdotes  llegan  a  hacerle  reverencia,  de  dos  en  dos, 
«  y  tras  ellos  el  Corregidor  y  Regidores,  los  quales,  aviendole  ju- 
«  rado  obediencia,  prometen  de  darle  cada  tres  hijos  el  uno  para 
«  defensa  del  imperio,  como  diremos  en  su  lugar.  Luego  entra  el 
«  Emperador  en  la  ciudad  a  pie,  acompaiiado  solamente  de  los 
«  42  hijos  de  Reyes  y  de  los  quince  de  su  Gran  Consejo,  del  em- 
«  baxador  del  gran  Abad  y  de  algunos  cavalleros  de  tierra  latina. 
«  Con  este  acompanamiento  va  a  visitar  las  cuatro  parrochias  y  la 
«  abadia  de  s.  Antonio  y  despues  al  consistorio  de  la  noble^a, 
«  donde  les  hace  un  ra<;onamiento  acerca  de  la  observancia  de  los 
«  estatutos  del  imperio,  en  que  concluye  con  oflFrecer  su  remedio 
«  y  patrocinio  imperial  para  todo  lo  necessario,  como  en  efecto  le 
«  pone  en  las  cosas  que  le  parece  conveniente.  Despues  desto  se 
«  Uega  al  monasterio  de  las  doncellas  (que  tiene  cada  ciudad  uno), 
«  donde  las  provee  con  mucha  charidad  de  lo  que  les  falta,  y  lo 
«  mismo  hace  en  los  seminarios  de  la  juventud,  de  que  diremos 
«  luego ;  y  si  en  el  de  las  doncellas  se  halla  alguma  pera  casar,  le 
«  da  licencia  para  ello,  que  de  otra  manera  no  pudera,  sin  perju- 
«  dicar  la  costumbre  que  ay  de  que  ningun  hijo  de  Rey  pueda  ca- 
«  sarse  sin  licencia  del  Emperador,  ni  el  noble  sin  la  del  Rey,  el 
«  ciudadano  sin  la  delos  nobles,  ni  el  plebeyo  sin  la  de  los  ciuda- 
«  danos,  salvo  en  caso  que  el  Emperador  la  de,  como  decimos ;  el 
«  qual  prosigue  la  visita  de  las  demas  ciudades  de  le  manera  que 
«  hemos  dicho  :». 
a.  Quam  longe  sit  Ate  aqui  sam  palavras  do  Author,  em  que  casi  nam  ha  cousa 

hoc  a  vero  demon-  •      r  ,     1  j      j 

stratur  ct  ex  veteri  V^^  ^^^  ^^J^  labula;  porque,  comeQando  do  que  se  usava  antigua- 
consuetudine  Impe-  mente,  os  Emperadores  estavam  tam   longe  de  *visitar  as  cidades  f  81, 

ratorum    et    ex    ns 

quae   recenter   ipse  de  seu  imperio,  que  nem  se  deixavam  ver  ainda  dentro  de  seu  pa^o, 

Auctor  oculis  usur-  •■  n  j 

•^  senam  de  suas  molheres  e  de  30  escravos  piquenos,  que  o  serviam, 

e  tres  homens  grandes,  que  governavam  o  imperio;  e  se  algum 
outro  avia  de  falar  com  elles,  ainda  que  fosse  jenrro  ou  cunhado, 
avia  de  entrar  de  noite  e,  tiradas  todas  as  candeas,  falava  sem  ver 
nada  mais  que  ouvir  a  voz  do  Emperador,  e  ainda  isto  se  tinha 
por  muyto  grande  merce,  porque  raramente  se  concedia,  como  dis- 
semos  no  cap.  4 ;  mas  quando  aviam  de  dar  sentenga  sobre  alguma 
cousa  grande,  entravam  juntamente  com  aquelles  tres  que  goveravam 


LIVRO  I,  CAPITULO   XIX.  191 

o  presidente  dos  Azages  e  seis  dos  mais  principaes,  como  decla- 
ramos  no  cap.  16.  Nem  depois  que  deixaram  aquella  supersti^am, 
se  usou  tal  modo  de  visita,  como  todos  affirmam ;  e  quanto  do  anno 
de  603  a  esta  parte,  eu  sou  testemunha  de  vista,  que  casi  sempre 
andei  na  corte,  e  nunca  o  Emperador  fez  tal  cousa.  Nem  ha  cida- 
des  da  maneira  que  frey  Luis  cuida:  so,  onde  estam  os  Vissorreys 
e  algum  governador  de  assento,  sam  povoagoes  grandes;  e  quando 
delles  ou  de  seus  ouvidores  ha  alguns  agravos,  se  querem  pedir 
juiz  ao  Emperador,  o  da  logo  pera  que  va  la  a  facer  justi^a,  e  se 
as  cousas  sam  grandes  e  Ihes  parece  que  padecera  detrimento  sua 
justiga  facendose  la,  procuram  que  o  Emperador  mande  vir  o  cul- 
pado,  ou  esperam  que  elle  venha  a  corte,  que  ainda  os  Vissorreys, 
que  nam  estam  muyto  longe,  vem  algumas  veces,  e  entam  os  de- 
mandam  diante  dos  desembargadores  do  Emperador,  a  quem  de- 
pois  dam  conta  de  tudo  pera  elle  julgar. 

Quanto  ao  que  diz  que  o  Emperador  vai  a  cidade  em  hum  ele- 
phante,  nam  somente  nam  sove  nelle,  mas  nem  se  vio  nunca  manso 
em  Ethiopia,  posto  que  aja  muytos  bravos,  e  ainda  que  o  Empe- 
rador  fora  a  visitar  as  cidades,  mal  Ihe  aviam  de  dar  juramento 
na  entrada  sobre  o  missal  que  guardase  as  constitui^oes  do  Con- 
cilio  Florentino  e  de  toda  a  Sede  Apostolica  com  as  de  Joam  o 
Santo  e  Phelippe  7°,  pois  elles  nam  obedecem  a  Igreja  Romana, 
como  ja  temos  dito  e  veremos  no  2°  livro  cumpridamente;  nem  ouve 
nunca  em  Ethiopia  emperador  que  se  chamase  Joam,  nem  Philippe  7°, 
nem  costume  de  dar  ao  Emperador  de  cada  tres  filhos  hum  pera 
defensam  do  imperio,  que,  quando  he  necessario,  todos  vam  a  guerra, 
excepto  os  velhos  que  lavram  a  terra.  Nem  ha  taes  40  filhos  de 
Reys  que  acompanhem  ao  Emperador,  nem  embaixador  do  gram 
f.  8i,v.  *Abad,  nem  menos  ha  mosteiro  de  doncellas  em  todo  o  imperio, 
quanto  mais  hum  em  cada  cidade.  Nem  he  necessario  licen^a  do  Em- 
perador  (que  Reys  nam  os  ha,  como  ja  dissemos)  pera  que  as  don- 
cellas  nobres  casem,  nem  licenga  dos  nobres  pera  os  citadoes  e  de- 
stes  pera  os  plebeyos,  porque,  sem  nada  disso,  casa  cada  hum  quando 
quer  e  com  quem  milhor  pode. 

Ha  porem  hum  costume  que,  se  o  mancebo  ou  a  doncella,  que  3«  Quomodo  im- 
ha  de  casar,  he  parente  do  Emperador,  Ihe  da  parte  disso,  nam  quibus  donia  cumu- 
porque  Ihe  seia  necessaria  licenca,  que  sem  ella  pode  casar,  se  qui-  ^®*   cognatos    suos 

'       ^  "^  ^  nuptias      contractu- 

ser,  senam  pera  que  Ihe  faga  certas  honrras,   que  sam  ir  ao  pa^o  ros. 
a  tarde  antes  da  boda,  quando  come^a  a  anoitecer,  se  he  mancebo 


192  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

acompanhado  dos  principaes  senhores  da  Corte,  e  se  he  doncella, 
de  senhoras,  debaxo  de  hum  panno  de  seda,  ou  quando  menos  de 
algodam  com  varias  pinturas,  que  Ihe  vem  da  India  e  levamo  pol- 
los  cantos  cuatro  doncellas  a  modo  de  dosel,  mas  he  muyto  mais 
cumprido  que  largo ;  e  assi  outras  doncellas  vam  perto  da  senhora 
alevantando  com  as  maos  o  panno,  pera  que  nam  Ihe  toque  na  ca- 
be^a,  e  cae  tanto  poUas  ilhargas  e  por  detras,  que  nem  as  que  o 
levam  pollos  cantos  se  veem  de  fora,  senam  muyto  pouco;  e  isto 
usam  todas  e  so  as  parentas  do  Emperador,  quando  vam  de  huma 
casa  a  outra  a  pe,  que  a  mula  nam  o  levam.  E  em  chegando  o  man- 
cebo  ou  doncella  ao  Emperador,  Ihe  beixa  a  mao,  e  logo  o  manda 
entrar  em  outra  camara  e  vestir  muyto  ricos  vestidos,  que  Ihe  tem 
aparelhado,  e  saindo  torna  a  beixar  a  mao  ao  Emperador,  e  elle 
com  boas  palavras  Ihe  da  bengam  e  o  despede,  e  saem  com  elle 
muytos  pagens  do  Emperador  com  tochas,  e  diante  vam  tangendo 
com  seus  atabales  e  cheremelas,  e  assi  o  levam  ate  sua  casa,  onde 
se  come^am  as  festas  das  bodas  com  muytas  musicas  e  balhos  que 
duram  por  muytos  dias. 


I 


CAPITULO  XX. 

Em  que  se  trata  das  cidades  de  Ethiopia  e  edificios,  de 
seu  govemo^  distincam  de  moradores  e  trajos. 


Em  Ethiopia  nam  ha  cidades  mais  que  a  corte  do  Emperador      i-  Nullae  in  Ae- 
e  onde  estam  de  asento  os  Vissorreys  ou  algnm  Governador  grande  ma  casarum  'et  tcn- 

e  ainda  a  alcfumas   destas  puderamos   chamar   villas,  e  quando  os  tfriof^iniagglomera- 

°  ^  ^  tio  circa  residentiaa 

Vissorreys  se  miidam  pera  outras  partes  (que  o  facem  muytas  ve-  Imperatoris  etVice- 

ces,  e  os  Emperadores  algumas),  ficam  aquellas  cidades  como  villas  frM^ntermutantlu" 
ou  aldeas  bem  piquenas,  que  dos  hedificios  Ihes  da  pouco,  por  se-  ^.libi  parvi  pagi  ex 

casis  miserrimis. 

rem  taes  quaes  logo  diremos.  As  demais  povoa^oes  sam  villas  de 
poucos  vecinhos,  e  aldeas  que  nam  passam  de  cinquenta  casas  e 
f.  82.  muytas  tem  menos,  porque  ordinariamente  se  juntan  alguns  *onde 
tem  suas  lavoras  e  alli  facem  suas  casinhas;  poUo  que,  deixando 
algumas  serras  e  desertos  que  nam  se  habitam,  o  demais  comum- 
mente  esta  cheio  destes  lugarinhos,  particularmente  agora ;  porque 
depois  que  huns  gentios,  que  chamam  Galas,  foram  entrando  poUas 
terras  e  tomando  muytos,  como  ja  dissemos  no  cap.  i,  a  gente  del- 
las  se  foi  retirando   pera  estotras  e  assi  estam  muyto  cheas. 

Os  edificios  sam  muyto  pobres,  como  ja  outras  veces  temos 
dito:  casinhas  de  pedra  e  barro,  ou  de  paos,  redondas,  terreas  e 
muyto  baixas,  cubertas  de  madeira  e  palha  cumprida,  e  algumas, 
que  sam  largas,  tem  huma  coluna  ou  esteo  de  pao  no  meio,  sobre 

C.  licccARi.  Ker.  Aeih,  Script,  occ,  iucd,    --  II.  2«; 


194  HISTORIA  DE   ETHIOPIA. 

qiie  se  sustenta  a  armagam  daquella  madeira.  Outras  sam  cumpridas 
com  esteos  depao  no  meio  em  fieira,  sobre  que  carrega  toda  a  ma- 
deira,  tambem  cubertas  de  palha  e  terreas,  a  quem  chamam  (^acala, 
e  em  estas  moravam  ordinariamente  os  Emperadores;  e  assi  quando 
deciam :  vai  ao  ^acala,  ou :  esta  no  ^acala,  era  como  decir :  vai  ao 
pago,  ou:  esta  no  pa^o;  ainda  que  nam  so  o  Emperador  usa  este 
modo  de  casas,  senam  os  senhores  e  todos  os  demais  que  querem. 
2.    Casae    omnes  Em  algumas   partes,   principalmente   onde  nam  chove   muyto, 

tantum      planopede    r  j^j  ji<i  j^i 

constnictae,  plerum-  fa^cem  casas  de  terrado,  nam  de  chunambo,  senam  de  terra  bem 
que   paleis,   alicubi  batida,  e  todas  eram  terreas,  que  de  muyto  tempoaesta  parte  ra- 

solano      contectae ; 

SeltAn  Sag4d  in  re-  ramente  se  facia  alguma  sobardada,  e  durava  pouco,  porque  nam 
fd*lacum°Dambrense  ^  sabiam  facer.  Mas  o  emperador  Seltan  Qagiied,  que  agora  vive, 
contignationem   su-  fez  em  huma  peneinsula  da  lagoa  de  Dambia,  a  que  elles  chamam 

perstnixit  cum  sola- 

rio  et  superius  cubi-  mar,  huns  pagos  fermosos  de  pedra  branca  muyto  bem  lavrada,  com 
culum  cum  fenestris  g^^g  aposentos  e  salas,  e  de  cima  tem  50  palmos  de  cumprido,  28 
Descriptio  eiusdem.   de  largo,  e  20  de  alto,  que  por  batir  alli  muyto  o  vento  no  inverno 

Quomodo  et  quonim  j        t_    •         ^       i_  1  ^  1  ^  •      o 

expensis  fiant  domus  ^  ^  ^^^  ^^  abaixo  tambem  ser  alta,  nam  a  alevantaram  mais.  So- 
enibematonim.  bre  a  porta  principal   tem  huma  varanda  grande  e  fermosa  e  nas 

ilhargas  duas  mais  piquenas  com  muyto  boa  vista.  A  madeira  casi 
toda  he  de  cedro  muyto  fermosa,  e  as  salas,  e  hum  aposento  do 
alto,  onde  dorme  o  Emperador,  com  muytas  pinturas  de  varias  co- 
res.  He  de  terrado  com  chunambo  e  o  parapeito  arroda  com  co- 
lunnas  de  pedra  muyto  fermosas,  e  sobre  seus  capiteis  bolas  gfran- 
des  da  mesma  pedra,  mas  em  as  colunnas  dos  4  cantos  bolas  de 
cobre  douradas  com  fermosos  remates.  Sobre  a  escada,  por  onde  se 
sobe  ao  terrado,  se  alevanta  outra  casa  piquena,  com  tres  janellas 
grandes,  que  Ihe  serve  de  mirador,  porque  de  mais  de  estar  a  casa 
situada  no  mais  alto  de  peneinsula,  que  he  grande,  tem  60  palmos 
de  alto  e  assi  toda  a  cidade,  *que  tambem  fez  nova,  Ihe  fica  de-  f.  82,v. 
baixo,  e  descobre  grandes  campos  e  casi  toda  a  lagoa,  que  tera 
algiimas  25  legoas  de  cumprido  e  quince  ou  mais  de  largo,  agoa 
doce  muyto  boa.  Esta  tambem  este  mirador  cuberto  de  terrado  com 
suas  colunnas  de  pedra  a  roda  como  as  de  abaixo,  e  em  os  4  can- 
tos  humas  bolas  de  cobre  douradas.  Outros  pa^os  pola  mesma  tra^a 
destes  fez  depois  hum  seu  irmSio,  que  se  chama  Eraz  Cela  Christos 
em  o  reyno  de  Gojam,  onde  elle  he  vissorrey,  mas  nam  tam  gran- 
des.  Estes  dous  edificios  sam  os  maiores  que  ha  no  imperio  (nam 
falando  de  igrejas) ;  todas  as  demais  casas  sam  ruins,  como  digo,  e  or- 
dinariamente  Ihes  facem  cerca  de  espinhos,  e  assi,  se  acerta  de  dar 


t- 


LIVRO   I,   CAPITULO  XX.  195 

fogo  na  cerca  ou  na  casa,  com  dificultad[e]  se  apaga  sem  se  acabar 
tudo.  Os  que  facem  de  terrado  algumas  veces  se  juntam  dez  ou  15 
e  edificam  huma  casa  pegada  com  outra  aroda  com  as  portas 
pera  dentro,  onde  deixam  campo  bastante  pera  suas  vacas  e  mais 
gado,  com  so  huma  porta  pera  a  rua,  que  fecham  de  noite,  e  assi 
ficam  segfuros  dos  animaes  bravos  e  de  fogo.  O  senhor  do  lugar 
poucas  veces  faz  casas  de  seu  fato,  porque  os  villoes  Ihas  facem 
a  sua  custa,  e  quando  o  Emperador  Ihe  tira  as  terras  e  as  da  a 
outro  (que  o  faz  muytas  veces),  se  os  villoes  ficeram  as  casas,  ficam 
pera  o  novo  senhor,  e  se  o  passado  as  tinha  feito  com  seu  fato, 
leva  a  madeira. 

O  governo  das  cidades  he  o  mesmo  que  pusimos  no  cap.  16,  3-  ii*  quolibetpa- 
tratando  dos  juices  do  Preste  Joam  e  dos  tribunaes  que  tem  em  ^1^^  iudiccs,  quorum 
sua  corte  e  os  dos    Vissorreys  dos   reynos  de  seu  imperio.   Afora  "?^®  vocatur  Leba- 

•^  -^  A  .      dJ™5   quaenam  smt 

estes  ha  em  cada  provincia  hum  juiz,  que  chamam  lebadim,  cujo  eomm  partes. 
officio  he  inquirir  dos  ladroes  daquella  terra  e  mandallos  pressos 
ao  Vissorrey  a  quem  ella  pertence,  ou  aos  ouvidores  da  corte  do 
Emperador,  com  pessoa  que  refera  as  culpas  que  delles  achou,  se 
elle  nam  pode  ir;  mas  em  certos  casos  acaba  elle.  Tambem  ha 
outro  juiz,  a  quem  levam  todas  as  cousas  perdidas,  de  que  nam  se 
sabe  dono,  como  escravos,  mulas  e  outros  gados,  e  se  o  que  o  acha 
nam  o  leva  dentro  de  tanto  tempo,  tem  pena;  e  o  juiz  o  guarda 
e  se  serve  delle  ate  que  acha  dono,  e  nam  o  pode  vender;  e  assi 
o  que  perdeo  alguma  cousa  destas,  facilmente  a  acha  na  casa  de- 
ste  juiz.  Em  cada  villa  e  aldea  ha  hum  juiz,  que  chamam  Xum, 
posto  poUo  senhor  da  terra,  e  porque  assi  isto,  como  no  modo  que 
tem  de  proceder  na  justi^a,  se  declaro  cumpridamente  no  mesmo 
cap.  16,  nam  sera  necessario  tornallo  a  repetiz.  ^ 

f.  83.  Tambem  a  distingam  dos  moradores  da  corte  he  a  mesma  *que      4-  Quonam  ordine 

.  .        j        ^       t  1     -r^  1  1        aediflcatae       fuerint 

guardam  em  o  asentar  das  tendas  no  campo  do  Emperador,  que  de-   domus  in  nova  urbe, 
claramos  no  fim  do  cap.   14,  e  assi,  querendo  elle  facer  a  cidade,  **"  Pf^fo  in  penin- 

^  sula    lacus   DambiA. 

qne  acima  disse,  em  a  peneinsula  da  lagoa  de  Dambia,  lan^ou  pre-  Solus  Auctor  privi- 
gam  que  certo  dia  fossem  todos  la  com  elle  e  armasem  suas  tendas  J^j^dUibi  *ocum  pro 
da   maneira  que  acostumavam  no  campo,   pera  que  soubese  cada  domo  aediacanda. 
hum  o  sitio  de  sua  casa,  sem  aver  diferengas;  mas  com  tudo  nam 
faltaram  sobre  quanta  largura  avia  de  ter  cada  hum  aroda  de  suas 
casas,  e  pera  que  meus  companheiros  e  eu  CvStivesemos  libres  disto, 
me  disse  que  fosse  primeiro  e  tomase  a  minha  vontade  onde   mi- 
Ihor  me  parecese ;  que  nam  foi  piqueno  previlegio,  assi  por  nam  se 


196  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

facer  nem  a  sua  mae,  como  por  terem  os  Portugueses  obriga^am 
de  asentar  a  mao  dereita,  e  pera  aquella  parte  acertou  de  ser  ruim 
sitio,  poUo  que  o  tomamos  muyto  bom  diante.  De  maneira  que  to- 
dos  tem  suas  moradas  conforme  a  sua  nobre^a  ou  officio,  mais  perto 
ou  mais  afastado  do  pa^o,  a  mao  dereita  ou  a  izquerda,  diante  ou 
detras ;  e  nam  somente  da  de  grac^a  o  Emperador  o  sitio  das  casas, 
mas  faz  que  aroda  da  cidade  fiquem  campos  sem  se  lavrar,  pera 
que  os  gados  comam.  Em  as  cidades  dos  Vissorreys  nam  ha  tanta 
ordem,  e  em  as  villas  e  aldeas  casi  nenhum,  posto  que  o  senhor 
da  terra  sinala  o  lugar  ao  que  ha  de  facer  casa  de  novo. 
5.  Puse  deacribun-  Acerca  dos  traxos,  antiguamente  eram  ruins,  porque  ainda  os 

tur  vestes  et  ornatus  t  ■*  j  j  ^  ^        « 

virorum     nobilium  senhores  grandes,  ao  menos  quando  andavam  na  corte  e  entravSo 
tempore  Auctoris.      no  pa^o,  nam  vestiam  camisa,  senam   hum   calpam  largo,  que   Ihe 

chegava  ate  perto  do  pe,  de  algodam  preto  ou  vermelho,  e  hum 
panno  cumprido  de  algodam  ou  de  seda  em  lugar  de  capa,  e  quando 
entravam  no  pa^o,  o  cingiam  na  cinta  de  maneira  que  Ihes  caia  ate 
perto  dos  pes  e  o  demais  do  corpo  ficava  num,  ou  quando  muyto 
huma  pelle  de  liam  sobre  os  hombros,  ou  de  outro  animal,  que 
chamam  Guecela,  de  cavello  preto  muyto  macio.  Mas  falando  do 
que  agora  usam  qs  senhores  grandes  e  gente  nobre,  he  hiima  ca- 
misa  branca  de  bafeta  fino  da  India  assi  como  olanda,  cumprida 
ate  perto  dos  pes,  com  coUarinho  alto  e  justo  com  botoes  de  tafeta 
carmesi  e  verde  entresachados,  e  algumas  veces  de  prata  ou  ouro, 
que  se  fecham  com  huns  cordoncinhos  de  retroz  das  mespias  cores, 
e  mangas  justa^  ate  a  mao,  mas  muyto  cumpridas;  e  assi  quando 
as  vestem,  facem  muytos  pregues  e  perecem  bem.  Esta  cingem  com 
huma  toca  da  India  de  bordas  de  fio  de  ouro  ou  vermelhas,  ou 
com  cinto  de  seda  com  muytas  pe^as  de  prata  douradas.  Sobre  esta 
camisa  vestem  algumas  veces  *outra  tambem  de  bofeta,  aberta  por  f.  83,v. 
diante  como  rapam  e  da  cumpridam  da  i*,  mas  sem  coUarinho  como 
cabaya  de  mouros,  e  as  mangas  largas  de  ponta  ate  o  covado  com 
botoes  como  os  outros,  mas  nam  se  fecham,  so  servem  de  fermo- 
sura.  Outras  veces  poem  cabayas  do  mesmo  corte  de  damasco,  se- 
tim,  veludo,  borcado,  de  panno  muyto  fino,  de  todas  as  cores,  que 
vem  do  Cairo.  Algumas  veces  estas  cabayas  tem  as  mangas  estrei- 
tas  e  muyto  cumpridas  e  entam  nam  as  vestem,  mas  tiram  os  bracos 
por  aberturas  que  tem  como  ropam.  Alguns  tracem  cal^oes  largos  ate 
mais  de  meia  perna  de  bretangil  vermelho.  O  mais  ordinario  hecal^oes 
estreitos,  que  chegam  ate  o  pe,  onde  se  fecham  com  botoes ;  e  muy- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XX.  197 

tas  veces  o  que  delles  aparece  he  de  damasco,  velludo  ou  borcado 
e  entam  os  botoes  sam  de  ouro  ou  prata.  Tracem  ^apatos  verme- 
Ihos  ou  de  outras  cores  e  algumas  veces  de  veludo;  mas  botas  e 
bor^eguis  nam  usam. 

Poem  ao  collo  cadeas  de  ouro  de  muytas  voltas,  que  Ihes  chega 
perto  da  cinta  e  della  pende  huma  cruz  da  maneira  das  que  tra- 
cem  os  comendadores  de  s.  Joam,  e  ordinariamente  pesa  cem  cru- 
gados  a  cruz  so,  que  as  cadeas  commummente  sam  de  400.  Algu- 
mas  tem  a  cima  certo  remate  de  ouro  de  onde  as  mesmas  voltas 
da  cadea  decem  tambem  pollas  costas  outro  tanto  como  por  diante, 
e  nas  pontas  estam  enga^adas  humas  como  campainhas  cumpridas. 

Os  que  nam  podem  tracer  cadeas,  poem  cruces  de  ouro  ou  de 
prata  esmaltada,  ou  de  pao  preto  com  muytas  lavores,  de  meio  palmo 
ou  menos,  penduradas  de  muytos  cordoes  de  retroz  delgados  e  co- 
mummente  preto.  Tracem  punhaes  grandes  na  cinta  com  o  punho  e 
vainha  de  prata  dourada  e  em  alguns  pedras  engastadas,  que,  ainda 
que  falsas,  sam  lustrosas.  Este  emperador  Seltan  Qagued  come<;ou 
a  usar  [g]abanos  como  os  de  Espanha,  mas  de  pois  os  deixou,  por 
causa  da  calma. 

Em  a  cabe^a  tracem  algnns  tocas  como  mouros,  outros  bar- 
retes  redondos  proporcionadamente  altos,  de  panno  vermelho  e  de 
outras  cores,  e  quando  caminham,  poem  chapeos  como  os  nossos, 
mas  nam  tam  finos,  e  albornoces  ou  ferreruelos  como  Portugueses, 
que  delles  os  tomaram.  Outros  tracem  cavello  cumprido,  de  aue  facem 
muytas  invengoes  torcendoo  de  maneira  que  fica  a  cabe^a  cheia 
de  muytos  como  cordoncinhos  e  nam  Ihes  passam  das  orelhas  ;  ou 
tros  os  encrespam  de  muytas  maneiras  e  ordinariamente  os  tracem 
f.  84.  untados  com  *mantega.  Os  meninos  tracem  topete  bem  cumprido  e- 
chega  de  huma  orelha  a  outra  e  mais  acima  rapam  com  navalha 
ate  perto  do  alto  da  cabe^a  de  onde  Ihes  saem  tres  trencas  de  ca- 
vellos  cumpridos,  que  caem  pera  atras  e  no  tortigo  [sic]  tam  bem 
Ihes  fica  hum  pouco  de  cavello,  que  Ihes  da  graga. 

As  molheres,  particularmente  senhoras,  tambem  tracem  topete       6.  Dc  yestibus  et 

-        omaxncntis     mulie- 

muyto  alto  e  as  doncellas  poem  mais  acima  huma  guirnalda  de  flo-   nim  nobilium,  sivc 
recinhas  de  ouro  com  muyta  argenteria,  e  dos  demais  cavellos  fa-  ^rginum,  sive  nup- 

tarum. 

cem  muytas  trancas  delgadas,  que  caem  pera  as  costas  e  ornam 
com  outras  pegas  de  ouro.  As  casadas  raramente  poem  ouro  em 
os  cavellos,  mas  perto  do  topete  rapam  com  navalha  largura  de  hum 
dedo  e  dalli  comegam  as  trancas  dos  cavellos ;  e  quanto  mais  pre- 


igS  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

tos  mais  folgam,  e  assi  tem  certa  confei^am  de  aceite  que  os  faz 
muyto.  Nam  usam  de  posturas  de  alvayalde  e  vermelham,  ainda 
que  algumas  sam  casi  tam  alvas  como  portuguesas,  senam  de  certos 
licores  cheirosos  com  que  Ihes  fica  o  rosto  muy  lustroso. 

Seu  vestido  he  huma  camisa  muyto  larga  e  cumprida  ate  os 
pes  e  por  detras  arrasta  hum  peda^o ;  as  mangas  largas,  mas  perto 
da  mao  estreitas,  e  a  avertura  do  coUo  cumprida,  pera  que  sem 
danar  os  cavellos  a  possam  vestir;  com  tudo  Ihes  cobre  os  hom- 
bros;  e  tem  muytas  lavores  aroda  de  retroz  ou  fio  de  ouro.  Em  as 
festas  tracem  de  damasco  carmesi  ou  de  outras  sedas,  e  nos  demais 
dias  de  hum  panno  branco  de  algodam  fino  como  olanda,  que  vem 
da  India.  Esta  camisa  cingem  com  alguma  touca  fina  ou  veo  de 
seda,  e  algumas  veces  poem  sobre  ella  outra  como  basquinha  com 
muytos  pregues  na  cinta,  mas  nam  branca  senam  de  outras  cores. 
Tracem  calcpoes  estreitos,  que  chegam  ate  o  pe  e  gapatos.  Sobre  tudo, 
em  lugar  de  manto,  cobrem  hum  panno  grande,  humas  veces  branco 
como  o  da  camisa,  outras  de  seda  com  franjas  de  fio  de  ouro  aroda. 
Em  o  pescogo  poem  collares  de  ouro  muyto  fermosos,  outras  veces 
de  continhas  de  vidro,  entresachados  nella  canutilhos  de  ouro.  Em 
as  orelhas  cjarcilhos  de  ouro  ou  de  prata  grandes  com  humas  pe^as 
airadas  [sic]  do  mesmo  esmaltadas  em  lugar  de  perolas,  se  he  don- 
cella,  e  as  mais  das  casadas  vam  alargando  aquelles  buracos  metendo 
poico  [sic]  e  pouco  cousas  mais  grossas  e  depois  poem  huns  canudos 
de  ouro  ou  prata  dourada  fechados  por  todas  partes  e  bem  guar- 
necidos,  e  as  de  menos  sorte  metem  hum  pedacinho  de  pao  preto 
cuberto  com  alguma  seda.  Quando  caminham  levam  sobre  tudo  *al-  f.  84,v. 
bornoces  com  muytos  botoes  de  ouro,  e  a  cabe^a  e  rosto  cuberto 
com  huma  toca  de  maneira  que  nam  aparecem  mas  que  os  olhos, 
e  encima  chapeo  como  de  Portugal  de  alguma  seda  e  do  veo  de- 
cem  sobre  os  hombros  humas  pontas  cumpridas. 
7.  Vestes    homi-  Os  homens,  que  nam  eram  nobres,  vestiam  antiguamente  so  hum 

num  et  mulienim  de  i  i        •■        i  i  i  « 

plebe.  panno  grosso  branco  de  algodam,  e  quando  muyto  punham  cal^oes 

brancos  do  mesmo  ate  meia  perna,  descalgos  e  a  cabe^a  descuberta, 
e  nam  podiam  por  outra  sorte  de  vestido  sem  licen^a  dos  que  go- 
vernavam  sua  terra.  Agora,  se  tem,  podem  vestir  nam  so  camisas 
brancas,  mas  cabayas  de  panno  e  de  seda,  e  por  toca  ou  barrete 
na  cabe^a ;  mas,  se  nam  estam  em  o  lugar  do  senhor  daquellas  ter- 
ras  e  vam  de  outra  parte  a  falar  com  elle,  a  primeira  vez  que  en- 
tram,  nam  podem  levar  cabayas  de  panno  nem  de  seda,  senam  so 


r 


LIVRO   I,   CAPITULO   XX.  199 

camisa  branca  ou  de  taficira,  ou  sem  ella;  e  cingem  na  cinta  o  panno 
que  levam  em  lugar  de  capa,  de  maneira  que  Ihes  cubra  ate  perto 
dos  pes,  e  dalli  por  diante  podem  vestir  o  que  acharem.  O  mesmo 
he  dos  senhores  grandes  pera  com  o  Emperador,  a  primeira  vez 
que  entram  a  elle,  quando  vem  de  outra  terra ;  mas  sempre  levam 
camisa  ordinariamente  de  taficira.  Os  villoes  que  lavram  a  terra 
ainda  agora  vestem  coiro  de  vaca,  que  concertam  a  modo  de  camu^a 
sem  calpam  nem  outra  cousa  nenhuma.  Alguns  tracem  hum  peda- 
cinho  de  panno  grosso  de  algodam  amarrado  na  cinta,  que  Ihes 
chega  ate  o  joelho,  ou  pouco  mais,  e  huma  pelle  de  carneiro  com 
sua  laa  as  costas,  amarrado  hum  pe  e  huma  mao  diante  do  peito ; 
mas  os  domingos  e  festas  vestem  pannos  grandes  de  algodam  os 
que  tem,  e  se  vistisem  camisas  e  pusesem  tocas  e  barretes,  nam 
teriam  pena  por  isso,  nem  Ihes  diriam  nada,  ainda  que  no  reyno 
de  Narea  (segundo  dicem)  ate  agora  se  guarda  o  custume  antiguo 
de  nam  poder  variar  o  trajo  sem  licen^a  do  que  govema. 

As  molheres  dos  villoes  vestem  coiro  como  seus  maridos  e  em 
algumas  partes  huns  pannos  de  laa  de  cinco  ou  seis  covados  de  cum- 
prido  e  tres  de  largo,  a  que  elles  chamam  Mahac,  e  puderam  com 
muyta  re^am  chamar  silicio,  porque  he  muyto  mais  aspero  que  o 
que  vestem  os  frades  capuchos;  que  em  Ethiopia  nam  sabem  facer 
pannos,  nem  serve  a  laa  pera  isso,  que  he  muyto  grosseira ;  e  to- 
das  andam  descal^as  e  muytas  veces  descubertas  dos  peitos  pera 
cima,  e  no  coUo  continhas  muyto  miudas  de  bidro  de  varias  cores 
enfiadas  de  maneira  que  tem  dos  dedos  de  largura.  Os  cavellos  fei- 
tos  em  muytas  trencinhas  como  acima  dissemos;  mas  em  algumas 
f.  85.  terras  *as  usam  muyto  delgadinhas  e  as  cortam  de  maneira  que 
nam  Ihes  cubra  mais  que  as  orelhas. 

Frey  Luis  de  Urreta  trata  as  mais  destas  cousas  em  o  cap.  23       8.  Quid  commen- 

j  oi-  rijj  j  «jjj*  •  xr       tatus  sit  Urreta  circa 

de  seu  i     hvro,  e  lalando  do  governo  das  cidades,  diz  assi:   «  iin  n^odum  gubemandi 

«  cada  ciudad  se  eligen  seis  regidores  cada  afio  diferentes,  dos  no-  ^^  Aethiopia. 

«  bles,  dos  ciudadanos,  y  dos  plebeyos,  que,  fuera  de  ser  a  su  cargo 

<  el  aver  de  mirar  por  el  bien  publico,  tienen  la  juiisdicion   ordi- 

«  naria  para   conocer  de  las  causas   tocantes  a  su  calidad,  de  ma- 

«  neira  que  los  dos   nobles  no  se  entremetem   en  el  juicio  de  los 

«  ciudadanos  o  plebeyos,  ni  al  reves,  con  tanto  que  ni  los  unos  ni 

«  los  otros  juzgxien  sin  acuerdo  del  corregidor  de  la  ciudad,  el  qual 

«  se  elige  cada  un  aiio  de  los  nobles,  una  vez  de  una  familia  y  otra 

«  vez  de  otra,  de  suerte  que  igualmente   gocem  todos  el  honor  y 


:oo  HISTORIA   DE   ETHIOflA 

>  participen  del  trabajo.  Y  porque  tanpoco  el  corregidor  se  apas- 
•  sione,  no  puede  juzgar  las  causas  [sin  a]sistencia  de  dos  sacer- 
»  dotes  de  la  parrochia  del  reo,  en  el  ajuntamiento  de  los  plebeyos 
1  assiste  siempre  un  ciudadano,  y  en  el  de  los  ciudadanos  uno  de 
s  nobles,  para  dar  cuenta  a  los  suyos  de  lo  que  se  ha  tratado, 
ira  que  los  nobles  lo  hagan  saber  al  Emperador  o  Rey.  Esto 
ismo  guardan  las  personas  particulares  en  quanto  al  no  vender 
is  bienes  muebles  sin  licencia  de  los  mayores  en  calidad;  y  para 
le  se  evite  la  gente  holga<;ana,  vagabunda  y  ociosa,  ninguna 
srsona  puede  ir  de  un  pueblo  a  otro,  sin  Ilebar  patente  de  sus 
eces  de  la  ciudad  de  donde  sale,  y  al  que  le  cogen  sin  ella  le 
■enden  y  dan  quenta  a  la  ciudad  de  donde  viene,  y  constando 
]e  es  malhechor  o  vagabundo,  le  castigan  rigurosamente  ». 
Isto  diz  frey  Luis,  mas  foi  por  falta  de  informa<;am ;  que  nen- 
la  dcstas  cousas  se  usam  nem  se  usaram  nunca,  porque  nam  ouve, 
1  ha  taes  regidores  e  corrcgidor,  que  se  elijam  cada  anno,  nem 
modo  de  governo,  senam  o  que  acima  dissemos;  nem  he  neces- 
o  levar  patcnte  dos  juices  da  cidade  os  que  della  vam  pera  outras 
;es :  cada  hum  anda  por  onde  quer,  sem  que  ninguem  Ihe  pre- 
te  nada,  nem  inquirem  dos  vagamundos;  somente  ha  huma  cousa, 
,  achandose  algum  morador  do  lugar  que  come  e  veste  bem,  sem 
facenda  ou  officio  com  que  possa  ganhar  aquilo,  entam  o  juiz 
uelle  lugar,  que  se  chama  Xum,  Ihe  pregunta  quem  Ihe  da  aquelle 
,  e  se  acha  que  elle  o  furta,  ou  outros  Iho  dam  aguardar  fur- 
>,  o  prende  e  entrega  a  quem  pertence  conhecer  daquella  causa. 
Tambem  no  cap.  ultimo  de  seu  i"  livro  pag.  368  trata  o  Au- 
■  de  duas  cidades,  que  affirma  tem  o  Preste  Joam  *e  as  faz  tam  f.  8s,v, 
irentes  do  que  eu  aqui  tenho  dito  que  as  igoala  a  as  mais  in- 
les  que  ha  em  Europa.  PoIIo  que  referirei  suas  mesmas  pala- 
1 :  »  Aunque  las  ciudades  de  1a  Ethiopia  no  passem  de  tres  mil 
sas,  se  exceptan  las  dos  famosas  ciudades,  la  de  Saba  y  la  de 
imbra,  que  son  magnificas,  populosas,  de  grande  numero  de  ca- 
s,  con  edificios  publicos,  torres,  porticos,  agujas,  arcos,  obeli- 
os,  piramides,  lonjas,  plai;as,  templos,  palacios,  murallas,  ho- 
enages,  y  de  las  hermosas  y  regaladas  que  tiene  el  mundo.  La 
udad  dc  Saba  fue  la  mayor  de  toda  Ethiopia,  de  mas  casas  y 
;  mayor  numero  de  vecinos,  y  la  cabe^a  de  todo  aquel  grande 
iperio.  Fundola  la  reyna  Sabba,  quando  volvio  de  Jerusalen  de 
sitar  el  santo  templo,  y  della  tomo  el  nombre,  y  tambien  le  da 


r 


LIVRO  I,   CAPITULO   XX.  20I 

c  al  reyno  donde  esta  edificada,  porque  se  Uama  el  reyno  de  Saba. 
«  Es  ciudad  muy  rica  y  proveida,  por  los  muchos  bienes  de  que  la 
€  naturaleQa  y  el  primor  de  la  arte  la  dotaron ;  tiene  famosos  tem- 
«  plos,  altos  y  apuestos  edificios,  sumptuosos  palacios,  curiosas 
«  portadas,  gallardos  frontispicios  de  extraordinaria  y  peregrina  ar- 
«  chitectura.  El  numero  de  sus  casas  son  quincemil,  grandes  y  ma- 
«  gnificas  las  calles,  muy  anchas  y  espaciosas,  y  todas  ellas  con 
«  soportales  y  coberti^os  de  bobeda,  de  suerte  que  se  puede  andar 
«  toda  la  ciudad  por  ellos  sin  que  offenda  el  sol.  Los  muros  son 
«  de  argamasa  bastantemente  altos  y  tan  anchos  que  puede  ir  un 
«  carro  castellano  por  encima  muy  holgadamente.  Esta  hermoseada 
«  con  muchas  fuentes,  pilares  y  canos  de  agua. 

«  Ay  junto  a  esta  famosa  ciudad  muchas  minas  de  oro,  venas 
«  y  betas  de  plata ;  ay  muchos  jardines,  huertas  y  vergeles  de 
«  grande  deporte  y  recreacion,  llenos  de  mil  rosas  y  varias  flores, 
«  donde  la  mano  industriosa  de  la  naturale^a  ayudada  de  la  arti- 
<  ficial  del  jardinero  se  ha  senalado  tanto  que  parece  que  quiso 
«  competir  con  la  de  Dios  en  hacer  segundo  parayso  en  la  tierra, 
«  en  contraposicion  del  otro  primero.  Los  arvoles  dan  tres  veces 
«  fruto  al  ano.  Los  Emperadores  en  ser  electos  toman  la  posses- 
«  sion  del  imperio  en  la  ciudad  de  Zambra,  que  al  presente  es  la 
«  corte,  y  luego  se  parten  a  la  ciudad  de  Saba,  donde  los  juran 
«  todas  las  ciudades  y  pueblos  y  reyes  sugetos. 

«  La  famosa  ciudad  de  Zambra  es  la  mayor  de  cas[as]  y  edi- 
«  ficios  que  ay  en  la  Ethiopia:  tiene  treintamil  casas,  sus  vecinos 
f.  86.  t  son  muchos,  y  de  innumerable  concurso  de  gente.  *Esta  edificada 
«  en  el  reyno  de  Cafates  junto  al  gran  lago  Cafates,  que  por  esta  ciu- 
«  dad  suelen  llamar  el  lago  de  Zambra.  Es  illustre  ciudad,  por  ser 
«  corte  de  los  Preste  Juanes,  los  quales,  deixando  sus  antiguas  y  or- 
«  dinarias  correrias  y  peregrinaciones,  morando  en  los  campos  baxo 
«  pavellones  y  tiendas,  pusieron  en  esta  ciudad  su  silla  y  corte  im- 
«  perial,  por  ser  proveydissima  de  mantenimentos,  sus  campos  fer- 
«  tiles  y  muy  deleitosos.  Sus  calles  son  muy  anchas  y  espaciosas, 
«  fuertes  y  altos  muros,  sobervios  palacios,  sumptuosos  y  magni- 
«  ficos  templos.  El  palacio  imperial  es  de  grande  magestad  y  bel- 
«  le^a:  en  el  vive  el  Preste  Juan  con  los  primogenitos  de  los  Reyes, 
«  y  la  Emperatriz,  y  las  42  hija.s  de  Reyes  con  sus  damas,  y  los 
«  del  Gran  Consejo  con  los  del  Consejo  Latiho.  Esta  ciudad  se  edi- 
«  fico  por  los  afios  de  mil  y  quinientos  y  setenta  por   los  officiales 

C.  Beccari.  Xer,  Aeik,  Scripi»  occ,  ined,  —  II.  26 


\ 


202  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  y  architectos  que  embio  el  Duque  de  Fiorencia  en  tiempo  del 
<  Preste  Juan  Alexandro  3°.  Esta  edificada  a  lo  moderno  con  mil 
«  primores  y  belle^as  a  la  tra^a  de  la  ciudad  de  Florencia;  tiene 
€  muy  buen  puerto  y  muy  capaz  en  la  laguna  Cafates  >. 

10.  Eadem  fabulia  Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta;  mas  tudo  quanto 

scatere     demonstra-  nj-ir',,  n  ^-  «^j  r 

^r^  em  ellas  diz  he  fabula  e  mera  nc^am  poetica,  pmtada  contorme  a 

idea  que  quis  formar  em  sua  imaginacjam  quem  o  informou,  ou  quem 
escreveo  o  livro  de  que  elle  o  tirou ;  porque  primeramente  em  quan- 
tas  terras  senhorea  el  Preste  Joam  nam  ha  taes  nomens  de  cidades 
Saba  e  Zambra.  Mas  poUo  que  diz  da  que  chama  Saba,  que  a  edi- 
ficou  a  reynha  Sabba,  quando  tomou  de  Jerusalem,  parece  que  sera 
a  povoa^am  que  agora  chamam  Ag^um,  que  esta  no  reyno  de  Ti- 
gre,  porque  em  hum  livro,  que  por  antigualha  se  guarda  em  hum 
mosteiro  deste  lugar,  li  eu  que  a  reynha  Azeb  (que  he  a  mesma  que 
Sabba,  que  amos  nomes  Ihe  dam  os  livros  de  Ethiopia,  como  de- 
claramos  no  cap.  2)  edificou  huma  cidade  cabe^a  de  Ethiopia  que 
se  chamou  Debra  Maqueda,  e  no  livro  onde  esta  o  catalogo  dos 
Emperadores  de  Ethiopia  se  conta  que  a  reynha  Azeb  come^ou  a 
reynar  em  Ag^um.  Mas  agora  esta  muyto  longe  de  se  poder  cha- 
mar  cidade.  porque  quando  muyto  tera  1 50  ou  docentas  casas  ter- 
reas  muyto  piquenas  e  tristes  cubertas  de  palha  e  cada  morador 
tem  sua  cerquicinha  de  espinhos  aroda,  ainda  que  alguns  poucos 
a  facem  de  pedra  e  barro,  ficandolhes  as  ruas  muyto  estreitas  e 
*sem  nenhum  ordem  nem  concerto.  Nem  ha  nella  fontes,  nem  outras  f.  86,v. 
agoas  mais  que  hum  tanque  piqueno  e  alguns  po(;os,  e  bom  pedacjo 
afastado  da  povoa^am  duas  riberinhas,  de  com  que  nam  se  rega 
nada.  Nem  ha  rasto  de  jardins  e  arvoredos,  so  tem  alguns  dentro 
das  cercas  de  suas  casas  parreiras,  mas  muyto  poucas. 

11.  Ruinae   quae  Os  moradores  de  aquellas  terras  affirmam  que  tem  por  tradi- 

prope   Axum  visun-  ^  ^  .,  ^.  .-jj  j.      -      ' 

turcttraditio  populi   9^"^  muyto  certa  aver  sido  antiguamente  cidade  muyto  msigne  e  a 
demonstrant    ibi  maior  que  nunca  ouve  em  Ethiopia,  e  as  ruinas  dos  edificios,  que 

quondam  urbem  in- 

signem  extltisse.        ainda  agora  aparecem,  dam  bem  mostra  de  que  foram  sumptuosos. 

E  em  hum  terreiro  dentro  da  povoacjam  estam  oje  em  pe  trece  pe- 
dras  bem  lavradas,  algumas  como  de  30  palmos  de  alto,  e  huma 
com  muytas  molduras,  que  tem  por  cada  ilharga  cinco  palmos  de 
grosso  e  dianto  douce  e  dc  alto  tera  cento,  com  nam  ser  mais  que 
huma  so  pedra,  e  parece  que  acabara  em  4  ou  cinco  palmos  com 
hum  remate  a  modo  de  meia  lua  com  as  pontas  pera  baixo.  Ou- 
tras  muytas  estam  caidas  e  entrellas  duas  bem  lavradas  com  mol- 


_^r 


LIVRO  I,   CAPITULO  XX.  203 

duras :  a  huma  tem  por  cada  ilharga  dez  palmos  de  grosso  e  diante 
16  e  de  cumprido  cento  e  trinta  e  cinco,  e  parece  que  tinha  muytos 
mais,  porque  Ihe  falta  gram  peda^o  da  ponta,  e  do  pe  esta  tam- 
bem  muyto  soterrado.  He  pedra  hum  pouco  parda.  Outras  ha  pique- 
nas  com  muytas  letras  antiguas,  que  agora  ninguem  sabe  ler.  Avia 
hum  mosteiro  muy  sumptuoso  com  muytos  frades,  e  igreja  muy  fer- 
mosa.  Mas  porque  della  e  das  demais  de  Ethiopia  hemos  de  tra- 
tar  no  2  livro,  nam  me  deterei  aqui  em  falar  de  sua  grande^a  e 
architectura. 

Quanto  a  cidade,  que  o  Author  chama  Zambra,  nam  pode  ser  la.  DcBcriptio  ur- 
outra  senam  a  que  chamavam  Gubai,  porque  esta  foi  edificada  pol-  cum  Dambi&^im- 
los  annos  de  1574  perto  da  grande  lagoa  de  Dambia;  mas  nam  por  pcratore  MalAc  Sa- 

sr&d  aedificata   cuius 

Alexandre  3**  (que  nunca  em  Ethiopia  ouve  Alexandre  3°,  como  ja  vix  vestigia  Auctor 
mostramos  no  cap.  i),  senam  por  Malac  Qagued,  que  ainda  seu  pae  ^b^cdcm^posuit^fn 
Adamas   Qagued  esteve  alli  muyto   antes  hum  inverno,   nam  ficou  loc©  dicto  Cogft,  scd 

_  tempore       Auctoris 

em  forma  de  cidade  ate  que  o  emperador  Malac  Qagued  fez  na-  seltAn  SagAd  elegit 
quelle  lugar  de  proposito  seu  asento.  Nem  a  edificaram  architectos  ^  ««dem  in  Den- 
de  Florencia,  que,  como  ja  tambem  temos  dito,  nam  ha  memoria 
de  que  viesem  nunca  a  Ethiopia,  nem  os  edificios  eram  tam  sum- 
ptuosos  e  magnificos  como  o  Author  os  pinta,  senam  casinhas  ter- 
reas,  baixas  e  cubertas  de  palha,  como  dissemos  no  principio  deste 
capitulo  que  sam  as  de  Ethiopia.  Nem  os  muros  eram  de  argamasa, 
que  chunambo  nam  tinham,  nem  ainda  pedra  que  se  pudese  lavrar, 
f.  87.  se  nam  a  traciam  de  muyto  longe,  e  assi  *puseram  de  huma  vanda 
e  outra  da  cerca  estacas  grossas  e  o  meio  encheram  de  rebolo  e 
lama,  e  nam  levantaram  muyto  mas,  com  largura  que  podiam  andar 
por  cima  folgadamente  dous  homens  de  cavallo  hombro  por  hombro. 
Com  tudo,  por  a  lama  ser  ruim  e  alli  chover  muyto,  come^ou  a 
caer  antes  que  se  acabase  de  cercar  tudo,  e  assi  levaram  mao  da 
obra  e  em  pouco  mais  de  dous  annos  caio  quanto  tinham  feito;  so 
ficou  huma  cerca  piquena  de  rebolo,  que  ficeram  a  roda  das  casas 
do  Emperador,  que  depois  tambem  caio.  Agora  nam  sabem  dicer 
quantos  vecinhos  tinha  aquella  cidade,  mas  parece  que  nam  aviam 
de  ser  mais  que  os  que  oje  tem  a  deste  emperador  Seltan  Qagued, 
que  nam  cuido  chegam  a  15  mil.  Esteve  alli  o  emperador  Malac 
Qagued  alguns  [meses],  e  depois  se  passou  pera  huma  terra  fria,  que 
chamam  Aiba,  hum  dia  de  caminho  dalli,  e  logo  se  foi  despovoando 
de  maneira  que  nem  huma  so  casa  ficou  naquelle  sitio,  porque 
no  inverno  avia  muyta  lama.   Eu  fui  de  proposito  a  o  ver   pouco 


204  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

ha  e  esta  em  huma  terra  que  chamam  Anfaraz,  como  duas  legoas 
dos  limites  de  Dambia  pera  oriente.  A  longo  da  cidade  corria  huma 
ribeira  piquena  e  outras  duas  grandes  nam  muyto  longe,  e  a  lagoa 
de  Dambia,  que  tambem  entra  por  aquella  terra,  Ihe  ficava  pouco 
mais  de  meia  legoa  pera  a  vanda  do  sul.  Tinha  aroda  campos 
muyto  largos  e  fermosos,  em  que  agora  ha  grandes  sementeiras. 
Quando  eu  entrei  em  Ethiopia,  que  foi  em  mayo  de  603,  jao  em- 
perador  Jacob,  filho  do  emperador  Malac  (^agued  tinha  tornado  a 
por  a  corte,  meia  legoa  dalli,  em  hum  sitio  alto  que  se  chama  Coga, 
muyto  milhor  que  o  de  Gubai,  e  alguns  polla  vecinhan^a  que  tem 
com  este  o  chamam  Gubai  novo.  Mas  tambem,  como  o  emperador 
Seltan  Qagued,  que  Ihe  sucedeo,  se  passou  pera  a  peneinsula,  que 
a  cima  dissemos,  nam  ficaram  alli  senam  como  1 50  casas,  e  ainda 
esta  peneinsula  ficou  agora  casi  depovoada,  por  facer  o  Emperador 
outra  cidade  nova  em  huma  terra  mais  fria,  que  chamam  Dencaz, 
pouco  mais  de  hum  dia  de  caminho  dalli,  que,  como  dissemos  no 
principio  deste  capitulo,  em  passando  o  Emperadur  sua  corte  a  outra 
parte,  poucos  ficam  naquelle  lugar. 

Nem  teve  menos  falta  de  informa^am  o  Author  em  o  que  diz 
que  os  Preste  Joaes,  deixadas  suas  antiguas  peregrina^oes  morando 
em  os  campos  debaixo  de  tendas,  *puseram  sua  cadeira  e  corte  em  f.  87»v- 
esta  cidade;  porque,  ainda  que  no  inverno  ordinariamente  estava 
nella  o  Emperador,  todos  os  veraos  saia  a  guerra  e  andava  em  suas 
tendas,  como  ficeram  ate  oje  os  que  depois  delle  foram. 
xs.Deridenturalia  Tambem  as  gostosas  e  alegres  festas,  que  diz  pag.  373  se  fa- 

comnienta      Urretae 

circa  ludos  circcnses  ciam  perto  daquella  cidade,  a  que  hia  a  Emperatriz  e  suas  damas 
etpompa8,quaepro-  gj^  elephantes   ricamente  enjaecados  e  se  corriam    muytas  feras  e 

pe  urbem  Zambra  ab         ^         ^  "^      ^  -^ 

Imperatoribus      in-  animaes   monteses,   facendo  que  brigasem   lioes  e  tigres   com  ele- 

phantes,  lioes  e  tigres  entre  si,  cavallos  monteses  huns  com  outros, 
emas  e  bugios,  gatos  e  on^as  e  ultimamente  touros,  nunca  taes  fe- 
stas  se  ficeram  em  Ethiopia,  nem  se  viram  elephantes  mansos,  como 
ja  por  veces  dissemos  i).  E  mais  em  poucas  regras  no  mesmo  lugar 
se  contradiz,  porque,  tratando  do  ordem  com  que  hiam  a  estas  festas, 
diz  que  a  certo  dia  saia  o  Preste  Joam  da  cidade  Zambra  acompa- 
nhado  de  mil  cavalleiros  muy  lucidos  e  detras  delles  levavam 
cem  cavallos  de  destro  com  ricos  jaeces,  logo  muytos  elephantes, 
dromedarios  e  mulas  ricamente   ornadas  e  que  tudo  se  levava  de- 

(i)  In  maigine  sequentia  verba  leguntur:  c  Se  parecer,  pode  ficar  isto  da  contra- 
di^am,  pois  vai  pouco  ». 


LIVRO   I,   CAPITULO   XX.  205 

tras  do  Emperador  so  por  grande^a  e  magestade ;  depois  se  seguia 
o  capitam  da  guardia  imperial  "e  tras  elle  os  primogenitos  dos  Reys 
em  fermosos  cavallos,  tras  estes  hiam  os  ouvidores  do  Gram  Conse- 
Iho,  e  depois  de  ter  passado  toda  esta  cavalleria  e  acompanhamento, 
vinham  as  damas  da  corte  todas  sobre  elephcntes,  e  no  meio  dellas 
a  Emperatriz  e  a  sua  mao  izquerda  o  Emperador.  Se  o  Emperador, 
como  elle  diz,  hia  diante  e  depois  se  siguia  por  ordem  tam  grande 
acompanhamento  e  no  fim  de  tudo  a  Emperatriz,  mal  podia  ir  a 
sua  mao  izquerda  o  Emperador  que  tam  longe  estava  della  na  dian- 
teira.  Mas  seja  o  que  for  da  contradi^am,  o  certo  he  que  tudo 
quanto  diz  das  festas  e  do  aparato,  com  que  se  hia  a  ellas,  he  mera 
fabula,  porque  nunca  tal  cousa  ouve  em  Ethiopia. 


CAPITULO  XXI. 

£m  que  se  declara  alguma  cousa  da  nature^a 
e  costumes  que  tem   os  vassallos  do  Preste  Joam. 


Tem  a  gente  de  Ethiopia  comummente  boas  fei^oes  no  rosto,      x.  Aethiopes  vultu 
os  corpos  fortes  e  robustos,  sofredores  sobre  maneira  do  trabalho,  ^^3  viribus  laboram 
fome,  sede,  calmas,  frios  e  visrias.  No  entendimento,  que  he  o  mi-  ®'^^®»  ^amis,  frigoris 

patientes.        Animo 

Ihor  do  homem,  nam  Ihes  facem  ventagem  os  de  Europa.  Sam  de  pieramque  mites,  i- 

f.  88.   nature^a  branda  e  compassiva,  *que,  posto  que  nam  faltem  homens  SmaTremfttunt^RoI 

de  agreste  e  duro  cora^am  como  em  outras  partes  do  mundo,  estes  ?**»  P^o  amore  Dei 

j  .  ^      ,  •      1-      j  .   r     M      **  ^'  Virginis  nihil 

sam  os  menos:  os  demais  sam  muyto  bem  mchnados  e  assi  facil-  unquam  denegant. 

mente  perdoam  quaesquer  agravos  e  injurias,  por  grandes  que  se- 

jam,  ainda  mortes  de  paes,  de  filhos  e  irmaos,  como  eu  tenho  visto 

muytas  veces  e  experimentado  em  alguns  destes  perdoes  [em]  que  me 

meteram,  que  com  nam  conhecer   algumas   veces  aquelles  a  quem 

hia  a  rogar,  os  alcangei  com  facilidade ;  e  se  ao  que  pedem  que  va 

a  rogar,  se  escusa,  ficam  muyto  agravados,  e  ainda  os  outros  o  no- 

tam,  muyto  particularmente  se  pedem  isto  por  amor  de  nosso  Se- 

nhor  ou  da  Virgem  nossa  Senhora,  porque  raramente  Ihes  pediram 

por  elles   cousa  que  nam   concedam;  e  como   huma  vez   perdoam, 

tem   por    grande   baxesa  e   ainda   escrupulo   tornar   a   falar   sobre 

aquilo,  e  assi  os  que  se  reducem  a  nossa   santa  fe,  se  acusan)  na 

confissam   que  tornaram  a  falar  (ainda  que   fosse  com  algum   seu 

amigo)   sobre  o  que  ja  tinham  perdoado. 


2o8  HISTORIA  DE   ETHIOPIAl 

a.  Lriberalitas  om-  Sam  tambem  muyto  piadosos  e  liberaes  com  os  pobres,  e  assi, 

Magistratus  dictus  ^^^  come^arem  elles  a  pedir  pollas  portas  das  tres  horas  antes 
pater    orphanorum,  ^je  amanhecer,  Ihes  dam  naquelle  tempo  muytas  esmolas,  por  Ihes 

distnbuit       nomme  ^  ir  ^  ir 

Imperatoris  in  vi-  parecer  que  alguns  daquelles  nam  se  atreveram  a  pedir  de  dia.  De- 
rcdditus^qut^^ocan-  P^^^  ^^^  amanhece,  se  asentam  perto  de  alguma  igreja,  ou  na  rua 
tur  Col6.  por  onde  passa  mais  gente,  ou  na  entrada  da  cidade,  e  alli  pedem 

esmola  ate  que  os  homens  grandes  comem,  que  ordinariamente  he  an- 
tes  das  dez  horas  de  polla  minha  e  as  cinco  da  tarde,  e  entam  se 
juntam  a  suas  portas  e,  como  acavam  de  comer,  Ihes  dam  o  que 
sobeixa.  A  porta  do  pa^o  nam  chegam,  porque  nam  he  costume 
darse  alli  esmola,  mas  faz  muytas  e  muyto  grandes  o  Emperador, 
porque  demais  do  que  liberalmente  da  a  as  igrejas  e  mosteiros,  so- 
corre  com  abundancia  aos  que  sabe  tem  necessidade,  particular- 
mente  se  sam  honrrados.  Demais  disto  tem  huma  pessoa  de  con- 
fian^a,  a  que  chamam  pay  dos  orfsios,  que  todos  os  annos  reparte 
a  as  viuvas  e  orfaos,  que  sam  parentes  dos  Emperadores  (ainda  que 
o  sejam  muyto  longe),  grande  cantidade  de  mantimento  das  rendas 
que  os  villoes  pagam  ao  Emperador,  a  que  chamam  Colo,  que  quer 
dicer  torrado ;  porque,  ainda  que  esta  renda  he  muyto  grande,  com 
tudo,  como  he  cousa  de  mantimento  pera  o  Emperador,  Ihe  puse- 
ram  este  nome,  como  se  fora  alguma  cousinha  pouca  que  Ihe  ofFe- 
reciam  pera  torrar. 
3.   Ecclesias  fre-  Tambem  sam  muyto  devotos  e  assi  com  se  comegarem  *os  of-  f.  88,v. 

quentant  omnes,  ibi-   ^   .  .  ,,  .         ,  -i         . 

que  devote  et  decen-  ncios  em  as  igrejas  como  canta  o  gallo,  que  sera  tres  horas  depois 
ter   officiis    divinis  ^^  mela  noite  (que  ca  nunca  cantam  os  cfallos  a  meia  noite),  como 

assistunt:  qui  domi  ^^  *=*  ' 

mancnt  orant  et  re-  dam  sinal,  que  nais  parrochias  he  certas  pancadas  em  huns  como 
que^tii^rondoVnter"  atambores,  e  nos  mosteiros  com  tres  tabuinhas,  que  tem  amarradas 
mittunt  preces  quo-  pollas  bordas  e  soam  muyto,  ou  com  humas  pedras  delgadas  e  cum- 

tidie  dicere. 

pridas  nam  muyto  largas  e  de  longe  parece  que  tangem  sinos,  mas 
estes  nam  ha  em  Ethiopia,  so  hum  piqueno  tenho  visto  e  outro  que 
eu  fiz  tracer  da  India  pera  nossa  igreja ;  em  dando  aquelle  sinal, 
se  alevantam  homens  e  molheres  e  vam  a  as  igrejas  onde  podem 
entrar  (que  nem  em  todas  entram  as  molheres,  nem  ainda  os  ho- 
mens  passam  de  certa  cortina,  se  nam  tem  ordem,  como  adiante 
diremos),  e  ouvem  os  officios  e  re^am  em  pe  o  mais  do  tempo,  ainda 
que  tambem  se  asentam;  e  de  nenhuma  maneira  entram  com  ^apa- 
tos,  posto  que  si  com  a  cabega  cuberta,  como  em  cumprimento  do 
que  Deos  mandou  ao  propheta  Exo.  3,  que  se  descal^ase  por  reve- 
rencia  e  respeito,  e  nam  que  desbarretase.  Nem  cospem  dentro  no 


k 


j 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXI.  209 

cham,  senam  em  seus  len^os,  por  reverencia  das  igrejas,  e  poUa 
mesma  causa,  se  vem  a  cavallo,  se  apeam  antes  de  chegarem  a  ellas, 
e  nam  tomam  a  subir  ate  terem  passado  hum  bom  pedaQo.  Os  que 
ficam  em  suas  casas,  muytos  re^am  ate  amanhecer  ora^ocs  ou  psal- 
mos  de  David,  ou  leem  por  sam  Paulo  ou  o  Evangelho  e  depois 
facem  seus  negocios.  E  o  que  mais  he  que  quando  caniinham,  seja 
sos  ou  indo  a  g^erra,  todo  homem  honrrado  leva  hum  criado  com 
o  livro  de  re^ar  e  estante  de  ferro  delgado,  aforrado  de  coiro  ver- 
melho,  de  modo  que  se  possa  dobrar;  e  como  se  armam  as  tendas, 
que  se  ouveram  de  por  a  descansar  do  trabalho  do  caminho,  se  asen- 
tam  logo  a  re^ar,  nam  porque  tenham  obrigagam,  senam  por  sua 
devo^am  e  ser  ja  costume  comum. 

Em  algumas  igrejas  do  imperio  ha  sepulturas  de  homens  que      4«  !>«  P"»  peregri- 

^  j      j  ^      ,  ^      nationibus    et   ieiu- 

tem  por  santos,  onde  de  muyto  longe  vam  cm  romeria  com  muyta  ^^{3^  ^^^  rigide  ad- 

devo^am,  e  ainda  a  Jerusalem  vam  muytos  homens  e  molhercs,  com  jno<lum  servare  so- 

lent. 

ser  caminho  muyto  cumprido  e  trabalhoso,  assi  por  sua  aspere^a, 
como  poUas  grandes  calmas  das  terras  per  onde  passam.  Todos 
os  frades  e  freiras  e  os  que  tem  ordens  de  diaconos,  ainda  que 
sejam  homens  casados,  tracem  huma  cruz  na  mao  de  prata,  ou 
de  ferro,  ou  de  pao  preto,  como  de  hum  palmo  de  cumprido. 

Sobre  tudo  sam  muyto  dados  a  jejuns  e  penitentias.  Jejuam 
f.  89.  todas  as  4**  e  sextas  feiras  do  anno,  excepto  as  depois  *da  pascoa 
de  Resurreipam  ate  o  Spirito  Santo.  Comem  a  tarde  quando  a  som- 
bra  tem  oito  pes,  que  ca  nam  a  relogio,  mas  seram  cinco  horas 
pouco  mais  ou  menos.  Nam  comem  ovos,  leite,  nem  mantega,  se- 
nam  hervas  bem  mal  temperadas,  graos,  lentilhas,  fabas  e  outras  , 
sementes  que  tem,  e  peixe  quem  o  acha,  que  ha  muyto  pouco,  se- 
nam  he  ua  lagoa  de  Dambia  e  em  alguns  rios,  e  muytos  nam  co- 
mem  o  que  nam  tem  escama,  poUo  costume  que  Ihes  ficou  dos 
Judeos.  Tambem  jejuam  algiins  dias  antes  do  natal,  e  quince  antes 
da  Assump^am  de  nossa  Senhora,  mas  nam  todos,  porque  isto  he 
por  devo^am.  Em  a  coaresma  jejuam  todos  e  nam  comem  ate  po- 
sto  o  sol,  nem  bebem  gota  de  agoa,  ainda  muytos  dos  que  estam 
doentes  e  alguns  particularmente  frades  estam  dous  dias  e  mais  sem 
comer.  Os  sabbados  porem  nam  jejuam,  mas  em  lugar  delles  je- 
juam  sete  dias  antes  que  entre  nossa  coaresma,  come^ando  da  2"  feira 
depois  da  sexagesima,  e  alguns  por  mais  penitencia  comem  humas 
sementes  amargosas  e  ainda  herva  babosa  Sua  Pascoa  humas  ve- 
ces  cae  no  mesmo  dia  que  a  nossa,  outras  8  dias  depois  e  algumas 

C.  Bkccari.  Rer,  AgfA,  Script,  oee,  ined,  —  II.  27 


\ 


2IO  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

hum  mes,  como  succedeo  no  anno  de  1617,  que  nossa  Pascoa  foi 
a  26  de  mar^o  e  a  sua  na  lua  siguinte. 

5.  Quas  insuper  Outras  muytas  penitencias  facem  os  frades  na  coaresma  e  en- 
mae^n>od8  afflictal  trellas  estar  muyto  tempo  em  pe  em  ora^am  (que  de  joelhos  nam 
tiones  sibi  monachi  acostumam)   e   quando   muyto  se  encostam  a  parede  ou  sobre  seu 

imponere  soleant.  /  1  ^  jt 

baculo,  se  cansam  demasiado ;  e  ainda  diz  a  historia  de  hum  frade, 
que  se  chamava  Taquela  Haimanot,  que  poremos  no  livro  2°,  que 
esteve  muytos  annos  em  pe  dentro  de  huma  casinha,  sem  se  enco- 
star  a  huma  nem  outra  parte,  e  em  hum  pe  sete  annos.  Tambem 
affirmam  que  antiguamente  alguns  frades  dos  que  estavam  em  os 
desertos  (que  entam  eram  muytos)  se  metiam  em  humas  arvores, 
que  ha  muyto  grossas  e  lisas  ate  o  alto,  a  que  chamam  Dema,  fa- 
cendo  desta  maneira :  pregavam  estacas  no  tronco  huma  a  cima  de 
outra  (que  o  podiam  facer  facilmente,  por  ser  esta  arvore  dentro 
branda)  e  por  ella  subiam  ate  altura  que  pudesem  ficar  segnros 
das  feras,  e  alli  cortavam  e  faciam  hum  buraco  a  modo  de  casinha 
quanto  podia  caber  hum  homem,  e  nella  se  metia  hum  frade  e  nam 
saia  mais.  Outros  Ihe  davam  de  comer  ate  que  se  fechava  aquella 
casinha  (que  por  dentro  se  torna  a  hencher  muyto  de  pressa)  e  assi 
o  hia  apertando  ate  que  ficava  alli  morto  e  sepultado. 

6.  De  poenitentiis  As  penitencias  que  dam  aos  seculares   em  a  confissam,  ainda 
Abuna  et  sacerdotes  *que  sejam  muyto  grandes  por  culpas  leves,  as  aceitam  e  cumprem  f.  89,v. 
imponunt.  Confessio  jg  \^q^  vontade ;  e  posto  que  muytos  nam  se  sabem  confessar.  por- 

publica. 

que  nam  especificam  os  peccados,  senam  dicem  somente:  Pequei, 
errei,  e  quando  muyto  declaram  algumas  cousas  e  tudo  o  demais 
que  tem  fica;  mas  he  porque  nam  os  insinam  que  todos  os  pecca- 
dos  ouveram  de  confessar  muyto  bem,  como  outros  facem,  e  ainda 
alguns  desejam  tanto  de  se  salvar  que  pubricamente  confessam  seus 
peccados,  por  grandes  que  sejam,  como  me  affirmaram  algnns  Por- 
tugueses,  que  viram  ao  penultimo  Abuna,  que  ca  veo,  assentado  em 
sua  cadeira  e  de  huma  e  outra  vanda  delle  muyta  gente  em  pe  e 
poUo  meio  vinham  outros  hum  e  hum,  e  chegando  perto  delle  de- 
cia  em  alta  voz  seus  peccados  e,  se  algum  era  grave,  decia  o  Abuna: 
Isto  ficestes  ?  e  alevantando  seu  baculo,  Ihe  dava  nas  costas  tres  ou 
4*^  muyto  boas,  e  mandava  logo  a  dous  homens,  que  alli  tinha  com 
correas  cumpridas,  que  Ihe  desem  30  ou  40  a^oites,  como  milhor 
Ihe  parecia  e  como  Ihe  comegavam  a  dar,  rogavam  os  outros  que 
Ihe  perdoase,  e  assi  o  mandava  deixar;  mas  se  seus  peccados  nam 
eram  graves,  Ihe  dava  outra  penitencia. 


i 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXI.  211 

Quanto  dos  costumes,  nam  referirei  mais  que  alguns  por  nam      7«  Acjhiopcs  siint 

.    .  «  A       valde  coniites   inter 

cansar  ao  leitor  com  muytas  cousas  que  tem  de  pouco  momento.  As  ^ .       paiutationes, 
cortesias,  de  que  usam,  quando  se  encontram  homens  cfrandes,  sam  ^^*  scqipcr  in  plu- 

rali  usurpant,  sunt: 

baixarem  as  cabecjas,  e  algumas  veces  tambem  por  a  mao  dereita  cwr  Alu,  ch«r  ceba- 
no  peito,  sem  descubrirem  as  cabe^as  de  nenhuma  maneira,  ainda  roininhA  ^SS^  bic6n 
que  tragam  barretes  ou  chapeos ;  e  o  que  primeiro  fala  diz :  Cher  »y^^^  «*  «li^e,  quas 
alu,  que  propriamente  quer  dicer:  «  bem  estam?  »,  que,  aindaque  seja  tur. 
hum,  Ihe  fala  em  plural  por  cortesia.  Elle  responde :  Cher  cebahat 
la  egziabeher:  «  bem,  gloria  a  Deos  ».  E  logo  tambem  preg^nta  o  ou- 
tro  com  as  mesmas  palavras  se  esta  bem,  ou  dicendo :  Mininha  alu, 
scilicet :  «  como  estam  »  [?] ;  e  alguma  vez  o  primeiro  que  fala  diz :  Bi- 
c6n  ayaul;  «seu  contrairo  nam  permane^a  » .  Em  esta  palavra  contrairo 
se  entende  nam  somente  imigo,  mas  todo  genero  de  mal,  porque  Biz 
quer  dicer  «  mao  » .  Desta  palavra  em  plural  esta  obrigado  a  usar  o  que 
nam  he  tam  nobre  como  aquelle  com  que  fala,  mas  os  igoais,  ainda 
que  sejam  homens  grandes,  muytas  veces  se  fala  hum  a  outro  por 
huma  palavra,  particularmente  os  muyto  amigos;  e  nam  somente 
ha  de  falsu-  em  plural  o  menos  nobre,  mas  ha  de  baixar  o  panno 
que  traz  em  lugar  de  capa,  de  maneira  que  descubra  poUo  menos 
hum  hombro,  e  tal  pode  ser  o  senhor  com  quem  fala,  que  tenha 
f.  90.  obriga(;am  de  discubrir  amos  hombros  e  ainda  cingir  *o  panno  na 
cinta.  E  o  mais  nobre  responde :  Cher  alec  ?  «  Estais  bem  ?  »  E  quando 
vam  a  visitar  huns  a  outros,  ordinariamente  tiram  os  (japatos  na 
entrada  da  casa,  e  se  o  senhor  ou  senhora  della  he  parente  do 
Emperador,  cingem  tambem  os  pannos  na  cinta,  como  dissemos  que 
facem  no  pa^o  do  Emperador.  E  quando  saem,  dicem :  Bafe^a  yau- 
leo  «  com  alegria  permanecja  ».  Tambem  dicem :  Baheioat  caru  «  com 
vida  fiquem  » .  Outras  maneiras  tem  tambem  de  falar,  mas  estas  sam 
as  mais  comuas. 

Ao  Emperador  nam  Ihe  dicem  nada,  quando  chegam  diante  8.  Mos  a  nobili- 
delle  os  senhores  e  senhoras,  e  sempre  acostumam  de  entrar  (se  uaurpatus  *^*qSinAo 
nam  for  alguma  parenta  muyto  chegada  e  confiada,  particularmente  imperatorem     invi- 

8unt« 
se  he  ja  molher  de  dias,  que  Ihe  diz:  Bi^on  ayaul,   «  seu  contrairo 

nam  permane^a  »),  so  baixam  as  cabe^as  e  ficam  em  pe  no  lugar 

que  conforme  a  sua  nobre^a  Ihes  cabe,  assi    as  senhoras  como  os 

senhores,  ate  que  o  Emperador  sls  manda  asentar.  A  ellas  oidina- 

riamente  as  tem  muyto  pouco  em  pe,  mas  aos  senhores,  por  gran- 

des  que  sejam,  devagar  os  manda  asentar  e  em  cadeira  por  nenhum 

caso,  senam  na  cham  sobre   alcatifas,  e  ainda   isto  nam   se   usava 


212  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

antes,  porque  nenhum  senhor  se  asentava  diante  do  Emperador; 
mas  pollos  annos  de  1597  se  comeQou  a  introducir,  por  ser  o  em- 
perador  Jacob  piqueno. 

Tambem  quando  algum  senhor  vem  de  fora  na  corte,  ou  seja 
chamado,  ou  nam,  chega  a  porta  do  pa^o  e  manda  recado  por  o 
porteiro  mor,  ou  por  algum  seu  amigo  (que  sem  licen^a  nam  pode 
entrar)  desta  maneira:  Fuao  diz  ao  Acegue:  Bi^on  ayaul:   «  seu  con- 
trairo  nam  permane^a  » ,  e  se  o  Emperador  manda  que  entre,  o  cha- 
mam  e  chegando  Ihe  beixa  a  mao  ou  o  joelho  sem  dicer  nada  e  se 
afasta  pouco  o  muyto  conforme  a  sua  nobre^a.  Logo  o  Emperador 
Ihe  pregunta  alguma  cousa,  ou  elle,  esperando  hum  pouco,  toma  a 
chegar  e  fala  algnm  negocio,  se  tem.  Mas  se  o  Emperador,  quando 
Ihe  dicem  que  esta  alli  aquelle  senhor,  nam  responde  (que  ordina- 
riamente  disimula  por  grande  espa^o),  fica  elle  esperando  a  porta 
ate  que  Ihe  de    licen^a.  E  se  for  Vissorrey    (o  qual   comummente 
nam  vem  se  nam  chamado),  fica  na  porta  da  primeira  cerca  e  manda 
recado  ao  Emperador,  e  elle  invia  logo  pollo  menos  dous  homens 
grandes  e  algumas  veces  4,  e  dicemlhe:  Diz  o  Emperador  que  seja 
boa  vossa  vinda,  que  entreis.  Elles  tambem  o  saudam  e  se  tornam, 
e  elle  vai  detras  e  espera  outra  vez  na  porta  da  2*  cerca  (que  sem- 
pre  o  pa^o  tem  duas)  ate  que  venham  outros  a  Ihe  dicer  que  entre, 
e  com  estes  vai  e  veixa  a  mao  ao  Emperador  e  fica  em  pe  falando 
ate  que  o  despede  ou  manda  que  se  asente.  Quando  o  Emperador 
manda  recado  de  palavra  ou  carta  fora  da  corte,  aquelle  para  quem 
vai,  por  grande  que  seja,  sae  *fora  da  porta  de  sua  casa,  e  cinge  f.  90»^. 
o  panno  pera  ouvir  o  recado  e  tomar  a  carta. 
g.  Describitur  scl-  O  Emperador  ordinariamente  esta  asentado  em  algum  esquife 

la  seu  thronus   Im-    ,  ,  ,  ,  ,  r 

peratoris.  lacreado  ou  dourado,   como  este  tem  humas   veces,  com   lermosas 

cortinas  ou  pavelham  de  seda,  outras  sem  ellas,  e  sempre  tem  4  ou 
seis  colchas;  huma  chega  com  a  borda  perto  do  cham,  outra  hum 
pouco  mais  alta,  e  assi  as  demais,  de  maneira  que  de  cada  huma 
apare^a  hum  pouco,  e  a  ultima  sempre  he  de  seda  muyto  rica,  e 
hum  ou  dous  coxins  de  veludo  ou  de  borcado  em  que  se  encosta; 
mas  no  esquife  dourado  ordinariamente  estam  ats  colchas  encima 
sem  caer  casi  nada  pera  abaixo,  porque  tem  rodapes  de  borcado 
ou  de  velludo  com  franjas  de  fio  de  ouro.  Este  he  squ  throno,  po- 
sto  que  algumas  veces  tambem  se  asenta  em  cadera  alta  de  espal- 
das  de  damasco  ou  veludo  com  franjas  de  fio  de  ouro  e  pregos  dou- 
rados,  como  ja  temos  dito. 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXI.  2 1 3 

Todos  os  senhores  se  asentam  no  cham  sobre  alcatifas,  ainda       10.   De  suppcne- 

.  «    .  .    ctili  domestica  etiam 

em  suas  casas,  porque  raramente  se  asentam  em  cadeiras,  e  assi  nobilium.  De  cibis 
sempre  comem  no  cham  sobre  humas  tavoas  redondas  com  a  borda  »agi«  usitetis.  Quod 

mo8  edendi   camem 

de  dous  dedos  de  alto  e,  com  serem  de  huma  so  pe^a,  ha  algumas  vaccae  cmdam  sit 
de  oito  palmos.  A  esta  mesa  chamSo  Gabeta,  e  nam  poem  sobre  ella  mums^exemplis^de- 
toalha,  nem  guardanapo,  senam  humas  apas  muyto  delgadas  de  trigo  monstrat. 
ou  de  outras  sementes  que  ca  ha,  e  sobre  ellas  os  pratos  com  o  co- 
mer  e  pam  como  o  nosso  de  trigo.  Comem  toda  sorte  de  carnes: 
vacas,  carneiros,  cabras,  galinhas,  perdices,  excepto  porcos,  que 
muytos  nam  os  comem,  e  lebres  e  coelhos  ninguem;  e  das  milhores 
iguarias  pera  alguns  he  a  carne  de  vaca  crua,  que  acabandoa  de 
matar  a  poem  na  mesa,  e  dandolhe  alguns  golpes,  Ihe  botam  en- 
cima  seu  mesmo  fel,  e  logo  vam  cortando  e  comendo,  e  dicem  que 
Ihes  sabe  muyto  bem,  tanto  que  os  mais  nam  deixaram  este  comer 
por  nenhum  caso,  ainda  que  Ihes  custa  muyto  caro,  porque  se  Ihes 
criam  no  estomago  huns  bichos  delgados  como  lombrigas  cumpri- 
dos,  que  Ihes  facem  muyto  mal,  se  nam  tomam  cada  dous  meses 
hum  fruto  de  huma  arvore,  que  chamam  C096 :  a  cousa  mais  amar- 
gosa  que  parece  pode  aver,  e  tam  forte  que,  se  se  descuidam  acre- 
centando  na  medida,  morrem  muytos  e  alguns  botando  sangue  poUa 
boca.  E  que  os  bichos  Ihes  venham  de  comer  esta  came  crua  di- 
cemo  elles  mesmos,  e  se  ve  claro,  porque  os  filhos  dos  Portu- 
gueses  antiguos,  os  Mouros  e  Judeos,  que  a  comem,  tem  tambem  esta 
doen^a,  e  se  nam  a  comem  ou  a  deixam,  depois  de  algum  tempo, 
nam  tem  aquelles  bichos,  nem  tomam  a  micinha ;  e  este  emperador 
Seltan  Qagued,  que  deixou  de  comer  esta  carne  crua,  ha  ja  muy- 
f.  91.  tos  *annos  que  saro  desta  doen^a,  e  o  principe  mais  velho.  que  se 
chama  Faciladaz,  nunca  a  teve,  porque,  como  me  disse  o  Empera- 
dor,  nunca  quis  nem  provar  a  carne  crua. 

Nam  ha  a^ouguens;   somente  na   corte  do  Emperador   matam      xx.   Bestias    esui 

■,,.,  r         j       'j    ^  ii'<  destinatas      mactant 

cada  dia  algiimas  vacas  fora  da  cidade  no  campo,  e  alli  vai  a  com-  ^omi,  ibique  pariter 
prar  a  gente  ordinaria,  nam  por  peso  senam  a  olho,  facendo  quin-  coquunt  pancm.  Po- 

tu8  comunis  cereiri- 

hoes.  Os  que  podem  matam  em  sua  casa  as  vacas  ou  carneiros  sia,  quae  ubique  pro- 
que  tem  necessidade.  e  cocem  tambem  nella  o  pam  que  ham  de  ^^T^'"^ 
comer,  porque  nam  ha  paderias,   senam  algumas  molheres   pobres  melie.  ViUici  tenen- 

.  r  '  ^  1  «  ^^   s^^^    sumptibus 

que  levam  a  feira  algum  pam,  de  que  nam  compram  os  homens  cibum  et  potum  pa- 
honrrados.  ^"«   nobilibus  iter 

agenubus. 

Sua  bebida  he  vinho,  que  facem  de  mel,  e  algum  he  tam  forte 
como  de  ubas,  mas  dura  pouco,  quando  muyto  hum  mes,  e  logo  se 


2  14  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

aceda.  Tambem  ha  outra  sorte  de  vinho  ou  cerbexa,  que  facem  de 
milho  e  cevada  e  de  outras  sementes,  que  nam  ha  em  Espanha ;  e 
isto  bebem  comummente  os  que  nam  podem  alcan^ar  vinho  de 
mel,  que  de  ubas  casi  nunca  o  vem,  como  adiante  diremos ;  e  assi 
ha  muytos  taberneiros  que  o  vendem,  nam  por  miudo,  senam  por 
cantaros,  porque  custa  pouco ;  e  quando  caminham  se  acha  a  cada 
passo,  por  estarem  os  lugares  muyto  perto  huns  de  outros;  mas  o 
vinho  de  mel  raramente  se  acha,  senam  nas  cidades,  e  assi  os  senho- 
res,  quando  caminham,  levam  mulas  ou  bois  carregados  de  huns  cor- 
nos  muyto  grandes  cheos  deste  vinho,  e  mel  pera  o  facer ;  e  se  o 
caminho  ha  de  ser  cumprido,  em  qualquer  lugar  que  cheguem  a  se 
agassalhar  de  noite,  Ihes  ham  de  dair  pousada  e  tudo  o  necessario 
pera  comer  de  gra^a,  conforme  a  calidade  das  pessoas,  que  tam- 
bem  aos  homens  baixos  agassalham  desta  maneira.  Cousa  de  gran- 
dissima  opressam  pera  os  villoes,  que  elles  sam  os  que  tem  esta 
obrigagam.  Mas  em  as  cidades  nam  se  usa  isto :  cada  hum  come  a 
sua  custa.  Suas  jomadas  comummente  sam  curtas,  mas  quando  Ihes 
releva,  as  facem  nam  menos  cumpridas  que  em  Espanha  e  nam  fa- 
lam  por.  legoas,  porque  nam  dividem  os  caminhos  com  semelhante 
parti^am,  senam  por  dias. 
la.   Modus    ven-  O  modo,  que  comummente  tem  de  comprar  e  vender,  he  tro- 

dendi    et     emendi :  ,  ^  ^*  ^ 

pro  pecunia  Aethio-  ^^^  humas  cousas   por  outras,   como   mantimento  por  mantega  ou 
pibus  eat,  vei  aurum  pannos  de  alffodam,  ou  por  pedras  de  sal,  que  cada  huma  tem  oito 

rude.velsal.  Decul-    ^  s  »         t'        i-  »H 

tu  agrorum;  currus  dedos  de  cumprido  e  dous  e  meio  de  largo  pouco  mais  ou  menos;  e 
^^  '  *'  com  estcLs  pedras  se  acha  milhor  o  que  querem,  que  com  ouro  em 

muytas  partes,  e  valem  mais  ou  menos  conforme  a  maior  ou  me- 
nor  distancia  da  parte  onde  se  cortam  (que  so  em  huma  terra  se 
tiram,  ainda  que  em  outras  ha  sal  miudo).  Aqui  na  corte,  onde  vem 
de  i6  ou  i8  dias  de  caminho,  32  valem  hum  cru^ado,  e  alg^mas 
v^ces  mais,  *outras  menos,  e  estas  Ihes  servem  de  moeda,  que  ca  f.  9i,v. 
nam  se  bate  nenhuma.  O  ouro  dam  por  peso  feito  em  pedacinhos 
e  a  ordinario  peso  chamam  Oquea,  que  sam  8  venecianos  de  peso 
justamente,  e  meia  Oquea,  e  daqui  vam  deminuindo  ate  peso  muyto 
piqueno.  Pera  o  algodam  tambem  tem  seu  peso,  e  os  pannos  que 
facem  delle,  e  as  sedas  e  roupa  que  Ihes  vem  de  fora  medem  por 
covados ;  o  mantimento,  mel  e  mantega  com  certas  medidas.  Os 
campos  nam  os  lavram  de  nenhuma  maneira  senam  com  bois  e 
poemlhes  o  jugo  no  pesco^o  da  mesma  maneira  que  em  Espanha 
o  poem  a  as  mulas,  e  assi  cansam  muyto  e  lavram  pouco.  Carros 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXI.  215 

nam  usam,  nem  a  terra  he  pera  elles,  por  aver  muytas  serras  aspe- 
ras,  e  as  planicies  no  verao  comummente  estarem  cheas  de  fendas 
e  aberturas  muyto  grandes. 

As  armas  de  que  usam  sam  arcos  e  frechas  comummente  ervo-       13.  Quibus  armis 

4     4       r    •  1  «  -1  »  t  utantur  et  quibus  in- 

ladas  [stcjj  espadas  e  lan^as  cumpndas  e  outras  mais  curtas,  que  ar-  Btrumcntis  musicis. 

remecjam,  e  humas  macinhas  de  pao  muyto  duro,  com  que  tiram  de 

longe.  Agora  tem  muytas  espingardas,  que  antiguamente  nam  avia, 

mas  arrebentam  muytas  veces,   por  nam  saberem  temperar  bem  o 

ferro.  Nam  sabem  fundir  artilharia,  nem  ainda  aproveitarse  de  oito 

cameletes  que  primeiro  tomaram  aos  Turcos.  Tem  tambem  armas  de- 

fensivas,  como  capacetes  e  sayas  de  malha,  adargas  brancas  e  pre- 

tas  de  coiro  de  bufaras  muyto  fortes.  Os  atabales  sam  de  cobre  e 

alguns  de  pao  cubertos  com  coiro  de  vaca  e  outros  como  atambo- 

res.  Tem    trombetas,  cheremellas   (ainda  que  nam  tam   boas  como 

as  nossas),  violas  e  outros  instrumentos  a  modo  de  harpzis,  com  que 

facem  arragoada  musica. 

O  modo  que  tem  em  seus  casamentos  e  as  ceremonias  de  que      14.  Dc  iure  hacre- 

..        ^  .  ,      .  .  ditatis  in  singulis  fa- 

usam  nelles  tocamos  acima  no  cap.  15  e  declararemos  mais  cum-  ^iiiac  membris.  De 
pridamente  no  2  livro ;  so  diremos  aqui  brevemente  o  costume  que  catpensis  pro  funere. 
tem  em  suas  heran^as,  quando  morre  o  marido  ou  a  molher.  Se, 
quando  hum  homem  casa,  for  com  condi^am  que,  morrendo  elle,  a 
molher  leve  o  3®  do  fato  ou  menos,  com  isso  sae,  e  certa  cousa 
mais  que  Ihe  julgam  conforme  ao  fato  que  ouver,  porque  rapa  a 
cabe<;a,  e  o  pay  ou  a  may  do  morto  herda  tudo  o  demais,  nam  tendo 
filhos  o  defunto:  e  se  nam  ficeram  concerto,  os  pays  do  defunto 
levam  tudo,  excepto  o  que  Ihe  julgam  por  rapar  a  cabega,  e  aquilo 
com  que  ella  entrou.  Mas  se  o  marido  nam  tinha  ja  pay  nem  may, 
ainda  que  tenha  irmaos,  ella  leva  tudo.  Quando  ficaram  filhos,  a  may 
toma  dous  quinhoes  do  fato  e  o  filho  primogenito  outros  dous  e 
cada  hum  dos  outros  filhos  hum  quinham ;  como  se  morrendo  hum 
homem  deixase  tres  filhos  e  600  cru^ados  de  fato,  entam  a  molher 
leva  200  e  o  filho  primogenito  outro  taiito  e  cada  hum  dos  outros 
dous  filhos  leva  cento. 
.92.  *Antes  que  se  fa^am  as  partilhas,  se  toma  do  monte  mor  nam 

somente  o  que  se  gastou  o  dia  do  enterramento  em  esmolas,  que 
as  facem  conforme  a  sua  posse,  senam  o  que  se  ha  de  dar  depois ; 
porque  aos  sete  e  a  os  dez  dias  dam  algfuma  cousa  ao  prior  do  mo- 
steiro  ou  igreja  onde  se  enterra,  e  aos  frades,  que  senalam  pera  que 
por  30  dias  recem  os  psalmos  de  David  e  outras  ora^oes,  e  no  ul- 


2l6  HISTORTA   DE  ETHIOPIA 

timo  matam  vacas,  se  era  homem  rico,  e  Ihes  dam  de  comer  a  el- 
les  e  a  quantos  pobres  se  juntam;  e  aos  40  dias  levam  muytas 
candeas  e  encenso  a  igreja,  e  matam  muytas  mais  vacas  e  dam 
grandes  esmolsts.  Tambem  dam  aos  80  dias  e  quando  se  cumpre  o 
anno;  mas  nam  tanto,  e  a  isto  chamam  Tascar,  que  quer  dicer  «  lem- 
branga  » ,  e  com  se  lembrarem  tanto  dos  defuntos,  com  tudo  isso 
muytos  negam  o  Purgatorio,  como  diremos  no  livro  2. 
15.   De   luctu   in  O  doo,  de  que  usam  por  pay  ou  may,  marido  ou  molher,  he 

morte        parentum,  ,  ^  •     -1         ••  it  •     -i 

mariti   vcl    uxoris.   raparem  as  cabe^as   ate  os  criados  da  casa,  e  a  molher  e  cnadas 
Exempla  recentia  ab  amarrarem  polla  fronte  huma  tira  cumprida  de  panno  branco  muyto 

Auctore  oculis  usur- 

pata.  fino  de  algodam,  que  Ihes   vem  da  India,  de  pouco   mais  de  dous 

dedos  de  largo  e  amas  as  pontas  Ihes  cacm  sobre  as  costas. 

O  vestido  he  preto,  e  tracemo  hum  anno.  Os  parentes  vestem 
acjul,  ainda  que  alguns,  que  querem  mostrar  mais  sentimento,  tam- 
bem  vestem  por  alguns  dias  preto  e  rapam  as  cabe^as;  mais  nam 
he  obriga^am,  e  ordinariamente  facem  grandes  estremos  botandose 
na  cham  de  golpe  e  dam  taes  quedas,  que  eu  conhe^o  hum  que 
esteve  pera  morrer  e  outro  que  ficou  aleijado  pera  toda  sua  vida. 
As  molheres  arrancam  os  cavellos  e  arranham  o  rosto  ate  Ihe  cor- 
rer  o  sangue,  e  ainda  alguns  dos  do  reyno  de  Gojam,  que  chamam 
Gafates,  se  ferem  na  cabe^a  e  nos  bra^os  com  facas.  Choram  com 
grandes  boces  de  hum  pouco  antes  de  amanhecer  ate  as  8  ou  nove 
horas,  isto  por  muytos  dias,  e  o  mais  do  tempo  estam  em  pe  ba- 
tendo  com  as  maos  e  algumas  veces  dando  nos  peitos;  e  tomam 
alguma  cousa  do  vestido  ou  das  armas  do  defunto  e  a  mostram  di- 
cendo  tantas  cousas,  que  nam  podem  deixar  de  chorar  os  que  as 
ouvem.  Huma  vez  fui  a  hum  destes  choros,  por  ter  muyta  obriga- 
^am  ao  defunto,  que  era  grande  defensor  de  nossa  santa  fe  e  cha- 
mavase  Abeitahum  Bela  Christos,  primo  do  Emperador,  pollo  que 
elle  mandou  armar  no  terreiro  do  pacjo  sua  tenda  imperial,  que  he 
muyto  grande,  e  aUl  se  juntaram  todos  os  senhores  e  senhoras  da 
corte  e  trouxeram  as  armas  e  cavallo  ^enjaegado  do  defunto  cuberto  f.  92,v. 
com  hum  panno  de  doo  e  o  puseram  de  fronte  da  tenda,  e  alguns 
de  seus  vestidos  dentro,  e  logo  veio  o  Emperador  cuberto  de  doo 
e  asentouse  no  cham  sobre  alcatifas,  tendo  aroda  cortinas  pretas  ; 
e  na  entrada  do  Emperador  comegou  a  molher  do  defunto  a  facer 
grande  pranto  e  todos  choraram  por  muyto  espacjo,  mas  asentados. 
Depois  se  alevantou  huma  molher  ja  de  dias  e,  tomando  na  mao 
izqueida  huma  gorra  do  defunto,  a  alevantou  em  alto  dicendo  com 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXI.  217 

muytas  lagrimas:  Onde  esta  agora  aquelle  principe  que  tracia  em 
sua  cabe^a  esta  gorra?  Que  foi  daquelle  grande  e  valeroso  capitam,  a 
quem  na  guerra  ninguem  passava  diante  e  nas  letras  nam  tinha  igoal  ? 
E  desta  maneira  foi  dicendo  tantas  cousas  que,  por  mais  duro  que 
fora  o  coragam,  o  ficera  enternecer.  E  assi  todos  ate  o  Emperador 
derramavao  muytas  lagrimas;  o  que  durou  ate  perto  de  meio  dia. 
Pouco  tempo  depois,  me  achei  a  morte  de  hum  principe  filho  de- 
ste  Emperador,  que  era  ja  de  20  annos,  e  estive  a  sua  cabeceira  aju- 
dandolhe  o  milhor  que  pude  naquella  hora  e  muyto  tempo  antes,  por 
o  Emperador  mo  ter  encomendado,  e  como  espirou,  que  ja  era  alta 
noite,  armaram  a  tenda  e  no  meio  della  puseram  o  corpo  em  hum 
lugar  alto  com  tochas  aroda,  e  pouco  de  pois  de  meia  noite  veio 
o  Emperador  cuberto  de  doo  com  todos  os  grandes  e  ficeram  extra- 
ordinario  pranto  ate  que  amanheceo,  que  o  levaram  a  enterrar  a 
hum  mosteiro,  que  esta  em  huma  ilha  da  alagoa  de  Dambia,  onde 
agora  se  enterram  os  Emperadores.  Hiam  todos  cubertos  de  doo  e 
levavam  diante  as  vandeiras  e  atabales  do  Emperador,  tangendo  a 
saom  [sic]  de  triste^a  e  por  muytos  dias  choraram  na  corte  e  sempre 
mostravam  alguma  cousa  do  defunto,  como  fez  aquella  molher;  mas  o 
Emperador  nam  saio  em  pubrico  senam  aquella  noite,  posto  que  em 
sua  camara  chorava  sempre  muyto,  porque  Ihe  tinha  grande  amor, 
e  assi  decia,  estando  hum  seu  muyto  privado  e  eu  sos  com  elle: 
Quem  me  dera,  meu  filho,  morrer  eu  antes  que  vos[?];  e  outras  cou- 
sas,  em  que  mostrava  bem  a  dor  e  triste^a  grande  de  seu  cora^am. 
Concluiremos  esta  materia,  deixando  outros  muytos  costumes, 
com  hum  que  tem  alguns  christaos,  e  he  que,  como  acaba  de  morrer  o 
homem  ou  molher  daquella  casta,  antes  que  se  esfrte  o  corpo,  Ihe 
quebram  os  ossos  dos  bra^os  e  das  pernas  e  o  faccm  como  huma 
bola  e  assi  o  amortalham  e  enterram  e  se  riem  muyto  e  ^ombam 
dos  outros,  dicendo  que  enterram  os  defuntos  assi  como  ficam  quando 
morrem  ao  cumprido  ccmo  se  fosse  hum  pao. 
f.  93.  *Do  que  temos  dito  se  vee  como  frey  Luis  de  Urreta  nam  teve       x6.  Kx  dictis  con- 

.    -  ,        -  ,  .      j .  j      f utantur  novae  fabu- 

certa  mformagam  de  algumas  destas  cousas,  pois  diz  no  cap.  23  de  lae  Urrctaeclrcama- 
seu  primeiro  livro,  onde  as  trata,  que  em  cada  cidadc  tem  o  Em-  ^"*™  praesentcm. 
perador  muytas  terras  pera  trigo  e  graos  que  se  cultivani  e  semeam 
a  sua  custa,  e  tudo  o  que  se  recolhe  manda  repartir  a  pobres,  a 
mosteiros  e  igrejas,  sem  ficar  pera  elle  cousa  alguma.  Isto  nam  corre 
desta  maneira,  porque  o  mantimento  que  se  reparte  aos  pobres,  que 
ordinariamente  ham  de  ser  viuvas  e  orfaos   parentes  dos  Empera- 

C.  Bbccari.  Jier,  AeiA,  Scri^i,  occ,  tned,  —  11.  28 


2l8  HISTORIA   DE   ErHIOPIA 

dores,  e  alguma  vez  pode  ser  que  se  de  a  mosteiros  e  igrejas  (que 
sera  raramente,  porque  elles  tem  suas  terrais),  nam  he  senam  da  renda 
que  os  villoes  pagam  ao  Emperador,  que  chamam  Colo  scilicet  tor- 
rado,  como  a  cima  dissemos,  e  nem  a  decima  parte  desta  renda  se 
reparte,  e  tudo  o  demais  gasta  o  Emperador  com  os  embaixadores 
que  vem  de  fora,  que  dalli  Ihes  manda  dar  peni  elles  e  sua  gente 
e  cavalgaduras,  com  alguns  soldados  que  nam  tem  terras  bastantes, 
e  no  demais  que  elle  quer.  Tambem  a  cor  amarela  nam  he  infame 
(como  elle  diz),  porque  ainda  que  os  senhores  comumraente  fol- 
guem  mais  com  outras  cores,  algumas  veces  vestem  dista  e  muytos 
frades  e  freyras  tambem  vestem  amarello. 

Diz  mais  que  os  inferiores  por  cortesia  tiram  o  barrete  aos  su- 
periores,  como  sam  o  Emperador  e  homens  grandes,  e  como  em 
Espanha  dicem :  «  Merced  » ,  ca  dicem :  «  Quisquis  » ;  mas  nem  tira 
ninguem  o  barrete  a  outro,  por  mais  grande  que  seja,  nem  em  quantos 
modos  tem  de  falar  ha  tal  palavra  Quisquis.  Nem  ainda  comem  em 
mesas  altas,  como  elle  diz,  nem,  como  affirma,  se  enganaram  os  que 
dicem  que  comem  ca  carne  crua ;  porque  com  ella  folgam  muyto  e 
assi  aos,senhores  Ihes  matam  a  vaca  pouco  antes  que  ajam  de  comer, 
e  nam  a  ham  bem  acabado  de  esfolar  quando  ja  Ihes  levam  a  carne 
a  mesa,  que,  se  esfria,  nam  folgam  *  tanto.  Nem  he  isto  encareci- 
mento,  nem  cousa  de  ouvidas,  senam  que  eu  tenho  visto  muytas  veces. 

Tambem  diz  que  primeiro  nam  sabiam  que  cousa  era  vidro, 
mas  que  depois  que  o  duque  de  Florencia  dom  Francisco  entre  ou- 
tros  officiaes  Ihes  mandou  vidreros,  ja  o  usam  e  se  servem  delie; 
e  que  tem  officiaes  que  concertam  a  laa  e  texem  muyto  bons  cor- 
dillates,  anascotes  e  as  demais  cousas  que  se  costumam  facer  da 
laa.  Porem  ca  nam  ha  taes  vidreros,  nem  outro  vidro  senam  o  que 
Ihes  vem  do  Cairo  e  da  vanda  de  Arabia,  que  he  muyto  pouco, 
nem  sabiam  de  que  se  facia;  e  assi  alguns  grandes  me  pregunta- 
ram  diante  do  Emperador  que  cousa  era.  Nem  sabem  facer  os  pan- 
nos  de  laa  que  diz,  senam  aquelles  que  no  capitulo  precedente  dis- 
semos  que  vestem  algumas  molheres  pobres,  que  mais  se  podem 
chamar  silicios  que  pannos. 

Tambem  diz    que  os  filhos    varoes   *primogenitos  de  todas   as  f-  93»^' 
familias  sucedem  em  todo  o  fato  de  seus   paes  com  cargo  de  ali- 
mentar  seus  irmSos  menores  a    jui<;:o  do  vigairo  de  sua   parroquia 
e  de  dous  parentes.  Mas  nam  corre  desta  maneira,  porque  todos  le- 
vam  suas  por^oes  na  forma  quc  acima  dissemos. 


CAPITULO  XXII. 

Em  que  se  declara  se  em  Ethiopia  ha  seminarios  e  col 
legios  pera  insinar  mininos  e  mininas  e  universida- 
des  onde  se  leam  as  ciencias. 


Muyto  grandes  e  bem  ordenados   collegios  e  seminarios   pera       i.  Refenmtur  alia 

.  •  *  1     1  t  t  inventa  Urretae  circa 

o  msmo  dos  menmos  e  menmas  e  universidades,  onde  se  leem  as  seminaria  pro  adole- 
ciencias,  em  Ethiopia  pinta  frey  Luis  de  Urreta  no  cap.  24  de  seu   «««ati^iw  «*  puellie. 
1°  livro,  e  poe  aos  Ethiopes  entre  as  na^oes  que  mais  se  esmera- 
ram  na  cria^am  da  juventud,  por  estas  palavras: 

<  Entre  todas  las  naciones,  que  mas  se  sefialaron  en  la  crian^a 
«  y  educacion  de  los  ninos,  fueron  los  Ethiopes;  pues  no  solo  en 
«  tiempo  de  la  gentilidad  y  de  la  primitiva  iglesia  tenian  coUegios 
«  y  seminarios  para  la  ensenan^a  de  la  juventud,  pero  aun  oy  en 
«  dia  com  mayor  rigor  que  nunca  se  guarda  esta  costumbre,  y  assi 
<  en  todas  las  ciudades  del  imperio  ay  fundados  seminarios  y  col- 
«  legios,  cada  uno  de  tres  quartos  diferentes :  uno  para  los  nobles, 
«  otro  para  los  ciudadanos  y  otro  para  los  plebeyos;  el  uno  de- 
«  stos  seminarios  es  para  le  ensenan^a  de  los  ninos  y  el  otro  para 
«  la  ensenan^a  de  las  ninas.  Este  tiene  su  sitio  dentro  de  la  ciudad, 
«  y  aquel  de  los  nifios  fuera  della  medio  quarto  de  legua.  A  este 
«  llaman  el  lugar  de  las  virgines  y  aquel  de  la  Sabiduria.  En  este 
«  viven  todas  las  hijas  de  vecinos  desde  diez  aiios  hasta  veynte;  y 


2  20  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  en  aquel  todos  los  hijos  desde  ocho  hasta  diez  y  seis.  Desta  sa- 
«  len  las  doncellas,  unas  para  monjas  y  otras  para  casadas,  y  otras 
«  para  servir  en  las  casas ;  y  de  aquel  los  mancebos,  unos  para  to- 
«  mar  estado,  y  otros  para  servir  al  Emperador  o  Rey  en  la  corte 
«  o  en  la  guerra,  conforme  a  la  qualidad  y  obligacion  de  cada  uno ; 
«  y  al  fin  en  ambos  se  ensena  la  dotrina  christiana  y  lo  demas  que 
«  han  menester,  como  es  a  los  varones  letras  y  las  demas  artes  a 
«  que  se  inclinan  y  requiere  su  calidad,  y  a  las  mugeres  sus  labo- 
«  res  y  otros  exercicios,  segun  el  uso  de  la  tierra.  Para  esto  los  unos 
«  y  los  otros  tienen  sus  ayos  y  maestros,  aunque  son  diferentes  los 
«  maestros  de  los  nobles  de  los  que  enseiian  a  los  ciudadanos;  y  todos 
«  estos  viven  apartados  de  los  maestros  de  los  plebeyos,  de  manera 
«  que  cadaqual  se  govierna  por  los  de  su  calidad,  sin  que  los  unos 
«  se  entremetan  con  *los  otros,  salvo  que  de  los  nobles  ay  cuatro  f.  94. 
«  cavalleros  y  cuatro  matronas  superintendentes ;  ellos  del  seminario 
«  de  la  Sabiduria  y  ellas  del  otro  de  las  Virgines,  que  tienen  abso- 
«  luto  poder  sobre  los  ciudadanos  y  plebeyos. 
a.  Itcm  circa  Uni-  «  Los  medicos  son   muy  estimados  en  toda  la  Ethiopia,  y  la 

«  gente  que  go^a  de  mzis  previlegios  en  todo  el  imperio,  porque, 
«  estando  obligados  todos  a  dar  de  tres  hijos  uno  para  la  guerra, 
«  la  qual  obligacion  tambien  tienen  los  Reyes,  solo  los  medicos 
«  estan  exemptos  dcsta  obligacion  tan  rigiirosa.  Tambicn  pueden 
«  passar  por  la  ciudad  cavalleros  en  elephantes,  la  qual  cavalleria 
«  solo  la  pueden  hacer  los  Emperadores,  perlados  y  sacerdotes  vir- 
«  genes.  Pueden  poner  becas  al  cuello,  que  es  habito  proprio  de  los 
«  Corregidores.  Son  libres  de  todos  los  pechos,  tributos,  imposicio- 
«  nes  del  imperio.  Finalmente  es  la  gente  mas  franca  y  libre,  y  la 
«  mas  estimada  de  todos.  La  ra^on  es.  porque  no  se  estudia  otra 
«  ciencia  em  publico  sino  la  medecina,  para  cuya  ensefian^a  ay 
«  siete  universidades  generales  en  la  Ethiopia.  EI  ser  estudiante 
«  no  va  a  la  voluntad  de  cada  uno,  sino  que  va  por  eleccion,  por- 
«  que  de  cada  ciudad  y  villa  los  regidores  seiialan  tres  mancebos 
«  los  de  mejor  entendimiento  y  habilidad  que  se  inclinem  a  letras, 
«  y  han  de  ser  de  los  nobles  y  solos  estos  van  a  las  universida- 
«  des  y  cursan  muchos  aiios,  porque  aprenden  no  solo  medicina  sino 
«  la  cirurgia  y  boticaria,  y  cada  uno  es  medico,  boticario  e  ciru- 
«  giano ;  y  como  son  tan  estimados  y  tan  honrrados  y  los  estudiantes 
«  van  por  eleccion,  estudian  deveras,  porque  si  no  tambien  les  qui- 
«  tan  el  estudio  y  embian  otros  en  su  lugar.  Son  sustentados  a  co- 


LIVRO   I,   CAPITULO    XXII.  221 

€  sta  de  las  ciudades  que  los  embian :  salen  desta  suerte  famosissimos 
«  medicos  y  en  particular  grandes  herbolarios,  por  las  muchas  yer- 
«  bas  muy  medicinales  que  ay. 

«  Los  estudiantes,  despues  que  han  acabado  sus  cursos  para  do- 
«  torarse  (que  Uaman  ellos  hacerse  philosophos),  los  examinan  los 
«  doctores,  que  estan  seiialado  en  las  universidades,  y  aprovandolos, 
«  les  dan  la  carta  del  examen,  y  con  ella  van  al  convento  de  AUe- 
«  luya  y  de  Plurimanos  de  la  orden  de  santo  Domingo,  donde  acom- 
«  paiiados  de  parientes  en  las  iglesias  de  los  monesterios  salen  los 
f-  94,v.  «  frayles  y  el  prior  le  viste  una  cugulla  negra  con  sus  *mangas 
«  como  de  frayle  Benito ;  y  luego  le  hace  jurar  obediencia  a  la 
«  iglesia  romana  y  al  concilio  de  Florencia  en  tiempo  de  Euge- 
«  nio  4°.  Hecho  el  juramento,  le  pone  al  cuello  una  como  estola  de 
«  tela  de  oro  con  sola  una  caida,  como  escapulario,  que  cae  de- 
<K  lante  por  los  pechos  con  las  arm^s  del  Emperador  en  ella;  y  con 
«  esto  queda  doctorado. 

«  La  santa  theologia  non  se  lee  en  las  universidades,  sino  en  los 
«  monesterios  de  religiosos  Dominicos  y  de  s.  Anton,  y  en  las  igle- 
«  sias  de  los  clerigos  solo  la  estudian  los  ecclesiasticos.  El  modo 
«  de  leer  es  en  su  lengua  natural  y  ethiopica,  y  el  texto,  que  co- 
«  mentan,  como  entre  nosotros  s.  Thomas  o  el  Maestro  de  las  sen- 
«  tencias,  son  los  4  concilios  generales,  que  los  doctores  suelon 
«  llamar  otros  cuatro  evangelios,  quo  son  el  concilio  Niceno,  y  el 
«  concilio  Constantinopolitano,  y  el  concilio  Ephesino  primero,  y  el 
«  concilio  Chalcedonense ;  y  assi  como  entre  nos  otros  decimos:  Tal 
«  doctor  lee  la  i*  parte  de  s.  Thomas,  o  la  2*  question  tal,  o  el  pri- 
«  mero  o  2^  de  las  sentencias  distinc.  tantas,  assi  ellos  dicen :  Tal 
«  maestro  lee  el  concilio  Niceno  o  Ephesino,  canon.  tantos.  Las  par- 
«  tes  de  s.  Thomas,  traducidas  de  latin  en  su  lengua  con  cl  libro 
«  de  Contra  Gcntrs,  tienen  los  padres  Dominicos  y  las  estudian, 
«  aunque  su  estilo  ordinario  de  leer  es  por  los  Concilios.  Leen  la 
«  Sagrada  Escriptura,  la  qual  esta  en  lengua  caldea,  la  qual  apren- 
«  den,  como  aca  el  latin,  los  que  son  de  iglesia  y  en  la  Escriptura 
«  hacen  mas  fundamento  ». 

Ate    aqui   sam    palavras  do  Author,   mas  casi  em   todas  estas       3-  Confutantur 

^  .       .    /.  1  .  .  praedicta.  Quomodo 

cousas  teve  tam  ruim  mforma^am  como  em  as  demais,  que  ate  agora  \^  ^  quibus  docean- 
vimos ;  porque  primeiramente  nam  ha,  nem  cuve  nunca  em  as  ter-  ***'  reapse  pueri. 
ras  de  Ethiopia,  que  senhorea  o  Preste  Joam,  taes  seminarios  de  me- 
ninos  e  meninas,  que,  posto  quo  muytos  fa^am  insinar  seus  filhos  e 


222  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

filhas  a  ler  e  alguns  tambem  a  escrevcr,  nam  he  naquella  forma; 
mas  cada  hum  como  quer  da  seu  filho  a  algum  frade  que  o  insine 
e  Ihe  paga  muyto  bem ;  e  o  frade  ordinariamente  junta  seis  ou  8, 
e  os  tem  em  sua  casa;  que  os  frades  nam  moram  em  mosteiros  fe- 
chados  como  os  de  nossas  terras,  senSo  cada  hum  em  su  casa 
perto  da  igreja  comummente  e  alguns  tambem  longe,  posto  que 
antiguamente  muytos  moravam  dentro  de  huma  cerca  em  casinhas 
afastada  huma  de  outra,  e  ainda  agora  ha  algum  rasto  disto.  AUi 
estam  os  meninos  sempre  com  o  frade,  e  seus  pays  Ihes  dam  tudo 
o  necessario,  e  elle  Ihes  insina  ler  e  algumas  veces  escrever,  e 
Ihes  faz  aprender  de  coro  os  psalmos  de  David,  e  pera  isto  se  ale- 
vantan  antes  de  amanhecer;  e  quando  Ihe  parece  da  licen^a  pera 
que  vam  a  folgar  *a  casa  de  seus  pays,  e  como  acavam  de  apren-  f.  95 
der  de  coro  os  psalmos  e  sabem  bem  ler  e  se  aviam  tambera  de 
escrever,  pagam  o  que  concertaram  e  vam  pera  suas  casas ;  e  se  a  al- 
gum  ha  de  declarar  sam  Paulo  ou  outro  livro,  se  ham  de  conceitar 
de  novo  com  difFerente  paga. 
4.    Viri    nobilcs  Os  filhos  dos  senhores  grandes  muytas  veces  nam  estam  desta 

alunt  domi  suae  mo-  .  1         r      -i  i  r      1 

nachum,  qui  eorum  maneira  em  casa  dos  frades  pera  aprender;  porque  ao  frade,  que  o 
fiUos  doceat.  Sed  ta-  senhor  escolhe  por  mestre  pera  seu  filho,  o  leva  a  sua  casa  e  alli 

les  magistn  inhiant  \ 

potius  pecuniae    et  come  e  esta  casi  de  ordinario,  pera  milhor  poder  insinar  ao  menino: 

honoribus  quam  di-  ,  j  ^i,  •      j  u 

scipulorum     profe-  ^  ^  mesmo  modo  guardam  com  as  nlhas,  que  os  mais  dos  senho- 
c*u>-  res  as  facem    aprender  nam    somente  ler,    mas  que   entendam  sam 

Paulo  e  o  evangelho,  porque  toda  a  Escriptura  esta  em  muyto  di- 
ferente  lingua  da  comua,  e  assi,  ainda  que  a  saibam  ler,  nam  a  en- 
tendem,  se  nam  Iha  declaram,  como  entre  nos  o  latim;  e  por  isto 
tem  frades  em  suas  casas  que  as  insinem ;  que  de  clerigos  nam  facem 
muyto  caso.  E  ordinariamente  os  frades  que  insinam  estes  meninos 
e  meninas,  se  nam  morrem,  os  acompanham  depois  de  casados  e  Ihes 
bencem  agoa  e  tambem  a  mesa  como  capellaes  e,  com  ser  a  benijam 
muyto  cumprida,  estam  todos  em  pe  ate  que  se  acava,  e  quando  fa- 
cem  Vissorrey  a  algum  destes  senhores  ou  Ihe  dam  outro  mando, 
o  frade  seu  mestre  vai  com  elle  pera  achar  fato,  e  o  da  molher 
com  ella,  e  comem  e  bebem  juntos.  E  he  certo  que,  se  insinaram 
como  era  re<;tam,  ouveram  de  facer  muyto  fruito;  mas  nam  preten- 
dem  tanto  o  bem  das  almas  quanto  honrra  e  fato,  e  assi  nam  di- 
cem  o  que  pode  dar  desgosto  aos  senhores :  sempre  Ihes  falam  a 
vontade  e  como  Ihes  parece  milhor  pera  suas  preten^oes;  e  di- 
cendolhes  nos  a  alguns  em  particular,  porque  nam  declaram  a  ver- 


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LIVRO    I,   CAPITULO   XXIL  223 

dade  da  fe  e  o  mais  que  tem  obrigaQam,  respondem  que  nam  se 
atrevem,  porque  perderam  o  comer  e  Ihes  faram  mal.  Nem  deixam 
alguns  dos  senhores  de  entender  muyto  bem  que  nam  pretendem 
mais  que  honrra  e  fato;  e  assi  hum  dos  mais  principaes  de  todo  o 
imperio,  que  se  chama  Eraz  Athanatheus,  jenrro  do  emperador  Ma- 
lac  ^agued,  me  disse  huma  vez  estas  palavras:  Padre,  nam  temos 
mestres.  Estes  nossos  frades  sam  como  phariseos:  nam  procuram 
mais  que  honrras  e  fato,  nem  sabem  nada,  e  se  entendem  alguma 
cousa,  nam  se  atrevem  a  dicer.  Vee  V.  R.  o  que  la  esta?  (que  era 
hum  fradc  que  estava  de  fronte  afastado  muyto  modesto)  Pois 
aquelle  he  meu  mestre  e  tam  phariseo  como  todos  os  demais. 

Em  este  passo   mete  frey  Luis  de  Urreta   muytas   cousas  das      5.  Quae  de  mere- 
molheres  pubricas,  mas  todas  sam  fabulas,  sem    nenhum  modo  de  retulitUrretolgnota 
f.  95,v.  fundamento.  Aponto  isto,  porque,  se  o  passarmos  em  *silencio,  pode  prorsusAethiopibus. 
ser  que  algum  as  tenha  por  verdadeiras  e,  ainda  que  o  foram,  pudera 
bem  escusar  de  tratar  essa  materia;  e  nam  menos  apocrifo  he  o  que 
alli  diz  que  as  que  se  convertem  mandam  a  Goa  ao  mosteiro  das  Con- 
vertidas  e  que  aos  filhos  dellas  e  qualquer  outro  bastardo  ou  illegitimo 
mandam  a  Goa,  ou  a  Ormuz,  a  Ceylam,  ou  Mo^ambique,  onde  os 
alimentam  a  custa  dos  sacerdotes ;  porque  em  Ethiopia  nam  podem 
estar.  Mas  nem  a  ellas  nem  a  elles  mandam  pera  nenhuma  de  essas 
partes,  nem  sei  que  re^am  podia  aver  pera  obrigar  aos  sacerdotes 
da  India  que   sustentasem   os  bastardos  e  illigitimos   de   Ethiopia, 
que  nem  ainda  os  sacerdotes  della  Ihes  dam  nada  com  aver  muytos 
na  terra,  se  nam  for  aos  seus. 

Quanto  a  as  sete  universidades,  que  poe,  onde  se  lee  a  me-  6.  Confutatur  Ur- 
dicina  c  se  estuda  com  tanta  curiosidade,  como  pinta,  tambem  he  tates.^Quid  praest^t 
mera  fic^am;  que  nam  ha  taes  universidades,    nem  as  ouve   nunca  niedici  in  Aethiopia. 

Medentur     omnibus 

em  Ethiopia,  nem  taes  examens,  nem  dotoramentos  de  estudantes;  infirmitatibus  ieiu- 
e  quando  os  ouvera,  bcm  longe  estava  o  prior  do  convento  de  Al-  utuntur*Coc6^contra 
lcluya  e  o  de    Plurimanos   (que  nam  se  chama    senam    Debra    Li-   tumores   carbunculi 

v^   .    -  succo  arboris  CorpA 

banos)  de  darlhcs  juramento  que  obedecesem  a  Igreja  Romana,  pois  vel  GuindA  dictae. 

elles  mesmos  nam  obedecem.  Nem  se  Ihes  facia  previlegio  a  estes 

doctores    em  os  esentar  de  dar  de  tres  filhos  hum  pera  a  guerra, 

porque  ninguem  o  da,    nem  ouve  nunca  tal  costume;    que  quando 

he  necessario  e  o  Emperador   chama,  todos   ham  de  ir  por  for^a, 

sem  ficar  mais  que  os  villoes  que  lavram  o  campo.    Nem  tambem 

podiam  passear  poUa  cidadc  em  elephantes;  pois,  como  muytas  ve- 

ces  temos  dito,  nunca  em  Ethiopia  se  vio  elephante  manso.  Os  me- 


2  24  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

dicos  que  ha  em  Ethiopia  sam  algims  que  conhecem  hervas  e  com 
elles  curam  e  ainda  destas  sabem  muyto  pouco ;  e  o  mais  ordinario 
he,  quando  adoecem,  nam  facer  micinha  nenhuma,  senam  muyto 
grande  dieta,  ate  que  ou  naturec^a  prevalece  ou  morre.  Huma  mi- 
cinha,  que  tomam  poUo  menos  cada  dous  meses,  a  que  chamam  C096, 
de  que  no  capitulo  precedente  falamos,  parece  que  os  preserva  de 
muytas  doencjas,  porque,  juntamente  com  matar  os  bichos,  que  de 
comer  carne  crua  Ihes  nacem  no  estomago,  pera  o  que  elles  a  to- 
mam,  Ihes  serve  de  purga  bem  eficaz ;  mas  se  tomam  demasiada, 
tambem  morrem, 

Ha  outra  arvore,  de  cuja  casca  da  raiz  e  do  leite  de  suas  fo- 
Ihas  se  aproveitam  muyto,  e  he  singular  remedio  pera  resolver  hin- 
cha^os  antes  que  comecem  a  facer  materia,  e  o  entraz  ou  carbun- 
culo,  que  he  tam  perigoso,  infalivelmente  o  sara,  se  o  poem  logo. 
Chamase  esta  arvore  Corpa  e  alguns  a  chamam  *Guinda.  Tem  as  f.  9'^- 
folhas  largas  e  nam  muyto  cumpridas  e  ainda  que  sam  verdes  por 
cima  tem  cor  de  cin^a ;  seu  fruto  sera  como  hum  mermelo  arra^oado 
e  assi  fica  depois  amarelo,  mas  dentro  he  vao  e  nam  tem  mais  que 
huma  pele  muyto  delgada,  e  nam  nace  senam  em  terras  muyto 
quentes;  e,  se  bem  me  lembra,  a  vi  na  ilha  de  Goa  pera  a  vanda 
de  santa  Anna.  Das  folhas  de  esta  arvore  (que  ordinariamente  nam 
he  muyto  grande)  tomam  o  leite  em  farinha  de  trigo  ou  de  cevada, 
mas  os  que  querem  facer  milhor  toniam  a  casca  da  raiz  e  depois 
de  seca  a  moem,  e  em  esta  farinha  tomam  o  leite  e  o  levam  pera 
onde  querem,  porque  se  conserva  muytos  tempos ;  mas  a  casca  da 
raiz  basta,  ainda  que  o  leite  he  milhor  e  poese  desta  maneira :  moem 
muyto  bem  aquella  ccisca  depois  de  seca  e  misturam  os  pos  com 
mantega  de  v:ica  fresca  e  untam  o  hinchago  duas  veces  cada  dia, 
e  nam  doe  nem  se  sente,  mas  ao  entraz  ou  carbunculo  ham  de  un- 
tar  aroda  e  nam  na  ponta  ou  cabecinha  que  iaz,  e  ham  de  beber 
desfeita  em  agoa  daquella  casca  como  dous  graos  de  trigo,  ou  pouco 
mais;  o  leite  raramente  bebem,  porque  he  muyto  forte.  Tambem 
aos  cavallos,  mulas  e  bois  poem  em  os  hincha^os,  mas  caelhes 
o  cavello  a  que  toca  e  depois  torna  a  nacer ;  o  que  nam  faz  aos 
homens. 
7.  De  duabus  mc-  Ja  que  falei  em  micinhas,  nam  deixarei  de  referir  o  que  tam- 

Turcas^usurpari  cum  bem  vi  estando  cativo  em  o  estreito  de  Meca.  Andavam  dous  meus 
successu      Auctor  concautivos  muyto  doentes  com  o  rosto  hinchado  e  amarello,  sem 

ezpertus  est. 

poderem  comer  nada,  e  disseramlhes  que    tomasem   por   la  minha 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXII.  225 

em  jejum  em  hura  ovo  malasado  como  meia  casca  de  noz  de  pos 
de  raiz  de  lirio,  nam  cebola  a^ucem,  senam  dos  outros  que  tem  a 
flor  a^ul,  e  com  isto  ficaram  rosados  e  muyto  bem  despostos;  so 
deciam  que  sentiam  hum  pouco  de  enxomento  ate  facer  huma  ou 
duas  camaras.  Tambem  me  aflirmaram  que  era  cousa  muyto  certa 

^  e  provada  que,  tomando  por  15  dias  em  jejum  tanto  como  meia  ca- 

sca  de  ovo  do  ^umo  desta  raiz  de  lirio   com  hum  pouco  de  bina- 

gre  destemperado  e  espiga  de  nardo  moida,  saram   os   hidropicos. 

Frey  Luis  de  Urreta  pag.  237  diz  que  ha  em  Ethiopia  huma 

folha  como  edra,  que  posta  pisada  sobre  as  feridas  as  sara  dentro 

I  de  poucas  horas,   mas  nam  pude   achar  quem   soubese  dar   re^am 

della,  n6m  da  nova   momia  mais   excellente   que  a  nossa,  que  af- 
firma  inventaram  os  medicos  de  Ethiopia. 
f.  96,v.  A  cerca  do  modo  que  diz  tem  em  ler  a  s.'*  theologia,  *comen-      8.  Quomodo  cie- 

_  _  rici  studeant  Conci- 

tando  os  cuatro  Concilios  Geraes,  tambem  o  enganaram,  porque  m^  ^i  s.  scripturac. 
nem  leem  de  essa  maneira,  nem  admitem  o  concilio  Calcedonense, 
antes  o  bituperam,  porque  declarou  por  de  fe  a  doctrina  de  s.  Liam 
sobre  as  duas  nature^as,  donde  se  siguem  tambem  duas  vontades  e 
opera^oes  em  Christo  N.  S.,  que  elles  negam,  e  condenou  a  Dio- 
I  scoro,  que  veneram  por  santo;  e  assi  em  hum  livro,  que  elles  cha- 

^  mam  Mazaguebta  Haimanot,  scilicet  «  thesouro  da  fe  »,  quc  milhor 

se  pudera  chamar  «  thesouro  de  mentiras  »,  e  em  outro,  [que]  inti- 

tulam  Haimanota  A.bb6  scilicet  «  fe  dos  Padres  »   dicem  que  os  pa- 

dres  daquelle  santo  concilio  eram  parvos  e  sobervos  e  sam   Liam 

j  maldito  e  tredo,  como  vimos  no  cap.  1 1  e  declararemos  mais  cum- 

pridamente  no  2.°  livro. 

O  que  declaram  dos  Concilios  que  tem  nam  he  ordinariamente      9-  !>«  quodam  mo- 

- .  ,  .        nacho  eximio  sacrae 

mais  que  a  Iingoa  em  que  estam  a  quem  nam  a  sabe,  porque   he  Scripturae  interprete 
diferente  da  vulear.  Da  Sacfrada  Escriptura  tem  aleuns  interpretes  JP^id  Acthiopcs :  re- 

o  o  r  o  r  feruntur      quaedam 

muyto  fracos  e  cheos  de  erros,  e  ainda  estes  alcan^am  poucos,  e  o  ipsius  interprctatio- 

r-      1  V  ^      j  1  nesrisudignae.  Quid 

irade,  que  chega  a  entender  alguma  cousa,  nam  a  msma  senam  a  ^^  talibus  magistris 

sos  aquelles  que  Ihe  pagam  muyto  bem,  e  assi  sc  fecha  com  elles  senscrit  Selt&n  Sa- 

gAd. 
em  alguma  casa  pera  declarar  o  que  Ihes  leo,  sem  deixar  entrar  a 

outro  nenhum.  E  por  derradeiro,  muyto  do  que  insinam  sam  fabulas 

e  patranhas,  como  facia  hum  frade,  que  se  pre^ava  de  grande  escri- 

turario  e,  por  ter  tal  fama,  o  tomou  por  mestre  este  emperador  Sel- 

I  tan  (^agued,  e  dalli  a  pouco  Ihe  morreo.  E  depois,  estando  eu  falando 

P  com  elle  sobre  algumas  cousas  da  Escriptura,  me  disse  que  aquelle 

!  frade,  que  Ihe  insinava,  chegando  a  declarar  aquelle  lugar  do  Ge- 


C.  BsccARi.  /ier.  Ae/A,  Script,  occ,  ined,  -II.  29 


2  26  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

nesis  6,  que  diz:  «  Vidcntes  filii  Dei  filias  hominum  quod  essent  pul- 
chrae  etc.  » ,  Ihe  dissera  que  os  que  aqui  chama  a  Escriptura  filhos 
de  Deos  eram  anjos,  e  que,  vendo  que  as  molheres  eram  fermosas, 
se  ajuntaram  com  ellas  e  pariram  filhos  gigantes  de  tam  grande  e 
extraordinaria  estatura  que  metiam  o  bra^o  ate  chegar  ao  fundo  do 
mar  Oceano,  e  alevantandose,  asavam  o  peixe,  que  de  la  tiravam,  na 
regiam  do  fogo  e,  como  acabaram  de  asolar  quanto  peixe  avia  no 
mar,  entraram  pollos  animaes  e,  estes  acabados,  comegaram  a  comer 
os  homens,  que  nam  eram  de  sua  casta;  e  vendo  Deos  tam  grande 
desaforamento,  mandou  as  agoas  do  diluvio,  com  que  os  castigou. 
A  isto  respondi  que  tudo  era  fabula,  porque  os  que  aqui  chama 
a  Escriptura  filhos  de  Deos,  nam  eram  anjos,  senam  filhos  de  Seth, 
a  quem  quis  com  este  honrroso  nome  differenciar  dos  da  gera^am 
reprovada  de  Cain,  cujos  descendentes  *eram  tam  maos  que  se  en-  f.  97. 
tregavam  de  todo  ponto  na  mao  de  seus  appetites.  As  filhas  de- 
stes  miseraveis  eram  muyto  fermosas,  o  que  vendo  os  filhos  de 
Seth,  levados  de  sua  grande  vellec^a  e  fermosura,  quebrantaram  a 
tradi^am  e  costume  que  tinham  de  nam  admitir  a  sua  conversa^am 
e  trato  gente  de  tam  perverso  tronco  e,  casandose  com  ellas,  toma- 
ram  juntamente  os  perversos  costumes  que  traciam  comsigo;  com 
o  que  se  veio  a  perverter  geralmente  a  religiam  e  culto  divino  e 
chegaram  as  maldades  dos  homens  ao  cume  da  dissolu^am  que  po- 
dia  caber  em  criaduras  da  terra,  tanto  que  nem  a  divina  Escrip- 
tura  quis  particulari(;:ar  tam  nefandos  delictos,  senam  que  se  con- 
tentou  com  dicer,  que  em  todos  seus  peccados  mudavam  o  estillo  e 
ordem  naturcJ  que  a  re^am  insina.  «  Omnis  quipe  caro  corruperat 
viam  suam  super  terram  »  Gen,  6.  Esta,  senhor,  foi  a  causa  porque 
Deos  nosso  senhor  mandou  as  agoas  do  dikivio,  nam  ja  porque  os 
gigantes  comesem  os  peixes  do  mar  e  os  animaes  da  terra.  Disse 
o  Emperador:  Assi  tambem  me  parecia  a  mi  muyto  fora  de  ca- 
minho  tal  explicagam,  como  tambem  me  pareceo  outra  que  me  deo, 
preguntandolhe  como  se  multiplicaram  tanto  os  filhos  de  Isrrael  no 
tempo  que  estiveram  em  Egypto,  porque  respondeo  que,  a  primeira 
vez  que  pariam  as  molheres,  vinha  cada  huma  com  dous,  e  a  se- 
gunda  vez  com  4,  a  3"  com  8  e  a  4^  com  16,  e  assi  hiam  sempre 
dobrando.  Disse  eu :  Certo  que  Ihes  obrigava  a  as  cuitadas  a  acar- 
retar  por  alguns  meses  huma  carga  muyto  grande,  e  mais,  de  pois 
que  parisem,  que  leite  e  que  peitos  aviam  de  bastar  pera  dar  a 
mamar  tam  grande  multidam  de  filhos  como  por  tempo  aviam  de 


LIVRO   I,   CAPITULO    XXII.  227 

vir  a  parir  juntos.  Rio  muyto  o  Emperador  e  disse :  Aqui  vera 
V.  R.  quaes  sam  nossos  mestres ;  que  ainda  este  era  dos  mais  afa- 
mados  que  temos. 

Como  seus  interprctes  da  Escriptura  c  seus  mestres  sam  tam  10.  Quid  Auctor 
fracos  e  isso  pouco  que  sabem  o  vendem  tam  caro,  se  maravilham  ^^^ca  versionem  in 
e  hedificam  muyto  de  ver  que  insinamos   tudo  de   gra^a  c  muyto  aethiopicamlinguam 

ahquorum   8.  Scrip- 

mais  de  quam  bem  declaram  os  nossos  as  Escripturas,  porque  Ihes  tujac  interpretum  et 
dimos  tresladada  na  lingoa  de  seus  livros  a  Epistola  ad  Romanos,  ^^°  ructu. 
como  a  declarou  o  padre  Toledo  e  a  Epistola  ad  Hebraeos  por  o 
padre  Ribadeneira,  o  Apocalipsis  por  o  padre  Bras  Viegas,  o  Evan- 
gelho  de  sam  Matteus  e  de  sam  Joam  por  o  padre  Maldonado,  e 
agora  himos  tresladando  o  de  sam  Lucas  e  o  que  falta  de  sam 
Paulo  por  o  padre  Benedicto  Justiniano,  e  o  principio  do  Genesis  por 
o  padre  Benedicto  Pereira ;  tambem  hum  tratado  sobre  todos  os 
erros  de  Ethiopia,  em  que  se  mostra  a  verdade  de  nossa  santa  fe 
com  a  doctrina  de  muytos  Santos,  com  a  Sagrada  Escriptura  e  san- 
f.  97»v.  tos  concilios,  com  re^oes  e  com  authoridades  de  seus  *mesmos  li- 
vros,  e  se  responde  a  todas  suas  obiecgoes  e  argumentos,  e  tudo 
quanto  ate  agora  se  Ihes  deo  escrito  esta  tam  bem  recebido,  polla 
misericordia  do  Senhor,  que  casi  todos  louvam  e  engrandecem  tanto 
esta  doctrina,  que  dicem  que  nam  pode  ser  senam  que  o  Sp.*°  S.*° 
Iha  dictou  a  aquelles  padres,  porque  nam  parece  que  entendimento 
humano  podia  chegar  a  alcan^ar  cousa  tam  alta.  Com  o  que  em 
estremo  folga  o  Emperador  e  Eraz  Cela  Christos  seu  irmao,  por 
ver  que  por  todas  vias  se  vam  acreditando  nossas  cousas  e  pedem 
com  muyta  instancia  que  fa^amos  vir  os  comentos  do  mais  que 
falta  da  Sagrada  Escriptura  e  limpemos  seus  livros,  que  estam  cheos 
de  erros. 


► 


Cv 


CAPITULO    XXIII. 

£m  que  se  trata  dos  animaes  assi  domesticos 
como  bravos,  que  ha  em  Ethiopia. 


Muytas  e  varias   terras  de  christaos,  de  gentios,  de  mouros  e       i-  Nulla  regio  ex 

iis  bene  multis  quas 

turcos  tenho   corndo  e  em   algumas   dellas   estado   muyto   tempo,  Auctor      peragravit 

muytos  bastos  bosques  e  cumpridos  desertos  tenho  passado,  em  que  ^*^®*  ^*  genera  et 
•^  -1  r  r  -1        species     animalium 

avia  muytos  e  varios  animaes;  mas  em  nenhuma  parte  vi  nem  ouvi  quot  Aethiopia.  Squi 

dicer  que  ouvese  tantos  animaes,  nem  tam  difFerentes  sortes  delles,   fop^  ^t  velocM.    ' 

como  dicem  que '  ha  em  Ethiopia  e  eu  em  parte  tenho  visto ;  por- 

que   primeiramente   ha  de  todas  as   castas  de  mansos   que  ha  em 

Europa,  como  cavallos  muyto  bons  no  reyno  de  Tigre  e  outros  mi- 

Ihores,  que  Ihes  vem  do  reyno  de  Dequin,  que  he  de  mouros,  a  que 

chamam  Balous,  diante  de  Quaquen.  Mas  estes  duram  pouco  em  esta 

terra,  porque  se  Ihes  facem  chagas  em  os  pes,  de  que  morrem.  Os 

demais  cavallos  do  imperio  comummente  sam  piquenos,  mas  fortes 

e  correm  bem.  As  mulas  sam  muytas  e  andam  bem,  posto  que  or- 

dinariamente  mais  piquenas  que  as  de  Europa,  e  disseme  o  Empe- 

lador  que  em  o  reyno  de  Gojam.  pariram  duas  e  morreram   logo 

com  os  filhos ;  mas  pessoas  de  credito  me  affirmaram  que  no  reyno 

de  Tigre  pareo  huma  pouco  tempo  ha  e  que  ate (0  ^. 

may  e  o  filho.  E  nem  a  ellas  nem  aos  cavallos  ferram  nunca,  pollo 
que  muytas  veces  manqueixam. 

(i)  Hic  in  ms.  Auctor  reliquit  spatium  vacuum. 


230  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

a.  Camell,  aaim  et  Ha  camellos,  jumentos  mansos  e  bravos  do  mato  muytos,  mas  os 

taeet  optJmae,  ea-  chatms  e  os  que  vam  a  guerra  comummente  nam  carregam  se  nam 
prae  et  ovea  paucae,  eni  bois.  De  vacas  ha  grande  multidam  e  em  alEmmas  partes  do 
aeceauiv«ldebonae.  <=<  i 

rcyno  de  Tigre,  como  na  provincia  de  Amacen,  de  Bur  e  outras,  pa- 

rem  mais  veccs  que  as  de  Europa,  porquo  (i)  goi;am  de  duos  inver- 
nos,  em  que  acham  grandes  hervas,  que  sam  muy  tcmperados,  por 
que  quando  he  invcrno  pera  a  vanda  do  Mar  Roxo,  que  la  co- 
mega  na  fim  de  otubro  e  dura  ate  fevereiro  ou  marpo,  ca  polla 
terra  dentro  he  verSo,  e  quando  ca  he  inverno,  que  comepa  na  *fim  r.  98. 
de  mayo  e  dura  ate  otubro,  la  he  verao,  e  he  cousa  maravilhosa 
que  humas  serras  sam  sempre  os  limites  do  invenio  e  do  verao,  e 
assi  pera  aquella  parte  onde  he  inverno  levam  sempre  as  vacas,  por- 
que  acham  muyta  herva,  que,ainda  que  chove  muyto,  nam  fa2  frio. 
Tem  alguns  bois  muyto  grandes,  que  chamam  Guech  e  criam 
os  de  piquenos  com  leite  de  duas  vacas  e  nam  lavram  com  elles; 
nam  servem  ordinariamente  senam  pera  comerem  os  senhores.  Os 
comos  de  estes  sam  tam  cumpridos  e  grossos  que  se  servem  delles 
pera  levarem  o  vinho  de  mel,  quando  vam  a  guerra  ou  facem  al- 
gum  caminho  cumprido.  Cabras  e  ovelhas  nam  sam  muytas,  nem 
de  boa  carne,  mas  em  algumas  partes  sam  bons  os  carneiros  e  al- 
guns  tem  quatro  cornos  grandes  que  quanto  piquenos  ainda  hum 
boi  vi  eu  com  oncc,  os  dous  como  de  cabra  e  os  outros  aroda  de 
cumpridam  e  grossura  de  hum  dedo  meninho  ou  pouco  mais,  que 
o  mostravam  por  cousa  muy  extraordinaria.  Alguns  carneiros  tem 
o  cabo  como  de  hum  palmo  ou  mais  de  cumprido  e  casi  outro  tanto 
de  largo,  Outrns  que,  com  serem  muyto  altos,  Ihes  chegam  os  ca- 
bos  casi  ao  cham  e  de  hum  palmo  ou  mais  de  largo  e,  como  o  peso 
hc  grande,  andam  devagar:  estcs  comummentc  sam  brancos. 
3.  Caoea  multi  et  Ha  muytos  caes  alguns   bem  fortes,  mas  os  que  servom   pera 

lu^apt^iMlm^s»™'  "^^^^  "^"^  chcgam  aos  galgos  de  Espanha ;  os  mais  sam  como 
etjamsylTeBtTea.Cati  podencos.  Tambem  ha  caes  bravos  do  mato,  e  hum  vi  que  tinham 
Pelea  multl  et  pulcn. 

tomado   piqueno,  e  casi   nam   se   deferonciam   dos   mansos    senam 

em  o  fucinho  que  he  muyto  mais  cumprido  e  chamamo  Tacula, 
e  dicem  que  se  acham  em  montes  muyto  bastos  e  que  quando  ca- 
(;am  se  poem  huns  escondidos  em  os  lugares  por  onde  ordinaria- 
mentr  sae  a  cai^a  e  outros  a  buscam  ate  a  facer  alevantar  e  seguem 
procurando  da  levar  pera  onde  estam  os  outros  que  satndo  poucas 

(T)  Hic  in  margine  e»dem    illa   maniis,  qiia   sccundiis  liuius   ojieris  lilicr  exar.itus 
apparet,  notal;   «  Variedade  de  Invcinos  no  Mnr  Roxo  e  reino  de  TigrC-  ". 


LIVRO   I,    CAPITULO    XXIII.  23 1 

veces  Ihes  escapa  e  a  gente  tambem  arremetem.  Gatos  tambem  ha 
muytos  e  fermosos. 

Dos  animaes  sylvestres  ha  muytas  mais  diferencias  que  em  4-  Animalia  sylve- 
Europa.  Alguns  filhos  de  Portugueses  me  disseram  que  no  reyno  8unt:rhinoceros,qul 
de  Gojam  em  huma  terra,  que  se  chama  Nanina,  andando  a  caca,  ▼oc**»*'  Aurarft»  ct 

habet  non  unum  sed 
^  viram  em  hum  valle  hum  fermoso  cavallo  com  a  coma  muyto  cum-   duo  comua. 

prida  e  o  cabo  que  chegava  ao  cham,  e  muytos  animaes  como  ca- 

bras  monteses,  gazelas  e  merus  que  o  acompanhavam  e  nos  vindo 

fugio  com  muyta  velocidade  e  entrou  em  hum  mato  muyto  fechado, 

e  todos  aquelles  animaes  o  siguiram,  e  ainda  que  nam  enxergaram 

se  tinha  corno  na  fronte  ou  nam,  Ihes  pareceo  que  nam  podia  ser 

senam  unicornio. 

Ha  outros  animaes  que,  conforme  ao  que  delles  mc  disseram, 

parece   que  sam  rinocerotes  ou  abadas,   porque  affirmam  que  tem 

f.  98,v.  o  corpo  tam  grosso  ou  mais  *que  huma  vaca,  os  olhos  muyto  pique- 

nos  e  a  pelle  tam   dura  que  com  dificultad  a  podia  passar  huma 

lan^a.  So  me  faz  duvida  se  sam  abadas,  porque  tem  dous  cornos, 

hum   sobre  as  narices  e  outro    na  testa,  e  a  abada,  que  eu  vi  em 

Madrid  o  anno  de  1587,  nam  me  lembra  se  tinha   mais  que   hum 

aserrado.  Os  de  ca  tem  dous,  e  pouco  tempo  ha  que  Ihe  trouxeram 

L  huns  ao  emperador  Seltan  Qagued  pegados  ainda  na  pelle,  que  elle  me 

mostrou  e  deo  hum :  o  da  testa  era  preto  e  na  raiz  grosso  e  pouco 

mais  acima  casi  de  tres  dedos  de  largo  e  menos  de  hum  de  grosso 

e  perto  de  tres  palmos  de  cumprido,  e  a  ponta  nam  era  aguda :  pa- 

recia  peda^o  de  alfange  com  sua  vainha  preta,  que  da  mesma  ma- 

neira  virava  hum  pouco  em  arco  pera  a  vanda  de  cima  da  cabe^a. 

O  outro  da  cima  das  narices  nam  era  preto,  senam  da  cor  que  sam 

ordinariamente  os  dos  bois  e  redondo  como  clles,  na  raiz  grosso  e 

cuatro  dedos  mais  acima  come^ava  a  adelgagar  mu)rto  e  na  ponta 

era  muyto  agudo  e  hia  em   volta  casi   como  o  outro  e  da  mesma 

cumpridam  que  elle,  e  amos  maci^os  e  afastado  hum  de  outro  perto 

de  meio   palmo;  mas  parece   que   estaram  muyto  mais   afastados, 

porque  aquella  pelle  estava  ja  muyto  seca  e  encolhida,  e  de  huma 

ponta  a  outra  avia  mais  de  hum  palmo  de  distanc^a.  A  este  animal 

chamam  Aurarez. 

'  Ha  outro  animal  a  que  chamam  Jeratacachcn,  que  quer  dicer       s.Camelopardalis, 

Qui    vocatur    Ter&ta** 

«  cabo  delgado  s,  de  diforme  altura.  Hum  nic  mostrou  o  Emperador,  cachftn  etequus  Ze- 
mandandome  chamar  pera  isso,  quando  o  trouxeram,  e  com  ser  ainda  *^"  ^®^^*  describun- 

tur  ab  Auctore. 

novo,  do  cham  ate  o  alto  da  cabecja  eram   1 9  palmos  e  deciam  que 


li 


232  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

os  velhos  sam  mais  cumpridos.  A  cabe^a  he  muyto  piquena  e  de 
fei^am  de  camello,  mas  na  testa,  ca^i  no  mais  alto,  tem  duas  pon- 
tas,  huma  perto  de  outra,  delgadas  e  4  dedos  de  cumprido  e  pa- 
rece  que  aquello  he  osso,  porque  esta  cuberto  de  pelle  com  cabello. 
O  pesco^o  delgado,  cumprido  e  dereito  pera  cima;  o  corpo  de  gros- 
sura  de  hum  boi,  mais  cumprido;  as  maos  muyto  grossas  e  de- 
sproporcionademente  altas,  por  ser  em  sua  compara^am  os  pes 
muyto  curtos;  as  unhas  fendidas  e  como  de  vaca;  a  cor  parda 
clara  e  todo  o  corpo  cheo  de  rodas  muyto  vermelhas  tam  grandes 
como  a  palma  da  mao,  que  Ihe  dam  muyta  gracja.  Nam  morde  nem 
faz  outro  mal  nenhum  e  nos  matos  corre  mais  que  hum  cavallo  e, 
se  o  tomam  sendo  novo,  fica  muyto  manso,  mas  nam  sobem  nelle, 
porque,  como  os  pes  sam  curtos  e  as  maos  em  seu  respeito  muyto 
cumpridas,  facilmente  derrubaria  a  quem  fosse  nelle. 
6.  Onagri  et  »e-  Jumentos   do  mato   ha  muytos  e  dicem   que  nam  se  difFeren- 

ciam  dos  caseiros,  mais  que  em  serem  muyto  vivos  e  ligeiros;  mas 
ha  outros,  a  que  tambem  chamam  jumentos  do  mato,  de  estremada 
*fermosura,  porque  parece  que  os  estiveram  pintando  com  pincel.  f.  99. 
So  as  orelhas  tem  hum  pouco  grandes  como  sam  as  dos  jumentos, 
msis  tambem  sam  fermosas,  porque  estam  cheas  de  riscas  delgadas 
em  circulo,  humas  muyto  pretas  e  outras  brancas  e  todas  uniformes; 
aroda  dos  olhos,  tambem  tem  outros  circulos  como  aquelles  e  do 
alto  da  testa  Ihe  decem  outras  riscas  dereitas  ate  as  ventas  das  na- 
rices,  mas  alli  as  riscas  brancas  nam  o  sam  tanto  como  as  outras, 
porque  tiram  hum  pouco  a  vermelhas.  Todo  o  pescogo  esta  cheo 
aroda  daquellas  riscas  brancas  e  pretas,  e  da  cruz  Ihe  vai  correndo 
por  o  lombo  ate  a  ponta  do  cabo  huma  risca  muyto  preta,  de  mais 
de  dous  dedos  de  largo,  e  della  por  huma  e  outra  vanda  Ihe  de- 
cem  outras  riscas  mais  estreitas  brancas  e  pretas  e  muy  uniformes. 
Em  as  maos  e  pes,  da  cima  ate  as  unhas,  tem  risceis  em  circulo 
como  as  das  orelhas.  As  unhas  sam  como  as  dos  jumentos  e  o  ca- 
vello  curto  muyto  macio.  Destes  tem  dous  o  Emperador,  e  a  seu 
irmao  Eraz  Cela  Christos  Ihe  vi  hum,  que  da  cabeca  ate  hum  pouco 
mais  da  metade  do  corpo  era  como  estes,  mas  dalli  por  diante  nam 
deciam  as  riscas  pera  baixo,  senam  tornavam  dereitas  pera  as  an- 
cas,  que  causavam  nova  fermosura.  Estes  animaes  nam  se  acham 
senam  em  terras  muyto  quentes  e  sam  poucos  e  assi  muy  estima- 
dos,  Sam  de  corpo  como  os  mayorcs  [jumentos]  que  ha  em  Espanha. 


i 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXIII.  233 

Tambem  ha  muytas  vacas  bravas  do  mato,  que  chamam  Tora,       7.  Boves  sylves- 

,     r  1      t_      ^  i_  1«    •       ^'  tres,  bubali,  elephan- 

bufaras,  elephantes,  mas  nenhum  manso,  hois,  tigres,  ongas,  mas  ^gg^  leones,  tigres, 
nam  tam  feroces  como  os  que  tracem  de  Africa  pera  Espanha.  Ha  pantherae    comunes 

^  et  nigrae,  porci  do- 

porem  outro  animal,  que  chamam  Guecela,  do  tamanho  de  hum  mcstici  et  sylvestres, 
liam  e  dicem  que  he  muyto  bravo  e  feroz ;  sua  pelle  tenho  vista  rirSi^si^Hn^^^ 
e  o  cavello  he  muyto  macio  e  preto.  Ha  porcos  mansos  e  dos  do  meri  et  invadunt  ho- 

•    t  1  .  mincs  in  ipsis  pagis 

mato  de  tres  fei^oes,  e  muytos  porcos  espmhos  e  huns  animaes  como  etiam  interdiu. 
raposas,  mas  pouco  maiores,  a  que  chamam  Cabaro. 

Lobos  nam  tem  conto  e  tam  bravos  que  no  mato  arremetem 
a  gente  de  dia,  e  de  noite  vem  muytas  veces  a  entrar  dentro  das 
cercas,  e  ainda  na  de  nossa  casa  de  Dambia  o  ficeram  algiimas,  com 
ser  de  pedra  e  espinhos  e  termos  muyto  bons  caes ;  c  pouco  tempo 
ha  que,  tendo  Eraz  Cela  Christos  irmao  do  Emperador  asentado 
seu  exercito  em  huma  terra  que  chamam  (^arca  do  reyno  de  Gojam, 
vieram  os  lobos  de  noite  e  levaram  rastando  hum  mogo,  que  dormia 
na  borda  do  arrayal,  e  ainda  que  gritou,  quando  Ihe  acudiram,  ja 
o  tinham  despeda^ado. 

Os   gatos  de  algalia   sam  muytos   e   assi  a  elles   como   a   al-      8.  Feles  odoratae 

...  ^*  '^   i_  •  j  A.  ji      multae ;      Aethiopes 

galia  chamam  Tinnh,  e  sam  casi  duas  veces  maiores  que  gatos  e  da  pi^rgg  captivas  deti- 
mesma  feicam ;  temos  sempre  em  gayolas  e  alli  Ihes  dam  de  comer  c  °«»*»   ^*  "  musco 

quaestum       faciant. 

0  beber,  porque  sam  tam  ariscos,  que  nunca  se  amansam,  e  se  se  sol-   Moscus,    feles    syl- 
f.  9o,v.  tam,  com  dificultad  os  tornam  a  tomar.  Tem  *algalia  em  huma  bol-  ^*®^"*  •*  mortes. 

sinha,  que  a  nature^a  Ihes  pus  entre  as  pernas,  e  tem  cuidado  da 
tirar  a  tempo,  nam  somente  pollo  ganho  que  nisso  ha,  mas  por  o 
dano  que  o  gato  recebe,  que  adoece  de  fevre,  se  Iha  deixam  estar 
muyto,  e  assi  os  que  andam  em  os  matos  se  rogam  nas  pontas  dos 
paos  secos,  pera  se  descarregar  della,  e  como  ja  sabem  isto,  a  vam 
a  buscar  onde  elles  andam;  o  ainda  no  reyno  de  Narea,  que  ha 
muytos,  Ihes  poem  de  proposito  (segundo  dicem)  na  terra  paos  cur- 
tos  com  a  ponta  de  cima  aguda,  e  alli  acham  muyta.  Tambem  ha 
almizcle  a  quem  chamam  Mezque.  Gatos  monteses  sam  muytos  e 
facem  grande  dano  em  as  galinhas,  elles  e  outras  duas  sortes  de 
animaes  que  ha  como  furoes. 

Os  bugios  sam  innumeraveis  e  de  muytas  castas :  huns  muyto  9.  De  variis  simia- 
piquenos  com  cabo  cumprido,  outros  pouco  mais  grandes  e  fermo-  I^^^Sbus^dTml 
sos ;  tem  debaixo  das  maos  e  parte  do  pescoQo  e  da  cabega  branco.  nosae.  Mures    sine 

numero,  tam  in  do- 

1  Estes  estam  de  ordinario  em  o  mais  alto  das  arvores.   Ha   outros  mibus,quaminagris; 
^                               mais  cfrandes  feos  como  os  piquenos,  e  outros  como  cfrandes  caes  8«'P«»^««  pl^^«s  ma- 

=»  r-  n  »  o  gm^  gc^  venenci  non 

e  muyto  niais  feos  que  todos,  tem  dos  peitos  pera  cima  atc  a  ca-  adco  frequcntcs. 

C.  Bkccari.  /ier.  Aeth,  Script,  occ,  ined,  —  II.  30 


► 


2  34  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

bega  huma  caveleira  mais  cumprida  que  de  liam,  e  mordem  muyto. 
Todos  facem  muyto  grande  dano  em  as  sementeiras  e,  se  nam  as 
vigiassem  tanto  como  acostumam,  sem  duvida  acabariam  as  que 
estam  perto  dos  bosques  e  rochas  onde  elles  andam.  Com  tudo  fur- 
tam  muyto,  porque,  em  quanto  o  que  guarda  vai  pera  huma  parte, 
elles  saem  por  outra.  Huma  vez,  estando  eu  em  hum  valle,  levantei 
os  olhos  a  as  voces  que  dava  hum  homem  pera  que  nam  Ihe  en- 
trasem  em  huns  graos  que  guardava,  e  hum  delles,  que  hia  mais 
diante,  correo  e,  chegando  a  borda  dos  graos,  arrancou  a  toda  pressa 
com  amas  as  maos  quantos  Ihe  puderam  caber  na  boca,  e  acolheose 
antes  que  o  dono  pudese  chegar.  E  com  serem  tam  grandes,  sobem 
por  rochas  tam  ingremes  que  parece  que  sos  pasaros  podiam  che- 
gar.  Chamamos  Zenyero,  e  aos  que  tem  branco  Gure^a.  Tracem 
por  brinco  em  as  casas  com  cadea  assi  de  huns  como  de  outros, 
mas  muyto  poucos.  Outra  praga  muyto  grande  ha  em  todas  estas 
terr^is  de  Ethiopia  que  tenho  vistas,  como  o  reyno  de  Tigre,  Beg- 
meder,  Gojam,  Dambia  e  outros,  particularmente  na  provincia  de 
Oagra,  que  sam  ratos  sem  conto  e  facem  grande  dano  nas  semen- 
teiras,  nem  ainda  em  as  casas  dam  vida,  por  mais  gatos  que  tenham, 
nem  armadilhas  que  Ihes  ponham. 

Ha  cobras  pe^onhentas,  posto  que  nam  muytas,  e  serpentes 
muyto  grandes,  e  dicem  que  o  bafo  de  algumas  basta  pera  facer 
hinchar  os  gados  e  morrerem,  se  nam  Ihes  facem  logo  micinha. 
Outros  muytos  animaes  ha  que  deixo,  assi  por  serem  conhecidos, 
como  de  muy  pouca  importancia. 
lo.  Urretae  fabu-  Do  que  temos  dito  se  vee  quam  falsa  foi  a  informac^am  *que   f.  loo. 

lae     circa     FauDaixi 

Aethiopiae  refutan-  deram  a  frey  Luis  de  Urreta   sobre  algumas   destas  cousas,   pois, 
^^'  como  afirma  no  cap.  25  de  seu  1°  livro,  o  Preste  Joam   pode  por 

na  gnerra  500  elephantes  encastellados,  sendo  assi  que  nenhum  ha 
manso  em  todas  suas  terras,  nem  memoria  de  que  o  ouvese  nunca, 
como  affirmam  todos  e  me  disse  o  mesmo  Emperador.  Tambem  diz 
que  em  Ethiopia  nam  ha  lobos,  nem  caes,  sendo  innumeraveis  assi 
huns  como  outros.  Pollo  que  causou  muyto  grande  riso  a  todos  os 
que  ouviram  isto,  e  nam  menos  me  causou  a  mi  o  que  juntamente 
affirma  que  nem  em  Arabia  ha  caes,  porque,  se  fala  (como  parece) 
da  Arabia,  que  corre  da  fortalecja  de  Mascate  (que  he  de  Portu- 
gueses)  ate  bem  dentro  das  portas  do  estreito  de  Meca,  eu  corri 
grande  parte  della  e  sempre  achei  muytos  caes.  E  se  se  lembrara 
que  tinha  dito  na  pag.  96  que  os  principes,  que  estam  no  monte 


LIVRO    I,   CAPITULO   XXIIL  235 

de  Amhara,  tem  caes  ventores,  lebreos,  e  sabuesos  pera  ca^ar,  nam 
affirmara  aqui,  pag.  254,  que  em  toda  Ethiopia  nam  ha  caes  e  que, 
se  chcgam  naos  de  Europa  e  deixam  algnns  de  Irlanda  e  Ingla- 
terra,  morrem  dentro  de  hum  mes. 

Tambem  diz  dos  gatos  de  algalia,  que  cada  hum  conhece  sua 
casa  como  os  outros  animaes  domesticos  e  que,  vam  acs  montes  a 
ca<;a,  porque  nam  se  sustentam  de  outra  cousa,  e  quando  co- 
mem  mais  carne  do  mato,  he  milhor  a  algalia,  e  que,  quando  a  bol- 
silha  onde  ella  se  recolhe  esta  chea,  vem  a  suas  casas  correndo  e 
dando  saltos  como  raibosos,  e  como  entram,  o  primeiro  que  os  vee 
toma  hum  pao  e  como  que  Ihe  quer  dar  a  elle  da  no  cham  e  pol- 
las  paredes,  e  elle  anda  saltando  de  huma  parte  a  outra  ate  que 
cansa  e  sua ;  e  entam  Ihe  abrem  sua  gayola  de  madeira,  onde  en- 
tra  correndo,  e  alli  com  huma  colher  Ihe  tiram  a  algalia,  e  logo  fica 
durmindo  dous  e  tres'dias,  e  como  acorda,  se  torna  outra  vez  pera 
o  mato.  Disto  cjombaram  muyto  todos,  porque  sempre  os  tem  em 
gayolas  e  alli  Ihes  dam  de  comer,  e  se  algum  se  solta,  com  diffi- 
cultad  o  podem  tomar  a  tom.ar. 

Mas  o  que  principalmente  Ihes  caio  em  gra^a,  foi  outra  fabula 
que  conta  das  monas  ou  bugios  pag.  252,  por  estas  palavras:  «  De 
4  las  monas  se  sirven  cn  la  Ethiopia  en  todos  los  menesteres  como 
«  de  criados,  que  no  ay  mas  differencia  que  el  hablar  o  estar  mudo. 
«  Ellos  fuegan,  traen  agua,  barren,  para  asar  la  carne  menean  el 
«  asador.  Ay  hombres  que  tienen  30  y  40,  que  les  sirv^en  en  sus 
«  labran<;as  como  gaiianes ;  danles  de  almorgar  por  la  mafiana  y  a 
«  cada  unp  le  dan  su  agadilla  y  escardillo,  y  embianlos  al  campo 
«  donde  entrecavan  las  sementeras,  las  escardan,  quitandoles  la  ma- 
«  lega,  despedrandolas  y  las  dexan  muy  limpias  y  lo  hacen  con 
«c  tanta  curiosidad  como  un  hombre,  y  acabando,  se  buelven  a  su 
«  casa  adonde  les  dan  de  comer.  Embianlos  a  comprar  carne  y  vino 
«  y  otras  mil  cosas,  que  parecen  increibles.  Los  soldados,  que  estan 
f.ioo,v.  «  en  frontera  de  enemigos,  *en  los  presidios  y  fortale^as,  sc  sirven 
«  de  las  monas  por  escoltas  y  atalayas  y,  subiendo  sobre  el  chapitel 
«  de  la  tienda  o  en  la  guarita  del  muro,  hacen  la  vela  toda  la  noche 
«  mucho  mejor  que  un  ^oldado,  porque  tienen  el  oydo  mas  vivo, 
«  que  a  penas  sientcn  el  ruido  de  media  legua,  quando  a  gritos 
«  despiertan  a  todos  los  soldados  ». 

Isto  he  o  que  das  monas  refer  o  Author,  a  quem  nam  Ihe  pa- 
receo  increivel,  pois  o  escreve  como  cousa  certa.  Porem  os  de  Ethio- 


i 


236  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

pia,  nam  somente  nam  viram  nunca  estas  cousas  em  sua  terra,  mas 
nem  as  ouviram  ate  agora,  que  eu  Ihas  contei  e  temas  por  tani  fa- 
bulosas  que  Ihes  parece  que  em  nenhuma  parte  as  pode  aver.  E 
isso  me  basta  pera  com  regam  condenar  a  quem  Ihe  disse  que  as  avia 
em  esta  terra,  e  ainda  o  darselhe  tanto  credito  que  se  escrevesem 
como  certas ;  nam  reprovando  o  que  traz  do  padre  Joseph  de  Aco- 
sta,  de  quem  diz  que,  tratando  das  cousas  naturaes  do  Peru,  refer 
cousas  semelhantes  das  monas  e  de  huma  que  a  mandavam  por 
vinho  a  taberna  e,  se  Ihe  deciam  alguma  cousa  os  rapages,  punha 
a  basiiha  perto  de  alguma  porta  e  hia  apos  elles  a  as  pedradas, 
e  como  fugiam,  a  tornava  a  tomar  e  proseguia  seu  caminho.  Em 
esto  nam  tenho  que  falar,  porque  sei  muyto  bem  que  aquelle  padre 
nam  avia  de  escrever  cousa  por  cierta  que  nam  o  fosse  muyto. 

Nam  menos  novo  se  Ihes  fez  o  modo  que  diz  tem  ca  de  matar  o 
rhinoceronte  ou  abada,  que  conta  desta  maneira  pag.  246  :  «  EUos 
«  andam  en  la  provincia  de  Gojama  a  las  raices  de  los  montes  de 
«  la  luna,  donde  nace  el  rio  Nilo,  y  en  sola  esta  tierra  se  hallan 
«  entre  todas  las  de  la  Africa.  Quando  tienen  noticia  de  alguno,  ar- 
«  man  sus  escopetas  y  toman  una  mona,  que  la  tiencn  industriada 
«  para  esta  ca^a,  y  la  echan  al  campo,  y  ella  al  punto  anda  bu- 
«  scando  al  rhinoceronte,  y  en  viendole,  se  va  para  el  y  empie^a 
«  a  dar  mil  saltos  y  a  bailar,  haciendo  mil  monerias,  y  el  muy  con- 
«  tento  esta  mirando  las  fiestas  que  le  hace ;  dando  saltos  la  mona 
«  por  una  pierna  se  le  sube  en  cima  de  las  espaldas,  donde  le  ra- 
«  sca  y  le  va  florando  el  pellejo,  con  lo  qual  recibe  grande  gusto 
«  y  placer,  y  saltando  en  el  suelo,  le  empiega  a  fregar  la  barriga, 
«  y  el  rhinoceronte  con  el  regalo  se  echa  en  tierra  y  se  estira  y 
«  despere^a  muy  tendido  en  el  suelo.  Entonces  los  cagadores,  que 
«  estan  escondidos  en  algun  lugar  seguro,  le  assiestan  con  sus  bal- 
«  lestas  o  escopetas  al  ombligo,  el  qual  tiene  muy  delicado  y  tierno 
«  con  el  pellejo  de  la  barriga  y  hiriendole  en  el,  luego  queda  muerto, 
«  por  tener  alli  el  pulso.  En  estando  muerto,  acude  mucha  gente  y 
«  atandole  de  los  pies  traseros  le  cuelgan  de  un  arvol  la  cabe^a 
«  colgando  para  que  le  venga  toda  la  sangre  y  humores  a  ella,  y 
«  esta  desta  suerte  unos  quartos  dias,  y  despues  le  cortan  el  cuerno, 
«  que  es  lo  que  se  procu[ra]  de  ellos,  y  assi  tiene  mas  virtud 
«  contra  qualquier  veneno,  y  para  que  tenga  mas  fine^a  el  cuerno, 
«  aguardan  ciertas  *lunas  del  aiio,  que  no  los  matan  en  todo  f.  101, 
«  tiempo  » . 


LIVRO   I,  CAPITULO   XXIII.  237 

Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta,  e  desejando  eu      n.  Quid  Auctori 

,  ^jii  ^  '^jj  rctulerit   Selt&n  Sa- 

saber  a  certe^a  dellas,   por  ser  tam  gracioso   este  modo  de  ca^ar  ^^^  ^^^^   modum, 
hum  animal  tam  feroz,  preguntei  ao  Emperador  Seltan  Cagued,  por  V^^  ^P®^  «*  *^^*  ^^*" 

nocerontes  venando 

Ihe  ter  primeiro   ouvido  que  os   matava,  sendo   mancebo,  e  junta-  capere  solent. 

mente  Ihe  referi  o  que  aqui  diz,  e  festejou  com  muyta  gra^a  a  festa 

que  affirma  faz  a  mona  ao  rhinoceronte,  e  disse  que  nam  avia  tal 

modo  de  ca^ar  em  Ethiopia,  nem  sabiam  que  cousa  era  besta  pera 

tirar,  senam  que  hiam  com  seus  cavallos  e  lan^as  curtas,  com  que 

tiram  de  longe  e  com  ellas  os  matavam,  e  que  tambem  elles  muy- 

tas  veces  Ihes  matam  os  cavallos  e,  apontando  com  a  mao  pera  hum 

seu  jenrro,  que  alli  estava,  muyto  grande  cavalleiro,  disse:  A  este 

Ihe  tem  morto  ja  dous  cavallos  muyto  fermosos.   Eu  hia  primeiro 

muytas  veces  a  esta  cacja,  e  huma  tirei  a  hum  com  minha  lan<;a  e, 

dandolhe   em  huma  ilharga,  Ihe  meti  todo  o  ferro  dentro,  e  meus 

criados  o  acabaram  de  matar.  Disse  seu  mordomo :  Aqui  esta  fuao, 

que  tem  morto  cinco  por  sua  mao.  Mas  pera  isso  nam  esperamos 

certas  luas,  nem  sabemos  que  em  humas  tenha  o  corno  mais  vir- 

tude  que  em  outras,  e  em  matandoos  Ihes  cortamos  os  cornos. 


CAPITULO   XXIV. 


Das  aves  que  ha  em  Ethiopia. 


Assi  como  em  Ethiopia  ha  grande  multidam  de  knimaes,  tam-      i.  Avium  omnia 

V  t_  _^        j  •  £r  •  -^        j  gcnera  in  Aethiopia. 

bem  se  acham  muytas  difrerencias  e  varias  sortes  de  aves,  porque  Gaiiinaceae;Colum- 

tem  casi  todas  as  que  sam  comuas  em  Europa  e  outras  muytas  la  ^*®* 

nunca  vistas.  Ha  galinhas  caseiras  e  outras  do  mato  tam  grandes 

como  ellas  com  a  penna  que  tira  a  agul  semeada  de  muytas  e  bem 

ordenadas   pintas   brancas   menores  que  huma   lentilha,  e    quando 

estam  gordas,  que  he  no  tempo  que  se  recolhe  o  mantimento,  sam 

muyto  boas  pera  comer.  Destas  ha  tantas  que  nam  tem  conto  e,  se 

as  tomam  piquenas,  ou  botam  seus  ovos  a  as  de  casa,  ficam  muyto 

mansas   e    dicem  que    algumas    criam   em   casa   e    chamamas   Ze- 

gra.  Ha  pombas  mansas  e  das  do  mato  de  tres  ou  4  sortes.  Ha  outras 

aves  muyto  brancas,  que  chamam  Sabisa  e  andam  vandos  muyto  gran- 

des  e  de  longe  parecem  pombas ;  mas  nam  aproveitam  pera  comer, 

porque  sua  carne  he  muyto  preta  e  ruim ;  tem  o  pesco^o,  o  bico  e  as 

pernas  muyto  mais  cumpridas  que  as  pombas.  Ha  rolas  de  tres  ma- 

neiras,  humas  muyto  piquenas,  outras  como  as  de  Europa  e  outras 

maiores,  e  desta  vi  eu  huma  toda  branca.  Perdices  se  acham  tambem 

de  tres  feigoes :  humas  muyto  mais  grandes  que  as  de  Europa  e  na 

penna,  pes  e  bico  se  parecem  muyto  com  ellas ;  as  outras  duas  sortes 

no  corpo  sam  igoaes  com  as  nossas  e  no  bico  e  pes  semelhantes  a  el- 


seraceae. 


240  HISTORIA   DE   ETHIOPXA 

las,  mas  na  penna  se  differenciam  muyto  e  nenhumas  destas  chegam 
a  vondade  das  de  Europa,  antes  tem  carne  *muyto  seca  e  desabrida.  f.ioi,v. 
Francolins  cuido  que  nam  ha,  porque  nunca  os  achei,  nem  quem 
soubese  dar  re^am  delles;  mas  no  estreito  de  Meca,  da  vanda  de 
Arabia,  nam  faltam.  Na  casa,  onde  eu  estava  cativo,  andavam  dous 
soltos  com  as  galinhas,  mas  cortadas  as  asas,  e  nam  se  difFerenciam 
das  perdices  de  Europa  mais  que  em  terem  hum  peda^o  debaixo 
do  bico  e  ate  perto  dos  olhos  muyto  preto  e  cantarem  de  outra 
maneira. 

De  codornices  ha  grande  multidam  no  verao  e,  como  chega 
o  inverno,  parece  que  se  passam  a  outras  terras  onde  entam  co- 
mega  o  verSo,  porque  dentro  das  mesmas  terras,  que  senhorea  o 
Preste  Joam,  ha  sempre  juntamente  inverno  e  verao :  quando  pera  a 
vanda  do  mar  he  inverno,  ca  mais  polla  terra  dentro  he  verao  e 
viceversa. 
2.  Psyttaci ;  Pas-  Ha  muytos  papagayos,  pouco  maiores  que  hum  tordo,  e  dicem 

que  em  algumas  partes  se  acham  de  casta  grande  e  comummente 
sam  verdes,  posto  que  alguns  tem  no  collo  hum  pouco  vermelho. 
Ha  papafigos,  estorninhos,  pardaes,  outros,  e  nam  menos  daninhos, 
de  seu  tamanho,  o  corpo  amarello  e  as  asas  pardas,  outros  mais 
piquenos  apues,  outros  pretos  como  acebiche,  outros  como  velludo 
carmesi  e  a  pena  parece  tambem  cabello  de  velludo,  outros  pin- 
tados  de  branco  e  preto  com  crista  e  barbas  como  gallo  e  de  de- 
tras  da  crista  Ihe  saem  humas  pennas  fermosas,  que  biram  sobre 
ella;  outros  muytos  ha  bem  fermosos  differentes  dos  de  Europa. 
Dos  que  cantam  bem  ha  canarios  solitarios  e  outras  muytas  sortes 
de  passarinhos,  que  facem  muyto  boa  musica.  Ha  outros  tam  gran- 
des  como  huma  pomba  rajados  de  pardo  e  branco,  que  cantam 
muyto  mal :  tem  o  bico  de  meio  palmo  de  cumprido  e  arcado  ;  e 
outros  do  mesmo  tamanho  verdes  com  o  peito  amarello,  e  quando 
cantam,  parece  totalmente  que  ladra  algum  cachorro.  Outros  gritam 
de  maneira  que  quebran  os  ouvidos:  sam  tam  grandes  como  ga- 
linhas,  huns  pardos  e  outros  muyto  brancos,  e  tem  o  bico  de  casi 
hum  palmo  de  cumprido  arcado  e  delgado,  e  chamase  Anan.  Ha 
outras  aves  casi  tam  grandes  como  hum  cysne,  mas  com  so  o 
peito  e  pontas  das  asas  brancas  e  o  demais  tira  a  preto:  tem  os 
pes  e  collo  cumprido,  o  bico  curto  e  na  cabega  humas  penas  cum- 
pridas  delicadas  e  como  loras  que  parecem  coroa.  Destas  andam 
sempre   muytas  juntas,   particularmente   em   Dambia,  a  cujo  Vis- 


LIVRO  I,   CAPITULO  XXIV.  -41 

sorrey  cham^o  Cantiba,  e  a  estas  aves  Cantiba  Mecercana,  «  che- 
remellas  do  Cantiba  » ,  porque  quando  gritam  se  parecem  com  as 
cheremellas  que  elle  leva  sempre  diante  e  Ihe  facem  asaz  de  ruim 
musica. 

Ja  que  himos  falando  de  tam  bops  cantores,  nam  sera  re- 
Qam  que  deixemos  de  fora  os  corvos,  de  que  ha  duas  ou  tres 
f.  102.  sortes:  huns  muyto  grandes  com  huma  pinta  branca  *no  tortic^o  [szc], 
outros  de  todo  pretos  do  tamanho  dos  de  Europa,  outros  com  o 
peito  e  pescoijo  branco,  ainda  que  estes  mas  parecem  gralhas 
que  corvos. 

Tambem  ha  muytas  maneiras  de  abutres :  huns  brancos  com  o      3»  Vultures,  stm- 

,  .  11  ^  ^  1  ji  '^     t  thiones;    circa  quos 

bico  e  pes  amarellos,  outros  pretos  com  hum  pouco  do  peito  branco;   fabula  quaedam  ex- 

outros  pardos  de  muyto  grande  corpo  e  de  muy  extraordinario  chei-  ploditur. 

rar,  porque  como  morre  algum  animal,  vem  logo  de  muyto  longe 

e  se  ajuntam  grandes  vandos.  Ha  outros,  que  na  gTande<;!a  do  corpo 

e  no  coUo  se  parecem  com  os  gallipavos  do  Peru,  mas  sam  pretos 

com  so  as  pontas  das  asas  brancas,  e  na  cabe^a  perto  do  bico,  que 

he  g^rande,   tem  hum  corninho  de  tres   dedos  de  cumprido  e  dous 

de  gTosso,  mas  todo  vao  e  averto  na  ponta,  e  dicem  que  he  con- 

trapeQonha  e  que  val  pera  a  peste,  e  que,  se  comem  sua  carne  os 

leprosos  no  principio  da  doen^a,  se  acham  bem:  chamase  Hercum. 

Ha  outro  tam  g^rande  como  este  a  que  chamam  Eceitan  faraz,  «  ca- 

vallo  do  diabo  »  por  ser  muy  feo,  c  do  pescogo  pera  o  cabo  cum- 

prido,  e  andar  muyto  mal,  posto  que  ligero ;  he  pardo  e  tem  o  bico 

e  pes  amarellos  e  no  tortigo  humas  pennas  cumpridas  dereitas  pera 

atras  que  Ihe  podiam  servir  de  redia.  Em  companhia  deste  podia- 

mos  por  a  ema  ou  abestruz,  se  he  certo  que  se  ha  de  contar  entre 

as  aves,  porque  tambem  he  asaz  fco ;  mas,  ainda  que  alguns  facem 

semelhantes   seus   pes  aos  do  camello,   se    parecem    muyto   pouco 

com  elles,  porque  tem  dous  dedos  em  cada  pee  como  de  ave,  po- 

sto  que  grossos  e  malfeitos:  o  da  vanda  de  dentro  he  cumprido  e 

o  outro  muyto  mais  curto ;  nem  sei  como  com  aquelles  dcdos  pode 

tomar  pedras  e  tiralas   pera  atras  contra  os  que  os  seguem,  como 

tambem  dicem,  porque  nam  sam  pera  as  poderem  tomar;  e  muytas 

veces  os  vejo   correr  na  cerca  do  Emperador,   andando  os  pagens 

apos  elles  brincando,  e  nunca  vi  que  tirasem  pedra ;  parece  que  os 

veriam  ir  fugindo  por  cntre  pedras  e,  como  correm  com  muyta  for^a, 

pondo  os  pes  sobra  algumas,  saltariam  pera  atras  e  cuidariam  que 

elles  as  tomavam  e  as  tirav^am.  Em  esta  terra  ha  muytos,  e  dicem 

C.  Beccari.  /ier.  Aetk,  Script,  oce,  ined,  —  II.  31 


242  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

que  correm  tanto,  que  com  muyta  difficultad  os  alcan^ara  hum 
cavallo. 

4.  Rapaccs  diur-  Aves  dc  rapina  ha  muytas  e  de  diversas   especies,  como  ga- 
'               *          viaes,  falcoes,   azores,  que  matam   muytas  perdices  e  gallinhas  do 

mato  e  algumas  veces  se  arreme^am  a  as  de  casa.  Mas  a  gente 
nam  sabe  cat^ar  com  elles.  Ha  outros  que  tomam  codornices  e  ou- 
tros  passaros  piquenos.  Aguias  reais  dicem  quc  ha  algumas,  mas 
ate  agora  nam  vi  nenhuma ;  das  que  tomam  ratos  ha  muytas  e  dc  va- 
rias  sortes.  Minhotos  tambem  ha  muytos,  e  cygonhas  de  muytas  ma- 
neiras :  humas  mais  piquenas  que  as  de  Europa  e  da  mesma  cor,  a  que 
chamam  Hebab  oat,  *«  engulidor  de  cobra»,  que  a  cobra  chamam  He-  f.io2,v. 
bab ;  outras  sam  grandes,  mas  tem  o  peito  branco  e  o  demais  preto,  e 
destas  ha  duas  sortes  ou  tres  difFerencias.  Grous  ha  muytos  no  verSo, 
particularmente  em  Dambia  e  hc  cousa  pera  notar,  e  tem  obser- 
vado  os  moradores  desta  terra,  que  todos  os  annos  entram  nella 
em  hum  mesmo  tempo,  sem  haver  difFerencia  de  huma  vez  a  outra 
mais  que  tres  ou  4  dias,  quando  muyto,  e  como  se  chega  o  tempo  em 
que  ham  de  tornar  pera  sua  terra  (que  tambem  o  tem  certo),  as 
que  estam  em  Dambia  sobem  todas  as  minhas  tam  altas  que  casi  nam 
se  enxergam,  por  8  ou  dez  dias  continuos,  e  andam  gritanto  ate 
perto  de  meio  dia,  como  chamando  a  as  que  estam  em  as  terras  ve- 
cinhas  que  se  juntem  pera  caminharem  todas  em  companhia,  e  dc 
facto  vem  outras  muytas  a  Dambia  em  aquelles  dias  e  partem  to- 
das  juntas. 

5.  Palmipedae.  Das  aves,  que  andam  em  os  rios  e  lagoas,  ha  muytas  mais  sor- 

tes  que  de  outras  nenhumas,  e  tantas  que  nam  tem  conto ;  e  a  fora 
de  gargas,  que  sam  bem  conhecidas,  corbos  marinhos,  ha  adens  de 
muitas  maneiras  e  humas  que  sam  como  grandes  patos  e  a  carne 
como  elles,  mas  pretos  e  o  peito  branco,  a  que  chamam  Uy^a. 
Outras  hum  pouco  mais  piquenas,  pardas,  que  chamam  Ibroch,  e 
se  he  huma,  Ibra.  Estas  sam  muytas  e  facem  grande  dano  em  os 
mantimentos,  e  assi,  quando  tem  fruito,  he  necessario  guardallos; 
porque  se  nam  os  destruiram  ellas  e  os  grous.  Tambem  ha  outras 
aves  tamanhas  como  abutardas,  todas  brancas,  e  tem  o  bico  amarello 
de  hum  palmo  de  cumpridc  e  de  tres  dedos  de  largo. 

Nam  me  quero  deter  em  falar  das  aves  das  alagoas,  que  se  de 
so  as  que  andam  a  longo  desta  de  Dambia,  onde  eu  estou  mais  de 
ordinario,  se  ouvera  de  tratar,  fora  cousa  muy  cumprida,  porque 
nam  tem  conto. 


> 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXIV.  243 

Tambem  ha  muytas  aves  nocturnas,  como  bufos,  mochos,  co-  6.  Strigidae. 
rujas,  morcegos,  e  estes  nam  sam  pouco  perjudiciaes  em  as  igre- 
jas,  onde  se  juntam  muytos,  porque  sam  escuras  e  altas  e  assi  as 
enfigoam  com  seu  mao  cheiro;  ao  que  se  junta  aver  nellas  de  or- 
dinario  muytas  endroninhas,  que  tambem  as  sujam  mu)^to,  porque 
criam  dentro. 

Esta  materia  das  difFeren^as  das  aves  que  ha  em  Ethiopia  trata      7.  Quae  de  incu- 

rT-jTT^  ,-  o-.  ,  batione     gaUinarum 

frey  Luis  de  Urreta  no  cap.  26  de  seu   i     livro;  mas  em  algumas  retulit  Urreta  falsa 
cousas  nam  teve  corta  InformaQam,  como  no  que  diz  pag.  268,  quo  ®^?**  .9*^^^^®.  .^*7° 

nulliDi  in  Aethiopia. 

nam  ha  aves  noctumas,  nem  gabiaes,  nem  azores,  nem  outras  aves 
de  volateria,  senam  as  que  tracem  da  Persia  pera  presentar  aos 
Reys  e  principes.  Tambem  que  as  gallinhas  como  poem  nam  se 
podem  comer,  e  que  pera  chocar  os  ovos  poem  mil  e  dous  mil  jun- 
tos  na  area,  e  cubrindoos  com  esterco,  botam  em  cima  area,  e  que, 
como  he  terra  que  casi  nunca  chove  e  o  sol  muyto  forte,  se  cho- 
cam  e  saem  os  pintainhos  e,  tomando  de  pois  hum  gallipavo,  Ihe 
depcnam  os  peitos  e  a^oitam  com  ortigas  e  assi  o  ensinam  a  criar 
f.  103.  os  pintainhos  e  vam  dous  mil  apos  elle.  Isto,  segundo  dicem,  *se 
acostuma  la  pera  o  Cairo,  onde  chove  pouco  ou  nada,  mas  nas  ter- 
ras  do  Preste  Joam  nam  ha  tal  cousa,  nem  viram  nunca  gallipavos, 
nem  ha  memoria  de  que  trouxesem  alguma  vez  da  Persia  gabiaes 
ou  falcoes,  nem  ca  sabem  ca^ar  com  elles,  que,  se  souberam,  nam 
Ihes  faltavam  em  sua  terra. 

Sobre  todas   estas   cousas   he   muyto   fabulosa  e   ridicula   em      8.   Deridetur  de- 

T-  -  .       .  ^      j      i_  n        ja  '^   t  j.        scriptio  Urretae  cu- 

Ethiopia  a  quc   conta  de  huma   ave  no  nm  do  capitulo,  por  estas  iugdam  avis  mirabi- 

palavras  :  ^^^  absque  pedibus. 

€  La  otra  ave,  que  la  he  guardado  pera  el  fin  de  este  capitulo,  es 
€  la  que  aca  llamamos  del  Parayso,  o  como  llaman  en  Ethiopia,  Ca- 
€  menios,  que  quiere  decir  camaleon  del  aire.  El  cuerpo  desta  avecita 
€  con  la  cabe^a  sera  como  el  artejo  de  hum  dedo,  mas  pequeno  que 
€  el  cuerpo  de  un  ruyseiior ;  el  pico  es  mas  grande  que  todo  el 
€  cuerpo,  y  abre  la  boca  mucho  mayor  de  lo  que  se  presume  para  tan 
«  chico  cuerpo ;  sus  plumas  son  muy  grandes  de  mas  de  tres  palmos, 
«  las  mas  hermosas  de  mas  vivos  colores,  bellos  matices  y  diiferencias 
€  de  esmaltes  que  produxo  la  naturalecja,  que  ni  el  papagayo,  ni  el  pa- 
«  von,  ni  ave  alguna  se  puede  igualar  a  ella.  Xo  tiene  pies  y  siempre 
€  anda  bolando  por  el  aire  de  dia  y  de  noche,  y  en  el  aire  se  sustenta 
«  de  mosquitillos  y  del  mismo  aire  y  en  el  duerme,  sin  que  jamas  se 
«  asiente  sobre   arbol  ni  mata,   antes  en   tocando  en   tierra   muere 


k 


244  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

I  luego;  y  es  tan  delicado  que  a  veces  los  muchachos  ponen  liga 
€  en  alguna  caiia  larga  y,  en  viendo  estos  paxarillos,  procuran  to- 

<  calles  que  se  peguen.y  mientras  baxan  la  cana,  yaUega  muerto. 
t  Dira  alguno:  Si  mueren  en  tocando  en  tierra,  como  se  multipli- 
t  can?  como  ponem  los  huevos  y  los  empollan?  A  todo  esto  acudio 
s  la  industriosa  naturalei;a  con  un  artificio  estrafio;  para  que,  consi- 
e  derando  estas  maravillas,  alabemos  a  Dios  en  sus  obras :  diole 
t  naturalei;a  un  nervio  en  lugar  de  los  pies  tan  largo  como  las 
«  plumas  y  tan  delgado  como  cuerda  de  vihuela,  y  quando  es  el 
«  tiempo  en  que  su    naturale<?a   lo  inclina  a  su  jnultipUcacion,  va 

*  buscando  la  hembra  y  con  aquella  cuerdecilla  la  ase  y  se  abro- 
t  cha  con  ella,  y  esto  todo  bolando.  Quando  la  hembra  quiere  poner 

<  sus  huevos,  anda  buscando  al  macho  y  en  viendole,  afierra  con  el 

<  y  se  ata  con  aquel  nierviijuelo  y  pone  los  huevos  en  cima  de  las 
«  alas  del  macho,  entre  las  quales  formo  la  naturale<;a  un    asiento 

*  y  hoyo  como  nidal,  y  juntamente  se  esta  alli  la  hembra  fomen- 
«  tando  sus  huevos  hasta  que  estan  los  hijuelos  nacidos;  y  siempre 

<  andan  bolando,  mientras  estan  en  su  cria,  sustentandose  de  mo- 
«  squitos  y  del  aire.  Sacados  los  poUitos,  se  va  la  hembra  y  el 
«  macho  llcva  su  dulce  carga  a  cuestas  hasta  que  les  nacen  plu- 
«  mas  y  se  echan  a    bolar.   Destas  aves  ay  muchas  en  la  Arabia 

*  y  en  la  Ethiopia  en  muchas  partes,  en  especial  en  el  monte  de 

<  Amara,  porque  son  regiones  donde  llueve  muy  raras  veces,  ni  se 

*  enturbia  el  aire  ». 

*Tudo  isto  he  mera  fic<;am,  que  na[m]  ha  tal  passaro  em  Ethiopia,  f 
nem  parecc  que  o  avera  no  mundo;  e  assi,  preguntando  eu  por  elle 
diante  do  Emperador  a  senhores  muyto  grandes,  que  estiveram 
muyto  tempo  no  reyno  de  Amhara,  se  riram  muyto  desta  patranha, 
e  o  Emperador  Ihes  refirio  com  muyta  festa  outras  que  eu  Ihe  tinha 
contado,  como  dos  grandes  thesouros.  que  o  mesmo  livro  diz  que 
ha  em  Guixen  Amba,  a  que  elle  chama  o  montc  de  Amhara,  e  que 
ouvese  formigas  tam  grandes  como  caes;  e  elles  se  maravilharam 
de  que  ouvese  quem  se  ocupase  em  inventar  tantas  mentiras;  por- 
que,  demais  do  serem  muyto  grandes  as  dos  thesouros  e  formigas 
e  que  aja  tal  pasaro  em  Ethiopia,  chove  muyto  em  todo  o  reyno 
de  Amhara  e  muytas  veces  cae  tanta  pedra  que  dana  as  semen- 
teiras,  por  onde  mal  puderam  andar  la  semelhantes  pasaros,  quando 
os  ouvera,  e  ainda  que  nunca  chovera,  bastavam  os  ventos,  que 
muytas  veces  sam  tam  grandes  que  quebram  as  arvores,  pera  dar 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXIV.  245 

com  todos  esses  pasaros  pollas  rochas  ou  arvoredos,  sem  poderem 
resistir  a  seu  grande  impetu,  sendo  de  tam  piqueno  corpo  e  tendo 
tam  cumpridas  pennas.  E  quanto  ao  que  diz  que  ha  tam  bem  muy- 
tas  destas  aves  em  Arabia,  se  fala  da  que  confina  com  o  Mar  Roxo, 
eu  andei  muyta  parte  della  polla  terra  dentro,  eni  sete  annos  que 
os  Turcos  la  me  tiveram  cativo,  e  nunca  vi  tal  ave,  nem  ouvi  di- 
cer  que  a  ouvese. 


CAPITULO   XXV. 

Em  que  se  trata  do  clima,  mineraes  e  fertilidade 
das  terras  do  Preste  Joam. 

Casi  todas  as  terras,  que  senhorea  o  Preste  Joam,  tem  bons  ares,  x.  Aer  plenimque 
sam  temperadas  e  sadias.  tanto  que  ha  muytos  homens  de  cem  annos  «r^rubruten 
muyto  bem  despostos,  e  ainda  vi  alguns  de  cento  e  vinte  e  1 30  com  calidissimus,  alicubi 

.  -  f rigidissimus.  Aquae 

boas  forcpas.  Com  tudo  ha  algumas  terras  baixas,  onde  faz  grandes  bonae  et  salubres. 

calmas ;  no  fim  do  verSo,  quando  comega  a  chover  ha  nellas  muytas 

doen^as  e  morre   gente;   pollo  que  alli  ordinariamente  moram  em 

lugares  altos,  mas  por  muyta  calma  que  fa^a,  se  se  poem  a  sombra, 

acham  fresco.  Tambem  ha  terras  muyto  frias,  como  no  reyno  de  Beg- 

meder,  em  a  provincia  de  Oagra,   e   sobre  tudo  na  provincia    que 

chamam  Cemen,  que  he  frigidissima. 

As  agoas,  assi  das  terras  quentes  como  das  frias,  comummente 
sam  boas  e  sadias.  No  tempo  ha  grande  variedade,  porque  de  abril 
ate  agosto  os  dias  sam  mayores  que  em  Espanha;  pondo  o  rosto  a 
oriente  as  sombras  vam  pera  a  mao  dereita;  depois  diminuem  os 
dias  de  mancira  que  em  novembro  e  decembro  sam  muyto  piquenos 
e  as  sombras  vam  pera  a  mao  izquerda. 
f.  104.  Minas  de  ouro  ha  algumas,  particularmente  no  reyno  de  *Na-      a.  Aumm  inveni- 

^  .11         1  ^•11'  j  i_  *ur  in  alveo   flumi- 

rea,  mas  o  milhor  he  o  que  tiram  de  hum  rio  grande,  que  chamam  ^^^^ .    fodinae  sive 
Beber,  labando  a  area  de  praya.  Alguns  mcrgulham  no  mais  fundo  ®^"»    «ive    argenti 


248  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

tempore  Auctoris  levando  humas  gamellas  de  pao  amarradas  com  cordas,  e  como  as 
bundans;  plumbi  henchem  da  area  de  dentro,  puxam  poUas  cordas  outros  que  estam 
parcitas.  na  borda  do  rio,  e  alli  acham  muytas  veces  grandes  pedacjos.  Em 

outra  terra  nam  muyto  longe  desta,  que  se  chama  Fazcolo,  dicem 
que  ha  muyto,  se  o  souberam  tir[ar],  porque  quando  dam  fogo  aos 
matos,  que  o  facem  muytas  veces,  e  sam  bambuaes,  saem  pegados 
nas  pontas  dos  bambus  que  nacem  peda^os  de  ouro,  e  isto  he  o 
mais  fino  que  ha  em  Ethiopia.  Tambem  em  outra  terra,  que  ha 
pouco  tempo  que  sugetou  Eraz  Cela  Christos  irmao  do  Emperador, 
a  que  chamam  Ombarea,  perto  do  reyno  de  Gojam  ao  poente, 
ha  bom  ouro,  mas  nem  alli  o  sabem  tira.r,  que  sam  Cafres  groseiros. 
Em  o  reyno  de  Tigre,  na  provincia  que  chamam  Tamben,  dicem 
que  se  achou  primeiro  huma  mina  de  ouro,  e  que  o  emperador  Ma- 
lac  (^agued  mandou  que  a  cubrisem  e  que  nam  se  falase  em  ella, 
porque  os  Turcos  nam  procurasem  de  tomar  aquella  terra.  Tam- 
bem  em  Ag^um,  que  [esta]  no  mesmo  reyno,  quando  chove  muyto 
dicem  que  se  acham  sobre  a  terra  alguns  pedacinhos  dc  ouro. 

Ha  tambem  minas  de  prata  na  provincia  de  Tamben  e  na  de 
Zalamt,  e  quando  eu  entrei  em  Ethiopia,  que  foi  em  mayo  de  1603, 
a  tiravam  huns  gregos  por  mandado  do  emperador  Jacob,  e  me  mo- 
straram  alguma  e  era  muyto  boa  e  branda;  mas  dalli  a  pouco  des- 
sistiram  da  tirar  e  dicendolhe  cu  pouco  ha  ao  Emperador  Seltan 
^agued  (que  mandava  comprar  da  que  vinha  dos  Turcos),  porque 
nam  a  facia  tirar,  pois  a  tinha  em  aquellas  provincias,  me  respon- 
deo,  que,  porque  era  muyto  trabalho  e  pouco  proveito. 

Ferro  ha  em  muytas  partes  e  chumbo  em  algumas,  mas  disto 

tam  pouco  que  casi  nam  Ihes  basta  pera  piloros  de  suas  espingardas, 

e  assi,  quando  ham  de  ir  a  guerra,  o  repartem  os  capitaes  aos  sol- 

dados  com  muyto  tento. 

3.  Tcrrae  maxime  Quanto  a  fertilidade  das  terras,  he  muyto  grande,  porque  ainda 

fertiles:  messes  ple-  .       .  r       ^ 

rumque  bis  in  anno :  ^^^^  ^J^  algumas  menos  iructuosas,  sam  poucas  as  que  nam  se  semeam 
triticum,    hordeum,  cada  anno,  sem  nunca  descansar,  e  em  algumas  dellas  se  recolhem 

avena    etc.    reddunt 

fructumtrigesimum,  dous  frutos  cada  anno,  nam  somente  em  os  valles,  onde  se  podem 

Daguc&^er  TeTmm-  ^^S^^>  ^^^  ^^  ^s  campos,  e  com  tudo  isso  de  humas  sementes,  que 
cupatae,  centesimum  chamam  Dagu^a  e  Tef,  que  nam  ha  em  Europa  e  sam  miudas  como 

et  eo  amplius.  ,  ,      ,  ,.  ,  ,, 

mostarda,  muytas  veces  de  huma  medida  se  recolhem  cento  e  150; 
e  disto  facem  pam,  que  come  a  gente  ordinaria,  mas  he  preto  e  de 
pouca  sustancia.  Tambem  o  milho  responde  muyto.  Ha  trigo  de 
muytas   fei^oes,   cevada,  graos,  *favas,   lentilhas,  feixoes   e   outras  f.io4,v. 


r 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXV.  249 

sementes  em  abundancia,  mas  nam  respondem  tanto  como  as  pri- 
meiras;  quando  muyto  dam  20  ou  30  por  hum. 

Semeam  muyto  linho,  e  ainda  em  os  campos,  onde  nam  se  rega,      4«  ^^^  Acthiopcs 

r       .  j,  ji      T^  V  1  seminibus      utuntur 

se  laz  tam  grande  como  o  de  Espanha;  mas  nam  se  sabem  apro-  n^  esum,  sed  tcxtl- 
veitar  delle   pera  facer  panno,   porque  a  cana  botam  fora  e  a  se-  ^®f  ^**'"  abiiciunt. 

Olcum  ez  sesamo  et 

mente  recolhem  pera  certo  comer  que  facem  della.  Tem  gergeli  e  Nug  trahunt,  ez  oli- 
outra  semente  que  chamam  Nug  como  linha^a,  mas  he  preta,  de  que  '^^^^^J'''  ^^in^. 
facem  muyto  aceite,  que  de  aceitonas  nam  o  ha ;  semeam  muytos  <!«•«  s^*  ctiam  in 

,.  ,     ^  ,  ,  Indiis  comuneft. 

alhos  e  cebolas,  cobes,  mas  sam  rums;  rabaos  e  outras  cousas  como 
nabos,  que  em  Espanha  nam  ha,  a  que  chamam  Xux  e  Denich,  com 
que  se  remedia  a  gente  pobre  em  tempo  de  fome.  Ha  canas  de 
a^ucre,  gengibre,  cardamomo,  cominhos  pretos,  endro,  funcho,  cuen- 
tro,  mastur^o  e  alg^mas  alfa^as  ruins;  mas  agora  faz  dous  annos 
nos  veio  da  India  semente  dellas,  de  cobes  [sic]  e  chicorias,  e  tudo  se 
come^a  a  dar  muyto  bem;  juntamente  veio  semente  de  malageta  e 
ja  ha  muyta  e  folgam  com  ella. 

Arbores  de  fruto  nam  ha  de  tantas  diferen^as  como  em  Espanha,      5.   De    arboribuB 

,  ^  .•  '/i.jjT-k^i         fructiferi8;pluraco- 

mas  ha  muytos  pesigueiros,  romeiras,  ngueiras  das  de  Portugal  e  mndem  gcnera  de- 

da  India,  e  outra   sorte,   que  na  folha  casi  nam  se   diferencia   das  acribuntur. 

figueiras  da  India  e,  ainda  que  nam  da  fruto  pera  comer,  he  mais 

proveitosa  que  ellas,  porque  o  tronco  ou  meollo  do  meio  da  folha 

comem,  e  da  mesma  folha  facem  cordas  [e]  esteiras  muyto  finas;  fiam 

linhas,  com  que  facem  pannos  que  vestem  os  pobres ;  e  a  raiz,  que 

he  ordinariamente  de  mais  de  dous   palmos   de  largo,   comem  co- 

cida  e  della  facem  farinha   muyto  fina   e    branca,  que  comem  co- 

cida  com  leite ;  mas  o  pam  della  nam  he  muyto  bom ;  e  se  cortam 

tudo  a  longo  da  terra,  bota  aroda  muytos  olhos,  que  dispoem  em 

outras  partes  e  logo  prendem;  chamase  Encet. 

Ha  narangeiras,  cidreiras,  limoeiros,  galegos^j^i:]  e  outros  que 
dam  o  fruto  muyto  grande.  Tamarinheiros,  jambolans,  maseras  da 
India,  humas  arvores  grandes,  que  a  ellas  e  ao  fruto  chamam  Xe, 
no  sabor,  cor,  e  feigam  se  parece  com  datil,  senam  que  he  mais 
delgado  na  ponta. 

Tambem  semearam  pouco  ha  palmeiros  de  cocos,  e  come^am 
j  a  a  dar  fruto,  e  de  datiles  ha  algumas  piquenas,  mas  no  reino  de 
Dancali  ha  muytas. 

Vinhas  como  em  Espanha  nam  ha:  todas  sam  parreiras  e  de-      6.  Dc  cultu  vitis; 

1      ^  •      ^        rt  j  j  dc  eosaypio  et  cius 

stas  poucas,  e  plantam  juntas  8  ou  dez  varas  e  nunca  as  podam,  e  visurDcolcastriBopi- 

assi  huma  so  parreira   toma   muyto   campo  e  tem   necessidade   de  ^»©  Auctoris. 

C.  Beccari.  ^*r.  Ae/A,  Script,  occ»  ttud.  —  II.  ja 


2  50  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

grande  ramada ;  mas  com  tudo  dam  muytas  ubas  e  grandes  cachos. 
Agora  ja  vam  prantando  os  principaes,  porque  o  Emperador  he 
muyto  curioso  e  em  huma  das  cerccis  de  huns  pa^os,  que  hti  pou- 
cos  annos  que  fez,  plantou  em  setembro  1 50  parreiras  e  por  o  Natal 
comeo  alg^ns  vinte  cachos  maduros,  com  nam  aver  bem  4  meses 
que  se  tinham  plahtado,  que  tudo  eu  vim ;  e  depois  mandou  plantar 
em  hum  campo  cinco  mil,  e  como  as  poem  muyto  afastadas,  por- 
que  *nam  as  ham  de  podar,  ocupam  muyta  terra;  e  pollo  muyto  f.  105. 
que  deseja  que  todos  plantem,  lan^ou  pregam  que  todo  aquelle  que 
plantase  parreiras  ou  quaesquer  arvores  de  fruto,  nam  perderia  nunca 
a  terra  ainda  por  traigam  a  coroa;  com  ser  costume  tirar  o  Em- 
perador,  todas  as  veces  que  quer,  as  terras  a  huns  e  dallas  a  outros, 
excepto  aquellas  que  compraram  a  Coroa.  Agora  novamente  se- 
mearam  papayas,  que  vieram  da  India  e  se  dam  muyto  boas. 

Ha  muyto  algodam,  de  que  facem  alguns  pannos  muyto  bons, 
mas  ordinarios:  nam  sam  como  os  da  India,  ou  porque  o  algodam 
nam  sera  tam  bom,  ou  porque  nam  o  saberam  concertar.  Com  tudo 
facem  outra  sorte  de  panno  muyto  largo  e  forte  que  Ihes  scrve  na 
cama  de  colcham  e  cobertor  como  de  Papa,  e  he  muyto  quente 
porque  tem  o  cabello  4  dedos  de  cumprido,  a  que  chamam  Becet, 
e  sam  alguns  tam  bons  que  valem  dez  cru<;ados. 

Tudo  o  que  se  semcar  e  plantar  em  esta  terra,  parece  que  se 

dara,  particularmente  oliveiras,   porque  ha  muytos   zambugeiros,  e 

algnns  tem  o  fruito  casi  tam  grande  como  aceitonas,  nam  porque 

os  enxertasem  nunca,  que  elles  nam  o  sabem  facer,   senam  por  a 

terra  Ihes  ser  acommodada. 

7.   De    arboribus  As   arvores   sylvestres   comummente  sam   espinheiros,   alguns 

puae  spcciesenumc-  iTt^^yto  altos  e  gTossos.  Ha  tambem  muytos  cedros  altos,  mas  nam 

rantur.  ^q^  ^  copa  como  os  dc  Espanha,  senam  os  ramos  espalhados,  como 

os  pinta  e  descreve  Dyoscorides:  he  madeira  cheirosa  e  muyto 
boa  pera  casas;  ha  angeli  muyto  fermoso,  pao  preto  e  humas  ar- 
vores,  que  chamam  Zegueba,  muyto  altas  e  grossas,  madeira  branca 
e  fermosa  com  outras  muytas  sortes  de  arvores  que  nam  ha  em 
Europa,  particularmente  huma,  que  chamam  Dema.  Esta  se  faz  tam 
grossa  que  nam  a  abarcaram  cuatro  homens,  e  ordinariamente,  com 
serem  muyto  altas,  nam  lan^am  os  ramos  ate  perto  da  ponta,  e  o 
tronco  he  liso  dentro;  ainda  que  nam  he  oco  esta  muyto  fofo,  e 
alguns  frades,  que  andam  no  deserto,  metem  nelle  estacas  huma 
acima  de  outra  ate  chegar  muyto  alto,  e,  subindo  por  ellas,  cortam 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXV.  25 1 

facilmente  e  facem  dentro  sua  casinha,  onde  dormem  de  noite  por 
medo  dos  lioes,  e  ainda  affirmam  que  antiguamente  se  metiam  alli 
algxin  se  outros  Ihes  davam  de  comer,  ate  que  se  fechava  aquella 
casinha,  que  por  dentro  torna  a  hencher  muytode  pressa,  e  assi 
ficava  alli  morto  e  sepultado,  como  ja  dissemos. 
^  Em  as  ribeiras  ha  muytos  jazmins,  quc  tambem  se  dam  poUos 

matos  com  outras  muytas  florcs  cheirosas. 

Ainda  que  estas  terras  de  Ethiopia  sejam  tam  fertiles  e  abun-      8.  Locustae  iden- 

,,j  j,'  A.  j.  j'x  a.j'  A.        tidem  invadunt  arva 

dantes  de  mantimentos,  como  temos  dito,  com  tudo  isso  muytas  ^^  omnia  devorant. 
veces  ouve  grande  falta  delles  em  algumas  paites,  por  causa  dos 
innumeraveis  gafanhotos,  que  acostumavam  vir  da  vanda  dc  oriente, 
praga  tam  grande  que,  por  onde  quer  que  chega,  deixa  as  semen- 
f.io5,v.  teiras  feitas  em  poo,  as  ervas  asoladas  *e  as  arvores  sem  folha 
verde,  c  muytas  veccs  se  asentam  tantos  juntos  que  ccm  seu  peso 
quebram  ramos  bem  grossos.  PoUo  que,  se  esta  praga  fora  geral  e 
de  cada  anno,  sem  duvida  se  despovoram  as  terras  e  ficaram  to- 
talmente  desertas.  Mas  nam  vinham  todos  os  annos  por  huma  me- 
sma  parte  e  agora,  segundo  dicem,  avera  30  annos  que  nam  che- 
garam  aos  Reynos  dc  Gojam,  Begmeder,  Dambia  e  outros,  e  no 
reyno  de  Tigre,  em  que  faciam  grande  dano  casi  todos  os  annos, 
^  avera  ja  12  que  nam  se  viram  senam  muyto  poucos. 

Desta  materia  dos  mineraes  e  fertilidade  da  terra  de  Ethiopia      9.  Errores  Urre- 

^     ^      r  T'jTT^  j  01'  tae  et  Alvarez  circa 

trata  frey  Luis  de  Uireta  no  cap.  27  de  seu  1°  hvro,  mas  em  muy-  auri  fodinas  refutan- 

tas  das  cousas  que  diz  foi  mal  informado,  como  que  em  o  reyno  de  ^^  «*  dictis. 

Damot  aja  muytas  minas  de  ouro  e  o  mais  fino  e  de  mais  subidos 

quilates  que  tem  toda  Africa.   O  que  parece   que  tomou  de  Fran- 

cisco  Alvares  fol.  170  de  sua  Historia  Ethiopica,   Mas  enganouse, 

porque  em  Damot  nam  ha  minas  dc  ouro,  o  se  as  ha,  nam  as  con- 

hecem,  se  nam  toma  este  nome  Damot  em  tanta  latitud  que  com- 

prehenda  tambcm  o  reyno  de    Xarea,  como  a  gente  vulgar  faz;  e 

ainda   com  tudo  isso,  he  cousa  certa,  como   affirmam   todos  e  me 

disse  o  emperador  Seltan  Qagued,  que   o   mais  fino  ouro,  que   ha 

em  todas  suas  terras,  he  o  do  reyno  de   Fazcolo,  que  esta  longe 

de  Damot. 

Nem  tambem   parece  certo  o  que  diz,  que  Pero  de  Covilham       xo.  Item  circaar- 
affirmou  a  Francisco  Alvares,  que  no  reyno  de  Begmeder  ha   hum  ^*^ 
I  monte  muyto  grande  todo  de  prata,  e  que  nam  a  sabiam  tirar  os 

V  Ethiopes ,  mas  que  faciam  huma  cova  e  alli  Ihe  davam  fogo,  como 

se  fora  forno  de  chunambo;   e  que   corria  a  prata   como   ribeiras. 


252  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

Isto  nam  so  foi  encarecimento,  mas  patranha;  porque,  se  ouvera 
tam  rico  monte  e  de  que  tam  facilmente  sc  tira  tanta  prata,  nam 
se  perdera  tam  de  pressa  a  memoria  delle,  que  agora  nam  ha  quem 
saiba,  nem  ouvise  dicer  tal  cousa,  nem  se  ouveram  de  ocupar  em 
tirar  na  provincia  de  Zalamt  e  de  Tamben  prata  de  pedra,  como  o 
faciam  huns  gregos  por  mandado  do  Emperador,  quando  eu  en- 
trei  em  Ethiopia,  e  ainda  que  a  prata  era  muyto  boa,  dessistiram 
depois  da  tirar,  porque  tinham  muyto  trabalho  e  pouco  proveito. 
Nam  he  menor  patranha  a  que  alli  mesmo  diz  pag.  252,  que 
como  ja  sabem  tirar  a  prata,  ha  tanta,  que  a  estimam  em  pouco; 
porque  nunca  ouve  tanta  prata  em  as  terras  do  Preste  Joam  que 
nam  Ihes  fosse  necessario  comprala  aos  Turros,  com  Iha  venderem 
bem  cara;  e  os  annos  passados  davam  aqui  por  cinco  patacas  huma 
on<;a  de  ouro  que  he  peso  de  huma. 

Tambem  diz  no  mesmo  lugar  que  o  sal  ja  nam  corre  por  moeda, 
como  antiguamente,  senam  que  o  levam  por  mercaduria  a  Mono- 
motapa  e  Congo.  Mas  nam  he  assi,  porque  ate  oje  sempre  *correo  f.  106. 
por  moeda,  que  a  de  cobre,  que  quis  introducir  Eraz  Athanateus, 
govcrnando  o  imperio  com  a  emperatriz  Mariam  Sina  sua  sogra, 
por  ser  o  emperador  Jacob  menino,  nam  a  quiseram  admitir,  como 
ja  dissemos  no  fim  do  cap.  9.  Nem  sam  tam  vecinhos  os  reynos 
de  Monomotapa  e  Congo,  que  de  ca  se  Ihes  possa  levar  carre- 
gado  o  sal ;  antes  he  tam  g^ande  a  distancia  que  nam  somente 
nam  tem  communicaQam  com  elles,  mas  nem  ainda  Ihe  sabem 
o  nomem. 
XX.     Itcm     circa  Diz  mais  que  os  rabaos  se  facem  muyto  grandes,  mas  que  nam 

plantas  et  arbores.  .  •  •  1  1  .  • 

se  podem  comer,  porque  na  acrimonia  nam  ha  malagueta  nem  pi- 
menta  que  Ihes  igoale,  e  que  nam  se  dam  cebolas  nem  alhos  de 
nenhuma  maneira;  mas  foi  engano,  porque  os  rabaos  se  comem 
muyto  bem,  ainda  nao  queimam  tanto  como  os  de  Portugal.  Cebo- 
las  se  criam  muytas,  posto  que  piquenas,  e  alhos  ha  em  grande 
abundancia  e  cabe^as  tam  fermosas,  que  nam  Ihes  facem  ventagem 
as  milhorcs  de  Espanha. 

Semelante  a  isto  he  o  que  diz  pag.  292  que  Ethiopia  he  terra 
de  mu^^ta  seda  e  que  os  bichos  lavram  seus  capullos  em  as  mes- 
mas  amoreiras  pollos  campos;  de  que  ha  grande  multidam;  e  que 
muytos  tambem  criam  os  bichos  em  casa;  porque  nem  ha  seda 
nenhuma  em  as  terras  de  Ethiopia,  que  senhorea  o  Preste  Joam, 
mas  nem  viram  nunca  os  bichos,  nem  sabem  como  a  lavram,  e  assi 


f 


LIVRO  I,  CAPITULO  XXV.  253 

elle  mesmo  me  pregimtou  por  veces  diante  dos  grandes  que  cousa 
era  e  depois  que  feigam  tinham  os  bichos,  e  todos  se  maravilharam 
muyto,  quando  Ihes  disse  como  os  criavam,  como  dormiam  e  mu- 
davam  a  pele  etc.  Nem  amoreiras  ha  de  nenhuma  maneira ;  so  ouvi 
dicer  que  em  humas  terras  mu)rto  longe,  que  nam  cuido  senhorea 
o  Emperador,  avia  humas  arvores  que  tinham  o  fruto  como  o  das 
sylvas;  estas  pode  ser  que  sejam  amoreiras. 


CAPITULO  XXVI. 

Do  rio  Nilo,  de  sua  fonte,  de  seu  discurso 
e  causa  de  suas  crecentes. 


Ja  que  tratamos  da  fertilidade  das  terras,  que  senhoreao  Pre-      i.   Nili  fluminis, 

^      T  /•         j  «^     j'  1  j        quod   Abaof  vocant 

ste  Joam,  nam  sera  fora  de  proposito  dicer  agora  alguma  cousa  dos  Aethiopcs,  scatebras 
principaes   rios   e  lacfoas,   que  tambem  a  fertilicam  e  facem   mais  ***  ^ahalA  binas  Au- 

^  ^  6        '    M  V  ^^^   dctexit  die   21 

abundante.  E  o  primeiro,  que  se  offerece  como  mais  insigne,  he  o  Aprilis  1618. 
grande  e  famoso  rio  Nilo,  que  como  tem  pera  si  os  S.***'  antiguos 
e  casi  todos  os  doctores  modernos,  he  o  que  a  divina  Escriptura, 
Gen.  2,  chama  Gehon  e  o  poe  no  segundo  lugar,  quando  nomea 
os  4,  que  sajam  do  Parayso  dicendo:  «  Et  nomen  fluvii  secundi 
f.io6,v.  Gehon.  *Ipse  est  qui  circuit  omnem  terram  Aethiopiae  ».  A  gente 
deste  imperio  o  chama  Abaoi,  o  tem  sua  fonte  no  reyno  de  Gojam 
em  huma  terra  que  se  chama  Qahala,  a  cujos  moradores  chamam 
Agous.  Sam  christaos,  mas  tem  muytas  supersti^oes  gentilicas  pollo 
trato  e  vecinhan^a  de  outros  Agous  gentios  seus  parentes,  que  sam 
muytos.  Esta  [a]  fonte  casi  ao  poente  daquelle  reyno,  na  cabe<;a  de 
hum  vallecinho  que  faz  em  hum  campo  grande,  e  aos  2 1  de  abril 
de  1 6 1 8  que  eu  chegnei  a  a  ver,  nam  apareciam  mais  que  dous  olhos 
redondos  de  cuatro  palmos  de  largo,  e  confesso  que  me  alegrei  de 
ver  o  que  tanto  desejaram  saber  antiguamente  el  rey  Ciro  e  seu 
filho  Cambises,  o  Gram  Alexandre  e  o  famoso  Julio  Cessar. 


i 

256  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

a.  Aquae  qualitas  A  agoa  he  clara  e  muyto   leve,  a  meu   parccer»   que  a  bebi; 

e  pro  un  1  ^^  ^^^  corre  por   encima   da  terra,   ainda   que  chega    a    borda 

della.  Fiz  meter  huma  lancpa  em  hum  dos  olhos,  que  esta  pegado 
com  huma  ribancerinha,  onde  come^a  a  aparecer  esta  fonte,  e  en- 
trou  once  palmos  e  parece  que  tapava  em  baixo  em  as  raices  das  ar- 
vores,  que  estam  na  borda  da  ribancerinha.  O  segundo  olho  da  fonte  4 

esta  mais  abaixo  pera  oriente,  como  hum  tiro  de  pedra  do  i^,  e 
metendo  nelle  a  langa,  que  era  de  1 2  palmos,  nam  se  achou  fundo. 
Hum  Portugues  tinha  amarrado  primeiro  duas  lancjas  que  amas  ti- 
nham  20  palmos,  e  metendoas  tampouco  achou  fundo.  Dicem  os 
que  alli  moram  que  o  nam  tem,  e  quando  andam  por  perto  de 
aquelles  olhos,  bole  e  treme  tudo  aroda,  de  maneira  que  se  vee 
claramente  que  debaixo  tudo  he  agoa,  e  que  nam  se  anda  por  cima 
se  nam  por  estarem  as  raices  das  hervas  muy  entretexidas  com  al- 
guma  pouca  de  terra,  e  ainda  me  aflSrmaram  muytos  e  o  mesmo 
Emperador,  que  estava  perto  com  seu  exercito,  que  entam  tremia 
pouco,  por  aver  sido  muyto  seco  o  verao ;  que  outros  annos  com 
muyto  medo  chegavam  alli;  porque,  em  pondo  o  pe  sobre  a  erva, 
parecia  que  se  queria  ir  tudo  ao  fundo  e  ate  oito  ou  dez  passos 
mais  adiante  bulia  decendo  e  alevantando.  O  circuito,  que  mostra 
ser  lugar  como  de   alogoa,  he  casi  redondo  e  nam  se  pode   che-  ^ 

gar  de   vanda  a  vanda   com   huma  pedra,   mas  com  funda  folga- 
damente. 
3.Regio,quaecirca  Perto  da  fonte  da  vanda  de  cima  mora  gente  e  dalli  se  vai  su- 

scatebras     protendi-   1..    j  ^       i_  i_ 

tur  graphice  descri-  "i^^clo  pouco  e  pouco  ate  chegar  a  huma  serra,  que  estara  como  meia 
bitur,  itemque  mores  legoa  da  fonte  ao  poente,  a  que  os  moradores  chamam  Guix,  e  ainda 

incolarum. 

que  por  esta  parte  parece  que  de  seu  pe  ate  cima  podera  chegar  huma 

espingarda,  pollas  outras  partes  he  muyto  alta.  Mas   por  todas  se 

pode  subir  ate  cima,  e  la  se  alevanta  hum  bico,  onde  os  *gentios  f.  107. 

sacrificam   muytas   vacas;  e  antiguamente   vinha   em   certo  dia  do 

anno  seu  feitizeiro,  a  quem  tinham  por  sacerdote,  e  sacrificava  huma 

vaca  perto  da  fonte  e  botava  a  cabe^a  nella  e  a  facia  ir  ao  fundo ; 

e  logo  hia  pera  aquelle  bico,  onde  facia  solemne  sacrificio,  matando 

muytas  vacas,  que  os  gentios  Ihe  traciam ;  e  depois  se  cubria  todo 

com  o  sevo  dellas  e  asentavase  em  huma  cadeira  de  ferro,  que  tinha 

posta  no  meio  de  muyta  lenha  seca,  e  mandava  por  fogo  e  estava 

dentro  delle  ate  que  a  lenha  se  acavava,  sem  se  queimar,  nem  ainda 

derreterse  o  sevo.  E  algumas  veces  entrava  depois  do  fogo  acesso  i 

e  se  asentava  em   sua   cadeira;   e  com   estas  feitizerias   enganava 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXVI.  257 

aquella  gente,  de  maneira  que  o  tinham  por  grande  santo  e  Ihe  da- 
vam  quanto  fato  queria. 

Do  pe  daquella  serra  ate  a  fonte  semeam  muyto   trigo  e  ce-      4-  Nilus  e  fond- 

*  1J11J  jj  1  '^  ^i_v  bus  primo  sub  terra 

vada,  e  aroda  della  da  vanda  do  sul  pera  oriente  e  norte  ha  hum  decurrit,  paulo  poat 
bom  pedaQO  de  mato  baixo,  que  se  parece  com  tamargueira,  e  de-  ©«leraus  recipit  duo« 

rivulos     et     fluxnexi 

pois  muytas  terras  que  semeam,  e  sera  tudo  como  huma  legoa  de  jamA,  et  post  35  leu- 
campo ;  mas  por  qualquer  parte  que  queram  ir  a  ella  (excepto  vindo  fl^™^n*^[^,^DamI 
daquelle  bico)  se  ha  de  subir,  e  por  todas  as  partes  podem,  ainda  biA,  unde  post  6  leu- 

.  cas  effluit. 

que  poUa  vanda  de  oriente  e  occidente  he  mais  alta  e  dificultosa 
a  subida.  De  nortc  a  sul  se  passa  facilmente  e  pera  a  vanda  do 
sul,  como  huma  legoa  da  fonte,  esta  hum  valle  fundo  e  largo,  onde 
nace  huma  ribeira  muyto  grande,  que  vai  a  entrar  no  Nilo  e  pode 
ser  que  venha  da  mesma  fonte  decima.  O  fio  da  agoa,  que  vai  por 
debaixo  da  terra,  quando  sae  daquelle  circuito  redondo  da  fonte, 
corre  pera  oriente  por  espago  de  hum  tiro  de  espingarda,  se- 
gundo  mostram  as  hervas  e  a  aparencia  da  terra,  que  por  alli 
he  mais  baixa  como  ribeira  nam  muyto  larga,  e  logo  yai  decli- 
nando  mansamente  pera  o  norte,  e  tendo  andado  como  hum  4°  de 
legoa,  se  descobre  a  agoa  entre  humas  pedras  e  faz  huma  ribe- 
rinha  que,  quando  eu  a  vi,  nam  era  de  grossura  de  hum  homem, 
posto  que  em  outros  tempos  he  maior,  segundo  dicem ;  e  pouco  mais 
adiante  se  le  juntam  duas  ribeiras  piquenas,  que  vem  da  vanda  de 
oriente,  e  depois  recolhe  outras  muytas,  com  que  sempre  vai  en- 
grossando,  e  tendo  andado  pouco  mais  de  hum  dia  de  caminho,  re- 
colhe  hum  rio  grande,  que  se  chama  Jama.  Depois,  dando  muytas 
voltas,  vai  pera  occidente  e  tendo  andado  20  ou  25  legoas,  ja  he 
rio  g^ande,  e  comcQa  a  declinar  pera  o  norte  e  vai  voltando  sem- 
pre,  de  maneira  que  a  as  35  legoas  de  seu  curso,  pouco  mais  ou 
menos,  torna  a  correr  a  oriente  e  entra  por  huma  ilharga  de  huma 
lagoa  grande,  que  esta  entre  a  provincia,  que  chamam  Bed  do  reyno 
de  Gojam,  e  o  reyno  de  Dambia.  E  eu  cheguei  ao  lugar  por  onde 
f.io7iV.  entra  e  depois  passei  *bom  peda^o  adiante  e,  olhando  da  borda  da 
lagoa  de  lugar  alto,  me  pareceo  que  passa  o  rio  por  dentro  della 
como  meia  legoa  e  engergase  muyto  bem  o  fio  de  sua  conente, 
quando  a  lagoa  esta  em  calmeria,  como  entam  estava,  porque  hu- 
mas  hervas  verdes,  que  traz  o  rio  antes  Je  entrar  nella,  as  vai  le- 
vando  mansamente  sem  se  bulirem  as  palhas  e  outras  cousas  que 
de  huma  e  outra  vanda  estam  sobre  a  agoa  da  lagoa.  E  ainda  que 
nam  cheguei  ao  lugar   por  onde  sae  della,   conforme  ao  que   dalli 

C.  Becc  ARi.  Rer.  Aeth,  Script,  occ,  tned,  —  II.  3j 


258  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

me  mostraram  e  o  tempo  que  deciam  tardava  hum  homem  cami- 
nhando  bem  em  chegar  da  entrada  a  saida,  seram  seis  legoas  pouco 
mais  ou  menos.  Mas,  quando  sae  da  lagoa,  leva  muyto  mais  agoa 
da  que  tracia  quando  entrou,  e  ainda  que  he  rio  muyto  grande, 
toda  via  por  algumas  partes  onde  espraja  se  passa  a  pee  no  verao. 

5,  E  lacu  pcr  5  Como  sae  da  lagoa,  vai  declinando  pera  o  sul  muyto  devagar, 

leucas  currit  versus        ^jjj  «i  i_  i.^  u 

meridiem  usque  ad  ^  tendo  andado  como  cmco  legoas,  chega  a  huma  terra  que  cha- 
Aiat&,  ex  cuius  ru-  mam  Alata,  onde  cae  a  pique  por  humas  rochas,  que  teram  de  alto 

pibus    ita     praeceps 

ruit  ut  aqiiae  in  va-  catorce  bracjas  e  sera  necessario  funda  pcra  chegar  com  pedra  de 
5rcr.rr"^i"„^  vanda  a  vanda;  e  no  inverno  da  pancada  que  da  em  baixo  se  le- 
Oojim    habens    ad  vanta  agoa  como   fumo   no  ar,  tanto  que  se  vee   de  muyto   longe, 

orientem  Begmedftr,  .  •        j.      ^  ^     -^     j 

inde  Amhar4,  olacA,  como  eu  VI  muytas  veces;  e  pouco  mais  adiante  se  estreita  de  ma- 
Xao^  et  Damdt.  Ora-  ^^1^^  entre  duas  rochas,  que  facilmente    atravesam   paos  de  huma 

ditur   dem    per    re-  ^  ^ 

gnum    Fazcol6    et  a  outra  e  facem  ponte,  por  onde  algumas  veces  passa  o  Empera- 

OmbareA,  ultra  quo-     -  ^,  .  j.jii'r  i.i_ 

rum  fines  Auctor  fa-  ^^^  ^^^  ^*^^^  ^eu  exercito,  e  perto  de  alh  faz  a  mesma  rocha  hum 
tetur  se  nequivisse  arco,  por  onde  alfifuns,  que  sam  mais  atrevidos,  passam,  ainda  que 

ulterius  cursum  Nili  ir  o  x 

investigare.  por  cima  he  muyto  estreito.  Aqui  Ihe  fica  pera  oriente  o  reyno  de 

Begmeder,  e  corre  alguns  dias  por  entre  elle  e  Gojam;  logo  o  reyno 
de  Amhara,  depois  Olaca  e  logo  o  reyno  de  Xaoa  e  apos  este  o 
de  Damot,  dando  sempre  volta  a  longo  do  reyno  de  Gojam  e  che- 
gando  de  fronte  de  huma  terra,  que  chamam  Bizan  da  vanda  de 
Damot  e  outra  que  se  chama  Gumar  (^anca  da  vanda  de  Gojam, 
vem  a  estar  o  rio  tam  perto  de  sua  fonte,  que  se  pode  chegar  a 
ella  em  hum  dia.  E  preguntando  eu  diante  do  emperador  Seltan 
(^agued  a  seu  irmao  Eraz  (^ela  Christos,  quantos  dias  de  caminho 
seriam  de  Gumar  ^anca,  indo  poUa  ribera  acima  ate  chegar  a  sua 
fonte,  foi  elle  contando  com  alguns  homens  grandes,  que  estavam 
presentcs,  e  acharam  29,  se  bem  me  lembra.  De  Gumar  ^anca  adiante 
ainda  vai  correndo  alguns  dias  a  roda  de  Gojam  e  depois  passa 
por  entre  o  reyno  de  Fazcolo  e  o  de  Ombarea  de  gentios  muyto 
pretos,  que  o  anno  de  16 15  sugetou  com  grande  exercito  Eraz 
(^ela  Christos,  e  por  ser  terra  tam  grande  e  pouco  conhecida,  a  cha- 
maram  elles  Ayez  Alem,  que  quer  dicei  «  novo  mundo  ».  Dalli 
por  diante  nam  *senhorea  o  Emperador,  nem  sabera  dar  re^am  dos  f.  108. 
nomens  das  terras  nem  do  curso  do  rio,  mais  que  dicerem  que  vai 
por  terra  de  Cafres  gentios  pera  o  Cairo. 

6.  Refenmtur  ve-  Deixando  pois  de  seguir  o  curso  deste  grande  rio,  passarcmos 

terum       scriptorum  1  j  1  ^  1 

et  Urretae  opiniones  ^  ^^^  *^  re^am  de  sua  annual  crecente,  que,  por  ser  sempre  em  hum 
de  causis  inundatio-  mesmo  tempo  e  este  de  julho  por  diante,  quando  em  outras  partes 

num  Nili. 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXVI.  259 

se  diminuem  e  se  vam  secando  os  rios,  fez  tanta  dificultad  a  sam 
Irineo  lib.  2  Adversus  haerescs  c:ip.  47  (como  refer  frey  Luis  de 
Urreta  pag*.  303)  que,  com  tracer  muytas  opinioes,  nam  se  atreveo 
a  dar  por  certa  nenhuma,  senam  que  disse  que  a  verdade  Deos  a 
sabia;  e  Lucano  e  Abulense  dicem  que  he  segredo  de  nature<;a 
muy  escondido,  e  Theodoreto  confessa  que  nam  o  entende,  e  ou- 
tros,  que  guiados  por  so  seu  discurso  quiseram  dar  a  causa,  disse- 
ram  mil  disparates,  como  que,  soprando  os  ventos  ao  contrario  da 
corrente  do  Nilo,  detinham  as  agoas,  e  assi  creciani  em  alto.  Ou- 
tros,  que  a  muyta  area,  que  leva  o  Nilo,  se  detem  nas  bocas  por 
onde  cntra  no  mar,  e  fecha  seu  curso  e,  tornando  as  agoas  detindas 
pera  atras,  causam  a  inunda^am  de  Egypto.  Ate  Aristoteles  prin- 
cipe  dos  philosophos,  em  hum  livro  que  fez  de  rmindatione  Nzlt\ 
disse  que  a  longo  do  Nilo  ha  muytas  fontes,  que  no  inverno  estam 
fechadas  e  no  verao  com  a  quentura  do  sol  se  dilata  a  terra  e  assi, 
saindo  ellas,  crece  o  Nilo. 

Tambem  frey  Luys  de  Urreta  em  seu  1°  livTo  pag.  305  philo- 
sopha  a  seu  modo  e  attribue  estas  crecentes  a  as  agoas  do  mar 
Oceano,  que  batidas  em  aquelle  tempo  com  furiosos  ventos  entram 
por  segredos  arcaduces  e  veas  ate  a  lagoa  de  onde  nace  o  Nilo  e  a 
facem  crecer  e  dalli  vem  crecer  tambem  o  rio. 

Tudo  isto  vai  muyto  fora  do  que  a  experiencia,  que  nam  pode       7.  Eas  falsas  esse 

....  ,  demonstrat       expe- 

enganar  como  o  discurso  dos  homens.  tem  mostrado,  nam  somente   rientia,  quae  faUere 
aos  naturaes  de  Ethiopia,  mas  a  todos  os  de  Europa,  que  estamos  ^®^.'***  ^^^^}  ratioci- 

'^  r-        ^  natio  a  prion. 

nella,  e  he  que  ordinariamente  na  entrada  de  junho  come<;a  em  estas 
terras  o  inverno  e  chove  tanto  ate  setembro  e  algumas  veces  por 
todo  elle  c  parte  de  otubro,  que  nam  somente  os  rios,  mas  as 
ribeiras  muyto  piqucnas  crecem  de  maneira  que  nam  se  podem 
passar  sem  barcas,  que  facem  de  huma  palha  a  maneira  de  junco, 
que,  ainda  que  he  de  4  dedos  de  grosso,  como  se  seca,  fica  muyto 
leve  e  nunca  se  vam  a  fundo,  ainda  que  se  virem.  Destas  ribeiras 
ha  muytas  no  reyno  de  Gojam,  que  no  inverno  parecem  grandes  rios 
e  todas  entram  no  Nilo,  e  de  outras  partes  Ihe  vem  tambem  muytas 
e  rios  caudalosos,  que,  depois  de  terem  corrido  muytas  terras  e  re- 
f.io8,v.  cebido  no  inverno  grande  *multidam  de  agoas,  descarregam  no  Nilo. 
Tambcm  a  lagoa  de  Dambia,  por  onde  (como  acinia  dissemos)  passa 
cste  rio,  acaba  dc  hencher  meiado  agosto,  pouco  mais  ou  menos,  com 
as  muytas  agoas  que  Ihe  entram,  o  dalli  por  diante  desagoa  em  elle 
com  mais  furia,  sem  se  divertir  por  outra  parte,  porque  nam  sae  della 


26o  IIISTORIA  DE  ETHIOPIA 

outro  rio  nenhum,  nem  ainda  ribeira,  com  Ihe  entrarem  muytas  e 
muyto  grandcs,  particularmente  no  inverno.  Esta  pois  he  a  verda- 
deira  causa  da  enchentc  annual  do  rio  Nilo  :  as  muytas  agoas  que 
se  Ihe  juntam,  por  ser  inverno  ca  naquelle  tempo  e  chover  muyto. 
Todas  as  de  mais,  que  dam,  sam  fabulas  e  meras  imaginagoes. 
Na  fim  de  setembro  comcQam  ordinariamente  as  agoas  desta  la- 
goa  de  Dambia  a  diminuir  e  as  ribeiras  a  baixar,  por  ir  faltando 
a  chuva  e  consiguientemente  o  Nilo.  Mas  nam  se  acaba  isto  tam  de 
pressa  que  nam  leve  mais  agoa  da  ordinaria  ate  o  Natal. 
8.  Piscium  multae  Por  algumas  partes  de  sua  ribeira  nam  tem  arvores  nenhumas ; 

species    in    Nilo   et  ,  .  ,  , 

esuioptimae.Dehip-  P^r  outras  as  cria  muyto  altas,  como  sam  cedros  sylvestres  e  outras 
popotamis  et  de  tor-  arvores,  que  nam  ha  em  Espanha.  Andam  nelle  cavallos  marinhos, 

pedine  vera  narran-  ^  ^         ^ 

tur.  que  ca  chamam  Gumari  e  a  gente  que  passa  em  as  embarcagoes  se 

guarda  muyto  delles,  porque  algumas  veces  arremetem  e,  pondo  as 
maos  sobre  ellas,  as  biram  com  sua  grande  forga  e  peso  e  matam  aos 
que  alcan^am  com  os  dentes,  que  os  tem  muy  cumpridos.  Ha  grande 
multidam  de  peixe  de  muytas  sortes  e  gordo,  por  achar  bem  que  co- 
mer,  e  entre  elle  o  que  nos  chamamos  em  latim  torpedo  e  a  gente  de- 
sta  terra  chama  Adenguez,  que  quer  dicer  «  espanto  >,  porque,  como 
elles  dicem,  quem  o  toma  na  mao,  se  vole,  fica  espantado  e  ainda  Ihe 
parece  que  todos  os  ossos  se  Ihe  descojuntaram ;  como  Ihes  sucedeo 
a  alguns  Portugueses,  que  mo  contaram,  e  principalmente  a  seu  capi- 
tam  Joam  Gabriel,  que,  estando  huma  vez  folgando  com  outros  na  ri- 
beira  do  rio,  tirou  com  sua  cana  hum  peixe  de  mais  de  hum  palmo, 
sem  escama,  que  se  parecia  muyto  com  cacjam,  e  veio  sem  bulir,  e  to- 
mandoo  na  mao,  pera  o  tirar  do  anzol,  como  bulio,  o  tornou  largar, 
porque  Ihe  pareceo  que  todos  os  ossos  ate  os  dentes  se  Ihe  abalaram 
e  que  ficara  fora  de  si,  e  ouvera  de  cair,  se  nam  estivera  asentado. 
Tornou  logo  em  si  e  entendeo  que  peixe  era,  c  por  ^ombar  de  hum 
seu  criado,  o  chamou  e  disse  que  tirase  aquelle  peixe  do  anzol,  e 
tomandoo  na  mao,  bulio  e  logo  elle  caio  no  cham  fora  de  si  sem  saber 
que  Ihe  sucedera,  e  tornando  a  se  levantar  disse :  Senhor,  que  fiz  a 
vossa  merced  para  que  assi  me  espancase?  Rio  muyto  o  capitam 
e  os  demais,  vendo  quam  desacordado  ficara,  que  nam  sabia  o  que 
Ihe  succedera.  Esperaram  que  morrese  o  peixe  pera  o  tirar  do  anzol. 
E  disseme  o  Capitam  que  tinha  *pera  si  que,  em  quanto  nam  bole,  f.  109. 
nam  causa  aquelle  effeito,  porque  elle  nam  sintio  nada  em  quanto 
nam  bulio ;  e  que  outro  Portugues  tirara  outro  destes  peixes  de  hum 
covado  de  cumprido. 


LIVRO  I,   CAPirULO   XXVI.  26 1 

Do  que  temos  dito  se  vee  claro  quam  mal  informado  foi  frey  9.  Referuntur 
Luis  de  Urreta  sobre  as  cousas  do  rio  Nillo,  pois,  falando  de  suas  dcTontS^usNiiiaiia- 
fontes,  que  poem  em  huns  montes  inaccessiveis,  diz  estas  palavras  q^«  valde  absona  ad 

hoc  flumen  spectan- 

pag.  298  de  seu  1°  livro:   «  Son  montes  asperissimos  y  tan  altos  que  tia,  quaecum  Auctor 
«  los  Alpes  y  Pireneos   son   humildes   cho^as  en  su  comparacion.   L^^  "r^mimwibus 

«  Llamanlos  los  naturales  los  montes  Gafates.  Es  la  subida  destos  regni,  risum  excita- 

vit. 
«  montes  tan  difficultosa  que  humanamente  no  se  puede  subir  a  la 

«  cima  de  ellos,  por  las  muchas  aguas   que   continuamente  baxan, 

«  porque  estan  Uenos   de  pantanos,  fuentes,   arroyos,  desgoladeros 

«  y  aun  rios  caudalosos,  las  quales  aguas  todas  se  vienen  a  recoger 

«  en  un  gran  lago,  que  llaman  con  el  nombre  de  los  montes  Gafates, 

«  y  el  Zaire  por  otro  nombre,  y  el  lago  Zambra,  que,  como  es  tan 

«  grande  y  espacioso,  scgun   las   diversas   provincias  que  bafia,   le 

«  dan   los  nombres.  Es  una  de  las  grandes   lagunas   que   deve   de 

«  tener  el  mundo,  porque  de  largo  norte  a  sur  tendra  cerca  de  1 50 

«  leguas,  y  de   ancho  en  el  medio   tendra  mas  de  80  leguas.   Del 

«  salen  tres  famosos  rios:  el  Zaire  y  Aquilunda  hacia  el  puniente, 

«  y  el  Nilo  que  corre  siempre  hacia  el  norte  ». 

Tudo  isto  he  muy  diferente  do  que   na  verdade  passa,  porque 

a  fonte  do  Nilo  nam  esta  senam   em  aquelle  campo  que  dissemos 

se  faz  sobre  os    montes,    nem   alli   ha  outra   lagoa  nenhuma  mais 

que  aquelle  piqueno  circuito  que  os  olhos  da  fonte  tem  aroda,  por 

onde  no  vei-ao  se  pode  andar  da  maneira  que  fica  dito;  nem  ainda 

em   quanto   senhorea  o   Preste  Joam  se  achara   lagoa  tam  grande 

como  hum  ter^o  do  que  elle  diz;  nem  dos   montes  sae  agoa  mais 

que  algumas  ribeiras  muyto   piquenas,  nem   sam  tam  altos  que  se 

possam  comparar  com  os  Alpes  e  Pireneos,  quanto  mais  dicer  que 

estos  sam  humildes  cho^as  em  seu  respeito,  nem  se  chamam  montes 

Gafates,  mas  o  principal  Guix,  como  ja  dissemos;  nem  a  subida  he 

tam  difficultosa,  que  nam   se   possa  chcgar  a  cima  por  todas   as 

partes  e  por  duas  muyto  bem ;  e  assi   o  emperador  Malac  Qagued 

atravesou  por  alli  huma  vez   com   grande  exercito   e  asentou  suas 

tendas    aroda    da   mesma  fonte,   e   oje   estam   comigo   alguns  dos 

Portugueses  que   entam  o  acompanhavam,   e   o   emperador  Seltan 

Qagued  passou  com  grosso  exercito   a   longo   da   fonte   na  fim  de 

abril  de  1618. 

f.io<),v.  *Nem   he   menos   fora   de   proposito   o   que   diz   mais  adiante, 

pag.   300,   que   o   rio   Nilo   entra   polo    reyno   de  Tigre   Mohon  e 

adiante  se  divide  em  dous  grandes  bra^os  c  faz  a  famosa  ilha  Meroe, 


262  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

que  tem  de  cumprido  cem  legoas  e  de  largo  34,  e  que  o  bra^o  que 
fica  ao  levante  divide  a  ilha  do  reyno  de  Lacca  e  Barnagasso; 
porque  primeiramente  as  terras  que  govema  Tigre  Mohon  nam  sam 
reyno,  senam  huma  certa  parte  do  reyno  de  Tigre,  mas  sam  terras 
largas,  e  por  isso  diz  Francisco  Alvares  em  sua  Htstoria  Ethiopica 
fol.  40,  que  he  reyno  muyto  grande ;  e  se  por  Bernagasso  quer  dicer 
Bahar  Nagax,  como  em  outras  partes  de  seu  livro  faz,  este  governa 
outras  terras  do  reyno  de  Tigre  da  vanda  do  Mar  Roxo  que  chegam 
perto  de  Arquico,  e  assi,  por  la  parte  que  o  Nilo  esta  mais  perto 
das  terras  de  Tigre  Mohon  e  das  de  Bahar  Nagax,  ficam  no  meio 
tres  provincias  muyto  grandes  e  o  reyno  de  Dambia.  Nem  ha  tal 
ilha  Meroe  em  quanto  o  Nilo  passa  por  las  terrsis  do  Preste  Joam, 
como  me  affirmaram  muytos  e  elle  mesmo  me  disse  que  nunca 
ouvera  falar  em  tal  ilha,  nem  sabiam  que  o  Nilo  tivesse  alguma 
povoada,  e  que  as  que  facia  em  sua  terra  eram  muyto  piqueninas, 
que  nam  se  podia  estar  nellas. 

Com  esta  ocasiam  Ihe  referi  diante  de  muytos  grandes  o  que 
frey  Luis  conta  mais  adiante  pag,  303  e  307,  que  perto  dc  esta 
ilha  tinha  elle  posta  muyta  gente  esperando  poUo  aviso  dos  que 
em  outra  parte  vigiavam  certos  po^os  de  pedra,  onde  estava  sinalada 
con  numeros  a  medida  da  crecente  que  era  necessaria  pera  a  ferti- 
lidade  de  Eg)'pto,  e  como  a  agoa  chegava  ao  sinal  que  tinham 
posto  na  pedra,  partiam  poUa  posta  em  dromedarios,  e  chegando 
com  o  recado  aos  que  cstavam  perto  da  ilha  Meroe,  divertiam  a 
agoa  da  henchente  do  Nilo  pera  o  Mar  Roxo  por  humas  grandes 
acequias  que  tinham  feitas  pera  que  nam  innundase  demasiadamente 
Egypto ;  e  porque  de  tudo  nam  tirase  o  rio  e  ficasem  la  perdidos, 
Ihe  pagava  o  Turco,  cuja  he  a  terra,  cada  anno  trecentos  mil  zcquies 
de  ouro,  que  tem  cada  hum  16  reales.  Riram  muyto  todos  da  fabula, 
ate  o  mesmo  Emperador  c  disseme  que  nem  elle  tem,  nem  tiveram 
seus  antepassados  tal  gente  posta  no  rio,  nem  se  diverte  a  agoa 
de  sua  henchente  pera  parte  nenhuma,  nem  o  Turco  Ihe  paga,  nem 
pagou  nunca  tal  tributo.  Por  onde  val  muyto  pouco  o  que  frey 
Luis  traz  no  fim  do  3  livro  do  doctor  Luis  de  Bania,  que  diz  paga 
o  Turco  tributo  ao  Preste  Joaui. 

Nam  me  maravilho  muyto  dcstas  fabulas,  se  sam  informa^oes 
de  Joam  Balthesar,  porque  ainda  o  que  affirmou  com  juramento 
por  verdade  o  acho  muyto  longe  della,  como  o  que  diz  frey  I-uis 
pag.  305,  quc  Ihe  jurou  que  no  anno  de  1606,  em  que  elle  parteo 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXVI.  263 

de  Ethiopia,  avia  dez  annos  que  nam  chovia,  sendo  assi  que,  en- 
trando  eu  nella  em  mayo  de  603,  achei  os  cuatro  meses  siguintes 
muyto  grandes  chuvas  no  reyno  de  Tigre,  onde  estive,  e  disseramme 
depois  que  no  reyno  de  Gojam  foram  muyto  maiores,  e  o  anno  de 
f.  iio.  604  estive  *julho,  agosto  e  setembro  em  Gojam  hum  dia  de  caminho 
da  mesma  fonte  do  Nilo,  e  foram  tam  grandes  as  chuvas  e  as 
enchentes  das  ribeiras,  que  nam  somente  nam  pude  chegar  a  ella, 
mas  nem  sair  casi  de  casa.  E  depois,  sendome  for^ado  ir  pera 
outra  parte,  achei  em  otubro  tantas  lamas,  que  nam  podia  caminhar 
a  mula  senam  con  muyto  trabalho.  Tambem  preguntei  a  homens 
honrrados  de  60  e  65  annos,  se  viram  que  algum  anno  deixase  de 
chover  em  estas  terras,  e  nie  aflirmaram  que  em  toda  sua  vida 
[nam]  viram  tal  cousa,  nem  ouviram  dicer  nunca  que  sucedese.  Do 
que  se  pode  ver  o  credito  que  se  deve  dar  a  as  informacjoes  de 
Joam  Balthesar. 


\ 


CAPITULO  XXVII, 


Dos  rios  Mar&b  e  Tacac£  e  do  discurso  de  suas  correntes. 


Ao  rio  Marab  chama  frey  Luis  de  Urreta,  no  cap.  29  de  seu      i.  Commenta  Ur- 

^   «.  -Tk  •      xT  «1  retae    circa    flumen 

i^  livro,  Rio  Negro,  nam   porque  suas  agoas  nam   sejam  claras  e   Mar^bquodipseper- 
transparentes,  senam  porque  corre  sempre   por  terra  de  negros:  e  P«ram  Flumen  Ni- 

gprum  appeUat. 

que  seja  este  o  rio  de  que  elle  alli  fala,  mostrase  polla  descrip^am 
que  poe,  dicendo  que  nace  perto  do  convento  da  AUeluya  no  reyno 
de  Tigre  Mohon  em  Ethiopia  e  que  divide  o  reyno  de  Dambia  do 
reyno  de  Medra,  ainda  que  deste  nomem  nam  sabem  dar  regam 
em  Ethiopia;  e  conta  deste  rio  tantas  maravilhas,  antepondoo  em 
riqueQa  a  todos  os  rios  do  mundo,  que  me  obrigou  a  deixar  pera 
depois  outros  rios  caudaloso[s],  que  estam  mais  perto  do  Nilo,  e 
tornar  atras  ate  perto  do  Mar  Roxo,  pera  tratar  delle,  nam  porque 
mere^a  compararse  com  aquelles,  senam  porque,  ja  que  frey  Luis 
Ihe  da  o  primer  lugar  depois  do  Nilo,  nam  sera  bem  falar  de  outro, 
antes  de  declarar  ao  leitor  quam  verdaderas  sejam  as  cousas  que 
delle  escreve ;  pera  o  que  sera  necessario  referir  ao  menos  em  soma 
o  que  elle  conta  diffusamente. 

Diz  pois,  falando  naquelle  capitulo  do  Rio  Negro,  estas  palavras : 
€  Su  nacimiento,  segun  tienen  por  cierto  los  Ethiopes,  es  unos  gran- 
€  dissimos  pantanos,  resumaderos  [szc]  y  lagunas  que  estan  junto  del 
€  convento  del  AUeluya,  que  es  de  la  Orden  de  los  Predicadores,  en 

C.  Beccari.  ^#r.  Ae/A,  Scrs//,  oee,  ined,  —  II.  34 


266  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  el  reyno  de  Tigre  Mohon    en  la  Ethiopia,   cujas  aguas   tomando 

«  su  camino  para  hacia  la  Equinocial,  se  hunden  baxo  de  tierra  y 

«  vienem  a   salir  em  una  grande  laguna  a  la  qual  Uaman  el  Lago 

«  Negro,  que  tiene  de  largo  norte  a  sur  poco  mas  de  40  leguas  y 

«  ancho  unas  20;  deste  lago  sale  el  Rio  Negro,  sirviendo  de  terminos 

«  y  limites  *de  toda  la   Ethiopia   para  la  tierra  de  Negros  divide  f.iio,v.  4 

«  el  reyno  de  Ambian  cantiba  (ha   de   dicer   Dambia,   porque  assi 

«  se    chama   o    reyno   e   ao   Vissorrey   qualquer   que   for   chamam 

«  Cantiba)  que  es  de  la  misma  Ethiopia,   del  reyno   de   Medra;   y 

«  saliendo  de  la  Ethiopia  divide  el  gran  reyno  de  la  Nubia  del  reyno 

«  de  Biafara,  y  llegando  a  unos  grandes  montes  se  hunde  por  baxo 

«  tierra,  y  caminando  mas  de  30  leguas  escondido,  sale  con  grande 

«  impetu  en  el  reyno  de  Zafara,  haciendo  un  grande  lago  que  corre 

«  leste  oeste  y  de  levante  a  poniente  50  leguas  de  largo  y  de  ancho 

«  tendra  30,  y  passando  adelante  y  saliendo  del  reyno  de  Mandinga 

«  y  del  reyno  de  Cano,  hace  un  grande  lago,  donde  se  rebalsa  por 

«  muchas  leguas  de  anchura.  El  lago  es  triangular,  y  cada  lado  tiene 

«  cerca   de  46  leguas,   de    suerte   que   tendra   de  circuito  ciento  y 

«  treinta   y  ocho  leguas.   Llamase   el  lago    Guarda.    Desta   grande 

«  laguna  sale  el  Rio  Negro,  llebando  su  curso  para  el  puniente  y 

«  entrando  entre  el  reyno  de  Tombotu  al  norte  y  el  reyno  de  Melli 

«  a  sur,  recoge  un  rio  de  su  nombre,  y  aqui  se  buelve  a  reba,lsar, 

«  haciendo  una  lacuna   de  30  leguas   de   largo   y  1 7  de  ancho,  de 

«  donde  nacen  cuatro  rios  caudalosissimos,  en  que  se  divide  el  Rio 

«  Negro:  el  uno  corre   hacia  el  norte   entre  el   reyno  de  Caragoli 

«  y  el  reyno  de  Genchoa,  y  entrando  en  el  reyno  de  Arguim,  de- 

«  semboca   en    el   Oceano    meridional   a   los    19    grados   de  altura. 

«  Llamase  este  rio  de  s.  Juan  y  causa  en  su  boca  un  buen  puerto 

«  que  llaman  de  Tofia,  y  esta  poco  mas  de  30  leguas  baxo  del  Cabo 

«  Blanco.  El  otro  rio,  en  que  se  divide  el  Negro,  corre  derecho  a 

«  poniente  por  el  reyno   de  Senega,  de^sjemboca  en  cima  de  Cabo 

«  Verde.  El  3°,  en  que  se  divide  el  Negro,  corre  derecho  a  poniente  y, 

«  dividiendose  en  dos  bra^os,  desemboca  en  el  Mar  Oceano,  cerca  de 

«  30  leguas  encima  del  Cabo  Verde  hacia  la  Equinocial.  El  ultimo 

«  ramo  del  Rio  Negro  luego  se  divide  en  dos :  al  uno  llaman  rio  de 

«  s.  Domingo,  y  descarga  sus  aguas  en  el  mar  cerca  de  la  ciudad 

«  de  Stacara,  a  los  trece  grados ;  el  otro  bra^o,  declinando  hacia  la 

«  Equinocial,  hace  a  la  entrada  del  mar  de  la  otra  parte  del  Cabo 

«  Roxo  una  grande  ensenada,  y  Uamanle  a  este  bra^o  Rio  Grande. 


LIVRO   I,   CAPITULO    XXVII.  267 

«  Este  es  el  discurso  que  hace  el  Rio  Negro,  el  qual  es  el  mas 
«  rico  que  deve  de  tener  el  mundo  universo,  porque,  no  solo  en  sus 
«  arenas  se  halla  oro  muchissimo  y  en  gran  abundancia  y  muy  fino, 
«  sino  que  tambien  se  hallan  muchas  piedras  preciosas  y  ricas: 
€  hallanse  rubins  los  mayores  y  mejores  que  se  hallan  en  toda  la 
«  Africa,  hallanse  zafiros,  esmeraldas,  topacios  y  muy  finos,  y  es  de 
f.  III.  «  manera  la  riquega  deste  rio,  que  las  mas  piedras  preciosas  *que 
«  estan  en  el  guardajoyas  del  monte  Amara,  como  se  dixo  arriba, 
«  se  an  sacado  deste  rio.  Hallanse  grandes  pedagos  de  piedras  de 
«  granate  y  en  tanta  abundancia  que  se  servian  de  ellos  antigua- 
«  mente  para  piedras  de  silleria  en  los  edificios  de  los  templos, 
«  porque  no  conocian  su  valor  y  precio;  pero  despues  que  el  Duque  • 

«  de  Florencia  don  Francisco  de  Medicis  embio  al  Preste  Juan 
«  muchos  lapidarios  y  officiales  para  que  labrasen  piedras,  les  en- 
«  senaron  el  valor  del  granate  y  de  otras  muchas,  y  destos  Italianos 
«  aprendieron  los  Abissinos  a  labrar  las  piedras  preciosas ;  y  en 
«  especial  de  los  granates  hacen  mil  maneras  de  jarros,  agiiamaniles, 
c  y  vasos  curiossissimos. 

«  En  sus  orillas  ay  mil  suertes  de  arvoles  hojosos  y  enramados 
«  que  revisten  sus  riberas,  agradables  a  la  vista  y  en  particular 
«  donde  se  hunde  debaxo  tierra,  todo  aquel  espacio  de  mas  de  30 
«  legfuas  es  la  tierra  la  mas  frutifera  y  abundante  que  tiene  toda 
«  la  Ethiopia  ni  aun  la  Africa.  Acuden  a  esta  puente  muchos  gen- 
«  tiles  del  reyno  de  Beafrix,  del  reyno  de  Zafe  e  de  otras  partes, 
«  por  goi^ar  de  la  frescura  de  los  arboles  y  dehesas,  donde  hacen 
«  sus  fiestas  a  la  creciente  de  la  luna,  a  la  qual  adoran.  Ay  grandes 
«  praderias  para  ganados,  y  ansi  son  innumerables  los  que  en  esta 
«  puente  pasturan   assi  de  la  Ethiopia    como  del  reyno  de  Borno. 

«  Cogense  en  este  rio  muchas  perlas  y  de  las  buenas  que  se 
«  hallen  en  toda  la  India.  El  artificio  para  coger  las  perlas  es  este. 
«  Echan  unos  maderos  y  grandes  troncos  en  la  boca  del  Rio  Negro 
«  en  el  Oceano  que  Uaman  Rio  Grande,  y  alli  por  cierto  tempo  los 
«  ostiones  se  pegan  a  los  troncos,  los  quales  tienen  prendidos  con 
«  sus  fiadores,  y  assi  sin  peligro  ni  trabaxo  ninguno  cogen  los 
«  ostiones  y  sacan  las  perlas ;  para  la  qual  pesca  tiene  el  Preste 
«  Juan  sus  guardas  y  juntamente  sirven  los  desta  guardia  para  coger 
«  el  ambar  que  arrojan  las  vallenas  en  el  Rio  Negro  ». 

Ate  aqui  sam  palavras  dei  frey  Luis  de  Urreta,  mas  casi  todas      a.Refutanturcom- 

..  r  t     ^  r  1     1  menta.  Flumen  Ma- 

quantas  cosas  diz  sam  fabulas  tam  labulosas  que  nam  sei  como  as  ^^^  ^qq  habet  scate- 


268  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

bras  prope  monaste-  inventou  quem  Ihas  meteo  em  cabe^a  pera  as  escrever ;  porque  pri- 
alTw-  co  lod  vertit  rneiramente  o  nacimento  do  rio  Marab,  a  que  elle  chama  Rio  Negro, 
adoccidentemetpost  n^jn  sam  os  pantanos  e  lagoas,  que  poe  perto  do  convento  de  Al- 

circiter  50  leucas  in- 

fluit  in  flumen  Taca-  leluya,  que  alli  nam  ha  mais  que  huma  lagoa  muyto  piquena,  que 

ultra  dccurrit  in^rcl  ^®  ^^^^  "^  verao ;  nem  o  convento  he  de  frades  de  s,  Domingos, 
gnum  Dequln.  que  nam  os  ha  nas   terras  do  Preste  Joam,  como  ja  temos   dito  e 

mostraremos  no  fim  do  2^  livro;  e  ainda  que  o  rio  se  sume  debaixo 
da  terra,  quando  torna  a  sair,  nam  faz  a  lagoa  que  diz  de  40  legoas, 
nem  adiante  sirve  de  limites  de  toda  Ethiopia,  como  logo,  falando 
de  seu  discurso,  declararemos,  e  muyto  menos  divide  depois  Dambia 
do  reyno  de  Medra,  porque,  conforme  alli  fala,  ja  entam  tem  pas- 
sado  o  rio  *das  terras  que  senhorea  o  Preste  Joam,  e  entre  elle  e  f.iii,v. 
Dambia  ha  grandes  provincias.  Nem  he  possivel  que  va  a  entrar 
no  Oceano  perto  do  Cabo  Verde,  porque,  demais  de  ser  cousa  muyto 
disparata,  fica  no  meio  o  rio  Nilo,  que  saindo  do  reyno  de  Gojam 
faz  seu  curso,  como  dissemos  no  capitulo  precedente,  e  passando 
do  Cairo  entra  no  Mar  Mediterraneo,  como  todos  sabem  e  o  mesmo 
frey  Luis  diz  pag.  301.  E  o  convento  da  Alleluya  esta  no  reyno  de 
Tigre  seis  dias  de  caminho  de  Arquico  ou  Adecono,  como  ca  dicem, 
da  costa  do  Mar  Rcxo,  e  do  convenuto  da  AUeluya  vai  declinando 
ao  poente  e,  tendo  caminhado  alguns  dias,  entra,  segundo  alguns 
dicem  em  hum  rio  grande,  que  se  chama  Tacace,  de  que  logo  fa- 
laremos,  posto  que  outros  affirmam  que  nam,  senam  que  se  acaba 
no  reyno  Dequin;  mas  ainda  que  passara  adiante,  era  impossivel 
passar  ao  Mar  Oceano,  porque  forcjadamente  avia  de  encontrar  com 
o  Nilo. 
3.  Sazis  tantum-  Quanto  ao  que  diz,  que  [he]  o  rio  mais  rico  de  ouro  e  pedras 

modo  dives  non  au-  .  . 

rovel  lapidibuspre-  preciosas  que  deve  ter  o  mundo,  enganouse  muyto,  porque  nam  se 
tiosis,  immo  paupcr  j^cha  nelle  ouro  nenhum,  nem  os  rubins,   zafiras,    esmeraldas  e  to- 

aquarum   terras   ab- 

luit  omnino  steriles.  pacios  muyto  finos  que  diz ;  antes  topadas  muyto  finas,  porque  nam 

faltam  cjlhaos  que  quebrem  os  pes  dos  que  se  descuidam  ao  passar 
que  nam  he  tam  grande  rio  que  nam  se  passe  a  pee  ainda  no  in- 
verno.  Ja  as  pedras  de  granate  que  poem  em  tanta  abundancia  que 
edificavam  os  templos  com  ellas,  nem  as  ha,  nem  sabem  que  cousa 
he ;  nem  ha  memoria  de  que  o  Duque  de  Florencia  mandase  nunca 
lapidarios  nem  outros  officiaes  ao  Preste  Joam.  Tambem  o  que  diz 
que  em  particular,  de  onde  entra  este  rio  debaixo  da  terra  ate  que 
sae,  he  terra  mais  frutifera  e  abundante  que  tem  Ethiopia  e  de 
grandes  pastos   pera  os  gados,  he  fabula  como   o  demais,  porque 


LIVRO    I,   CAPITULO  XXVII.  269 

nam  he  senam  terra  esteril  e  de  muyto  pouca  erva,  por  ser  area, 
posto  que  ha  algumas  arvores  frescas,  mas  nam  de  fruto.  Nem  he 
menos  fabula  e  imaginac^am  sem  fundamento  dicer  que  tirem  deste 
rio  perolas  e  recolham  ambre,  porque  nenhuma  destas  cousas  ha 
nelle,  nem  em  outro  nenhum  de  quantos  senhorea  o  Preste  Joam, 
e  quando  concederamos  hum  absurdo  e  impossibilidade  tam  grande, 
como  he  que  saia  ao  Oceano  perto  do  Cabo  Verde,  era  impossivel 
ao  Preste  Joam  por  la  gente  de  guarda  para  recolher  as  perolas 
e  ambre,  pollos  muytos  e  grandes  reynos  e  provincias  incognitas  e 
nunca  ouvidas  em  Ethiopia,  que  estam  entre  ella  e  o  Cabo  Verde. 
Por  onde,  deixando  estas  fabulas,  diremos  brevemente  alguma 
cousa  do  nacimento  e  discurso  deste  rio  Marab. 

Tem  o  rio  Marab  sua  fonte  como  duas  legoas  pera  occidente      4*  Scatebra  flumi- 

-,  -11  ^  TNi_A  t_  j  nis  MarAb  ct  eius  de- 

de  huma  villa,  que  chamam  Debaroa,  se  a  hemos  de  nomear  como  cursua  exacte  descri- 
se  escreve  nos  livros  de  Ethiopia,  que  muyta  da  gente  comua  nam  buntur  ab  Auctore. 
a  chama  senam  Baroa.  Aqui  reside  de  ordinario  o  governador  da- 
quellas  terras,  a  quem  chamam  Bahar  Nagax,  porque  vem  a  deferir 
f.  112.  *e  pagar  dereitos  alli  o  fato  que  tracem  os  mercadores  de  Ethiopia 
da  ilha  de  Macpua  do  Mar  Roxo,  onde  chegam  as  naos  da  India, 
que  esta  tres  dias  de  caminho  de  Debaroa.  Duas  legoas  pois  desta 
villa  tem  sua  fonte  o  rio,  que  fui  a  ver,  pera  milhor  dar  re^am  della ; 
e  esta  entre  duas  rochas,  huma  afastada  da  outra  de^aseis  covados, 
e  de  alto  teram  vinte.  Como  a  agoa  sae  de  entre  ellas,  vai  por 
huma  lagem  chaa  36  passos  e  logo  cae  a  pique  por  huma  rocha 
da  mesma  pedra  muyto  funda,  e  entam,  por  ser  na  fim  do  verSo, 
era  tam  pouca  agoa,  que  depois  que  caia  em  baixo,  corria  muyto 
pouco  espago  sem  se  secar,  e  disseramme  que  os  mais  dos  annos  faz 
assi  naquelle  tempo,  mas,  quando  corre,  vai  dereita  a  oriente,  e 
deixando  Debaroa  a  mao  dereita  muyto  perto  Ihe  entra  alli  huma 
ribeira  arra^oada  e  vai  dando  volta  pera  o  sul.  Depois  se  Ihe  chegam 
outras  ribeiras,  mas  sempre  vai  passando  com  nome  de  Marab,  e 
volta  a  roda  de  huma  provincia  que  chamam  Zaraoe,  que  Ihe  fica 
a  mao  dereita,  e  a  izquerda  outra  que  se  chama  Zama  e  outra  Guela; 
logo  se  continuam  as  terras  de  Tigre  Mohon,  A^a,  Harice,  Torat,  que 
sam  grandes  provincias,  e  com  tudo  isso  he  tal  Zaraoe,  que  ella  so  fica 
correndo  da  vanda  dereita  do  rio  em  quanto  as  outras  se  continuam 
a  izquerda;  e  aos  tres  dias  de  caminho  ja  declina  pera  o  norte  e 
chega  ao  mosteiro  da  Alleluya,  que  Ihe  fica  a  mao  izquerda  em  hum 
alto  monte  como  hum  tiro  de  espingarda,  e  de  huma  e  outra  vanda 


2  70  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

do  monte  Ihe  vam  duas  ribeiras  piquenas,  e  faz  seu  caminho  por 
entre  grandes  serras  de  basto  monte ;  e  em  quanto  eu  pude  alcan^ar 
com  a  vista  do  alto  do  mosteiro,  nam  vim  se  nam  cousa  muyto  pouca 
lavrada;  e  passando  dalli  algumeis  legoas,  entra  debaixo  da  terra 
e  vai  a  sair  trece  dias  de  caminho,  e  alli  chamam  ao  rio  Taca, 
que  quer  dicer  agoa  espalhada. 

5.  Quid  rctulerit  Toda  esta  terra,  que  serve  de  ponte  ao  rio,  dicem  que  he  esteril, 

Auctorijoam  Gabri-  •Jii  ij.  'j.         ^       -n     ^.  t 

el  circa  flumen  Ma-  P^^  ^^^  ^  mais  della  area  solta ;  e  o  capitam  dos  Portugneses  Joam 
^^^'  Gabriel  me  affirmo  que  caminhara  por  ella  tres  dias  em  companhia 

de  hum  Vissorrey  de  Tigre.  que  se  chamava  Azmach  Dargot,  e  que 
achavam  muyto  pouca  herva,  mas  que  avia  arvores  frescas,  com 
cuja  sombra  folgavam  muyto  poUa  grande  calma  que  alli  facia,  e  que 
pera  beber  cavavam  na  area  oito  palmos  de  fundo  e  as  veces  12  e 
achavam  muyta  agoa,  que  corria  e  peixe  que  tiraram  com  a[n]zol, 
e  elle  comeo  dous  grandes.  Os  moradores  daquella  terra  sam  gentios 
e  obedecem  ao  Emperador,  posto  que  mal.  *Pouco  mais  adiante  f.ii2,v. 
come^a  hum  grande  reyno,  que  se  chama  Deguin  :  he  de  mouros 
muyto  pretos,  a  que  chamam  Balous  e  nam  obedecem  ao  Preste 
Joam,  mas  correm  com  amjzade  e  tracemlhe  muytos  e  fermosos 
cavallos  a  vender  e  alguns  Ihe  presentam ;  porem  nam  duram  muyto, 
por  certa  doen^a  que  Ihes  da  em  esta  terra. 

6.  Cur  in  regno  Em  este  reyno  Dequin  rega  o  rio  muytas  terras,  que  logo  como 

Dequln  mutet  nomen  jji.'Ji.  j'"j  tt  _^ 

et  ulterius  non  pro-  ^^®  "®  debaixo  da  terra,  dividem  os  mouros  a  ago[aJ  por  muytas 
grediatur.  partes ;  e  por  isso  se  chama  Taca,  scilicet  agoa  espalhada ;   e  dis- 

seramme  os  moradores  de  la  que  todas  as  terras  que  rega  sao  as 
mais  frescas,  as  mais  fertiles  e  fermosa[s]  que  ha  em  Ethiopia. 
Alguns  christaos  dicem  que,  depois  que  rega  aquellas  terras,  se  vai 
a  juntar  com  hum  rio  grande,  que  chamam  Tacace,  que  depois  entra 
no  Nilo ;  mas  os  mouros  daquella  terra  me  affirmaram  que  nam  passa 
de  seu  reyno  Dequin,  senam  que  toda  sua  agoa  se  gasta  em  aquellas 
terras  que  rega  e  ainda  nam  basta,  porque  se  some  na  area  algumas 
dez  legoas  antes  de  chegar  ao  fim  do  reyno. 

7.  FlumenTaca^ft  Ja  que  ficemos  menc^am   de  Tacace,  que   he  rio  muyto  mayor 

e  tribus  scatebris  ori-  •\jr     ^-l.  •  j.  -j^j^ 

tur  in  loco  dicto  Ax-  ^^^  comparagam  que  Marab,  e  eu  o  passei  muytas  veces,  mdo  de 
guaguAregniAng6t;  Dambia  a  Tigre   e   tornando,  que  nam   se   pode  ir  de  hum  destes 

decurrit  primo  occi- 

dentem  versus  ha-  reynos  a  outro  sem  se  passar,  sera  bem  dicer  brevemente  alguma 
canA  et^Ote"ad  ^e^  ^^^^^  delle.  Tem  suas  fontes  muyto  perto  dos  limites  do  reyno  de 
ptentrionem,  EbenAt  Angot,  em  huma  terra  que  se  chama  Axguagna,  ao  pe  de  hum   alto 

et  QuinfAz  ad  meri-  ,,  /-  1,  , 

diem;  inde  flectit  ad  nionte  que  Ihes  fica  a  oriente,  e  sam  tres  olhos  gjandes  que  saem 


LIVRO  I,    CAPITULO    XXVII.  27 1 

do  fundo  con  muyta  furia  como  fervendo,  hum    afastado  de  outro  septentrioncm    me- 

.     j-  ^.       j  j  .^^j        dius  inter  Bargal€  et 

como  20  passos,  e  pouco  mais  de  num  tiro  de  pedra  se  juntam  todos  cemftn  et  inter  Ti- 
tres  e  facem  cfrande  ribeira,  correndo  pera  occidente  por  alcTuns  dias  ^frft  et  ZalAmt  cum 

*^  ^  ^  r-  o  deserto  AldubA.   Est 

entre  as  provincias  Dacana  e  Oag  da  vanda  do  norte,  e  Ebenat  e  valde  dives  aquarum 
Quinfaz  da  vanda  do  sul,  e  depois  com  muytas  voltas  vai  declinando  ti^J^^quia^requent^^^ 
pera  o  norte,  deixando  a  mao  dereita  a  provincia  de  Bargale,  e  a  crocodili. 
izquerda  a  de  Cemen,  que  he  de  serranias  as  mais  altas  e  asperas 
que  casi  ha  em  quantas  terras  senhorea  o  Preste  Joam  e  por  estremo 
frias.  Passando  adiante  correndo  ja  dereito  ao  norte,  deixa  a  mao 
dereita  a  provincia  de  Tamben,  a  de  Adet  e  de  Zana  do  reyno  de 
Tigre,  e  a  izquerda  Zalamt,  que  he  muyto  grande.  Por  aqui  o  passei 
eu  a  vao  no  verao  com  muyto  grande  trabalho,  porque  traz  muyta 
agoa  e  nam  espraya  muyto;  e  prosiguindo  assi  seu  curso  pera  o 
norte,  deixa  a  mao  dereita  a  provincia  de  Sirei  do  reyno  de  Tigre» 
e  a  izquerda  o  deserto  de  Alduba,  que  he  hum  mosteiro  de  frades, 
a  quem  concederam  os  Emperadores  que  casi  em  tres  dias  de  ca- 
minho  indo  a  Dambia  e  pera  occidente  muyto  mais,  nam  se  povoase, 
porque  folgam  de  estar  solitarios,  pera  con  mais  commodidade  se 
darem  a  ora^am  e  facer  suas  penitencias.  Ate  aqui  vem  este  rio  por 
entre  serras  muyto  altas  e  montuosas,  e  por  esta  parte,  ainda  que 
tambem  o  sam,  tem  bom  passo  no  verao,  porque  espraya,  e  assi 
f.  113.  poUo  mais  *fundo  do  vao  nam  chega  a  agoa  mais  que  a  cinta.  He 
muyto  clara,  mas  no  principio  do  inverno  que  se  come^a  a  enturbar, 
se  passa  com  perigo,  por  causa  dos  lagartos  que  ha,  que  mordem 
a  gente  e  aos  animaes,  e  ainda  alg^mas  veces  os  levam,  e  assi 
naquelle  tempo  nam  passam  sem  ir  batendo  na  agoa  com  paos,  e 
no  inverno  de  nenhuma  maneira  se  pode  passar  senam  com  certo 
modo  de  xangada  [sic]  que  facem. 

Nam   tem   em   toda   sua   ribeira    arvores   de   fruto,    mais    que      8.  Prope  eius  ripas 

-  ^  .    1     .  j     ^  1  ..  T^  arbores      fructiferae 

alguns   tamarmheiros   e   nem   destes   se   sabem    aproveitar.    Fouco  nuUae:  piscesmulti. 
mais  adiante  Ihe  fica  a  mao  izquerda  huma  provincia,  que  chamam  Influit  in  Nilum  pro- 

pe  Berbftr. 

Oalcaoit,  e  passando  della  dicem  que  vai  por  terras  muyto  quentes 
ate  entrar  no  rio  Nilo,  segundo  me  disseram  alguns  grandes  diante 
do  Emperador,  e  facendo  eu  dificultad,  por  me  parecer  que  seu 
curso  era  muy  diferente  do  do  Nilo,  disse  o  Emperador  que  nam  avia 
duvida,  que  era  cousa  muyto  sabida;  e  depois  os  moradores  de 
huma  terra,  que  se  chama  Berber  me  affirmaram  que  perto  de  seu 
lugar  se  juntava  com  o  Nilo.  He  rio  de  muyto  peixe  e  muyto  bom 
e  dicem  quc  tambem  ha  cavallos  marinhos. 


W 


CAPITULO  XXVIIL 


£m  que  se  trata  dos  rios  Zebt  e  Haollx. 


Entre  outros  muytos  rios,  que  ha  em  as  terras  que  senhorea  o       x.   Flumen  Zebfc 
Preste  Joam,  muy  caudalosos  e  de  grande 'nome,  depois  do  Nilo  (a  regniNareA:fluitpri- 

quem,  como  ja  dissemos,  chamam  Abaoi)  sam  Zebe,  de  que  dicem   ^^  occidentem  ver- 

8U8,  dem  ad  aepten- 
alguns  em  Ethiopia   que  ainda   he  maior   que  o  Nilo,  com  o  nam  trioncm,  cixcumien^ 

ser,  e  Haoax,  que  tambem  affirmam  compete  muyto  em  grandeija  ^f^jj^i^nde  ad^mcri- 

COm   elle.  dieni   abluitque  ter- 

raa    CoratA.    Variae 

Tem  Zebe  seu  nacimento  em  huma  terra  que  chamam  Boxa  do  apud  Aethiopea  opi- 
reyno  de  Narea,  que   sam  as  ultimas   terras  que  pera  a  vanda  do  ^/^^^^  ^®  ^*^^  "^*f- 

•^  '   ^  ^        r-  non   decursu  et   in 

sul  senhorea  o  Preste  Joam ;  e  comcQando  seu  curso  pera  occidente,  oceanam  effluxu. 

dalli  a  pouco  torna  pera  o  norte  e  vay  dando  volta  a  hum  reyno  pi- 

queno  que  chamam  Zenyero,  que  quer  dicer  «  bugio  »,  e  assi  se  mostra 

aquelle  rey   aos  seus  como   bugio,   porque  tem  feito  perto   de  sua 

casa  hum  motecinho  de  terra  alto  a  modo  de  torrecinha  e  em  cima 

esta  huma  tenda  com  alcatifas  dentro,  onde  elle  so  sobe  por  detras 

sem  ser  visto,  e  como  aparece  acima,  todos  os  que  estam  embaixo 

a  vista  se  prcstram  no  cham  ate  chegar  a  fronte  a  terra  e  logo  a 

beixam  e  alevantandose   facem  outras   ceremonias  que  referiremos 

no  4  livro,  quando    tratarmos   da   viagem  que    o  p.  Antonio    Fer- 

nandes  de  nossa  Companhia  fez  por  aquelle  reyno,  a  que  Zebe  vai 

dando  volta,  de  maneira  que  Ihe  fica  muyto  pouco  pera  facer  ilha ; 

C.  Becjari.  Rer,  Aeih,  Scripi,  occ,  ined,  —  II.  35 


2  74  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

e  como  se  afasta  delle,  torna  pera  o  sul  e  entra  por  huma  terra, 
que  chamam  Corata  e  dicem  que,  depois  nam  muytos  dias  de  ca- 
minho,  vai  a  desembarcar  no  Mar  Oceano,  e  alguns  tem  pera  si  que 
sae  em  Momba^a,  ou  *perto  na  costa  de  Melinde;  e  hum  homem  f.ii3,v. 
de  huma  terra  vecinha  ao  reyno  de  Zenyero  affirmou  que  hum  seu 
criado  fora,  pouco  tempo  ha,  por  perto  deste  rio  ate  chegar  a  huns 
homens  brancos  que  tinham  fortale^a  a  longo  do  mar,  e  que  seus 
livros  tinhao  as  folhas  por  fora  douradas,  e  outros  vermelhas,  e 
nam  pode  ser  Mogambique,  porque  disse  que  caminhara  poucos  dias, 
e  Mo^ambique  esta  muyto  longe  daquella  terra  e  ha  no  meio,  se- 
gundo  dicem,  tantos  desertos  e  gentes  tam  incognitas,  que  nam  so 
nam  tem  comercio  com  Mo^ambique,  mas  parece  que  nem  o  podem 
ter,  ainda  que  queram.  Outros  dicem  que  o  rio  que  v^ai  a  sair  a 
Momba^a  nam  he.Zebe,  senam  outro  nam  inferior  a  elle. 
a.  Flumen  Haolbc  O  2°  rio  de  grande  fama  em  Ethiopia  depois  de  Zebe  he  Haoax, 

scaturit    ad     pedem  ,  ju  i.  u/-i^^^ 

montis  Gecualli  qui  ^  sae  do  pc  de  hum  monte,  que  se  chama  Cjecuala  e  esta  entre  o 
dividit  regna   Fata-  j-eyno  de  Fatagar  e  o  de  Oye  pera  o  sul,  e  o  reyno  de  Xaoa  pera 

g4r  et  Oye   a  regno  ^  n  •    r  ^  j    n- 

XAoa     cuius   terras  ^  norte,  e  casi  pera  elle  vai  lacendo  seu  curso,  e  dalh  a  pcuco  se 
abluit,  donec  ingre-  jj^^  ajunta  outro  rio  que  se   chama   Machi  e  sae  de  huma  lacfoa  a 

diatur       provinciam  "^  * 

Au^Agural*  regni  A-  que  chamam  Zoai  no  reyno  de  Oye,  e  depois  entrando  por  Auga- 
nat'  fcrtilitetc.^*    °"  g^rale,  provincia  do  reyno  de  Adel,  que  he  de  mouros,  rega  todas 

aquellas  terras  e  outras  muytas  do  mesmo  reyno,  onde  chove  muyto 
pouco  ou  nada,  e  assi  com  muyta  diligencia  repartem  a  agoa  do 
rio  pera  regar  todas  as  que  pode  alcan^ar  e  as  faz  muyto  fertiles; 
mas  nam  achei  quem  me  dissese  de  certo  se  se  acavava  alli,  ou  pas- 
sava  ao  mar,  posto  que  muytos  tem  pera  si  que  passa. 
3.  Somnia  Urretae  Frey  Luis  de  Urreta  no  cap.  30  de  seu  1°  livro  trata  tambem 

erAqui?onda.    *^"  ^e  dous  grandes  rios  que  diz  ha  em  Ethiopia,  a  que  ella  chama  os 

rios  Zayre  e  Aquilonda,  e  affirma  que  saem  da  mesma   lagoa  que 
o  rio  Nilo.  E  comecando  pollo  Zayre.  diz  estas  palavTas: 

«  Su  corriente  es  corta  comparado  com  el  Nilo,  porque  solo 
«  riega  dos  reynos:  el  uno  el  de  Gojame  en  la  Ethiopia  al  oriente, 
«  y  entrando  en  el  reyno  de  Congo  al  poniente,  le  atraviesa  corriendo 
«  por  el  por  espacio  del  125  leguas,  y  aunque  es  de  tan  corta  cor- 
«  rida,  con  todo  es  muy  caudaloso  y  de  hondura  profundissima,  de 
«  muy  ancha  y  estendida  tabla,  de  tal  suerte  que  pueden  por  el 
«  navegar  naves  gruesas  de  alto  bordo;  solo  ay  un  inconveniente 
«  que  en  cierto  passo  ay  unos  escolhos  y  pefiascos,  por  donde  se 
«  va  desgargantando  el  rio,  de  tal  suerte  que  impiden  la  navegacion 


LIVRO   I,  CAPITULO   XXVIII.  275 

€  y  que  no  puedan  subir  naves  del  mar*  a  la  laguna,  ni  baxar  della 
«  al  mar.  Pero  el  Preste  Juan,  que  vive  agora,  con  muchos  oflficiales 
«  y  gente  anda  quitando  los  arrecifes  del  rio  y  con  algunos  inge- 
«  nieros,  que  para  este  fin  le  ha  embiado  el  Duque  de  Florencia, 
«  para  hacer  la  navegacion  facil,  que  salido  con  esto,  pueden  las 
«  naves,  saliendo  de  la  laguna  y  de  la  ciudad  de  Zambra  corte  del 
«  Preste  Juan,  que  esta  en  sus  orillas,  entrando  por  el  rio  y  desembo- 
«  cando  en  el  Oceano,  venir  hasta  Lisboa  y  Sevilla  sin  entrar  en 
«  otro  seiiorio  si  no  es  el  del  rey  don  Phelippe  3*^,  de  suerte  que 
f.  114.  «  *entrambos  Reyes  pueden  comunicarse  por  sus  proprias  terras  ». 
«  De  la  misma  laguna  Gafates  salen  otros  dos  rios,  mas  arriba 
«  del  Zayre  acia  el  polo  antartico;  el  uno  llamado  Prata  obra  de 
«  30  legTias  del  rio  Zayre.  y  a  las  16  leguas  del  rio  Prata  nace  de  la 
«  propria  laguna  el  rio  famoso  Aquilonda.  Su  corriente  es  de  le- 
«  vante  a  poniente  en  el  reyno  de  Malemba  en  la  Ethiopia  y  cor- 
«  ren  por  ella  obra  de  55  leguas  y  entrambos  descargan  sus  aguas 
«  en  el  gran  lago  Aquilonda,  tomando  el  nombre  del  rio. 

«  Todos  estos  rios  crecem  de  la  suerte  que  crece  el  Nilo  en 
«  los  mismos  tiempos,  porque,  como  todos  tengan  su  origen  y  ma- 
«  nantial  de  la  laguna  Gafates,  quando  elia  crece  por  los  vientos 
«  del  Oceano,  que  es  la  ra^on  dicha,  es  averiguado  que  han  de 
«  crecer  ellos  ». 

Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta,  todas  bem  dif-  4*  Ex  dictis  refu- 
ferentes  do  que  na  verdade  passa,  porque  em  quantas  terras  sen- 
horea  o  Preste  Joam  nam  ha  taes  nomens  de  rios  Zayre  e  Aquilonda, 
nem  Prata,  nem  tal  lagoa  Gafates,  nem  da  lagoa,  por  onde  passa 
o  Nilo,  sae  outro  rio  nenhum,  como  dissemos  no  cap.  26;  nem  estes 
rios,  ainda  que  os  ouvera,  creceram  por  crecer  a  lagoa  com  os  ven- 
tos  do  Mar  Oceano,  como  tambem  elle  disse  pag.  305,  onde  tratou 
isto  difusamente;  porque  isso  he  fabula,  nem  crecem  os  rios  de 
Ethiopia  de  junho  ate  a  fim  de  setembro,  pouco  mais  ou  menos, 
senam  porque  naquelle  tempo  he  inverno  e  chove  muyto,  como  ja 
dissemos.  Tambem  parece  que  faz  ao  reyno  de  Gojam  contigno  com 
o  de  Congo,  porque  diz  que  o  rio  Zayre  rega  sos  dous  reynos,  o 
de  Gojam  em  Ethiopia  a  oriente,  e  o  do  Congo  ao  poente.  Mas  he 
muyto  fora  de  caminho,  porque,  demais  de  aver  tantos  reynos  y 
provincias  entre  hum  e  outro,  se  cUe  saira  de  Gojam,  impossivel 
fora  deixar  de  entrar  no  Nilo,  porque  este,  como  ja  dissemos,  da 
volta  a  Gojam,  sem  Ihe  ficar  mais  que  hum  pouco  ao  poente,  e  o 


276  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

rio  Tacace,  de  quem  tambem  acima  falamos,  com  ficar  de  Gojam 
pera  a  vanda  do  norte  seis  ou  8  dias  de  caminho,  vai  a  entrar  no 
Nilo  muyto  abaixo  no  reyno  de  Dequin. 

Tambem  he  mera  ficcjam  que  o  Preste  Joam,  que  vivia  quando  elle 
escrevia  isto,  que,  como  elle  diz  em  outra  parte,  era  no  anno  de  608, 
andava  ocupado  em  tirar  as  rochas  do  meio  do  rio  Zayre  com  muy- 
tos  officiaes  e  algxms  engenheiros  que  Ihe  mandara  pera  este  fim 
o  Duquc  de  Florencia;  porque  eu  entrei  em  Ethiopia  em  mayo  de 
603  e  casi  de  ordinario  estive  com  tres  Emperadores,  que  ate  o 
anno  de  608  ouve  e  sei  mu)rto  bem  que  naquelle  tempo  nam  ouve 
tdl  cousa;  nem  elles  puderam  ocuparse  em  isso,  ainda  que  quise- 
ram,  porque  tudo  ate  entam  ardeo  em  guerras  e  alevantamentos  e 
dous  destes  Emperadores  mataram  em  batalha  os  mesmos  ale- 
vantados,  e  o  Emperador,  que  entrou  no  imperio  o  anno  de  1607, 
que  agora  vive  e  se  chama  Seltan  Qagued,  *tambem  teve  ate  oje  f.ii4»v. 
muytas  guerras  e  alevantamentos,  que  Ihe  derao  tanto  trabalho,  que 
tinha  mais  necessidade  de  cuidar  como  se  avia  de  defender  que  de 
se  ocupar  em  tirar  as  rochos  do  rio ;  nem  elle  sabe  de  taes  rochas, 
nem  ouvio  falar  ate  agora  nellas;  e  eu  preguntei  a  homens  gran- 
de|s]  perto  de  70  annos,  que  sempre  andaram  na  corte,  e  me  dis- 
seram  que  nunca  ouviram  falar  em  taes  rochas,  nem  que  o  Duque 
de  Florencia  mandase  officiaes,  e  quando  tudo  isto  fora  certo,  nao 
o  era  que  as  naos  podiam  ir  da  corte  do  Preste  Joam  ate  Lisboa 
e  Sevilha,  sem  entrar  em  outro  senhorio  mais  que  o  seu  e  o  del 
rey  dom  Phelippe  3^,  porque  entre  o  Mar  Oceano  e  as  terras,  que 
senhorea  o  Preste  Joam,  ha  muytas  que  nam  Ihe  obedecem  nem 
Ihe  obedeceram  nunca. 


CAPITULO  XXIX. 

Em  que  se  trata  das  principaes  lagoas 
que  ha  em  Ethiopia. 


Sam  tantas  as  lagoas  que  ha  em  as  terras  que  senhorea  o  Em-  i.  Dc  lacubus  Ac- 
perador  de  Ethiopia,  que  fora  cousa  muyto  cumprida  e  pode  ser  iJ^^Zoid^ ^i^nve- 
que  molesta  ao  leitor  falarmos  de  todas  ellas;  pollo  que  nam  no-  nitur  in  regno  Oys 

1 j  .  j'j  ••1  ct7  leucas  distat  a 

mearei  mais  que  algumas  das  maiores,  deixando  a  prmcipal  pera  ^^^  ^^^^.  circuitus 
o  ultimo  lugar,  por  ter  cousas  mais  particulares,  de  que  sera  bem  i^abct  xo  leucamm; 

.        .  rr  1  rr    A .  ^^  ^'^8  mcdio  cst  iu- 

tratar.  E  a  pnmeira  que  se  offerece  he  a  que  chamam  Zoai,  e  esta  sula  parva,  ibique 
no  reyno  de  Oye  como  seis  ou  7  legoas  de  Zef  bar,  onde  o  em-  ^°^  fl*^jien  Ma^^^ 
perador  Atanaf  Qagued  teve  sua  corte   15  annos.  Corre  esta  lagoa  Propchuncaliuapar- 

vus  lacus  ^Cacalft 

de  norte  a  sul,  tanto  que  pera  Ihe  dar  volta  dicem  que  he  neces- 
sario  casi  hum  dia  enteiro  caminhando  a  bom  passo,  e  he  casi  tam 
larga  como  cumprida.  Tem  no  meio  huma  ilha  piquena  e  nella 
hum  mosteiro,  em  que  estam  alguns  frades,  que  nam  Ihes  falta  peixe, 
porque  o  ha  alli  em  abundancia.  Pera  a  vanda  do  norte  sae  della 
hum  rio,  que  se  chama  Mache,  e  dalli  a  pouco  entra  no  grande  rio 
Ilaoax,  como  dissemos  no  capitulo  precedente;  e  algumas  tres  le- 
goas  desta  lagoa  no  mesmo  rcyno  esta  outra,  que  se  chama  Xacala, 
a  que  se  podera  dar  volta  em  pouco  mais  de  meio  dia,  e  he  muyto 
mais  cumprida  que  larga. 


278  HISTORIA   DE    ETHIOPIA 

a.    De  lacu  HAic  Em  o  reyno  de  Angot  perto  do  reyno  de  Amhara  esta  outra 

m  regno      g   .  lagoa,  que  chamam  Haic  e  poderam  dar  volta  aroda  em  meio  dia  ou 

menos.  Tem  huma  ilha  em  que  esta  hum  mosteiro  e  alguns  frades  e 
a  igreja  he  de  s.  Estevam.  Bem  sei  que  Francisco  Alvares,  em  sua 
Historia  Ethiopica  fol.  80,  poe  esta  lagoa  no  reyno  de  Amhara; 
mas  enganouse,  por  estar  menos  de  huma  legoa  dos  limites  de 
Amhara,  como  me  affirmou  gente,  que  esteve  muyto  tempo  la,  e  o 
emperador  Seltan  Qagued. 

3.  Praecipuus  la-  A  principal  lagoa  de  quanta.s  ha  em  Ethiopia  esta  entre  o  reyno 

cus  est  Dambi&  Ba-    j/-^»a  1  jt^-l»--  x  i_  -r\i_"^ 

hAr.  Habet  25  leucaa  ^^  Cjojam  ao  sul  e  o  de  Dambia  ao  norte,  a  que  chamam  Dambia 
longitudinis,etx6la-  Bahar,  que  quer  dicer  «  mar  de  Dambia  ».  *Corre  de  norueste  pera  f.  115. 

titudinis.      Planities 

quaecircumstantval-  sueste,  se  hemos  de  falar  como  os  mareantes,  e  tera  de  cumprido, 

Seltln^agrd^ho^^^^  ^^  ^^  ^^^  P^^  ^^  pray[a],  25  legoas  ou  mais,  e  de  largo  16,  pouco 
arboribus  fructiferis  mais   ou  menos,  segundo  me   pareceo  em  tres   veces   que  Ihe   dei 

omnigenis  consitus,  ... 

prope  lacum.  volta    aroda,  e  outras   muytas   que   passei    casi  de  ponta  a    ponta 

polla  vanda  de  Dambia,  por  onde  tem  grandes  sementeiras  que  he 
terra  muyto  chaa  e  se  puderam  facer  ortas  de  muyta  recrea^am, 
se  a  gente  fora  curiosa,  mas  nam  se  dam  a  isso;  so  este  Empe- 
rador  come^ou  huma,  em  que  plantou  figueiras  das  de  Portugal  e 
da  India,  papayas,  parreyras,  pesigueiros,  romeiras  e  muytas  ar- 
vores  de  espinho,  e  se  dam  muyto  bem,  e  tira  agoa  com  nora,  que 
parece  he  a  primeira  que  se  vio  em  esta  terra  de  Ethiopia,  ao  me- 
nos  os  que  agora  vivem  nam  ouviram  que  a  ouvese.  Pola  vanda 
do  reyno  de  Gojam  tambem  ha  a  longo  desta  lagoa  muyto  fermosas 
terras,  que  se  semeam,  mas  nam  tantas  como  em  Dambia,  porque 
em  partes  ha  matos  de  cedros  sylvestres  e  outras  sortes  de  arvores 
muyto  altas,  que  nam  ha  em  Espanha. 

4.  Multae  in  me-  Tem  esta  lagoa  muytas  ilhas  com  grande  arvoredo,  humas  de- 

dio  lacu  insulae  val-  ,  ,  ,  •i.ujni.  j.   * 

de  fertiles- ex  hisai   sertas  e  outras  povoadas,  e  em  vmte  e  huma  dellas  ha  mosteiros 
habcnt    monasteria.  ^om  muvtos  frades.  As  principaes,   comecjando  polla  parte  de  oc- 

Praecipuae  sxint  Ga-  "  ^  ^      >v 

lilA,  Dec,  RemA,  Que-  cidente,  se  chamam  Galila :  esta  fica  de  fronte  de  huma  peneinsula 
brftn  et  Debra  An-  ^^1^^^  ^  espa^osa,  onde  (como  ja  dissemos  no  cap )  o  emperador 

Seltan  Qagued  fez  huma  cidade,  onde  pus  sua  corte,  ainda  que  de- 
pois  a  mudou  pera  outra  terra,  que  chamam  Dencaz,  pouco  mais 
de  hum  dia  de  caminho.  Estara  a  ilha  da  praya  de  Dambia  legoa 
e  meia  ou  mais.  Outra  se  chama  Dec  e  he  muyto  mais  chaa  que  as 
outras,  e  tam  grande  que  me  affirmou  o  governador  della  que  la- 
vravam  dentro  cuatro  centas  juntas  de  bois.  Aqui  acostuma  o  Em- 
perador  a  meter  alguns  homens   grandes  dos  que  manda   prerder, 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXIX.  279 

quando  quer  que  estejam  mais  seguros.  Esta  ilha  tem  duas  igrejas, 
e  esta  mais  pera  o  reyno  de  Gojam  que  ao  de  Dambia.  Perto  de- 
sta  esta  outra  mais  piquena  e  muyto  alta,  que  se  chama  Rema,  com 
hum  celebre  mosteiro,  onde  de  alguns  annos  a  esta  parte  se  enter- 
ram  os  Emperadores ;  perto  desta  esta  outra  grande,  que  se  chama 
Qaana  com  mosteiro  e  boa  igreja,  segundo  dicem.  Mais  adiante  esta 
outra  alta,  a  que  chamam  Quebran  com  muytos  frades,  e  aqui  nam 
deixam  entrar  molheres  de  nenhuma  maneira. 

Como  tres  quartos  de  legoa  desta  ha  outra  tambem  alta,  que 
se  chama  Debra  Antonz,  onde  estam  frades  e  freiras.  Em  esta  en- 
trei  eu,  e  he  tam  forte  que  cuatro  homens  bastaram  pera  defender 
f.ii5,v.  a  entrada  a  muyto  ^grande  forc^a  de  gente  se  nam  levar  espingar- 
das.  As  demais  ilhas  nam  sam  de  tanto  nome,  e  por  isso  nam  fa^o 
mengam  dellas. 

As  barcas,  em  que  os  frades  passam  de  humas  ilhas  a  outras      5.      Describuntur 

^  n  j  ^    j  j  •  parvae  cymbae  qui- 

e  vem  a  terra  nrme  e  de  que  usam  todos  os  demais,  sam,  como  ^^^  utuntur  maxime 
acima   dissemos,  de  huma   palha  a  maneira  de  junco,   que  ha  em  monachiutdeunain 

aliam  insulam  trana- 

abundancia  em  algumas  partes  a  longo  da  mesma  lagoa  e,  com  ser  mittant.  Abunae  an- 
muyto  grossa,  fica  muyto  leve  depois  de  seca ;  e  pera  facerem  estas  ^,J|^*fn.^^r^nda 
barcas  tomam  hum  pao  pouco  mais  grosso  quc  huma  perna  e  da  navi    maiori;    ipse 

naufragium  fecit  et 

cumpridam   que   querem  a  barca,   que   ordinariamente   he  curta  e  vitam  nando  serva- 


estreita,  mas  com  seu  modo  de  popa  e  proa,  e  sobre  elle  a  fun- 
dam,  amarrando  aquellas  palhas  de  huma  e  outra  vanda,  nam  com 
cordas  senam  com  huma  cousa  que  sove  pollas  arvores  como  edra, 
mas  muyto  delgada  e  forte,  e  com  se  facer  muyto  cumprida,  fica 
sempre  uniforme  como  corda.  Depois  metem  dentro  muytas  da- 
quellas  palhas  juntas  bem  amarradas,  e  sobre  ellas  poem  a  carga 
e  se  asenta  a  gente.  Nam  tem  vela  nem  os  remos  sam  como  os 
nossos,  senam  humas  varas  delgadas  e  cumpridas,  e  tomandoas  pollo 
meio,  vam  dando  com  as  pontas  na  agoa  de  huma  e  outra  vanda. 
Xam  soffrem  grandes  mares,  nem  que  a  gente  carregue  muyto  pera 
huma  vanda,  porque  facilmente  se  biram,  mas  nam  se  vam  ao  fundo 
e  assi  quem  souber  nadar  pode  logo  subir  em  cima.  Com  tudo,  ainda 
que  seu  Patriarcha  sabia  bem  nadar,  arreceou  tanto  estas  embar- 
cagoes  que  pera  entrar  em  hua  sua  ilha,  mandou  facer  hum  batel 
como  de  nao  o  anno  de  613;  mas,  por  ser  a  madeira  pesada  e  bo- 
tarle  demasiada  carga,  se  foi  ao  fundo,  indo  elle  dentro,  e  saio  a 
nado  ainda  com  outra  pessoa  as  costas,  com  estar  longe  da  terra, 
mas  milhor  Ihe  fora   afogarse  que  ser  depois,   como  foi,   causa  de 


vit. 


2  8o  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

muytas  mortes  e  acabar  as  lan^adas  a  ii  de  maio  de  617,  como  di- 
remos  no  2®  livro. 

6.  Lacus  abundat  Em  esta  lagoa  ha  muyto  grande  abundancia  de  peixe  de  dif- 
scibus  esui  optimis"  f^^entes  sortes,  assi  do  que  tem  escama  como  do  que  nam,  e  deste 
Eonim  duac  species  ^a  hua  feicam  Que  se  parece  muyto  com  cacam,  excepto  na  cabeca, 

monbusommnosiii- 

gularibus,  ab  Aucto-  que  a  tem  grande  e  fea  como  de  sapo,  e  no  inverno,  quando  a  la- 
escn  untur.  ^^^  ^^^^  cheia  o  dia  que  chove  muyto,  sae  tanto  polas  terras  que 

estam  a  longo  da  praya  (que  por  algumas  partes  se  cobrem  de  agoa 
hum  pedac^o)  que  ate  com  paos  matam  muytos,  e  naquelle  tempo 
he  sabroso,  por  que  esta  gordo.  Ha  outra  sorte  de  peixe  com  escama 
do  tamanho  de  hum  besugo  ou  pouco  mais,  e  de  boca  grande  que 
como  desouva  anda  sempre  alli  ate  que  saem  os  filhos  e  depois  os 
acompanha,  e  como  sente  alguma  cousa  de  medo,  abre  a  boca  e  logo 
entram  a  porfia  quantos  podem,  e  ella  fecha  a  boca  e  foge  com  elles, 
e  como  se  torna  a  asegurar,  a  abre  e  os  larga.  Huma  vez,  estando 
eu  a  longo  da  praya  pera  a  vanda  de  occidente,  onde  o  Empera- 
dor  nos  tem  dado  terras,  lan^ou  hum  pescador  *sua  rede  e  entre  f.  116. 
outros  tirou  hum  destes  e,  abrindo  a  boca  diante  de  mi,  sairam  bu- 
lindo  seis  pexinhos  e,  parecendome  que  os  tinha  tomado  pera  co- 
mer,  disse  ao  pescador :  Antes  que  acabasse  de  engulir  a  pressa,  o 
tomastGs.  Respondeo  elle,  que  nam  os  metera  na  boca  pera  les  fa- 
cer  mal,  senam  pera  os  guardar,  porque  eram  seus  filhos  e  con- 
toume  o  que  agora  referi,  e  tomou  a  botar  na  agoa  os  pexinhos. 
Tambem  depois  me  afiirmaram  outros  que  era  cousa  muyta  certa  e 
sabida. 

7.  De  Hippopota-  A  cousa  mais  fera  e  monstruosa  que  [ha]  em  esta  lagoa  he  hum 

mis  aethiopice    Gu-         .,  ^j^  vi-AT^^ 

maris    dictis.    Gra-  animal,  a  quc  a  gente  da  terra  chama  Gumari  e  os  Portugueses,  que 
phice  describuntur.     vieram  com  dom  ChristovSo  da  Gama,  chamavam  cavallo  marinho, 

e  parece  que  o  sera,  conforme  ao  que  ouvi  dicer  na  India  aos  que 
viram  cavallos  marinhos.  He  animal  quadrupedo  e  tam  grande  como 
huma  vaca,  mas  os  pes  sam  muyto  curtos  e  em  cada  hum  tem  cua- 
tro  unhas,  as  duas  de  diante  sam  grandes  e  cumpridas,  outra  mais 
piquena  e  a  outra  ainda  menor,  e  nam  estam  unidas  senam  afasta- 
das.  He  largo  de  corpo  e  nam  muyto  cumprido ;  tem  orelhas  cur- 
tas  como  cavallo  e  o  fucinho  rombo ;  dous  dentes  de  cima  sam  de 
alguns  4  dedos  de  grosso  e  de  palmo  e  meio  de  cumprido,  pouco 
mais  ou  menos,  e  arcados  como  de  porco  do  mato.  Alguns  dos  pi- 
quenos  medi  e  tinham  oito  dedos  de  cumprido  e  casi  tres  de  grosso. 
Quando  abre  a  boca  mostra  que  sera  de  tres  palmos  ou  mais,  e  seu 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXIX.  281 

rincho  se  parece  alguma  cousa  com  o  de  cavallo ;  o  coUo  he  curto 
e  nam  o  dobra  bem;  tem  cavello  muyto  rallo  e  como  de  porco,  e 
o  cabo  he  muyro  curto  com  algumas  cerdas  na  ponta  e  pelle  tam 
branda  que  com  qualquer  frecha  ou  azagaya  que  tiram  a  passam, 
com  ser  muyto  grossa,  mas  como  se  seca,  com  dificultad  a  passara 
espingarda.  Sua  gordura  se  parece  com  a  de  tocinho  e  a  a  carne 
com  a  de  vaca. 

Destes  animais  ha  muytos  em  esta  lagoa  e  de  dia  estam  den-      8.  Multi  sunt  ad 

j.        Ji  ^  *j.  r  j      ripas  lacus  Dambift, 

tro  da  agoa  e  de  noite   saem  a  comer  ao  campo  e  facem   grande  ^^    damna  infemnt 
dano  em  as  sementeiras,  se  nam  as  cercam,  mas  com  quaesquer  pedras  messibus.     Eorum- 

dem  mores. 

que  ponham  de  dous  palmos  de  alto  nao  entram,  por  terem  as  per- 
nas  muyto  curtas.  Tambem,  se  facem  fogo  na  borda  das  sementeircis, 
nam  chegam.  Andam  dez  e  12  juntos  e  estam  de  ordinario  perto 
da  praya,  onde  nam  ha  muyta  agoa,  que  longe  ao  fundo  raramente 
vam,  e  ao  lugar  onde  huns  tem  seu  asento,  que  sempre  he  onde  acham 
chao,  pera  poder  sair  a  comer,  nam  chegam  os  que  sam  de  outra 
companhia,  so  pena  de  terem  muyto  grandes  brigas.  Ainda  que 
estejam  muytos  juntos,  dicem  que  nam  ha  entre  elles  mais  que  hum 
macho,  e  ainda  aflSrmam  cs  que  os  ca^am  que,  quando  alguma  da- 
quellas  femias  pare  macho,  foge  logo  muyto  longe  com  elle,  por- 
que  se  nam  seu  pae  o  mata,  e  estam  la  amos  ate  que  o  filho  he 
f.ii6,v.  grande  e  entam  a  may  o  morde  *e  briga  com  elle  pera  provar  se 
tem  for^a  bastante  pera  pelejar  com  seu  pay,  e  como  Ihe  parece 
que  pode,  o  leva  ao  lugar  de  onde  fugio,  e  logo  o  pay  aremete  ao 
filho  e,  se  nam  o  mata  senam  que  fica  vencido,  foge  a  outra  parte 
onde  espera  ate  que  se  sente  com  mais  corpo  e  for^as,  e  entam  torna 
a  brigar  com  seu  pay  e  porfia  tantas  veces  ate  que  huma  o  mata 
ou  o  vence  e  faz  fugir  daquelle  lugar,  com  o  que  fica  senhor  da- 
quella  companhia  e  de  sua  mesma  may;  mas  quando  pare  femia, 
nam  se  afasta  a  may,  nem  o  pay  Ihe  faz  mal,  antes  a  guarda  com 
tam  grande  amor,  que  se  passa  por  perto  alguma  gente,  ainda  que 
seia  em  as  embarcac^oes  que  acima  disse,  aremete  como  hum  liam 
e  pondo  as  maos  sobre  a  embarca^am,  a  bira  e  faz  em  peda^os  com 
os  dentes  a  quantos  acha;  e  ainda  que  nam  tenhao  filhos,  sam  tam 
bravos,  particularmeute  no  inverno  que  estam  gordos,  que  arreme- 
tem  como  toros;  e  eu  conhe^o  hum  pescador,  a  quem  Ihe  cortou 
huma  perna  com  os  dentes,  indo  em  sua  embarca^am,  e  escapou  com 
grande  trabalho ;  e  pouco  ha  que  morreo  hum  Portugues  que,  che- 
gando  perto  da  agoa,  onde   estava  hum  destes  Gumaris,  saio  com 

C.  Beccari.  K^r.  Ae/A,  Scripi,  occ»  ined,  —  II.  36 


282  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

tanta  furia  que,  sem  se  poder  afastar  o  Portugues,  o  alcangou  por 
hum  bra^o  com  os  dentes  e  Iho  fez  em  pedagos,  e  com  a  pancada 
que  Ihe  deo  com  o  fucinho  o  botou  muyto  longe  e,  se  nam  Ihe  acu- 
diram  outros  com  muyta  pressa,  o  ficera  em  peda^os. 
g.Deridentursom-  Esta  lagoa,  como  tenho  dito,  he  a  mayor  que  ha  em  quantas 

xiia  Urretae  de  lacu-    ,  vt^^th  ^r 

bus  Aethiopiae.  terras  senhorea  o  Preste  Joam;  pollo  que  se  enganou  muyto  frey 

Luis  de  Urreta  em  por  no  reyno  de  Gojam,  como  diz  pag.  298  de 
seu  i*^  livro,  huma  lagoa,  que  de  norte  a  sul  tem  perto  de  100  e 
cinquenta  legoas  e  de  largo  mais  de  80.  Tambem  na  pag.  322  diz 
que  nos  confins  de  Ethiopia  ha  outra  lagoa,  a  que  chamao  Aqui- 
londa,  que  de  norte  a  sul  tem  35  legoas  e  20  de  oriente  a  poente. 
Mas  nam  ha  ca  tal  nomem  de  lagoa,  nem  quem  saiba  que  aja  outra 
tam  grande  como  esta  de  Dambia.  Sobre  ella  vi  decer  muytas  ve- 
ces  das  nubes  mangas  como  redemoinho  e  alevantavam  tanta  agoa 
ate  lacima  e  com  tanta  furia  que,  se  nam  o  vira,  nam  o  pudera 
crer,  e  dicem  que,  quando  acha  alguma  embarca^am  com  gente,  a 
suberte  sem  se  poder  salvar  ninguem ;  o  que  tenho  por  cousa  muyto 
certa,  por  ser  tam  grande  sua  furia  e  a  destrui^am  que  vi  facer  em 
as  casas  da  corte  a  huma  que,  saindo  da  lagoa,  passou  por  huma 
ilharga. 


CAPITULO  XXX. 

Em  que  se  trata  das  rendas  e  tributos 
que  pagam  ao  Preste  Joam  seus  vassallos. 


Pois  temos  ja  visto  quam  grande  seja  a  fertilitade  das  terras,      x.  Annua  tributa 

,  T»xT  u.^jj  ••  •  1  Impcratoris  sunt:  e 

que  senhorea  o  Preste  Joam,  e  tratado  dos  prmcipaes  rios  e  lagoas  yegno  NareA  cnicia- 
que  a^  facem  mais   insiinies,   sera  bem  dicer  a&fora  alfifuma  cousa  toram  aureoram  15 

^  6        »  6  6  miUia;  e  regno  Qo- 

das  rendas  e  tributos  que  Ihe  pagam  seus  vassallos  cada  anno.  £  j&m  zxmilliaetquin- 
comeQando  poUo  ouro  do  reyno  de  Narea,  onde  se  acha  mais  que  f?  mUHa^^etwxceml; 
em   outra  nenhuma   de  suas  terras,   Ihe   vem   cada  anno  peso  de  ««  al"«  partibua  4 
f.  117.  quince  mil  crugados  de  muyto  bom  ouro.  *Primeiro  Ihe  pagavam 
trinta   mil,  e  huma  vez,   segundo  dicem,   Ihe  mandaram  cinquenta 
mil.  Mas  agora,  com  as  continuas  gfuerras,  que  aquelle  reyno  tem 
com  huns  gentios  que  chamam  Galas,  esta  tam  quebrado  que  nam 
Ihe  obriga  o  Emperador  a  dar  mais.  O  reyno  de  Gojam  paga  once 
mil  e  quinhentos  cru^ados,  mas  o  ouro  nam  he  tam  fino  como  o  de 
Narea.  Em  outras  partes  tambem  se  tirava  ouro,  mas  pouco,  e  pa- 
gavam   alguma  renda   delle:  estam  ja  porem   tam  destruidas  dos 
Galas  que  nam  podem  pagar  nada. 

Pollos  mandos  que  o  Emperador  da,  como  de  Vissorreys  e  go- 
vernadores,  tambem  Ihe  dam  algum  ouro,  cavallos,  mulas,  pepas  de 
seda  e  outras  cousas.  O  Vissorrey  de  Begmeder  da  cuatro  mil  cru- 
gados  em  ouro,  e  o  do   reyno  de  Tigre  deo  pouco  ha  cinco   mil, 


284  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

Bahar  Nagax  cinco  mil,  Sirei  Xum  cuatro  mil,  Xum  Tamben  cua- 
tro  mil,  Abargale  tres  mil,  Xum  Xahart  mil,  Amba<^anet  dous  mil, 
Emderta  trecentos,  Agamia  mil,  Zama  trecentos.  Todas  estas  sam 
terras  do  reyno  de  Tigre,  por  onde  deste  reyno  se  tiram  ordinaria- 
mente  25600  cru^ados;  Qagade  mil  crugados,  Dambia  Cantiba  mil, 
Bed  Xum  mil,  Cola  Xum  mil,  Alafa  Xum  mil.  Isto  he  o  ordinario, 
mas  humas  veces  dam  mais,  outras  menos,  e  as  veces  perdoa  o  Em- 
perador  muyto  de  aquello  que  Ihe  prometem,  e  quando  da  estes 
mandos  a  seus  jenrros,  nam  Ihes  toma  nada. 
a.  Praeterea  quod-  Demais   deste  ouro  que   pagam  as  terras   deonde  se  tira  e  os 

libet  regnuxn   solvit  -  -  j         ^  t^  j  ^  j 

tributa     gossypii,  senhores  a  quem  se  dam  mandos,  tem  o  Emperador  outras  rendas 
mellis,  mulorum,  e-  ^q  pannos  de  algodam,  mel,  mantega  de  vacas,  mantimentos,  e  estas 

quorum  etc.  Quomo-  j.  o  o 

do  de  istis  disponc-  sam  certas  e  determinadas  as  que  ha  de  pagar  cada  reyno.   O  de 
ret    e  ag    .       Gojam  da  cada  anno,  segundo  me  disse  Eraz  Cela  Christos  irmao 

do  Emperador,  que  agora  he  vissorrey  de  la,  tres  mil  pannos  de  al- 
godam,  que  ordinariamente  val  cada  hum  hum  crugado;  mas  poucos 
destes  chegam  a  mao  do  Emperador,  porque  muytas  veces  os  deixa 
aos  senhores  a  quem  tem  dadas  por  comedia  muytas  daquellas 
terras;  que  muyto  poucas  das  do  imperio  sam  proprias  dos  parti- 
culares,  senam  do  Emperador,  e  assi  as  tira  a  huns  e  da  a  outros 
todas  as  veces  que  quer.  Paga  tambem  docentos  pannos  de  algo- 
dam  de  outra  laya,  que  chamam  Bezet:  estes  sam  mu^^to  largos 
e  nam  muyto  cumpridos,  felpudos  e  bem  tapados  e  usam  delles  os 
senhores  em  suas  camas  em  lugar  de  colchoes,  porque  sam  bran- 
dos  e  quentes,  e  alguns  sam  tam  bons  que  val  cada  hum  dez  cru- 
(jados.  Mel  paga  muyto  pouco,  porque  nam  tem  este  tributo  mais 
que  so  huma  provincia  daquelle  reyno,  e  esta  da  quinhentos  caloes, 
que  tera  cada  hum  pouco  menos  da  medida  que  em  Castella  cha- 
mam  arroba.  Mantimento  nam  paga  nenhum,  pollo  perdoar  este  Vis- 
sorrey  e  ordenar  com  beneplacito  do  Emperador  que  nam  se  pa- 
gase  mais,  com  ser  valia  de  dezmil  e  setecentos  cru^ados.  Tambem 
pagava  primeiro  muytas  mulas  *e,  segundo  dicem,  tresmil  cavallos,  f.ii7,v 
que,  ainda  que  sam  piquenos  como  quartagos,  corrcm  bem  e  sofFrem 
muyto  trabalho.  Esta  renda  [h]a  ja  annos  que  deixou  o  emperador 
Malac  Qagued,  pera  que  com  aquelles  mesmos  cavallos  pelejase  a 
gente  da  terra  com  os  Galas,  que  vem  alli  muytas  veces. 

Tambem  a  quem  davam  o  mando  de  Bahar  Xagax  no  reyno 
de  Tigre,  pagava  primeiro  cento  e  cinquenta  cavallos  muyto  mi- 
Ihores  que  os  de  Gojam,  e  agora  nam  da  mais  que  40.  Outros  se- 


i^- 


LIVRO   I.   CAPITULO   XXX.  285 

nhores  daquelle  reyno  tambem  pagavam  cavallos  e  ja  dam  muyto 
poucos. 

Em  os  outros  reynos  nam  pagam  tantos  pannos,  porque  alg^ns      3.    ViUici  omnes 

•11  j  X*  -L  1  ^  i-»   j        '11*     j  solvunt      quotannis 

villoes  dam  mantimento  e  mel  e  outros  pannos.  Cada  villao  dos  que  imperatori  tributum 
nam  pagam  pannos  da  certa  quantia  de  mantimento,  que  chamam   ^^^  vocatur  Cold: 

et  dominis  quintam 

C0I6  do  Emperador,  que  quer  dicer  r  torrado  »,  pera  mostrar  que  partem  omnium  fni- 

nam  he  mais  que  hum  reconhecimento  e  cousa  tam  pouca,  que  nam  ^"^^^^^«1^8^^ 

merece  nome  mais  que  de  torrado,   mas   toda  via   cuatro   hanegas  d^as  gaUinas. 

de  Castella  ou  pouco  menos ;  e  a  esta  quantia  chamam  elles  Hand- 

chan   huma   carga,  e    como   sam    tantos  os  villoes   que   com  diffi- 

cultad  se  podem  contar,  vem  a  ser  esta  renda  huma  cousa  muyto 

grande. 

Demais  disto  paga  o  villao  a  renda  das  terras  que  lavra,  ainda 
que  isto  nam  he  geral,  porque  em  algumas  partes  em  lugar  disso 
dam  pannos.  Esta  renda  era  antiguamente  a  terceira  parte  do  que 
recolhiam  das  terras ;  mas  depois,  porque  os  que  as  semiavam  escon- 
diam  muyto  e,  quando  chegavam  na  era  a  tomar  a  3"  parte  do 
mantimento,  achavam  pouco,  ordenou  o  emperador  Malac  Qagued 
que  nam  ficessem  desta  maneira  senam  que,  quando  o  mantimento 
estivese  pera  se  poder  segar,  fosse  o  juiz  da  terra  com  o  dono  e 
outros  dous  ou  tres,  e  conforme  fosse  o  mantimento  julgasem  o  que 
devia  pagar  o  dono  delle ;  mas  nunca  Ihe  julgam  a  3*  parte,  senam 
a  quinta  pouco  mais  ou  menos.  Esta  renda  he  pera  o  senhor,  a 
quem  o  Emperador  tem  dadas  as  terras  por  comedia,  e  a  elle  tam- 
bem  paga  o  villao  dous  cantaros  de  mel  cada  anno,  hum  polla  Pa- 
scoa  de  Resurrei<;am,  e  outro  na  Exaltagam  da  s.**  Cruz,  e  em  cada 
hum  destes  dias  da  juntamente  huma  gallinha. 

As  demais  terras,  que  o  Empcrador  tem  escolhidas  pera  si,  que      4.  Redditua  arvo- 

.  j.  X    j  j  rum     quae     propria 

sam  muytas,  e  as  que  toma  todas  as  veces  que  quer,  acodem  com  ^^^^^  impcratoris.  E- 
tudo  isto  a  seus  feitores.  Cada  pastor,  que  sam  familias  conhecidas,  numerantur  alia  tri- 

buta,  quae  solvuntur 

paga  hum  cantaro  de  mantega,  e  cada  teselam  hum  panno,  se  he  in  portubus  et  in 
christao,  e  se  mouro,  certo  peso  de  ouro  que  tera  hum  cru^ado.  nJJ^eras'  vaccarum 
Tudo  isto  tambem  arrecadam  os  feitores  do  Emperador.  quas     unaqtiaeque 

.  .  provincia  quotannis 

Demais  destas  rendas,  tem  os  dereitos  que  se  pagam  em  as  praebcre  dcbet. 
feiras,  que  sam  muytas;  mas  estas  ordinariamente  as  da  aos  Vis- 
f.  118.  sorreys  e  a  outros  senhores.  Ha  tambem  muytos  portos  na  *terra 
onde  todas  as  facendas  que  vem  do  mar  pagam  de  dez  hum,  mas 
das  que  sam  proprias  da  terra  nam  tomam  tanto.  Com  tudo,  como 
ha  muj^to  trato  de  escravos,  marfil,  sal,  cera  e  outras  cousas,  vem 


286  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

a  ser  muytos  os  dereitos.  Estes  portos  ou  os  arrenda,  ou  os  da 
por  tempo  a  senhores  com  algum'  reconhecimento  de  pe^as  que 
Ihe  presentam. 

A  fora  destas  rendas  e  tributos  que  cada  anno  pagam  ao  Pre- 

ste  Joam,  tem  outra  de  vacas  que  arrccadam  de  tres  em  tres  annos, 

e  he   muyto   grande,   porque  o   reyno   de  Gojam    paga  doucemil, 

Ola^a  cinco  mil,   Damot  dous  mil,   Amhara  dous   mil,   Begmeder 

seis  mil,  Dara  cinco  mil.  De  Dambia,  Oagra,  (^alamt  e  outras  muy- 

tas  provincias,  que  tambem  pagam,  nam  pude  saber  o  numero  certo 

e  por  isso  as  deixo ;  mas  o  reyno  de  Tigre  paga  quince  mil  e  no- 

vecentas,  (^agade  e  Oalcait  tres  mil. 

5.  Ex  dictis  confu-  Frey  Luis  de  Urreta  no  cap.  32  de  seu  1°  livro  faz  tanto  mais 

tae.  E  quibus  fontil  ^^^^  ®  poderoso  ao  Preste  Joam  do  que  eu  tenho  dito,  que,  excepto 

bus  Auctor  hauscrit  el  rey  dom  Phelippe,  o  antepoe,  pag.  342,  a  todos  os  Reys  e  monar- 

omnia  supcrius  ex- 

posiu.  chas  do  mundo,  por  estas  palavras: 

«  Superior  es  a  todos  los  del  mun[do]  en  rique^ats  de  oro  y  plata 
€  y  piedras  preciosas  y  en  gente;  pues  en  diez  dias  puede  juntar 
«  docientos  y  trecientos  mil  soldados,  y  en  un  mes  juntara  un  mil- 
«  lon  de  gente ;  que  no  se  yo  que  aya  principe  en  el  mundo  que 
«  lo  pueda  hacer.  Y  aunque  los  Emperadores  de  la  Ethiopia  en 
«  tiempos  antiguos  eran  poderosissimos,  segun  encarecen  las  histo- 
«  rias,  nunca  lo  han  sido  tanto  como  en  estos  tiempos;  porque  Ale- 
«  xandro  3°,  que  murio  ano  de  1606,  y  Zerascaureat,  que  oy  go- 
«  viema,  tienen  todos  los  senorios  y  reynos  que  tuvieron  sus  an- 
«  tepassados  y  otros  muchos  que  se  han  conquistado  ». 

Isto  diz  o  Author,  mas  todas  estas  cousas  sam  tam  fabulosas, 
como  as  que  de  ordinario  traz  em  seu  livro;  o  que  se  ve  claramente 
pollo  que  fica  dito  no  capitulo  9  sobre  os  thesouros  que  elle  punha 
em  Guixen  Amba,  e  o  que  aqui  temos  referido  das  principaes  ren- 
das,  que  oje  tem  o  Empcrador,  tudo  por  informagam  de  Eraz  Cela 
Christos  irmSo  do  Emperador  e  do  thesourero,  que  nam  me  aviam 
de  enganar,  dicendo  menos  do  que  era;  porque,  demais  de  serem 
homens  tam  graves  e  de  grande  primor,  se  confessam  comigo  e  Ihes 
declarei  que  Ihes  preguntava  pera  o  escrever  e,  porque  no  numero 
das  vac£Ls  que  se  pagam  cada  tres  annos  tinham  duvida,  me  deo 
huma  lista  o  principal  dos  secretarios  do  Emperador,  que  tinha  ti- 
rada  de  hum  livro,  em  que  estam  escritas  as  rendas  do  imperio, 
qu  eu  enam  pude  aver.  Mas,  falando  com  Eraz  Cela  Christos  diante 
do  Emperador  sobre  as  rendas  do  ouro,  mc  disse  o  Emperador  que 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXX.  287 

a  seus  antecessores   nam  Ihes  pagavam  antig^amente  tanto   ouro, 
f.ii8,v.  *como  do  emperador  Malac  (^agued  a  esta  parte,  que  avera  26  an- 
nos  que  morreo. 

Quanto  ao  numero  de  gente  de  guerra  que  tem  o  Emperador,      6.    Bxercitus    ad 

..  j^Mi.  1*  '    j»  •      ^      summum    numerari 

nam  cuido  que  seram  docentos  mil  homens  hmpos,  amda  que  junto  potesta:ro  miniami- 
todo  seu  poder :  e  falando  dos   exercitos  que  tenho  visto  de  tres  ^*^^™ '  ®**^  ^*®  *®"*" 

pore      quo      Auctor 

Emperadores,  que  ouve  depois  que  entrei  em  Ethiopia,  nam  me  pa-  mansit  in  Aethiopia, 

rece  que  teria  nenhum  cinquenta  mil  homens,  com  procurarem  el-  rmpH^'''^^^^^^^^  T 

les  algnmas  veces  juntar  muyta  for<?a,  posto  que  o  numero  da  de-  mUiia  fucrunt. 

mais  gente,  que  seguia  o  exercito,  era  grande.  Tambem  he  falso  o 

que  diz  que  os  Emperadores,  de  agora  sam  mais  poderosos  e  tem 

mais  reynos  que  seus  antepassados;  porque  nem  poder,  nem  reynos 

tem  tantos   com  muyto  como  os  antiguos,   nem   ouve  nunca   mais 

que  hum  Emperador  que  se   chamase   Alexandre,  e  este   morreo 

muytos  annos  ha,  como  por  veces  temos  ja  dito;   nem  ha  tal  Ze- 

rascaureat,  porque  eu  entrei  em  Ethiopia  em  mayo  de    1603,  e  o 

que  entam  era  se  chamava  Jacob,  e  dalli  a  pouco  Ihe  sucedeo  ou- 

tro,  que  se  chamava  Za  Denguil,  a  quem   mataram  em   otubro  de 

604,  e  tomou  Jacob,  a  quem   tinham  degradado,  e  a  este  tambem 

mataram  o  anno  de  607,  como  temos  tambem  dito  e  declararemo[s] 

no  4  livro,  e  entrou  o  que  agora  vive,  que  se  chamava  Suzeneos, 

e  intitulo[u]se  Malac  Qagued;  mais  depois  deixou  este  nome  e  se 

chama  Seltan  Qagued. 

Nam  he  menos  fabula  o  que  diz  no  mesmo  cap.  pag.  344,  que      7.  Aliacommcnta 

j  j»jT--i_*j  T-  j  -r»  11        Urretae  et  Francisci 

cada  anno  dia  da  Epiphania  dam  ao  Emperador  os  Reys  que  Ihe  Aivarer,  qui  ab  ipsis 
sam  sufiretos,  cada  hum  por  si,  hum  elephante  carrcgado  de  ouro,  f«*iiiopibu8circatri- 

®  x'  »  i'  o  ^^^  f^j^    manifeste 

seda  e  borcado,  e  juntamente  das  cousas  que  produce  seu  reyno;  dcceptus. 
porque  nam  ha  tal  tributo,  nem  se  vio  nunca  em  Ethiopia  ele- 
phante  manso,  nem  pagou  nunca  o  reyno  de  Gojam  de  tributo  tre- 
centos  e  trinta  mil  cru^ados  em  ouro,  como  elle  diz  na  siguinte 
pagina«  Bem  sei  que  isto  de  Gojam  e  o  demais  que  conta  dos  tri- 
butos  daquelle  reyno  e  do  modo  que  tem  dos  entregar  ao  Empe- 
rador  o  tomou  de  Francisco  Alvares,  ainda  que  nam  o  cita,  porque 
fol.  157  de  sua  Historia  Ethiopica  esta  casi  pollas  mesmas  pala- 
vras  que  elle  o  refer ;  mas,  ainda  que  Francisco  Alvares  affirma  que 
vio  entrar  tres  mil  mulas,  tres  mil  cavallos,  tres  mil  Be<;et,  «  pan- 
nos  de  algodam  > ,  e  trinta  mil  pannos  de  outra  sorte  e  de  muyto 
menos  pre^o,  e  o  ouro  com  a  ordem  e  ceremonias  tam  cumpridas, 
como  alli  conta,  digo  que  quereriam  mostrar  mais  apparato  do  que 


2  88  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

comummente  usam,  por  estar  gente  estrangeira  em  sua  corte,  e  que 
o  enganaram  em  o  numero  do  ouro,  pera  dar  a  entender  que  tin- 
ham  grande  rique^a;  porque  nunca  do  reyno  de  Gojam  se  pagaram 
de  renda  trecentos  e  trinta  mil  cru^ados  em  ouro. 

8.  Ipse  SeltAn  Sa-  Tambem    diz    pag.    346   que   em   Gojam   ha    humas   formigas 

g&d    valde     deridet     ,  v      j  j 

fabulam  Urretee  de  ^^  tamanho  de  grandes  caes  e  na  terra  que  tiram  *de  dentro  a  boca  f  119. 
formicis,  quae  sta-  (je  seu  formigueiro  saem  pedacos  de  ouro  e  prata,  e  pera  os  reco- 

tura  canes  aequarent  ^  jt         t  j-  jt 

etc.  Iher  vai  a  gente  com  grande  silencio,  quando  faz  maior  calma,  que 

ellas  fogindo  della  se  metem  no  mais  fundo,  e  nam  se  detem  alli  a 
gente  muyto,  antes  se  torna  com  muyta  pressa,  porque,  se  os  sentem 
as  formigas,  sae  logo  huma  multidam  increivel  e  nam  ha  escapar  fu- 
gindo,  porque  sam  muyto  ligeras  e  tam  fortes,  bravas  e  crueis  que 
despeda^am  e  comem  quantos  acham.  E  ainda  que  refer  isto  de 
alguns  authores,  diz  que  nam  Ihe  cause  risa  ao  leitor,  porque  nam 
he  novo  em  o  mundo  aver  semelhantes  formigas.  Mas  com  toda 
esta  advertencia  nam  pudo  o  Emperador  conterse,  quando  Iho  con- 
tei,  senam  que,  rompendo  por  toda  sua  mesura  e  gravedade,  riou 
bom  peda^o  e  festejou  muyto  a  patranha,  parecendolhe  que  nam 
so  em  Gojam,  mas  nem  em  parte  nenhuma  do  mundo  podia  aver 
taes  formigas. 

9.  Exponimtur  et  Sem.elhante  a  isto  he  o  que  diz  mais  adiante  pag.  348,  que  o 

refutantur      errores    t^       ^      t  j  -» r       ^  .  ,    1 

geographici   praedi-  J^  reste  Joam  tem  de  costa  no  Mar  Oceano  pera  a  parte  onental  do 
cti  scriptoris.  cabo  de  Boaesperancpa  mais  de  oitocentas  legoas,  e,  come^ando  do 

cabo  de  Guardafui,  vai  nomeando  muytos  reynos  ate  a  boca  do  rio  de 
Cuama,  que  diz  sam  todos  do  Preste  Joam,  conquistados  por  elle  e 
lancjada  fora  muyta  mourama;  e  que  afora  destes  tam  grandes  reynos, 
Ihe  pagam  huma  maneira  de  tributo  e  reconhecimento  muytos  reys 
gentios  poderosissimos,  nam  somente  por  serem  conquistados  por  o 
Preste  Joam  David,  mas  porque  o  vem  tam  grande  e  poderoso  prin- 
cipe,  desejam  tello  por  amigo  e  protector,  pera  estarem  seguros  dos 
outros  reys  gentios,  que  nam  se  atrevem  a  facer  guerra  aos  que  sam 
amigos  do  Preste  Joam,  temendo  seu  poder,  e  entre  estes  Reys,  que 
diz  que  com  presentes  o  lisongeam  e  como  vassallos  Ihe  pagam 
tributo,  nomea  o  Rey  de  Biafara  e  de  Gelofos,  Tungubutu  (que  he 
metropoli  e  cabe^a  do  reyno  dos  Follos)  com  outros  da  costa  de 
Guine  e  que  estam  na  terra  firme  que  corre  de  antes  do  Cabo  Verde 
ate  Serraleoa.  Tambem  o  Rey  do  Congo  e  o  de  Monomotapa,  o 
qual  diz  que  he  senhor  de  toda  a  terra  que  cae  ao  cabo  de  Boae- 
speran^a.  Finalmente  todos  os  Reys  da  ilha  de  s.  Louren^o  reco- 


LIVRO  I,    CAPITULO   XXX.  289 

nhecem  ao  Preste  Joam,  mandandolhe  presentes  e  donativos,  por- 
que  estam   perto  de  suas  terras,  que  he  o  reyno  de  Titut  e  Sibit. 

Isto  diz  o  Author,  mas  tudo  he  muyto  fora  de  caminho  e  mo- 
stra  bem  quam  pouco  sabe  os  limites  das  terras  do  Preste  Joam; 
porque  em  toda  a  costa  do  Mar  Oceano  nam  tem  nem  hum  palmo 
f.ii9,v.  e  muyto  menos.senhorea  *os  reynos  que  diz  pera  o  cabo  de  Boae- 
speranpa,  porque  o  derradeiro  reyno  de  seu  imperio  pera  a  vanda 
de  Mogambique  he  o  de  Narea,  e  de  Gojam  ao  cabo  delle  se  pode 
chegar  em  degoito  dias,  segundo  me  affirmaram  os  que  estiveram 
la  muyto  tempo,  e  dalli  a  Mo^ambique  sam  tam  grandes  os  desertos 
e  tantas  as  terras  de  Cafres  nam  conhecidas  dos  va[ssa]llos  do  Preste 
Joam,  quc  nam  somente  nam  tem  trato  com  ellas,  mas,  segxmdo  el- 
les  dicem,  nem  ouviram  nunca  seus  nomens.  E  falando  eu  poucos 
dias  ha  de  proposito  com  o  mesmo  Emperador  sobre  esta  materia, 
me  disse  que  sua  gente  nam  passava  de  Narea  e  que  nam  avia 
lembran^a  de  que  seus  antepassados  senhoreasem  nunca  dalli  por 
diante,  nem  agora  sabiam  que  sorte  de  terras  eram  aquellas.  Por 
onde,  se  alguns  destas  chegaram  a  Mogambique  ou  a  costa  de  Me- 
linde,  seria  embarcandose  em  as  gelbas  que  daquella  costa  vem  com 
escravos  a  Moca,  como  eu  vi  estando  la  cativo. 

Daqui  se  vee  claramente  quam  fabulosas  sam  tambem  as  cou-      xo.      Refclluntur 

j.  .  •   o.     •  ai  j.  itcxn  alia  commenta 

sas,  que  diz  pag.  354  sobre  as  victonats  que  amrma  teve  o  empe-   ^^  victoria  impera- 
rador  David  dos  Trogloditas,  que  elle  poe  perto  de  Mo^ambique,  ^^^®,  David  contra 

Trogloditas,  et  quod 

de  fronte  da  ilha  de  sam  Louren^o,  e  de  hum  capitam  que  diz  se  eius  imperio  vecti- 

revelou  contra   sua   senhora  a  reynha   Betfaga,  senhora  de  toda  a  Monomotapac?^^" 

terra  que  cae  ao  cabo  de  Boaesperan^a,  que  chamam  Monomotapa, 

a  qual  pidindo  favor  ao  Preste  Joam  David,  prometendolhe  suge- 

(jam  e  certo   tributo,  foi  elle  mesmo  a  favorecer  e,  dando  batalha 

ao  capitam  revel,  o  venceo,  e  cortandolhe  a  cabe^a,  a  mandou  a 

reynha  Betfaga,  e  ella  co[mo]  bem  agradecida  acudio  sempre  com 

grandes   does  e  tributos  ao  Preste  Joam;  o  que   guardaram  todos 

seus  sucessores.  Mas  como  o  mesmo  Preste  Joam,  que  oje  he,  affirma 

nunca  tiveram  noticia  de  tal  Reynha,  nem  comercio   nenhum  com 

aquellas  terras,  o  que  bastava  pera  se  ver  o  credito  que  se  Ihe  deve 

dar  a  quanto  diz  sobre  esta  materia;  com  tudo  pera  maior  confir- 

ma^am  referirei  por  suas  mesmas  palavras  o  que  diz  da  3"  victoria 

que  teve  o  emperador  David :    «  La  3*  victoria  y  triunpho  insigne 

€  fue  el  que  tuvo  contra  el  poderoso  Rey  de  Monicongo,  al  qual 

«  vencio  en  batalla  campal,  en  la  qual  avia  un  millon  y  mas  de  gente. 

C.  BeccARl.  ^tfr.  Ag^A.  Script,  occ,  ined,  —  II.  37 


290  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

I  Pero  fue  dichoso  el  Rey  do  Monicongo  en  quedar  vencido  del  Pre- 

*  ste  Juan ;  pues  quiso  Dios  que  por  aquella  via  viniese  en  conoci- 
s  miento  de  la  ley  cliristiana  y  se  convirtiesc,  y  el  y  los  mas  de  su 

*  reyno  se  bautizaron,  siendole  padrino  el  Preste  Juan ;  y  desde  en- 

■j  tonces  ay  muchos  christianos  *en  aquel  reyno  » .  ( 

Nam  se  podia  pintar  cousa  mais  apocrifa  que  esta,  pois  he  tam 
notorio,  de  mais  do  testificarem  muytas  historias,  que  el  Rey  de 
Congo  com  grande  parte  de  seus  vassallos  se  bautizaram  no  anno 
de  1491,  sendo  Rey  de  Portugal  dom  Joam  2",  que,  pello  grande 
zelo  que  tinha  de  nossa  s."  fe  e  conversam  da  gentilidade,  mandou 
[a]  aquelle  reyno  Rodrigo  de  Sousa  por  embaixador  e  com  elle  tres 
religiosos  da  sagrada  ordem  do  glorioso  s.  Domingos,  e  foram  os 
primeiros  que  naquelle  reyno  pregaram  o  santo  evangelho  com 
muyto  grande  zelo  do  bem  das  almas  e  bautizaram  al  Rey  e  a 
Reynha  com  a  mor  parte  dos  grandes  de  sua  corte ;  e  depois  pollo 
tempo  em  diante  se  foram  bautizando  os  mais  do  povo ;  com  que 
aquelle  reyno  ficou  tudo  christao  polla  via  de  Fortugal  e  zelo  del 
rey  dom  Joam  o  2°  e  nam  pollo  Preste  Joam.  Nem  Ihe  fora  pos- 
sivel  chegar  la,  ainda  que  o  procurara  metendo  todo  seu  resco,  por 
la  grande  distancia  que  ha  destas  suas  terras  ao  reyuo  de  Congo, 
pois  confina  com  o  mar  Oceano  do  cabo  de  Boaesperanga  pera  a 
vanda  de  Portugal. 
11.  Refenur  dein  Tambem  diz  pouco  mais  adiante  pag.  356,  que,    morto  o  em- 

t^  fllii'  imperatorla  pcrador  David,   Ihe  sucedeo  no  imperio  seu  filho  Abraham  e  que 

David,  qui  ante  p«-  em  huma  baCalha,  que  teve  com  el  rey  de  Adel,  saio  ferido  e,  ainda 

CTemsuuminpraelio  ^  ^ 

occubuit.  que,  tendo   pelejado  da  minha  ate  a  noite  com  muytas  mortes  de 

huns  e  outros,  se  afast?ram  sem  se  conhecerqual  levava  a  victoria, 
com  tudo  isso  foi  tam  exorbitante  seu  sentimento,  por  ver  que  o 
ilouro  se  Ihe  ouvese  defendido  tam  valerosamente,  que  se  encendeo 
em  huma  grande  fevre,  com  que  se  Ihe  agrabou  a  ferida  de  ma- 
neira  que  em  poucos  dias  morreo  e  depois  fugio  sua  gente ;  pello 
que  o  mouro  se  teve  por  victorioso;  e  depois  eligiram  em  seu  lu- 
gar  a  Claudio  seu  irmSo. 

Isto  foi  falta  de  informaijam,  porque  primeiramente  este  filho 
do  emperador  David,  e  por  outro  nome  Onag  ^agued,  nam  se  cha- 
mava  Abraham,  senam  Fiquitor,  e  nam  morreo  depois  de  seu  pay, 
ienam  antes;  porque,  sendo  vencido  o  Emperador  de  hum  mouro  de 
Vdel,  que  se  chamava  Ahamed,  e  comummente  o  chamao  Granh, 
)orque  era  izquerdo,  que  issoquer  dicer  Granh  na  lingoa  de  Ethio- 


LIVRO   I,    CAPITULO  XXX.  29 1 

pia,  e  andando  fugindo  do  mouro  de  huma  parte  a  outra,  Ihe  disse  seu 
filho  Fiquitor,  que  era  muyto  esfor^ado,  ainda  que  nam  de  muyta 
idade:  Ate  quando,  senhor,  hemos  de  fugir?  Nam  sera  milhor  morrer- 
mos  pelejando?  E  vendo  elle  a  determina^am  e  valor  de  seu  filho, 
f.i2o,v.  Ihe  entregou  o  imperio  e,  juntando  seu  *exercito,  saio  ao  encontro  ao 
Mouro  e  pelejaram  no  reyno  da  Xaoa  e  foi  desvaratado  e  morto; 
e  porque  seu  pay  era  vivo,  nam  o  contaram  entre  os  Emperadores, 
segundo  todos  dicem,  e  parece  ser  assi,  porque  nam  se  acha  em 
os  catalogos  dos  Emperadores  que  pusimos  no  cap.  5  tirados  de 
seus  mesmos  livros  como  nelles  estam.  Tambem  o  que  alli  affirma, 
que  pera  mostrar  o  Mouro  que  aquella  victoria  nam  fora  alcan^ada 
com  proprias  forgas,  senam  com  ajuda  divina,  quando  a  quis  fe- 
stejar,  subio  em  hum  jumento:  nam  foi  este  mouro  o  que  o  fez, 
senam  outro  que  se  chamava  Nur,  que  matou  ao  emperador  Claudio, 
como  veremos  no  3**  livro,  quando  referirmos  sua  historia.  Outras 
muytas  cousas  diz  naquelle  cap.  32,  que  sam  muyto  menos  do  que 
elle  encarece;  mas  o  que  acrecentou  ao  emperador  David,  tirou  no 
fim  do  mesmo  capitulo  a  as  que  dom  Christovao  da  Gama  com 
seus  soldados  fez  em  Ethiopia;  pollo  que  nam  sera  bem  passar 
adiante  sem  declarar  quanto  se  enganou  no  que  dellas  disse. 


CAPITULO  XXXI. 

Em  que  se  come^am  a  referir  algumas  das  cousas 
que  dom  Christovao  da  Gama  fez  em  Ethiopia. 


Como  meu  intento  seja  dar  alguma  noticia  das  principaes  cou-  i.  Ea  quae  Auctor 
sas  desta  parte  de  Ethiopia,  que  senhorea  o  Preste  Joam,  e  das  mais  stis  Christophori^de 
insicfnes  que  nella  sucederam  sejam  as  que  fez  aquelle  valeroso  e  G«nia  desumpta  siint 

tum  ex  relatione  cu- 

esfor^ado  capitam  dom  Christovao  da  Gama,  bem  conhecido  em  Por-  lusdam  senis,  qui 
tugal  por  sua  grande  nobre^a  e  fidalguia,  e  muyto  mais  em  Ethio-  ^"'tum^ex^scrimis 
pia   poUas   maravilhas   que  Deos   nosso   Senhor   teve  por  bem  de  Femandi  Guerreiro 

.   r  -i  .      r  «t  Michaelis  de  Ca- 

obrar  por  elle  contra  os  mouros  em  defensam  de  sua  santa  le,  me  Btanhoso. 
pareceo  que  nam  cumpria  com  minha  obriga^am,  se  nam  refirise 
algumas  dellas.  Tambem,  porque,  passandoas  em  silencio,  nam  pa- 
reciese  que  aprovava  o  que  dellas  diz  frey  Luis  de  Urreta  no  ca- 
pitulo  32  de  seu  1°  livro,  onde  por  falta  de  informa^am  as  conta 
muy  diferentemente  do  que  na  verdade  sucederam,  conforme  ao  que 
contam  os  velhos  de  Ethiopia  e  hum  delles,  que,  sendo  piqueno  acom- 
panhou  a  dom  ChristovSo,  desde  que  entrou  ate  o  dia  que  foi  desba- 
ratado,  e  o  que  traz  o  padre  Fernam  Guerreiro  de  nossa  Compa- 
nhia  no  fim  da  Addigam  que  faz  a  Relagam  de  Ethiopia  no  livro 
das  annuas  de  607  e  608,  tomado,  como  elle  diz,  de  Miguel  de  Ca- 
stanhoso,  hum  dos  Portugueses  que  entraram  em  Ethiopia  com 
dom  Christovao  da  Gama,  a  quem  como  testemunha  de  vista  se 
deve  dar  todo  credito. 


294  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

a.  Errores  Urretae  Diz  pois  frey  Luis  de  UiTeta  pag.  358 :   «  Entretanto  el  moro 

circa  historiam  prae-        ^,  -ia-ix^  ^  i-j*^ 

sentem.  *  *(convem  a  saber,  Granh)  estava  por  los   reynos   confines  de   la  f.  121 

«  Ethiopia,  haciendo  mil  males  y  executando  inauditas  crueldades 
«  en  los  tristes  christianos,  la  madre  del  Preste  Juan,  que  se  Uamava 
«  Elisabeta,  embio  un  correo  al  Vissorrey  de  Goa,  que  se  Uamava 
«  don  Estevam  de  Gama,  pidiendole  socorro ;  y  el  embio  400  soldados 
«  y  por  capitan  dellos  a  don  Chistoval  de  Gama  su  hermano.  Par- 
«  tieron  de  Goa  con  mucha^  armas  en  el  mes  de  junio  de  1541  y 
«  embarcandose  Uegaron,  aunque  con  trabaxo,  a  la  Ethiopia  y  to- 
«  maron  puerto  en  el  reyno  de  Bemagasso,  donde  les  acudio  mu- 
«  cha  gente.  Entendido  por  la  Emperatriz  el  socorro  que  le  venia, 
«  salio  de  su  escondrijo  y  fue  a  visitar  al  capitan,  el  qual  la  re- 
«  cibio  con  gran  salva  de  artilleria  y  con  mucha  fiesta.  EUa  pro- 
«  veyo  de  bastantes  y  aun  sobrados  mantenimentos,  y  considerando 
«  don  Christoval  de  Gama  que  no  era  tiempo  de  detenerse,  partio 
«  con  sus  400  soldados  y  con  muchos  millares  de  Ethiopes,  por 
«  grandes  jornadas,  caminando  de  dia  y  de  noche,  por  coger  al 
«  enemigo  descuidado.  Como  lo  deseo  le  sucedio,  porque  hallo  a 
«  los  moros  tan  descuidados  de  que  tuviesen  al  enemigo  tan  cerca, 
«  que  estavan  desarmados,  y  tan  sin  orden  de  guerra,  como  si  no 
«  estuvieram  en  tierra  de  enemigos,  y  dando  contra  ellos  de  sobre- 
«  salto,  los  tomaron  a  manos  antes  que  pudiesen  venir  a  las  ma- 
«  nos  y  antes  que  se  pudiesen  abroquelar,  los  <;amarrearon  de  suerte 
«  que  no  se  les  quito  el  escocimiento,  tan  presto  fueron  facilmente 
<  vencidos,  y  volviendo  las  espaldas,  dieron  todos  a  huir  a  corre 
«  mas  corre,  y  como  el  huir  sea  linage  de  volar,  dexavan  de  cor- 
«  rer  y  volavan.  Murieron  muchissimos  en  los  alcanges  y  el  rey 
«  Gradahametes  herido  de  un  mosquetero,  que  le  passo  la  pierna  y 
«  le  mato  el  cavallo,  vino  al  suelo,  aunque  los  suyos  le  pusieron 
«  en  cobro ;  de  la  qual  herida  convalecio.  El  buen  capitan  go^o  de 
«  un  riquissimo  despojo,  de  infinitas  armas  y  arcabuceria,  con  que 
«  armo  su  gente  y,  caminando  en  seguimiento  de  su  enemigo,  arremo 
«  y  vela  navegava  el  triunphante  vencedor  por  el  mar  de  sus  vic- 
«  torias.  Entro  por  el  rey[no]  de  Adel  quemando,  talando,  derrivando 
«  y  Jlevandolo  todo  a  fuego  y  sangre,  hasta  un  monte,  donde  se 
«  avia  hecho  fuerte  el  rey  Gradahametes  y  alli  le  cerco  el  capitan 
«  Gama  con  intento  de  no  partir  hasta  le  coger  muerto  o  vivo  y 
«  embiarle  al  Preste  Juan  ». 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXXI.  295 

Casi  todo  quanto  o  Autor  aqui  diz  passou  muyto  diCFerente-  3.  Brevitcr  refu- 
mente,  porque  nem  dom  Christovao  da  Gama  partio  de  Goa  sina- 
f.i2i,v.  lado  pera  vir  a  Ethiopia,  nem  podia  partir  no  mes  de  junho,  *que 
la  he  invcrno  fechado  e  nam  se  pode  andar  no  mar  quanto  mais  atra- 
vesar  o  golfo  pera  Etiopia ;  nem  quando  entrou  nella,  se  Ihc  ajun- 
taram  os  milhares  de  Ethiopes  que  diz,  nem  venceo  aos  mouros 
poUos  achar  descuidados  e  desarmados,  e  muyto  menos  depois  da 
victoria  entrou  por  el  reyno  de  Adel,  asolando  e  abrasando  tudo, 
porque  nunca  la  chegou  com  muytas  legoas,  como  adiante  vere- 
mos.  Tambem  se  advirta  de  pstsso  que  este  mouro  nam  era  Rey 
de  Adel  senao  Guazir,  como  chamam  os  mouros,  que  he  tanto  como 
governador  do  reyno  debaxo  del  Rey.  Nem  se  chamava  Gradamar- 
tes  Isu]:  seu  proprio  nome  era  Ahamed,  como  ja  dissemos;  mas  os 
de  Ethiopia  o  chamam  Granh,  porque  era  izquerdo,  que  isso  quer 
dicer  granh;  e  parece  que  o  Autor  juntou  estes  dous  nomes  Granh 
e  Ahamed,  cuidando  que  era  hum,  e,  corrompendoos  amos  (como 
faz  a  outros  muytos),  disse  Gradahametes ;  e  porque  comummente 
Ihe  dam  este  nome  Granh,  eu  tambem  o  nomearei  daqui  adiante 
por  elle.  Nem  a  Emperatriz  may  do  Preste  Joam  se  chamava  Elisa- 
beta,  senam  Zabelo  Oanguel. 

Suposto   isto,  referiremos   agora  esta  historia  na  puntual  ver- 
dade  com  a  maior  brevedade   que  pudermos;  e  foi  desta  maneira: 

No  anno  1541,  sendo  governador  da  India  dom  Estevam  da  4.  Stephanus  de 
Gama,  filho  segundo  do  conde  Almirante  dom  Vasco  da  Gama,  que  indj^j^ni^  mov^t 
foi  o  primeiro  que  a  descubriou,  fez  huma  grossa  armada  com  in-  c^™  classe  lusitaaa 

contra     Turcas,     ad 

tencjam  de  irao  estreito  de  Meca,  e  entrando  pollo  Mar  Roxo,  che-  MareRubrum.Rein- 
gar  ate  Suez  e  queimar  as  gales  e  armada  do  Turco,  que  naquelle  ^*^  ulit  Ma^  'm '"bi- 
porto  estava  aparelhandose  pera  ir  a  India  e,  posto  que  nam,a  pode  que  legatos  Zabel6 
queimar,  polla  terem,  quando  elle  chegou,  barada  em  terra,  com  Aethiopiae,auxiiium 
as  novas  que  tiveram  da  sua,  a  volta  todavia   fez   ffrande  estrago  P^^^^^j^  contra  Ma- 

^  00       humedanos,   recipit, 

em  muytos  lugares  de  Arabia,  saqueando  e  queimando  tudo  e  to-  et^consilioinitocum 

,  ,  .  ,  ujMiJxfA.       Buis,   fratrem    suum 

mando  quantos  navios  achava;  e  chegando  a  ilha  de  Ma^ua,  veio  chriatophomm  cum 
alli  a  ter  com  elle   hum  senhor  dos  da  casa  de   Adegana,    que  se  ^oomilitibusexpedi- 

T^   1  A      -VT      >v  ,•  tis  ad  Imperatricem 

chamava  Isaac  e  entam  era  Bahar  Nagax,  que  quer  dicer  «  gover-  mittit. 
nador  do  mar  » ,  por  que  o  he  de  todas  aquellas  terras  maritimas,  e 
com  elle  outro  senhor  grande,  que  se  chamava  Robel,  com  cartas 
da  emperatriz  Zabelo  Oanguel  may  do  emperador  Claudio,  que  ja 
reynava  por  morte  do  emperador  David  seu  pay,  em  que  Ihe  pe- 
dia  encarecidamente  quisese  socorrer  este  imperio  christao,  a  quem 


296  niSTORIA  DE   ETHIOPIA 

o  mouro  Granh  avia  14  annos  que  tinha  poUa  mor  parte  conqui- 
stado,  matando  e  cativando  grande  infinidade  de  gente  e  queimando 
e  asolando  muytos  mosteiros  e  igrejas  de  grande  nome.  Ouvindo 
isto  o  governador,  tomou  conselho  com  os  capitaes,  e  *fidalgos  que  f.  122. 
hiam  na  armada  e  todos  convieram  em  que,  alem  de  ser  grande 
servi^o  de  Nosso  S.°'  acudir  aquella  necessidade  tam  urgente,  o  seria 
tambem  del  Rey  de  Portugal  seu  senhor  por  muytas  re^oes,  e  of- 
fereceramse  com  grande  fervor  e  zelo  pera  esta  empressa  muytos 
capitaes  e  fidalgos  nobilissimos  e  entre  elles  dom  Christovao  da 
Gama,  a  quem,  depois  de  muyto  considerado,  com  muyta  re^am  Iha 
encomendou  o  governador  seu  irmao,  dandolhe  pera  isso  400  sol- 
dados :  e  dicem  que  ofFerecia  mil,  e  que  o  Bahar  Nagax  Isaac  nam 
se  atreveo  a  tracer  tantos,  por  estar  a  terra  tam  perdida  que  Ihe 
parecia  nam  os  poderia  sustentar. 
5.    Christophoms  Com  esta  gente  muyto  lustrosa  e  bem  apercebida  com  armas 

itinera     difflciUima  dobradas  e  algumas  pe^as  de  artelharia  se  parteo  dom  Christovam 
post  octo  dics  per-  (ja   ilha  de   Macua   aos  g  de  julho  de  1541,  tracendo  tambem  em 

venit    DcbaroA,    ubi  ^  v  j  o^   y 

a   BahAr   Nagftz,  a  sua  companhia  ao  Patriarcha  dom  Joam  Bermudez  e  hum  sacerdote 

eno^ glySio^^^vC'  ®  ^^"^  ^^^  ^®  xnais,  e,  segundo  ca  dicem,  o  tracia  o  governador  de 
t^r«  proposito  pera  ver  se  o  podia  meter  em  Ethiopia  onde  elle  ja  tinha 

andado,  e  Ihe  prometeram  que,  se  trouxese  algum  socorro  de  gente. 
o  recibiriam  por  Patriarcha,  aceitariam  a  fe  da  santa  igreja  romana 
e  dariam  al  Rey  de  Portugal  a  3*  parte  do  imperio.  Foram  en- 
trando  polla  terra  dentro  de  Ethiopia  em  companhia  do  Bahar  Na- 
gax  com  grande  trabalho,  por  ser  aquella  parte  muyto  quente  e 
fragosa  e  virem  casi  todos  a  pee,  que  escasamente  acharam  ca- 
mellos  e  mulas  bastantes  pera  caregar  o  fato,  munigoes  e  artelharia, 
c  em  muytas  partes  era  necessario  descarregar  e  levar  tudo  bom 
espa(;:o  as  costas,  sendo  dom  Christovam  o  primeiro  que  com  grande 
alegria  e  fervor  tomava  o  que  podia  sobre  as  suas,  com  o  que  os 
soldados  se  animavam  a  facer  o  mesmo,  com  virem  muyto  cansados. 
Desta  maneira  caminharam  seis  dias  ate  sair  das  serras,  e  alli 
descansaram  dous  dias  e  o  siguinte  chegaram  a  huma  villa  que  cha- 
mam  Debaroa,  onde,  como  ja  dissemos,  reside  de  ordinario  o  Bahar 
Nagax,  de  onde  saio  muyta  gente  e  muytos  frades  em  procissam 
com  suas  cruces  a  receber  a  dom  Christovao,  que  com  a  nova  de 
sua  vinda  tinham  deixado  as  serras  fortes,  onde  estavam  recolhidos 
por  medo  dos  Mouros,  e  chegando  a  dom  ChristovSo,  Ihe  deram 
muytas  gra^as  pollos  vir  a  socorrer  em  tempo  de  tam  grande  ne- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXI,  297 

cessidade;  e  disseram  que,  pois  o  Senhor  por  sua  infinita  miseri- 
cofdia  o  trouxera  pera  isso,  procurase  vengar  os  desacatos  e  inju- 
rias  que  aquelles  malditos  e  sacrilegos  mouros  tinham  feito  as  santas 
igrejas  derrubandoas  e  profanandoas  e  as  crueldades  que  tinham 
exercitado  com  os  sacerdotes  e  religiosos  e  as  afrontas  que  tinham 
f.i22,v.  *feito  as  molheres  casadas,  viuvas  e  doncellas. 

Acabado  isto,  come<;:aram  todos  em  alta  voz  a  pedir  a  Dcos 
nosso  Senhor  misericordia  e  que  dese  for^a  a  dom  Christovao  con- 
tra  seus  enemigos,  com  tanta  piedade  e  lagrimas  que  nam  puderam 
deixar  das  derramar  tambem  os  Portugueses.  Consoloos  dom  Chri- 
stovSo  dicencfo,  que  elle  nam  viera  a  esta  terra  senam  a  trabalhar 
por  botar  os  Mouros  della  e  que  esperava  na  divina  misericordia 
que  cedo  se  veriam  livres  dos  trabalhos  em  que  estavam ;  e  tornando 
com  a  mesma  ordem  que  vinham,  foram  todos  os  Portugueses  jun- 
tamente  a  facer  ora^am  a  igreja,  e  dalli  as  tendas,  que  o  Bahar 
Nagax  Ihes  tinha  ja  feito  armar  perto  da  povoagam,  onde  os  agas- 
'   salhou  com  muyta  festa. 

O  siguinte  dia  reparteo  dom   Christovao  sua  gente  pollos  ca-      6.  Nuncios  dc  suo 

•        T  j     T^  TM-  1  j     /-.      1        TT'        ^      adventu  mittit  duos 

pitaes,  que  eram  seis:  Joam  de  tonseca,  Manoel  da  Cunha,  Vicente  ^  suisad  Imperatri- 
de  Acunha  seu  irmao,  Inofre  Dabreu,  Francisco  Dabreu  seu  irmao,  cem,  quae  in  mpibus 

Dam6       morabatur. 

e  Franciso  Velho,  dando  a  cada  hum  dos  cinco  cincoenta  soldados,  Ipsa  descendit,  invi- 
e  aos  demais  encomendou  a  guarda  da  vandeira  real,  e  mandou  logo  ^iratu/a ma  01^™- 
a  Manoel  da  Cunha  e  Francisco  Velho  com  sua  gente  pera  que  vi-  d>nem  pugnandi,  et 

,  ^  ^     custodiae  Lusitano- 

sitasem   de   sua   parte  e  trouxesem   a  emperatriz   Zabela   Oanguel   nxm  ae  committit. 

may  do  emperador  Claudio,  que  estava  hum  dia  de  caminho  dalli 

em  huma  pedra  muyto  alta,  que  chamam  Damo,  a  que  se  sove  por 

cordas   e,   chegando,  mandou    ella   que   os   dous   capitaes    subisem 

acima  e  foram  levados  em  huns  cestos  amarrados  com  correas  muyto 

fortes  e,  como  chegaram  acima,  os  recebeo  a  Emperatriz  derramando 

muytas   lagrimas  de  pracer  e  dando  gra^as  a  Deos,  que  Ihe  man- 

dava  tal  socorro  e  a  tirava  daquella  como  prissam  onde  avia  tanto 

tempo  que  estava;  e  depois  de  preguntar  por  dom  Christovao  e  sua 

gente  com  muytas  particularidades,  os  mandou  agassalhar   aquella 

noite  com  grande  honrra  e  aparato,  e  outro   dia  deceo  a  Empera- 

triz  com  muytas   criadas  e  gente  que  tinha  de  servi^o   dentro  da- 

quelles  cestos,  porque  pera  o  alto  daquella  serra  nam  ha  outra  ma- 

neira  de  entrada  nem  saida,  por   ser  toda  aroda   pedra   talhada   e 

muyto  alta,  e  acima  tem  bom  campo,  onde  semeam  e  muytos  po(;os 

como  cisternas,  em  que  o  invcrno  se  recolhe  muyta  agoa. 

C.  Bkccari.  Rer.  Aeth.  Scripi.  occ.  ined,  —  II.  j8 


298  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

Como  acabaram  de  decer  todos,  veio  a  Emperatriz  em  huma 
fermosa  mula  cuberta  de  seda  ate  perto  do  cham  e  ella  vestida  de 
pannos  brancos  de  India  muyto  finos  e  sobre  elles  hum  albomoz 
de  setim  pardo  com  franjas  de  fio  de  ouro,  e  o  rosto  cubcrto  com 
huma  beatilha  muyto  fina,  que  nam  Ihe  apareciam  mais  que  os 
olhos,  como  he  costume  das  senhoras  que  caminham.  Levavamlhe 
alguns  homens  hum  dosel  de  seda,  com  que  hia  cuberta  *de  ma-  f.  123. 
neira  que  nam  se  podia  ver  senam  pordiante,  e  chegando  perto  do 
arrayal  de  dom  Christovao,  a  saio  a  receber  ricamente  vestido  de 
setim  e  tela  de  ouro  com  toda  sua  gente  posta  em  ordem,  que  era 
muyto  lustrosa  e  saluarama  duas  veces  com  toda  a  artelharia  e  espin- 
garderia,  e  chegando  dom  Christovao,  se  deteve  a  Emperatriz  e  por 
Ihe  facer  honrra  e  dar  mostra  de  amor,  mondou  tirar  o  dosel  e 
descubrio  hum  pouco  o  rosto ;  e  logo  dom  Christovao  a  saudou  e 
disse  como  elle  e  toda  aquella  gente  vinham  por  mandado  do  go- 
vernador  a  a  socorrer  e  servir,  e  que  soubese  de  certo  que  todos  esta- 
vam  resolutos  a  morrer  polla  santa  fe  de  Christo  e  defensam  de 
seu  imperio.  A  Emperatriz  Ihe  deo  muytos  agardecimentos  pello 
zelo  que  mostrava  e  a  vontade  com  que  elle  e  os  demais  Portu- 
gueses  se  ofFereciam  a  tam  grandes  perigos  e  trabalhos  que  al  Rey 
de  Portugal  ao  governador  e  a  elles  pagaria  tudo  o  poderoso  Deos, 
porque  nem  ella,  nem  seu  filho,  nem  principe  nenhum  da  terra  tinha 
poder  pera  satisfacer  cousa  tam  grande ;  e  que  este  imperio  nam  o 
tinha  por  seu,  senam  por  del  Rey  de  Portugal. 

Acabada  a  pratica,  tomaram  os  Portugueses  no  meio  a  Empe- 

ratriz  e  as  senhoras  e  doncellas  que  acompanhavam  em  mulas  muyto 

fermosas  e,  tomando  poUa  redea  a  Emperatriz  o  Bahar  Nagax,  a  le- 

vara  ate  suas  tendas. 

7.  Ibidem  hicmare  Pa^ssados  dous  dias,  foi  dom  Christovao  com  os  Portugueses  ri- 

et  ad   praelium   ne-  ..  ^-j  •      1      ^  ^-    i_ 

cessaria  parare  sta-   ^^mente  vestidos  e  com  as  mais  lustrosas  arnias,  que  tinham,  a  vi- 

tuunt.  Claudius  im-  sitar  a  Emperatriz  e  diante  de  sua  tenda  deram    mostra  do  modo 

perator    certior     fa- 

ctus  de  Lusitanorum  que  tinham  de  peleijar;  do  que  ella  ficou  muy  maravilhada,  vendo 

adventu,      transacta  ^  ji  1  ^  1 

.  . '     ,j  „^  „^     cousa  tam  nova  e  desusada  na  sua  terra  e  nam  menos  alei>["re  e  con- 

niemey  eos  aa  se  ve-  c> 

nire  quantocius  iu-  tente,  por  Ihe  parecor  que  seni  duvida  avicim  de  librar  seu  imperio 

bet.      Cbristophorus  .  ^,     . 

exploratores   Gr&nh   da  tirania  dos  mouros,  e  entrando  na  tenda  dom  Christovao  com  o 

morte  punit:  et  re-   j^^j^ri^^.  >Jaiifax  e  alca.ms  senhores  iJ^randos,  asentaram  com  a  Empe- 
giones    circumstan-  c>  o  o  '  f 

tes,  quae  rebellave-  ratriz  de  estar  alli  ate  a  fim  de  otubro,  que  se  acava  em  esta  terra 
'  '  o  inverno,  e  mandou   dom    Christovao   recado  de  sua   chegada  ao 

Preste  Joam  Claudio,  que  ja  se  chamava  Atanaf  Qagued,  que  estava 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXI.  299 

muyto  longe  retiiado  em  humas  serras  fortes,  sem  se  atrever  a  sair 
pollo  ter  desbaratado  o  mouro  Granh  e  morto  muyta  gente.  Co- 
me<;ou  logo  dom  Christovao  a  facer  pertuchos  de  guerra  e  carre- 
tinhas  em  que  levar  artelharia,  quc  eram  seis  meios  ber^os  e  dous 
ber^os,  e  tinha  sempre  muy  grande  vigia  em  seu  arrayal,  porque 
continuamente  mandava  o  Granh  espias  pera  saber  quantos  eram  os 
Portugueses,  que  armas  traciam  e  em  que  sc  ocupavam.  O  que  sou- 
beram  de  duas  espias  que  tomaram  em  traxo  de  Abexins,  a  quem 
dom  Christovao  mandou  depois  despeda^ar  em  as  carretinhas  que 
tinham  feitas,  com  o  que  tiveram  tam  grande  medo  que  dalli  por 
f.i23,v.  diante  *nam  se  atreveram  maisase  por  a  tal  perigo.  Ficeram  tam- 
bem  em  este  tempo  duas  saidas  por  mandado  da  Emperatriz  e  de- 
ram  em  algumas  terras  vecinhas,  que  por  serem  muyto  fortes,  nam 
queriam  obedecer  os  moradores  dellas  e,  matando  muytos,  trouxe- 
ram  grande  numero  de  mulas,  vacas  e  bois,  com  que  se  proveram 
pera  o  caminho,  que  nam  tinham  em  que  andar. 

Na  fim  do  invemo  chegaram  cartas  do  Preste  Joam,  em  que 
com  muyto  corteses  e  amorosas  palavras  dava  os  parabens  a  dom 
Christovao  e  aos  demais  Portugueses  de  sua  chegada  e  Ihes  facia 
grandes  oferecimentos,  e  pedia  que  com  a  mor  pressa  que  pudesem 
se  fossem  chegando,  que  elle  tambem  viria  a  se  juntar  com   elles. 

Com  esta  nova  se  alegraram  todos  muyto  e  apressaram  o  que  »•  Lusitani  cum 
faltava,  pera  milhor  podcrem  facer  seu  caminho,  c  como  tudo  foi  aca-  grediuntur  ct  per 
bado,  partiram  de  Debaroa  aos  cinco  de  decembro,  levando  com-  ««P®'^""*^»    montee 

'   ^  secum  trahentes  tor- 

sigo  a  Emperatriz  e  sos  200  Tlabexins  que  os  acompanhavam.  Hia  menu  beUica,  post 
diante  dom  Christovao  com  250  Portugueses  bem  apercebidos,  de-  veniunt  in  conspe- 
pois   se  seguia  a  recovagem,  a  que   davam    guarda   dous   capitaes  ^™  AmbA  Canet  a 
com  sua  gente,  e  hum   pouco   mais   atras  a  Emperatriz   com  suas  manu  occupatum. 
donas  c  doncellas,   e  50  Portugueses  e  alguns  daquelles  Habexins, 
Desta  maneira  foram  caminhando  alguns  dias  com  muyto  trabalho 
por  acharem  serras  tam  asperas  que  parecia  impossivel  levar  por 
ellas  a  artelharia  e  muni^oes,   mas  com  a  industria  e  trabalho  de 
dom  Christovao  se  facilitava  tudo,  de  maneira  que  maravilhada  a 
Emperatriz  decia  muytas  veces,  que  nam  avia  gente  como  os  Por- 
tuguescs ;  porque  nenhuma  outra  pudera  sair  com  cousas  tam  arduas 
e  difficultosas. 

Tambem  era  muyto  grande  a  vigilancia  de  dom  Christovao,  tra- 
cendo  sempre  diante  quem  descubrise  o  campo,  e  mandando  con- 
tinuamente  espias  ao  Granh,  e  elle  em  pessoa  corria  duas  veces  cada 


300  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

dia  o  arrayal  pera  ver  se  marchavam  com  ordem,  e  prover  o  que 
fosse  necessario,  e  pera  isto  tracia  mulas  que  caminhavao  bem,  que 
ate  entam  nam  tinham  cavallo  nenhum,  e  por  ondequer  que  passava 
fugiam  os  Mouros,  que  o  Granh  tinha  posto  pera  arrecadar  a  renda 
das  terras,  e  os  moradores  dellas,  que  por  mcdo  os  obedeciam,  vinham 
com  grande  alegria  a  ver  os  Portuguesos  e  sugetarse  a  Emperatriz. 
g.  Describitur  lo-  Prosiguindo  dom  Christovao  seu  caminho,  chegou  i°  dia  de  fe- 

cus    natura    ct    arte  .,  ,  j.      r  ^  /--'^t-^-t^ 

Aethiopibus  inezpu-  vereiro  de   1542  a  huma  serra  muyto  forte,  quc  o  Granh  tmha  to- 
8^^'^*s*  mado  com  engano  e  trai^am,  e  posto  nella  hum  capitam  com  1500 

soldados,  e  tardou  tanto  no  caminho,  nam  porque  esteja  muyto  longe 
de  Debaroa,  que  indo  por  dereito  caminho  em  tres  dias  se  chega 
folgadamente,  senam  porque  deo  muyto  grande  volta  por  outras 
terras  pera  as  redducir  e  quietar,  e  determinou  da  acometer  por- 
*que,  se  passase  adiante  deixando  alli  aquelles  mouros,  os  aviam  f.  124. 
de  tornar  a  obedecer  todas  aquellas  terras  e  Ihe  podiam  facer  muyto 
mal,  tolhendolhe  os  mantimentos  e  dandolhe  asaltos.  Mas  disse  a 
Emperatriz  que  nam  intentase  tal  cousa,  porque  de  ncnhuma  ma- 
neira  podia  sair  com  ella;  o  que  vendo  os  mouros,  ficariam  com 
mais  animo  e  coragam  pera  o  acomoterem  depois.  Respondeo 
dom  Christovao,  que  era  for^ado  trabalhar  por  tomar  aquella  serra, 
e  deo  tantas  regoes  pera  isso  que  a  Emperatriz,  ainda  que  contra  sua 
vontade,  condecendeo  com  elle.  Tem  esta  serra  perto  de  huma  lcgoa 
de  campo  lacima,  posto  que  nam  muyto  chao,  e  agoa  bastante 
pera  muyta  gente  e,  ainda  que  ha  tres  entradas,  sam  tam  fortes 
que  com  muyto  pouca  guarda  parece  quo  a  for^a  de  armas  nam 
era  possivel  subir.  Tudo  o  demais  aroda  he  rocha  talhada  muyto 
alta,  que  eu  tenho  visto  por  veces.  A  principal  destas  entradas  se 
chama  Amba  Canet,  e  este  mesmo  nome  dam  a  toda  a  serra.  Ao 
pe  desta  entrada  estava  huma  parede  muyto  forte  com  sua  porta, 
e  dalli  se  vai  subindo  hum  pedago  por  caminho  muyto  estreito  e 
ingreme,  e  no  fim  esta  outra  porta  na  mesma  rocha.  A  2^  entrada 
se  chama  Amba  Xambut,  e  nam  he  tam  forte,  posto  que  muyto. 
A  3*  se  chama  Amba  Gadabut,  mais  forte  sem  compara^am  que 
as  outras,  porque  nam  tem  caminho  senam  huns  buracos  feitos  ao 
picam  na  rocha,  por  onde  com  dificultad[e]  podem  subir  descal^os,  e 
fica  descuberta  a  rocha  de  maneira  que  de  cima  com  so  pedras  se 
pode  defendor  facilmente  a  entrada;  e  estara  huma  de  outra  como 
hum  tiro  de  espingarda;  e  em  cada  huma  dellas  estava  hum  capi- 
tam  com  500  mouros  de  arcos  e  frechas,  lanc^as  e  adargas. 


LIVRO   T,   CAPITULO   XXXI.  301 

De  tudo  isto  se  tinha  muyto  bem  informado  dom  Christovao;       xo.  Christophonis 

-  ^  •        v  j  j      .         -11-         *^*    militea     et   tor- 

mas  antes  dc  acometer,  quis  chegar  a  ver  onde  se  podena  milhor  xnenta  beUica  in  tres 
por  a  artelharia  e  facer  que  os  mouros  cfastasem  suas  frechas  e  os  *^^*®  dispertit.  Uno 

"  tempore  omnes  emi- 

penedos  quc  tinham    aparelhados,   pera  que    depois  nam  Ihe  fices-  nus   pugnam  insti- 

.       .         ,  .   ,  j  •        •  j.     ^  tuunt :  at,  ad  hostes 

sem  tanto  dano,  e  pera  isto  encomendou  a  pnmeira  entrada  aos  faiiendos  se  retra- 
capitaos  Francisco  Vclho  e  Manoel  da  Cunha  com  sua  gente  e  deo-  hunt. 
Ihes  tres  pe^as  de  artelharia;  a.  2^  deo  a  Joam  de  Fonseca  e  a  Fran- 
cisco  Dabreu  com  os  seus  e  outras  tres  pegas  de  artelharia;  a  3^, 
por  ser  mais  perigosa,  tomou  pera  si  com  os  outros  Portugueses, 
excepto  50  de  espingarda,  que  deixou  em  guarda  da  Emperatriz ;  e 
disse  aos  capitaes  que  todos  postos  em  ordem  desem  mostra  de 
quererem  entrar  aquelles  passos,  mas  que  nam  se  chegasem  muyto 
e  que,  quando  elle  se  retirase,  ficesem  todos  o  mesmo.  Desta  ma- 
f.i24,v.  neira  se  foram  chegando  aquella  tarde,  e  eram  tantas  as  frechas  *e 
pedras  que  de  acima  tiravam,  que  nam  tinham  conto,  e  lan^avam 
penedos  tam  grandes  polla  rocha  abaixo,  que  so  o  estrondo  que 
faciam  bastava  pera  causar  nam  piqueno  medo  aos  que  nam  foram 
tam  valerosos  e  esfor<;:ados  como  aquelles  Portugueses.  Elles  tam- 
bem  tiravam  com  suas  espingarda[s],  por  disimular  o  que  preten- 
diam,  e  depois  de  bom  espa^o  e  de  ter  dom  Christovao  visto  a  sua 
vontade  o  que  desejava,  se  retirou  com  todos  os  demais,  e  vendo 
isto  os  mouros,  deram  por  sua  a  victoria  e,  tendose  por  bem  segu- 
ros,  a  festejaram  com  grandes  alaridos  e  depois  toda  a  noite  tan- 
gendo  trombetas  e  atabales.  A  Emperatriz,  que  estava  a  vista  de 
tudo,  ficou  muyto  triste  e  desconsolada,  parecendolhe  o  que  parecia 
aos  mouros  e  que  nam  avia  em  os  Portugueses  mais  cora^am  do 
que  alli  tinham  mostrado.  Sabendo  isto  dom  ChristovSlo,  Ihe  man- 
dou  dicer  a  causa  porque  se  chegara  e  retirara,  e  que  polla  minha 
veria  S.  A.  como   pelejavam  os  Portugueses  e  que   homens  eram. 

O  siguinte    dia  em  amanhecendo,  tomou   hum    sacerdote   hum       xx.Alteradiesum- 
Crucifixo  em  as  maos,  e  dom  Christovao  e  os  demais  Portugueses  ™o  n^«  P^ignam  in- 

^  staurantatque,  hosti- 

se  ajoelharam  diante  delle  e  com  muyta  devo^am  Ihe  pidiram  vir-  bus  omnibus    inte- 

^  r  •  11  rr  i  remptls,     fortissima 

tude  e  forga  contra  seus  enemigos  e  Ihe  ottereceram  suas  almas  e   munitione  potiimtur 
suas  vidas    com  cfrande    fervor  e  deseixo  das  acabarem  em  defen-   **  *5*P^^*'  muliercs 

°  christianas  libertate 

sam  de  sua  santa  fe,  e  o  Patriarcha  dom  Joam  Bermudez,  que  estava  donant. 
presente,  Ihes  lan(;ou  sua  bengam,  e  com  isto  foram  postos  em  or- 
dem  pera  a  serra,  e  repartiramse  em  os  passos  como  a  tarde  antes 
tinham  feito,  e  em  dando  dom  Christovao  sinal,  arremeteram  todos 
com  grande  animo  e  comec^aram  a  tirar  com  artilhariaeespinganderia; 


n 


302  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

o  que  causou  tanto  medo  aos  mouros  que  nam  se  atreviam  a  se  descu- 
brir  muyto.  Com  tudo  lan^avam  muytos  penedos,  com  que  faciam 
grande  dano  e  mataram  dous  Portugueses,  antes  que  pudesem  che- 
gar  bem  a  rocha.  Vendo  isto  dom  Christovao  e  que  era  necessario 
pressa  e  conclusam,  arremeteo  com  grande  esfor^o,  e  todos  os  seus 
o  siguiram  e,  encostando  os  fains  a  rocha,  foram  subindo  por  elles, 
mas  firiram  muytos  e  duas  veces  os  derrubaram  abaixo.  Com  tudo 
tomaram  a  subir  com  grande  animo,  sendo  dom  Christovao  dos 
primeiros,  e  trabouse  com  os  mouros  huma  briga  muyto  forte ;  po- 
rem,  como  era  ja  mano  a  mano,  nam  puderam  resistir  muyto  espa^o 
o  impetu  dos  Portugueses  a  assi  viraram  aquelles  500,  e  dom  Chri- 
stovao  foi  dando  nelles.  A  este  tempo  tambem  tinham  entrado  Fran- 
cisco  Velho  e  Manoel  da  Cunha,  costandolhes  mu^rto  trabalho,  por- 
que  na  primeira  porta  do  passo  Ihes  firiram  muytos  soldados,  e, 
passada  esta,  Ihes  mataram  dous,  e  ainda  que  se  retiraram,  os  mou- 
ros  nam  quiseram  fechar  a  porta  *de  cima,  parecendolhes  que  alli,  f.  125. 
por  ser  lugar  mais  forte,  acabariam  os  Portugueses ;  e  assi  os  espe- 
raram  muyto  unidos.  Com  tudo  arremeteram  animosamente  os  Por- 
tugueses  e  come^ando  as  lanc^adas  e  cutiladas  se  baralharam  muyto, 
peleijando  com  grande  valor  e  csfor^o  o  capitam  dos  mouros,  e  tirando 
huma  lan^a  curta  que  tracia,  deo  nos  peitos  ahum  Portugues  comtanta 
for^a  que,  com  ter  muyto  boa  saya  de  malha,  o  atravesou  da  vanda  a 
vanda  e  levando  do  terc^ado,  deo  tal  golpe  no  capacete  de  outro 
que  Iho  amolgou  e  fez  cair  no  cham  desacordado.  Mas  acudio  outro 
Portugues  e  matou  o  mouro  e  foram  logo  facendo  retirar  os  demais. 

Em  quanto  andavam  as  cousas  desta  maneira  neste  passo  e  o 
de  dom  Christovao,  entraram  tambem  o  seu  Joam  de  Fonseca  e 
Francisco  Dabreu,  posto  que  com  muyto  trabalho  e  perda  de  tres 
Portugueses,  por  que  os  mouros  pcleijaram  fortemente;  mas  ven- 
dose  entrados,  se  foram  retirando  pera  cima,  e  sem  saberem  huns 
do  desbarate  dos  outros,  se  vieram  a  juntar  todos  em  hum  lugar, 
onde  quiseram  resistir.  Mas  chegando  dom  Christovao  com  sua  gente 
e  os  demais  capitaes  por  outras,  os  tomaram  no  meio  e  os  mata- 
ram,  sem  ficar  nenhum  dos  que  alli  estavilo,  e  alguns,  que  primeiro 
fugiram  pera  as  casas,  que  tinham  no  mais  alto,  tambem  foram  mor- 
tos  a  espada,  e  os  que  destes,  cuidando  que  se  salvariam,  se  bo- 
taram  pollas  rochas,  morreram  feitos  em  peda^os. 

Acharam  aqui  grande  numero  de  molheres  christaas  cativas  e 
outras  muytas  mouras  com  algum  fato,  nove  cavallos  e  dez  mulas 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXXI.  303 

muyto  fermosas,  e  como  se  juntaram  os  Portugiieses  la  cima,  vi- 
ram  que  faltavam  oito,  que  na  entrada  morreram,  e  que  estavam 
mais  de  40  feridos,  a  quem  dom  Christovao  fez  curar  com  diligencia 
e  tracer  os  mortos,  e  mandou  limpar  a  mesquita  dos  mouros  pera 
que  a  bencese  o  Patriarcha  e  se  enterrasem  nella, 

Acabado  isto,  mandou  dom  Christovao  recado  a  Emperatriz,  xa.  Christophorus, 
dandolhe  conta  da  merce  que  Deos  N.  S.  Ihes  ficera  e  que,  se  queria  ^d  imperatricem 
ver  sua  serra  Amba  Canet  e  como  a  tinham  concertada  os  mouros,  nji««o,       templum 

^  Turcarum  in  Eccle- 

o  podia  facer  seguramente,  porque  ja  todos  eram  mortos.  Ficou  siam  vertit,  ibique  8 
ella  muyto  contente  e  alegre  com  estas  novas  e  tam  maravilhada  p^\^^*^id^ran^ 
que  nam  podia  acabar  de  crer  que  todos   aquelles  mouros   fossem  sepeliendos,  gratias- 

.^         ,   -,  .     ,  .    que    solemnea    Deo 

mortos  em  tam  pouco  tempo,  e  certincandolhe  seus  criados  que  assi  agendaa  curat. 
era,  deo  louvores  ao  Senhor,  que  tam  grande  virtude  e  for^a  dera 
aos  Portugueses;  e  decia  com  muyta  tenrura  que  verdadeiramente 
eram  homens  mandados  por  Deos  pera  salva^am  deste  imperio  e 
f.i25,v.  que  ja*nenhuma  cousa  Ihe  pareceria  impossivel  pera  elles  e,  man- 
dando  a  dom  Christovao  os  agardecimentos  de  tani  boa  nova,  disse 
que  nam  se  atrevia  a  subir  la,  porque,  demais  de  ser  tam  aspero  o 
caminho,  Ihe  deciam  que  estava  todo  cheio  de  mouros  mortos,  que 
Ihe  aviam  de  causar  grande  nojo. 

Como  dom  Christovam  soube  que  nam  avia  de  subir  la  a  Em- 
peratriz,  pidio  ao  Patriarcha  bencese  a  mesquita,  o  que  elle  fez 
com  solennidade,  pondolhe  por  nome  Nossa  Senhora  da  Victoria,  e 
enterraram  logo  nella  os  oito  Portugueses,  e  outro  dia  polla  minha 
disse  missa  com  muyta  festa,  e  derao  todos  gra^as  ao  Senhor  que 
Ihes  concedera  ter  tam  insigne  victoria  e  trocara  aquella  casa,  que 
antes  era  de  abomina^am,  venerando  nella  a  Mafamed,  em  templo 
onde  se  offerecesse  tam  alto  e  venerando  sacrificio.  Acabada  a 
missaj  deixou  dom  Christovao  la  os  feridos  bem  acommodados, 
porque  nam  podiam  decer,  e  foi  com  os  demais  onde  estava  a  Em- 
peratriz,  que  o  recibeo  com  o  amor  e  benevolencia  devida  a  quem 
com  tam  grande  valor  e  esforgo  a  servia.  Entregou  ella  logo  a 
serra  a  hum  seu  capitam,  cujos  antecessores  foram  senhores  della, 
e  estiveram  alli  todo  o  mes  de  fevereiro  por  causa  dos  feridos,  e 
como  correo  a  nova  da  tomada  da  serra,  cousa  tam  pouco  espe- 
rada  dos  vecinhos,  foram  muyto  bem  providos,  nam  somente  delles, 
mas  dos  que  estavam  longe,  que  Ihes  traciam  em  abundancia  man- 
timentos  e  as  demais  cousas  necessarias. 


304  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

13.  Gubematorem  Em  este  tempo  chegaram  alli  do   mar  dous   Portugiieses  com 

a  Gama  certiorem  fa- 

cit  de  rebus  a  se  ge-  gente  da  terra,  que  os  guiava,  e  traciam  recado  de  Manoel  de  Va- 
8ti8  ab  eoque  beUi-  gconcelos  capitam  mor  de  cinco  fustas,  que  o  cfovernador  dom  Este- 

cum    apparatum  pe-  ^  »  ~i  e> 

tit.  vam  da  (iama  tinha  mandado  pera  saber   das  gales  dos  Turcos  e 

o  sucesso  que  tivera  a  entrada  de  dom  Christovao  em  esta  terra 
e  se  tinha  necessidade  de  algum  socorro ;  com  o  que  nam  so  dom  Chri- 
stovao  e  os  Portugneses  ficaram  muyto  alegres  e  contentes,  mas  tam- 
bem  a  Emperatriz  e  todos  os  seus,  tendo  por  certo  o  remedio  de 
seu  imperio.  Despachou  logo  dom  ChristovSo  a  Francisco  Velho 
com  40  Portugueses  bem  aparelhados  e  com  muyto  boas  mulas, 
pera  que  a  toda  pressa  fossem  a  Magua,  onde  Manoel  de  Vascon- 
celos  estava,  a  Ihe  dar  cartas  pera  o  governador  e  re^am  do  que 
passara  e  do  estado  em  que  ficavam  as  cousas,  e  que  trouxesem 
das  fustas  algumas  muni^oes  de  polvora,  pilouros  e  outras  cousas 
necessarias;  e  como  elles  partiram,  determinou  dom  ChristovSo  com 
2.  Emperatriz  de  passar  adiante  a  humas  terras  muyto  boas,  onde 
estava  hum  capitam  christao,  que  por  for^a  obedecia  aos  mouros 
e  mandava  rccado  que  fossem  logo,  que  nam  achariam  resistencia 
nenhuma. 


f  "6  CAPITULO  XXXII. 

De  como,  prosiguindo  dom  Christovao  seu  caminho,  veio 
em  sua  busca  o  Grlinh  com  grande  exercito,  e  do  que 
com  elle  passou. 

A  poucas  jomadas  depois  que  dom  Christovam  parteo  da  serra       ^  viribus  suorum 
Amba  (^anet,  llie  chegou  hum  correo  com  cartas  do  Preste  Joam,  rcfcctis,  cum  rescis- 

,  set      ipsum      Gr&nh 

em  que  Ihe  decia  que  elle  vinha  a  toda  pressa,  que  dom  Christo-  cum  exercitu  adven- 
vam  tambem  apressase  seu  caminho  quanto  pudese,  porque  o  Granh  **",  illico  decertare 

'^  ^  ^  *^      ^  statuit.  Lroco  oppor- 

hia  em  sua  busca  com  grande  exercito,  e  se  nam  se  juntasem  antes  tuniori    delecto    et 

jt_  i^A,  •  ^  -  jv^ii  per   ezploratores  de 

de  chegar  o  (iranh,   seria  muyto   pengoso  dar   batalha;  e  porque   hostiumnumerocer- 
dom  Christovam  desejava  esto  mesmo,  foi  caminhando  a  jornadas  ^^^    factus,   eorum 

impetum    praestola- 

cumpridas  e,  chegando  a  as  terras  do  capitam  que  o  tinha  chamado,  tur. 
saio  elle  ao  receber  e  Ihe  presentou  oito  cavallos  muyto  fermosos 
e  disse  que  se  aparelhase  muyto  bem,  porque  suas  espias  Ihe  ti- 
nham  certificado  que  o  Granh  o  vinha  a  buscar  com  muyta  gente 
e  que  estava  ja  tam  perto  que  nam  podia  passar  sem  se  encontrar 
com  elle.  Agardeceolhe  dom  Cliristovam  o  aviso  e  encomendou  que 
tornase  a  mandar  espias,  que  soubesem  bem  onde  chegava  e  quanta 
gente  tracia,  e  elle  foi  prosiguindo  seu  caminho  pesaroso,  por  ver 
que,  se  estava  tam  perto  como  deciam,  nam  podiam  tornar  a  tempo 
os  Portugueses  que  mandara  ao  mar,  nem  chegar  a  se  juntar  com 
o  Preste  Joam  antes  de  pcleijar.  E  dalli  a  dous  dias,  entrando  por 
huma  terra  chaa,  que  chamam  Q^rt,  estremo  do  reyno  de  Tigre, 
vieram  as  espias  dicendo,  que  o  Granh  estava  ja  tam  perto  que 
nam  seria  hum  dia  de  caminho,  e  que  tracia  gente  sem  conto.  Ou- 

C.  Bkccari.  /ier.  Aeik.  Seript,  oce,  iMed,  —  U.  39 


306  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

vindo  isto  dom  Christovao,  se  determinou  de  peleijar,  dicendo  aos 
soldados  que  nam  podiam  facer  outra  cousa,  pois  nam  era  possivel 
passar  a  se  juntar  com  o  Preste,  estando  todas  as  terras  pollos 
mouros,  que  nam  somente  Ihes  aviam  de  tolher  os  mantimentos, 
com  que  morreriam  de  fome,  mas  os  iriam  entretendo  com  asaltos 
ate  que  chegase  o  Granh  com  seu  exercito,  e  que  o  mesmo  perigo 
dos  mantimentos  tinham  tornando  atras,  porque  a  gente  nam  se  avia 
de  atrever  a  Ihos  dar,  sabendo  que  o  enemigo  vinha  tam  perto  com 
tam  grande  poder,  e  que  a  victoria  estava  em  as  maos  do  Senhor, 
que  a  podia  dar  assi  aos  poucos  como  aos  muytos,  e  que,  se  nam 
fosse  servido  que  a  tivesem,  morreriam  peleijando  por  sua  santa 
fe.  E  aprovando  os  capitaes  e  soldados  este  parecer,  se  puseram 
todos  com  grande  confian^a  nas  maos  de  Deos. 

*0  siguinte  dia,  que  foi  sabbado  de  Ramos,  indo  caminhando  f.i26,v. 
por  aquelles  campos  chaos,  chegaram  duas  espias  de  cavallo,  que 
dom  Christovam  tracia  diante  descubrindo  o  campo,  e  disseram  que 
chegava  o  Granh  huma  legoa  dalli ;  pollo  que  dom  Christovam  man- 
dou  logo  asentar  seu  arrayal  em  hum  oteiro,  que  se  alevantava  no 
meio  do  campo,  muyto  a  proposito  pera  o  que  pretendia,  perto  de 
huma  fermosa  ribeira,  que  se  chama  Afgol,  e  pondo  a  Emperatriz 
no  milhor  lugar,  que  como  molher  nam  tinha  pouco  medo,  vigia- 
ram  com  muyto  cuidado  toda  aquella  noite ;  e  domingo  polla  minha 
apareceram  sobre  hum  oteiro  afastado  cinco  mouros  de  cavallo,  que 
vinham  a  descubrir  c  campo  e,  como  viram  o  arrayal,  deram  logo 
volta  com  muyta  pressa.  Mandou  entam  dom  Christovam  dous  Por- 
tugueses  com  bons  cavallos,  que  do  mesmo  oteiro  visem  quam 
grande  era  o  arrayal  do  enemigo  e  onde  o  asentava,  e  tornaram 
dicendo  que  a  gente  que  tracia  cubria  os  campos  e  que  se  asen- 
tava  pegado  com  aquelle  cabc^o ;  e  em  quanto  se  armavam  as  ten- 
das,  subio  o  Granh  acima  com  obra  de  300  de  cavallo  e  tres  van- 
deiras  grandes,  duas  brancas  com  meias  luas  vermelhas,  e  huma 
vermelha  com  meia  kia  branca,  e  dalli  estcve  olhando  o  arrayal 
de  dom  Christovilo,  e  depois  niandou  a  sua  gente  que  fosse  em  or- 
dem;  e  levavani  tantas  vandeiras,  tam  grande  multidam  de  trom- 
betas  e  atabales  e  hiam  com  grande  grita  e  alarido  que  parecia 
muyto  mais  gente  da  que  cra.  Pareceolhe  a  dom  Christovam  que 
queriam  acometer  e  fezse  prcstes  pera  peleijar;  mas  elles  nam  pre- 
tendiam  senam  cercar  o  arrayal,  e  como  o  ficeram,  vigiaram  toda 
a  noite  com  muytos  fogos  e  grandes  gritas.   Os  Portugueses   esti- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXII.  307 

vcram  tambem  sempre  aparelhados  com  panellas  de  polvora  em  as 
maos  e  com  morroes  acessos  pera  as  espingardas,  e  de  quando  em 
quando  desparavam  alguns  ber^os,  com  o  que  faciam  que  nam  se 
atrovesem  a  chegar  os  enemigos,  e  parecia  o  arrayal  tam  crespo 
quc  nam  se  podiam  persuadir  que  fossem  os  Portugueses  tam  pou- 
cos  como  de  dia  parcciam. 

Passada  a  noite  com  aquelle  tam  grande  trabalho  e  comccjando       ^^  OrAnh  leeatum 

a  sair  o  sol,  mandou  o  (iranh  hum  embaixador  a  dom  Christovam,  ■<*     Christophorum 

mittit  ut  eum  ad  suas 

dicendo,  que  se  maravilhava  muyto  como  tivera  atrevimento  pera  partes  trahere  stu- 
entrar  naquella  terra  e  aparecer  diante  delle  com  tam  pouco  po-  phorus^oer  xumcfum 
der,  que  bem  parecia  tam  mancebo  como  Ihe  deciam  e  inocente  responderit. 
sem  esperiencia,  mas  que  por  sua  pouca  idade  e  saber  que  aquella 
molher  e  a  gente  da  terra  o  tracia  enganado,  que  era  tam  falsa 
127.  que  nem  a  seu  proprio  Rey  guardava  *lealdade,  tinha  piedade  delle 
e  determinava  usar  de  sua  grande^a  e  acostumada  clemencia,  per- 
doandolhe  atrevimento  tam  mal  considerado,  com  condicjam  que  se 
fosse  logo  pera  elle  com  todos  os  Portugueses,  e  que,  se  nam  qui- 
sese  andar  em  sua  companhia,  se  tornase  pera  sua  terra  e  elle  Ihe 
aseguraria  o  caminho,  pera  que  nam  Ihe  fosse  feito  mal  nenhum; 
e  que  ficesse  logo  o  que  Ihe  mandava,  pois  via  tam  claramente  a 
verdade  do  engano  com  que  o  trouxeram ;  e  que  recebese  o  que  o 
embaixador  Ihe  daria,  que  era  hum  capello  de  frade  e  hum  rosairo, 
mostrando  que  nam  o  tinha  em  conta  de  capitam  senam  de  frade,  porque 
a  todos  os  Portugueses,  que  alli  estavam,  punham  este  mesmo  nome. 
Depois  que  dom  Christovam  ouvio  a  embaixada,  fez  muyta 
honrra  ao  que  a  tracia  e  deolhe  huma  roupa  de  setim  roxo  e  huma 
gorra  de  gram  com  sua  medalha  de  bom  prego  e  disse  que  se  fosse, 
que  elle  mandaria  a  reposta  a  seu  senhor;  e  fez  que  o  acompa- 
nhasem  ate  sair  do  arrayal.  Ordenou  logo  dom  Christovam  com 
conselho  dos  principaes  que  nam  fosse  Portugues  com  a  reposta, 
pois  avia  tam  pouco  que  fiar  de  mouros,  senam  hum  escravo  de 
Portugues,  que  era  albo,  e  vistindoo  muyto  bem,  Ihe  deram  huma 
mula  em  que  fosse  e  o  que  avia  de  dicer  escrito  em  arabio,  para 
que  o  pudesse  ler  o  Granh,  e  era:  que  elle  tinha  alli  chegado  por 
mandado  do  gram  liao  do  mar  e  poderoso  senhor  na  terra,  o  qual 
sempre  acostumava  a  socorrer  os  que  pouco  podem,  e  assi,  por  ter 
noticia  que  o  christianissimo  Emperador  de  Ethiopia  seu  irmSo  em 
armas  estava  desvaratado  e  desapossado  de  seus  reynos  por  gente 
infiel  e  enemiga  da  santa  fe  catholica,  Ihe  mandava  o  socorro  que 


3o8  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

alli  via,  que,  ainda  que  piqueno,  bastava  pera  toda  sua  multidam,  pois 
eram  tam  maos  e  tomaram  aquella  terra  sem  nenhuma  regam  nem 
justic^ta,  nam  com  sua  forga,  senam  poUo  permitir  assi  o  verdadeiro 
Deos,  pera  castigar  os  Ilabexins  por  seus  peccados;  mas  que  esperava 
cm  sua  divina  misericordia  que  se  aplacaria  sua  ira  com  o  que  ja 
tinham  padocido  e  que  os  tomaria  a  sua  antigua  livertade  e  posse 
de  suas  terras  por  meio  dos  Portu^eses,  e  que,  ainda  que  poucos, 
outro  dia  veria  como  peloijavam  e  pera  quanto  eram ;  porque  nam  vie- 
ram  pera  se  tomarem,  senam  ao  buscar  a  elle.  E  mandoulhe  hum 
ospelho  grande  e  humas  tena^as  piquenas,  de  que  acostumam  usar 
as  molheres  pera  as  sobrencelhas,  facendo  delle  molher. 

Chegando  o  escravo  ao  Granh  com  esta  resposta,  teve  g^ande 
paixam ;  mas  com  tudo  disse,  que  homens  de  tam  grande  coragam, 
que,  sendo  tam  poucos,  se  atreviam  a  peleijar  com  elle,  que  tracia 
tam  grande  *poder,  mereciam  que  todos  os  Reys  Ihes  ficesem  muy-   f,i27,v. 
tas  honrras  e  merces.  E  com   isto  se  tornou  o  escravo. 
3.  GrAnh  parvam  Determinava  o  mouro  dos  ter  alli  corcados,   sem  Ihes   deixar 

manum       Lusitano- 

rum  undequaque  cir-  ontrar  mantimentos,    pora  assi  os  tomar  a  fome;    o   que  podia   fa- 
^j°i  j-.^°*^^^  *™^  cor  facilmento,    porque  tinha   quincc    mil   homens   de  pe   todos  de 

ad  deditionem  com-  ^    f       i  1  f 

pellere  studet.  Chri-  adargas  o  (^argunchos,  arcos  o  frochas,  e  mil  e  quinhentos  de  ca- 

stophDrus    praelium         ,,  ,  ,  x^      . 

incredibili    audacia  vailo,  e  docentos  turcos  arcabucoros,  e  os  Portugueses   nam  eram 
committit:    victona  j-nais  que  trecentos  e  cinquenta,  porque  oito  eram  mortos  e  os  de- 

diu  anceps;  tandem  *  a  i       -1 

Gr^h,graviaccepto  mais  estavam  ausentes.  E  os  Turcos  foram  tam  atrevidos,  que,  nam 
exercitu  terga  vertit.   ^^  contontando  com  terem  aos  Portugueses   cercados  de  longe,  se 

chegaram  muyto  perto  e  ficeram  humas  paredes  de  pedra  ensosa, 
de  onde  tiravam  e  faciam  tanto  dano,  que  foi  necessario  mandar 
dom  Christovam  a  Manoel  da  Cunha  e  Inofre  Dabreu  com  sesenta 
Portugucsos  pora  os  botar  dalli;  o  que  elles  ficeram  com  grande 
valor  e  osforgo,  nias  acudindo  os  mouros  de  cavallo  a  dar  costas 
aos  Turcos,  se  trabou  huma  briga  muyto  grande,  em  que  firiram 
alguns  Portuguoses  e  elles  mataram  muytos  mouros,  ajudando  os 
do  arrayal  com  a  artilharia,  e  vondo  dom  Christovam  que  hiam  car- 
regando  muytos  mouros,  mandou  tocar  a  recolher ;  o  que  os  Por- 
tuguosos  ficoram  logo  com  muyto  boa  ordom  e  os  Mouros  tambem 
se  afastaram,  por  nam  so  atrever  a  chegar  perto  do  arrayal,  mas 
ficaram  toda  via  aroda  na  forma  que  antos  o  tinham  cercado. 

Entondondo  dom  Christovam  que  o  intento  dos  mouros  era  to- 
malo  a  fome,  determinou  dar  batalha  antes  que  viose  a  tal  estremo, 
e  assi  outro  dia,  que  foram  4  de  abril  de   1542,  ao  cantar  do  gallo, 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXII.  309 

mandou  carregar  as  tendas  e  o  dcmais  fato  e,  repartindo  os  capi- 
taes  com  sua  gente  a  mao  dereita  e  izxjuerda,  pus  a  Emperatriz 
no  meio  com  suas  molheres  e  200  Habexins  que  a  acompanhavam, 
e  elle  tomou  a  retaguarda,  porque  de  todas  partes  ostavilo  cerca- 
dos  e,  em  rompendo  a  lua,  romec^ou  a  abalar  seu  arrayal  com  esta 
ordem.  O  que  vendo  os  Mouros,  mostraram  grandc  alej^ria,  por  Ihes 
parecer  que,  como  deixaram  aquelle  oiteiro,  Ihos  seria  facil  desba- 
ratalos;  e  assi  se  foram  logo  pera  ellos,  tangendo  tantas  trombetas 
e  atabales  e  com  tam  grande  grita  que  parocia  que  se  fundia  o 
campo ;  e  come^ando  os  Portugiieses  a  tirar  com  suas  espingardas 
e  jugar  por  todas  partes  com  a  artelharia,  ficeram  afastar  a  gente 
de  pcc,  de  maneira  que  Ihes  davam  campo  franco.  O  que  vendo  os 
Turcos,  se  puseram  na  dianteira  e  foram  chegando  tanto  que  fa- 
ciam  muyto  dano  com  as  espingardas.  Em  isto  se  abalou  o  mesmo 
f.  128.  Granh  com  as  tros  vandeiras  que  sempre  *tracia  diante  e  com  mais 
de  500  de  cavallo  e,  chegandose  polla  vanda  onde  estavam  os  Tur- 
cos,  se  trabou  a  cousa  do  manoira  que  so  viram  em  grando  aperto 
os  Portugueses;  pollo  que  dom  Christovam  Ihes  disse  que  nam  se 
afastasem  tanto  senam  que  doixasem  peleijar  coma  artelharia;  o  que 
faciam  com  tanto  animo  os  que  a  tinham  a  seu  cargo,  e  tiravam 
tam  a  miude  que  nam  deixavam  chogar  os  cavallos  e  matavam  muy- 
tos.  Mas  os  Turcos  peleijavam  fortemente  e  se  chegavam  muyto,  e 
assi  foi  for^ado  a  dom  Christovam  mandar  a  Manoel  da  Cunha  com 
50  Portugueses  que  desse  nelles,  e  arremetendo  se  varalharam  to- 
dos  tanto  que  os  Turcos  pegaram  do  guiam  e  mataram  o  a|  l]ferez 
e  outros  tres  Portugueses  e  firiram  com  huma  espingarda  na  perna 
a  Manoel  da  Cunha,  poUo  que  se  recolhco,  deixando  mortos  e  fe- 
ridos  muytos  Turcos. 

Em  este  tempo  andava  dom  Christovam  animando  a  gente,  que 
muyta  della  estava  ferida,  e  punhase  sempre  na  parte  onde  avia 
mais  perigo,  e  assi  llie  deram  huma  espingardada  na  perna,  o  que 
foi  pora  todos  os  seus  de  grande  sentimento  e  a  elle  de  muyta 
maior  honrra,  porque,  assi  forido  como  estava,  acudia  a  todas  par- 
les,  esforc^ando  os  soldados  e  peleijando  com  t.mto  valor  e  arte  qual 
pode  ser  nam  ficeram  em  tal  aponto  os  mais  insignes  e  famosos 
capitaes,  que  celebram  muyto  as  historias. 

Andando  pois  a  batalha  muyto  acessa  e  sendo  ja  mais  de 
meio  dia,  pareceolhe  ao  Granh  (que  estava  vendo  de  fora)  que  sua 
gente  enfraquecia  e,  acudindo  a  ajudar  com  os  que  o  acompanha- 


3IO  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

vam,  se  chegou  tanto  que  o  alcan^aram  com  huma  espingardada  c  Ihe 
atravesaram  a  pema  e  juntamente  o  cavallo,  e  assi  caio  logo  morto, 
Vendo  isto  sua  gente  e  que  Ihe  corria  muyto  sangue,  abatiram  tres 
veces  as  vandeiras,  dando  sinhal  de  recolher,  e  logo  o  foram  le- 
vando  em  os  bra<;os;  e  conhecendo  bem  dom  Christovam  que  elle 
era  o  que  levavam  ferido,  mandou  tanger  de  festa  as  trombetas  e 
atabales  e  arremeteo  com  os  Portugiieses  e  os  200  Habexins,  le- 
vando  tam  grande  impetu  que  em  pouco  espago  fez  virar  todos  os 
mouros,  e  deixando  o  campo  alastrado  delles  mortos,  siguio  o  al- 
can^e  ate  que  os  Portugueses  ficaram  muyto  cansados,  e  como  nam 
tinham  cavallos,  arreceou  dom  Christovam  que,  passando  adiante, 
podiam  conhecer  sua  canseira  os  mouros  de  cavallo  e  tornar  sobre 
elles.  PoUo  que  mandou  tocar  a  recolher  e,  quando  tomaram  ao 
arrayal,  achou  a  Emperatriz  com  suas  criadas  em  huma  tenda  amar- 
rando  por  suas  maos  os  feridos  com  seu[s]  proprios  tocados,  sem 
querer  esperar  por  outros  pannos. 

*Como  chegou  dom  Christovam,  fez  correr  o  campo  pera  tracer  f.i28.v. 
a  enterrar  os  Portugueses  que  morreram,  e  acharam  once.  Tambem 
conheceram  alli  os  Habexins  cuatro  capitaes  do  Granh  muyto  prin- 
cipaes  e  30  Turcos  mortos;  e  como  acabaram  de  enterrar  os  Por- 
tugueses,  que  dom  Christovam  ouvera  de  descansar  de  tam  exces- 
sivo  trabalho,  como  tinha  levado,  se  pus  a  curar  os  feridos  por  sua 
mao,  porque  o  ^urgiam  que  tinham  estava  ferido  na  mao  dereita; 
e  depois  de  curar  a  todos  se  curou  a  si  mesmo,  tendo  mais  senti- 
mento  das  feridas  dos  soldados  que  da  sua  propria.  E  como  foi 
noite,  embiou  scgredamente  hum  homem  aos  Portugueses  que  fo- 
ram  a  Magua,  que  Ihes  dese  nova  da  victoria  que  tiveram  e  como 
fora  ferido  o  Granh ;  que  viesem  com  toda  pressa,  porque  esperava 
no  Senhor  que  com  sua  chegada  se  acabaria  a  conquista.  Estive- 
ram  alli  alguns  dias,  esperando  que  os  feridos  tornasem  a  poderem 
tomar  armas  e  que  os  outros  Portugueses  chogasem ;  mas  vendo 
que  tardavam  e  arreceando  que  o  mouro  se  reficese  e  tornase  a  dar 
sobre  elles  (como  na  verdade  ja  tinha  mandado  que  viesem  com 
muyta  pressa  os  capitaes  que  tinha  espalhados,  e  cada  dia  Ihe  en- 
trava  muyta  gente),  determinou  dom  Christovam  de  Ihe  dar  logo 
outra  batalha,  tendo  grandes  esperan^as  na  misericordia  do  Senhor, 
por  quem  todos  peleijavam,  e  em  cujas  maos  tinham  postas  suas 
vidas,  que,  ainda  que  era  tam  grande  a  multidam  dos  enemigos,  Ihes 
daria  victoria,  como  primeiro  tinha  feito. 


CAPITULO   XXXIII. 


De  como  dom  Christovam  deo  a  2"  batalha  ao  Gr&nh. 


Passados  12  dias  depois  que  dom  Christovam  venceo  ao  Granh,  1.  Sccunda  vice 
sintindose  ja  os  feridos  pera  poderem  tomar  armas,  se  confessaram  lium^^mnSttit^cum 
todos  e  domingo  da  Pascuela,  antes  de  amanhecer,  alevantaram  o  «crcituGrAnh,  mul- 

tisque      mahumeda- 

arrayal  e,  postos  em  ordem,  se  foram  pera  os  mouros  que  estavam  nis  caesis,  reliquos 
perto  e,  como  foi  esclarecendo,  que  os  viram,  sairam  com  a  grita  aco-  ^^™  c^^^ii^^  *" 
stumada  e  nam  menos  sobervos  que  a  primeira  vez,  porque  Ihes 
tinha  entrado  mu)rta  gente  e  quem  principalmente  Ihes  dava  animo 
era  hum  capitam  muyto  arrogante,  que  se  chamava  Garad  Amar  e 
viera  de  novo  com  500  de  cavallo  e  tres  mil  de  pe.  Este  decia  aos 
capitaes  do  exercito,  como  era  possivel  que,  sendo  tam  poucos  os 
Portugueses,  durasem  tanto  diante  delles,  como  tam  grande  multi- 
dam  nam  os  facia  logo  em  poo  [?] ;  e  tomando  elle  a  dianteira  arre- 
f.  129.  nieteo  *com  os  seus  tam  afotamente,  como  se  nenhum  caso  ficera 
dos  Portugueses.  E  na  verdade,  se  todos  seus  500  de  cavallo  fo- 
ram  tam  resolutos  como  elle,  os  ouveram  de  por  em  grande  aperto; 
mas  por  medo  da  artilharia,  que  matava  niuytos,  nam  se  atreveram 
a  romper  unidamente.  So  o  capitam  com  cinco  mouros  de  cavallo, 
homens  muyto  esfor^ados,  se  metcram  pollos  fains  dos  Portugueses 
e  morreram  peleijando  valerosamente.  A  este  tempo  mandou  o  Granh, 
a  quem  alguns,  por  estar  ferido,  traciam  em  hum  catre  carregado 


312  HISTORIA    DE   ETHIOPIA 

sobre  os  hombros,  que  toda  a  demais  gente  de  cavallo  arremetesse 
por  diversas  partes;  o  que  elles  ficeram  com  muyta  forga,  e  tra- 
bouse  muyto  a  batalha,  peleijando  de  huma  e  outra  parte  por  grande 
espa^o  valerosamente ;  mas  os  que  entre  todos  se  senalavam,  eram 
oito  Portugueses,  que  tinham  cavallos,  arremetendo  com  grande 
animo  onde  os  mouros  mostravam  maior  for^a,  e  sempre  rompiam 
e  matavam  muytos  ondequer  que  chegavam ;  mas  como  eram  tam 
poucos,  nam  se  atreviam  a  afastar  muyto  siguindo  o  alcance,  que, 
se  todos  tiveram  cavallos,  ficeram  aquelle  dia  maravilhas,  sem  Ihes 
poder  escapar  o  Granh;  nem  as  deixavam  de  facer  em  seu  districto 
os  Portugueses  de  pe,  porque  tambem  faciam  suas  saidas,  matando 
muytos  dos  Turcos  e  tantos  mouros  que  todo  o  campo  aroda  do 
arrayal  estava  alastrado  delles. 

Andando  pois  a  batalha  muyto  trabada  e  acessa  e  carregando 
os  mouros  de  cavallo  a  parte,  que  viram  em  os  de  dom  Christo- 
vam  mais  fraca,  tomou  por  d(^sastrc  fogo  a  polvora,  que  alli  tinham, 
e  matou  dous  Portugueses  c  queimou  outros,  que  ficaram  muyto  mal- 
tratados,  e  foi  tamanho  o  estrondo  que  fez  e  a  lavareda  que  ale- 
vantou,  que  os  Portugueses  todos  st^  tiveram  naquelle  instante  por 
acabados  e  os  cavallos  dos  mouros  viraram  com  tanta  furia  que, 
sem  obedecer  de  nenhuma  maneira  ao  freo,  levavam  a  seus  senho- 
res  pollo  campo,  e  assi  se  afastaram  bom  peda^o  e  deixaram  aquelle 
lugar  desaprcssado.  Pollo  que,  ainda  quc*  foi  grande  desastre  to- 
mar  fogo  a  polvora,  pois  se  queimaram  aquelles  Portugueses,  ajudou 
muyto  pera  alcan^.ar  victoria,  porque,  demais  que  os  mouros  tinham 
posto  em  grandc  aperto  e  perigo  aquelle  lugar,  como  se  afastaram 
tanto,  sem  poderem  facer  tornar  a  virar  de  pressa  os  cavallos,  fica- 
ram  mais  libres  os  Portugueses  pera  darem  nos  Mouros  de  pee,  e 
assi  o  ficeram  de  maneira  que  ate  os  Turcos,  que  eram  os  que 
principalmc^nto  peleijavam,  se  afastaram,  e  dalli  por  diante  nem  elles 
nem  os  de  cavallo  se  atniviam  a  cht»gar  muyto.  No  que  conheceo 
dom  Christovam  que  hiam  ja  erifni(|uecendo,  e  assi  *arremeteo  com  f.i2g,v 
tam  grande  impetu  que,  nam  pudendo  os  Mouros  resistir,  se  foram 
retirando  (^  peleijando  ate  que  se  viram  tam  aportados  que  toma- 
ram  por  remedio  virar  as  costas  e  fugir  a  quem  mais  podia,  ten- 
dose  por  muyt(j  ditosos  e  bcm  afortuiiados  os  que  escapavam  com 
as  vidas,  porque  os  Portugueses  hiam  com  muyta  furia  matando 
em  elles  como  em  carneiros;  e  assi  siguiram  o  alcan^e  obra  de 
meia  legoa,  ficando  tam  cansados  do  que  tinham  corrido  e  peleijado 


l 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXIII.  313 

que  nam  puderam  passar  adiante,  ainda  que  o  deseijavam,  por  ve- 
rem  de  longe  levar  as  costas  em  seu  catre  ao  Granh  e  fugindo  to- 
dos  a  quem  mais  podia,  pello  que,  se  tiveram  cavallos,  nam  Ihes 
ouvera  de  escapar  e  com  sua  tomada  se  acabara  a  demanda. 

Vendo  dom  Christovam  que  sua  gente  estava  mu)rto  cansada, 
se  tornou  tocando  arrecolher  e,  chegando  ao  arrayal  dos  mouros, 
acharam  as  tendas  armadas  e  muyto  fato  dentro,  que  com  a  pressa 
de  fugir  nam  puderSo  levar ;  e  como  acavaram  de  recolher  os  de- 
spojos,  que  se  juntaram  todos  os  Portugueses,  acharam  que  falta- 
vam  catorce,  e  logo  os  foram  a  buscar  poUo  campo  com  muyta 
diligencia  e  a  todos  trouxeram  mortos  e  os  enterraram  com  grande 
sentimento,  mas  dando  juntamente  muytas  gra^as  ao  Senhor  por 
tam  insigne  victoria;  e  por  estar  o  campo  destruido  de  erva  pera 
os  gados  e  nam  tam  acommodado  pera  os  feridos,  que  passavam  de 
setenta,  de  quem  depois  morreram  4,  se  passaram  a  outra  parte, 
onde  estava  huma  ribeira  fresca  e,  chegando  perto,  viram  muytos 
mouros  sentados  a  longo  della  e  entrelles  ao  Granh,  que  determi- 
nava  descansar  alli  aquella  noite,  por  ser  ja  muyto  tarde  e  Ihe  pa- 
recer  que  os  Portugueses  nam  podiam  chegar  tam  longe,  ainda  que 
quissesem;  e  assi,  quando  os  vio,  disse  com  grande  ira  (como  de- 
pois  refirio  hum  Habexim  que  com  elle  estava) :  Muyto  he  que  nam 
me  qucram  deixar  estes  frades,  que  assi  chamava  sempre  aos  Por- 
tugueses;  e  alevantandose  todos  com  muyta  pressa,  fugiram  oito 
dias,  sem  se  darem  por  seguros  ate  entrarem  em  huma  serra  muyto 
forte ;  e  no  caminho  morreram  muytos,  assi  por  nam  acharem  man- 
timentos  bastantes;  que  a  gente  da  terra,  como  os  via  ir  desvara- 
tados,  nam  Ihos  dava,  como  por  irem  muytos  feridos  e  levallos  com 
tanta  pressa. 

Ficou  dom    Christovam    perto  daquella   ribeira  descansando  e       a.  ConBilio  inito 

,  r>     •  j  j  •  .  1-1.      cum  primoribiis  Ae- 

curando  os  fendos,  por  ver  que  nam  podia  por  entam  passar  adiante  thiopiae       hiemare 

siguindo    o  alcance,  e   dalli   a  dous  dias  chegaram  os  Portugueses,  «tatuitadpedesmon- 

tis  OflA  prope  (inea 
f.  130.  que  tinham,  ido  *a  Magua,  e  o  Bahar  jSagax  com  30  de  cavallo  e   regni  Ang6t  et   in 

500  de  pe,  e  foram  rccebidos  com  grande  festa  e  alegria ;  mas  elles  ^^^l!^^***  caatrorum 

vinham  com  extraordinaria  triste^a,  por  nam  se  terem  achado  em 

aquellas   batalhas,  nem    aver   sido  de  effeito  seu  caminho,   porque 

nam  acharam  as  fustas  dos  Portugueses,  quc  ja  sc  tinhao  afastado, 

por  causa  das  gales  dos  Turcos,  que  guardavam  aquella  costa,  pera 

que  nam  pudesem  chegar  a  tomar  novas  do  que  passava  em  Ethio- 

pia.  Vcndo  pois  dom  Christovam  os  Portugueses  quc  tanto  deseijava, 

C.  Bkc  ari.  Rer»  Aeth,  Script,  occ,  ined,  —  II.  J9 


314  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

determinou  ir  logo  em  segnimento  do  Granh,  e  assi  deixou  14  Por- 
tugiieses,  que  estavam  mais  feridos,  em  huma  serra  muyto  forte 
encomendados  ao  governador  da  terra,  a  quem  chamam  Tigre  Mo- 
hon  (que  os  fez  curar  com  muyta  diligencia  e  prover  do  necessario 
com  grande  abundancia),  e  foi  caminhando  dez  dias  ate  chegar  a 
serra,  onde  se  tinha  acolhido  o  Granh,  que  era  muyto  grande  e  forte, 
e  por  entrar  ja  o  inverno  com  muyta  chuva  (que  parece  come^ou 
aquelle  anno  mais  cedo  do  que  acostuma),  aconselharam  a  Empe- 
ratriz  e  os  seus  a  dom  Christovam  que  invernasem  ao  pe  de  outra 
serra,  que  se  chama  Ofla  e  esta  em  os  confins  do  reyno  de  Tigre, 
casi  na  entradada  do  de  Angot  e  a  vista  da  do  Granh,  porque  dalli  po- 
diam  tolher  que  nam  Ihe  entrasem  mantimentos  senam  polla  vanda 
do  mar,  de  onde  Ihe  viriam  poucos,  e  entretanto  chegaria  o  Preste 
Joam,  quc  aquelle  era  seu  caminho.  O  que  pareceo  bem  a  dom  Chri- 
stovam  e  Ihe  escr[ev  ]eo  logo  dandolhe  conta  do  que  tinha  passado  e 
que  convinha  apressar  sua  vinda  porque  nam  Ihes  escapase  o  Granh, 
e  mandou  com  esta  carta  hum  mulato,  que  se  chamava  Aries  Diaz, 
assi  porque  sabia  a  lingoa  da  terra,  por  ter  primeiro  andado  em 
Ethiopia  com  dom  Rodrigo  de  Lima,  como  porque  Ihe  ajudavam 
as  cores  pera  milhor  poder  passar.  Mandou  logo  a  Emperatriz  que 
a  gonte  da  terra  ficesse  casas  pera  todos,  o  que  cumpriram  com 
muyta  diligencia  e  acabaram  de  pressa,  porque  eram  piquenas,  de 
madeira,  que  alli  nam  faltava  e  cubcrtas  de  palha;  e  traciam  man- 
timentos  e  tudo  o  demais  necessario  em  grande  abundancia,  pello 
muyto  que  folgavam  com  os  Portugueses. 
3.  Sub  fincm  hie-  Estando  aqui  dom  Christovam,  veio  a  elle  na  fim  do  inverno 

lusitiuiis  lUK^tu  ag-  ^um  Judeo,  que  fora   capitam  de  huma  serra   muyto  forte,  que  se 

greditur  fortissimam  chama  Oati,  da  provincia  de  (,^emen,  que  era  perto,  e  Ihe  disse  que 

maurorum  munitio- 

nem  ad  flumen  Ta-  em  aquella  serra  estavam  muytos  cavallos  e  os  mouros  de  guarda 

cac6,  eaquesuperata,   q^^^  poucos,  que,  se  queria,  a  podia  tomar  com  cem  Portugueses, 

nes  caedit  spoliisque  indo  segredamente  polla  parte  que  elle  sabia,  e  que  tornaria  muyto 
opimis  potitur. 

de  pressa  com  todos  aquelles  cavallos,  e  que  soubese  tambem  que 

o  Preste  Joam  nam  tinha  outro  caminho  pera  passar  mais  que  aquelle, 

e  que  tracia  tam  pouca  gente  que  de  nenhuma  maneira  o  podi«i  fa- 

cer,  estando  alli  aqut*lles  Alouros.  Ouvindo  isto  dom  Christovam,  ficou 

muyto  triste,  porque  cuidava  que  vinha  com  grande  poder,  e  pre- 

guntando  a  Emperatriz  se  era  certo  o  que  o  judeo  decia,   respon- 

deo  que  si;  com  o  que  ficou  mais   *desconfiado,  ainda   que  o  nam   f.130. 

deo  a  entender,  e  determinou  de  facer  o  caminho  franco  ao  Preste, 


j 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXIII.  315 

com  quem  desejava  muyto  de  se  ajuntar,  e  ver  se  podia  tomar 
aquelles  cavallos,  que  Ihes  aproveitariam  muyto  pera  a  guerra;  e 
assi  deixando  o  arrayal  bem  concertado,  tomou  a  Manoel  da  Cunha 
com  cem  Portugtieses  e  parteo  a  meia  noite  segredamente,  porque 
nam  entendese  o  Granh  que  elle  faltava,  e  caminhando  a  toda  pressa, 
chegou  a  hum  rio  grande  que  chamam  Tacace,  de  que  falamos  no 
cap.  27,  que  no  inverno  leva  muyta  agoa  e  furiosa  corrente,  mas 
com  tudo  o  passaram  em  xangadas  e  odres  cheios  de  vento,  e  de- 
pois,  sem  serem  sentidos,  subiram  a  serra  por  onde  o  Judeo  guiava, 
mas  acharam  acima  muytos  mais  mouros  dos  que  elle  tinha  dito, 
porque  estavam  tres  mil  de  pe  e  cuatro  centos  de  cavallo,  que,  vendo 
os  Portugueses,  se  puseram  com  muyta  pressa  em  armas.  Subio  en- 
tam  dom  Christovam  em  seu  cavallo  e  oito  Portugueses,  que  tam- 
bem  os  levavam  e  juntos  com  os  de  pe  foram  arremetendo.  Em 
isto  se  adiantou  dos  seus  em  hum  fermoso  cavallo  o  capitam  dos 
Mouros,  a  quem  chamavam  Cid  Ahamed,  que  quer  dicer  «  senhor 
Ahamed  >,  e  veio  demandando  a  dom  Christovam;  elle  tambem  Ihe 
saio  ao  encontro  com  tanta  forga  que,  ainda  que  o  mouro  a  tracia 
muyto  grande,  em  pouco  espa^o  o  matou  e  se  foi  logo  metendo 
pollos  mouros,  derrubando  a  huma  parte  e  outra  muytos  mortos.  O 
mesmo  faciam  os  demais  Portugueses  com  tanto  impetu  que  com 
serem  muytos  os  mouros,  os  ficeram  virar,  e  foram  bom  peda^o 
matando  nelles  e  dos  que  Ihes  ficaram  escaparam  poucos,  porque  os 
Judeos,  que  alli  estavam,  os  mataram. 

Como  tudo.  isto  foi  acabado,  se  recolheram  os  Portugueses, 
dando  muytas  gra^as  a  Deos  que,  sem  morrer  nenhum,  Ihes  dera 
tam  grande  victoria,  do  que  ficaram  muy  maravilhados  todos  os 
Judeos  que  moravam  na  serra,  e  o  que  os  guiava,  vendo  o  que  ti- 
nham  feito,  ao  que  nam  Ihe  parecia  podiam  chegar  for^as  huma- 
nas,  disse  que  nam  era  possivel  senam  que  os  Portugueses  tinham 
verdadeira  fe,  pois  Deos  tanto  os  ajudava,  e  assi  se  fez  christao 
com  douce  irmSlos  seus  capitaes  daquellas  terras;  e  porque,  ainda 
sendo  judeo,  fora  sempre  fiel  ao  Preste  Joam,  o  deixou  dom  Chri- 
stovam  por  capitam  daquella  serra  como  antes  era,  encomendan- 
dolhe  que  mandase  com  muyta  pressa  recado  ao  Preste  Joam,  como 
era  ja  tomada  a  serra,  pera  que  viese  com  brevedade,  sem  arrecear 
o  perigo  do  caminho.  Tomou  aqui  dom  Christovam  muyto  fato,  que 
tinham  guardado  os  mouros,  por  ser  lugar  tam  forte,  muytos  escra- 
vos,  trecentas  mulas  e  80  cavallos  escolhidos,  que  estimou  mais  que 


3l6  HISTORIA   DE   ETIIIOPIA 

tudo,  e  com  isto  se  tornou  mu^rto  alegre  e  passou  o  rio  Tacace  da 
mesma  maneira  que  primeiro;  mas  depois,  porque  o  caminho  era 
muyto  aspero  e  que  hiam  os  cavallos  devagar,  deixou  com  *elles  f.  131. 
Irinta  Portugueses  e  foisse  com  os  demais  a  toda  pressa,  porque 
sua  tardancja  nam  fosse  causa  de  algum  trabalho,  sabendose  que 
faltava  elle  e  tantos  Portugueses  no  arrayal. 
4.  Gr&nh  caedibus  Em  quanto  passavam  estas  cousas,  nam  perdia  tempo  o  Granh, 

suorum     perterritus         ^  ja.^ji  ^  il/^  x. 

auxiliares  copias  ct  ^''^tes,  vendo  tantos  dos  seus  mortos  e  os  que  Ihe  ncavam  tam  ame- 
tormenta    bellica  a  drantados  que  nam  se  aviam  de  atrever  mais  a  facer  rosto  aos  Por- 

Turcis   Arabiae   ex- 

petit,  iisqueacceptis,  tugueses,  trabalhou  muyto  porque  Ihe  viese  gente  nova  de   outras 
cum    usitanis  com-  pQ^j-^Qg  ^  principalmente   Turcos,  e  pera  isto  escreveo  ao  Baxa  de 


mittere  parat. 


Zebid,  terra  da  outra  vanda  do  estreito  na  Arabia,  declarandolhe 
o  aperto  em  que  estava  e  quam  poucos  eram  os  Portugueses:  que 
Ihe  socorrese  com  os  mais  Turcos  que  pudese,  que  elle  tambem 
era  vassallo  do  gram  Turco;  que  nam  quissese  deixar  perder  as 
terras  que  tinha  ganhado;  e  mandoulhe  muyto  ouro  com  grandes 
promessas  pera  depois.  O  que  vendo  o  Baxa,  que  tinha  tres  mil 
Turcos  pera  guarda  do  estreito,  Ihe  mando  setecentos,  ou,  como 
outros  affirmam,  900  de  espingarda,  em  que  entravam  trinta  de  ca- 
vallo  com  estribos  dourados,  e  dez  pegas  de  artelharia  de  campo. 
Vieram  tambem  muytos  mouros  A.rabios  que  Ihe  mandaram  outro[s] 
senhores  de  Arabia  seus  amigo[s],  e  dos  de  Ethiopia  se  Ihes  jun- 
tou  grande  numero,  e  chegando  os  Turcos  ao  Granh  a  mesma 
noite  que  dom  Christovam  entrou  em  seu  arrayal,  logo  outro 
dia  dcceo  da  serra  dando  mostra  de  sua  gente, .  que  era  tanta 
que  cubria  o  campo,  e  asentou  seu  arrayal  tam  perto  dos  Por- 
tugueses  que  a  artelharia  dos  Turcos,  que  logo  dispararSo,  chegava 
a  elles. 

Vendo  dom  Christovam  o  socorro  grande,  que  Ihe  viera  ao 
Granh,  tomou  conselho  sobre  o  que  seria  milhor  facer,  e  todos  dis- 
seram  que  de  nenhuma  maneira  se  podiam  retirar,  porque  a  gente 
da  terra  se  alevantaria  logo  contra  elles  e  nam  somente  nam  Ihes 
daria  mantimentos,  mas  nem  os  deixariam  passar;  nem  o  Granh  os 
avia  de  largar:  que  forgadamente  aviam  de  peleijar,  mas  que  nam 
o  ficessem  ate  chegar  os  Portugueses  com  os  cavallos,  que  podiam 
tardar  dous  dias,  e  entretanto  se  defenderiam  o  milhor  que  pude- 
sem  em  seu  arrayal,  que  o  tinham  fortificado  aquelle  inverno  com 
boas  tranqueiras;  e  com  este  acordo  mandaram  logo  recado  aos 
Portugueses,  que  traciam  os  cavallos,  que  viesem  a  toda  pressa,  por- 


LIVRO   I,   CAPITULO   XXXIII.  317 

que  o  Granh  decera  com  muyta  gente  e  mostrava  querer  dar  logo 
batalha;  e  elles  se  aparelharam  e  fortaleceram  todo  aquelle  dia  e 
noite,  que  nam  foi  piqueno  trabalho  pera  os  que  vinham  cansados 
do  caminho ;  mas  nem  com  isto  alcan^aram  seu  intento,  que  era  de- 
fenderemse  ate  que  chogasem  os  cavallos  pera  dar  batalha,  porque 
nam  a  puderam  escusar  antes  disso,  como  no  capitulo  siguinte 
veremos. 


CAPITULO  XXXIV. 

De  como  o  Gr&nh  deo  batalha  a  dom  Christovam, 

e  do  que  sucedeo. 


f.i3i.v.  *Vendose  o  mouro  Granh  com  tanta,   tam  lustrossa  e  bem  ar-       i.    Gr&nh    prima 

ma[da]  gente  e  sabendo  quam  poucos   eram   os  Portugueses,  teve  ^^  ^^is  ^Luaita^ 
por  muyto  certa  de  sua  parte  a  victoria  e  assi  determinou  dar  logo  nos  aggreditur.  Ma- 

-^,,  .  •.^j-  t_j  r  Kna    virtute    utrim- 

batalha,  e  pera   isso  o  sigumte   dia   em   amanhecendo,   que   loram  q^e    pugnatur,   sed 
28  de  acrosto  de   1542,  se  foi   pera  o  arrayal  de  dom   Christovam   ^ndem,    nocte   in- 

^  ^^    *  ^  -^  cumbente    et  multis 

com  toda  sua  gente  em  ordem  e  na  dianteira  900  Turcos  com  dez  suonim  caesis,  Lusi- 

j  ^"11       •  a_      j      j       j  /-*i_   .  ^  j   o.         ■  t*tii  se  retrahunt. 

pe<;:as  de  artilharia,  e  entendendo  dom  Chnstovam  sua  determma- 
<;am,  ordenou  tambem  sua  gente  e  reparteo  as  estancieis  com  ordem 
que  dalli  se  defendesem,  sem  sair  ao  campo,  ate  que  Ihes  chegasem 
os  cavallos,  como  primeiro  tinham  asentado,  e  vindo  os  Turcos  a 
tiro  de  espingarda,  se  come^ou  huma  muyto  forte  e  porfiada  pe- 
leija,  jugando  de  huma  e  outra  parte  com  a  artilharia  e  espingar- 
daria;  o  que  durou  por  algumas  horas,  morrendo  muytos  Turcos  e 
algnns  Portugueses  e  ficando  outros  feridos,  ate  que,  uniijdose 
muyto  a  gente  do  Granh,  se  chegaram  os  Turcos  de  maneira  a  as 
tranqueiras  que  feriam  e  matavam  muytos  com  as  espingardas;  e 
vendo  dom  Christovam  o  dano  grande  que  Ihe  iaciam  e  que  estava 
arriscado  a  Ihe  abalroarem  as  tranqueiras,  por  nam  serem  tam  fortes 
como  convinha  pera  tam  grande  multidam  e  for^a  de  gente,  de- 
terminou  facer  algumas  saidas  e  tornarse  a  recolher ;  e  o  primeiro 
que  saio  foi  elle,  levando  comsigo  cinquenta  Portugueses  de  espin- 
garda,  e  deo  com  tam  grande   impetu  em   obra  de  cem   Turcos  e 


320  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

outros  mouros,  que  estavam  daquella  vanda,  que  os  foi  levando  por 
muyto  espa^o  diante  de  si,  matando  e  firindo  muytos;  mas,  por  nam 
se  afastar  demasiado  e  vir  carregando  sobre  elle  muyta  gente,  se 
tornou  a  recolher,  e  entam  Ihe  mataram  cuatro  Portugueses  e  casi 
todos  os  demais  vieram  feridos  e  elle  tambem  com  huma  espin- 
gardada  na  perna. 

Como  entrou  dom  Christovam,  saio  Manoel  da  Cunha  por  outra 
parte  com  sua  gente  e  fez  afastar  os  Turcos  grande  peda^o,  que 
eram  os  que  mais  trabalho  davam,  por  se  terem  chegado  muyto 
as  tranqueiras,  e  depois  de  ter  peleijado  bom  espa^o  com  grande 
valor  e  esfor^o,  matando  e  firindo  muytos,  indose  recolhendo,  Ihe 
mataram  cinco  Portugueses  e  Ihe  firiram  outros.  Os  demais  capi- 
taes  dcis  estancias  faciam  tambem  por  ordem  suas  saidas  e  sempre 
levavam  aos  mouros  e  turcos  grande  espa^o  pollo  campo,  facendo 
nelles  muy  grande  estrago;  mas  ao  recolher  perdiam  de  ordinario 
gente  e  vinham  muytos  feridos,  e  desta  maneira  andaram  com  exces- 
sivo  trabalho  ate  depois  de  meio  dia,  que  veio  a  estar  a  casa  da 
Emperatriz  tam  chea  de  feridos  que  nam  cabia,  c  ella  e  suas  don- 
cellas  Ihes  amarravam  as  feridas,  derramando  muytas  lagrimas  com 
grande  angustia  e  afli^am,  assi  por  ver  cousa  tam  lastimosa,  como 
por  Ihes  parecer  que  se  chegava  a  hora  em  que  aviam  de  caer  nas 
maos  de  tam  crueis  *enemigos,  porque  se  tinham  chegado  ja  tam  f.  132. 
perto  das  tranqueiras  que  metiam  os  pilouros  dentro  da  casa,  onde 
firiram  duas  molheres. 

A  este  tempo,  com  estar  malferido,  dom  Christovam  andava 
com  grande  diligencia  correndo  as  estancias  e  animando  os  solda- 
dos  e  mostrando  tam  grande  valor  e  esforgo  qual  se  podia  esperar 
de  tam  illustre  e  esfor^ado  capitam,  digno  de  ser  posto  entre  os 
que  por  suas  fa^anhas  alcan^arao  maior  nome  e  fama  no  mundo, 
e  vendo  que,  por  se  terem  chegado  tanto  os  Turcos,  Ihe  faciani 
muyto  dano  dentro  do  arrayal,  mandou  a  Francisco  Dabreu  que 
dese  com  sua  gente  por  aquella  partc,  e  que  seu  irmao  Inofre  Da- 
breu  estivesc  fora  com  a  sua,  pera  acudir  com  prestega  quando  elle 
se  quisese  recolher,  porque  os  Turcos  nam  tivesem  lugar  de  facer 
tanto  dano.  Saindo  pois  o  valeroso  capitam  Francisco  Dabreu,  pe- 
leijou  com  tanto  esforco  que  fez  virar  os  Turcos  e  Mouros  e  os 
lcbou  pollo  campo,  matando  muytos  e  siguindo  o  alcance  mais  do 
que  devera,  ao  recolher,  Ihe  deram  huma  espingardada  com  que 
caio   morto.    Arremeteo  entam  seu  irmao  e  fez   afastar  os  Turcos, 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXXIV.  32 1 

que  vinham  sobre  elle,  mas  estando  alevantando  o  defunto,  o  derru- 
baram  morto  com  elle  de  outra  espingardada ;  e  assi  os  que,  de- 
mais  de  serem  irmSos,  se  amaram  muyto  na  vida,  nam  se  afastaram 
na  morte,  nem  se  afastaram  na  gloria,  que  a  teram  muyto  grande, 
pois  padeceram  tantos  trabalhos  e  morreram  peleijando  en  defen- 
sam  da  santa  fe. 

Sintio  dom  Christovam  na  alma  tam  desastrado  caso  e  perda 
de  tam  excellentes  capitaes  e,  vendo  que  Ihe  faltavam  ja  cuatro  e 
muyta  de  sua  gente  e  que  os  mais  dos  que  Ihe  ficavam  nam  po- 
diam  peleijar,  por  estarem  muyto  feridos,  e  os  Turcos,  que  enten- 
diam  isto,  se  chegavam  com  muyta  sobervia,  tomou  os  que  achou 
que  Ihe  podiam  acompanhar,  que  eram  bem  poucos,  e  deixando  en- 
comendado  a  Manoel  da  Cunha,  que  ao  recolher  desse  elle  com  sua 
gente,  e  arremeteo  com  tam  grande  impetu  e  peleijou  tam  forte- 
mente,  que  em  pouco  espacjo  nam  ficou  mouro  nem  turco  que  se 
atrevese  a  Ihe  facer  rosto,  antes  viraram  todos  as  costas,  e  hia  ma- 
tando  nelles  como  em  carneiros,  tanto  que,  como  affirmaram  alguns, 
que  estavam  presentes,  se  a  aquella  hora  tiveram  comsigo  os  ca- 
vallos,  que  Ihe  ficaram  no  caminho,  sem  duvida  fora  sua  a  victoria; 
mas  nam  tinha  em  todo  seu  arrayal  mais  que  oito  cavallos  e  com 
elles  peleijaram  todo  o  dia.  Com  tudo  isso  foi  grande  peda^o  si- 
gxiindo  os  mouros,  e  sintindo  aos  seus  muyto  cansados,  se  tornou  a 
recolher.  Em  isto  viraram  os  Turcos  e  vinham  detras  a  as  espin- 
gardadas,  com  que  Ihe  mataram  alguns  Portugueses  e  a  cUe  Ihe  quei- 
f.i32,v.  braram  o  brago  dereito.  Acudio  entam  *Manoel  da  Cunha  e  com 
sua  ajuda  se  recolheram,  porem  muytos  feridos  e  todos  tam  can- 
sados  que  nam  se  podiam  bulir,  nem  avia  ja  quem  pudese  tomar 
armas.  Com  todo  isso  dom  Christovao,  esquecido  de  suas  feridas, 
os  andava  esfor^ando  e  rogando  que  se  chegasem  a  as  tranqueiras ; 
o  que  ficeram  com  grande  animo  e  duas  veces  botaram  os  Turcos 
fora  dellas,  que  com  muyta  for<;a  e  pressa  hiam  entrando  e  carre- 
gando  alli  todos  os  mouros  davam  grande  bateria. 

Andando  pois  a  cousa  desta  maneira  o  sendo  ja  muyto  tarde,       2.  Patriarcha  Bcr- 

-.  T^     .  j  /-M     •  ^  •  1-  rnudc*,      Impcratrix 

disseram    us    Portugueses  a  dom    Lhnstovam    que  ja  nam    pocUam   ^^  maior  Lusitano- 

mais,  que  se  recolhesom  polla  serra  acima;  o  que  elle  de  nenhuma  "^™  P*"»  tcncbris, 

sylva    ct    aspcritatc 

maneira  queria  facer,  antes,  tomando  a  espada  com  a  mao  izquerda,   montis  protccti,  sa- 
hia  com  grande  esfor^o  pera  a  parte  ondc  o  mostravam  maior  os    ^  ^™  invcmun  . 
mouros,  dicendo  aos   seus  que  quem  o  quisese   seguir  o  ficesse;  e 
vendo  os  Portugueses  sua  determina^am,  o  detiveram  com  grande 

C.  Bkccaju.  /ier,  Aeik,  Script,  occ,  ined*  —  II.  40 


322  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

for^a,  dandolhe  muytas  re^oes  pera  que  se  retirase  e  procurase  de 
salvar  sua  vida  e  dos  mais  companheiros  que  ainda  a  tinham,  por- 
que  com  ella  se  podia  depois  restaurar  aquella  perda,  e  tomandoo 
por  forga  em  os  bra^os,  o  puseram  em  sua  mula  e  levaram  polla 
serra  acima,  indo  diante  o  Patriarca  e  a  Emperatriz.  Entraram  logo 
os  Turcos  no  arrayal  e  acharam  nas  casas  mais  de  40  Portugueses 
tam  feridos  que  nam  se  podiam  bulir,  e  comegaram  a  os  matar  com 
grande  crueldade ;  mas  hum  que  estava  na  casa  onde  tinham  guar- 
dada  muyta  polvora  que  ficeram  no  inverno,  porque  os  turcos  nam 
se  aproveitasem  della  contra  os  christaos,  foi  rastando  como  pode, 
e  tomando  hum  morram  que  estava  acesso  no  cham,  pus  fogo  a 
polvora,  com  o  que  elle  e  os  Turcos  que  tinham  entrado  se  abra- 
saram.  Outros  turcos  e  mouros  foram  siguindo  os  que  fugiam  e 
as  frechadas  e  pedradas  mataram  alguns  Portugueses,  que  nam  po- 
diam  andar  tanto,  por  estarem  muyto  feridos  e  cansados ;  mas  como 
come^ou  logo  a  anoitecer  e  a  serra  era  de  mato  muyto  basto,  esca- 
param  os  demais ;  porem  o  Patriarcha  com  alguns  Portugueses  por 
huma  vanda,  e  a  Emperatriz  com  outros  por  outra,  e  estes  se  sal- 
varam.  Mas  dom  Christovam  e  1 4  Portugueses,  que  o  acompanha- 
vam,  lan^aram  por  outro  caminho  e  andaram  toda  a  noite  com 
grande  traba[lho],  assi  poUa  aspere^a  do  caminho,  como  por  irem 
todos  muyto  feridos  e  cansados. 

Como  amanheceo,  se  afastaram  do  caminho  arre[ce]ando  que  os 
achasem  os  que  os  seguiam  e  meteramse  por  hum  valle  de  muyto 
arvoredo  e,  achando  no  mais  segrcdo  delle  huma  fonte  piquena,  que 
nacia  de  huma  quebrada,  ajudaram  a  decer  a  dom  Christovam  da 
mula  pera  descansar  e  o  curar,  que  ate  entam  nam  o  aviam  podido 
facer,  e  como  nam  tivesem  micinha  nenhuma,  mataram  a  mula  em 
que  hia  e  com  o  sevo  curaram  a  elle  e  a  si  mesmos,  que  todos  *esta-  f  j^^ 
vam  malferido[s].  A  este  tempo  ja  tinham  passado  adiante  12  Tur- 
cos  e  20  Arabios  de  cavallo  em  busca  de  dom  Christovam,  por  te- 
rem  noticia  que  foni  por  aquella  vanda  e,  como  nam  o  acharam, 
nem  rasto  nenhum  no  caminho,  se  tornavam.  IVIas  chegando  de  fronte 
de  onde  dom  Chirstovam  estava,  atravesou  o  caminho  por  diante 
delles  huma  velha  que  parecia,  que  nam  se  podia  ter  em  os  pes.  Foram 
elles  pera  a  tomar  desejando  saber  alguma  nova,  mas  ella  se  foi  me- 
tendo  pollo  mato  de  liuma  mota  em  outra  sem  que  a  pudesem  aver 
as  maos,  e  chegando  ao  valle  correo  com  muyta  pressa  pera  as  ar- 
vores  onde  estava  dom  Christovam  com  os  Portugueses  e  siguindoa 


LIVRO   I,   CAPirULO   XXXIV.  323 

os  Mouros,  que  se  determinaram  de  a  nam  largar,  deram  com  elles 

de  subito,  e  juntandose  todos  com  grande  grita,  os  prenderam,  sem 

escapar  mais  que  hum  que  nam  estava  tam  ferido.  Depois  nam  vi- 

ram  mais  a  velha;  pollo  que  deciam  os  mouros  que  Mahamed  Iha 

mandara  pera  Ihes  mostrar  os  Portugueses. 

Como  foram  tomados,  conheceram  logo  a  dom  Christovam  pol-      3'«  At  Christopho- 
,  •   1         t  >^    '*°^     sauciatos 

las  armas  que  tmha,  de  quc  muytas  veces  na  guerra  tiveram  vista,  cum  paucis  e  suis 

e  assi  o  levaram  com  grande  alcgria  e  contentamcnto  e  presenta-  P«>P«fo«»*«™*bho8- 
ram  ao  Gninh,  que  estava  om  sua  tenda  com  grande  festa  e  tinha  ad  OrAnh  adducitur, 
diante  cento  e  setcnta  cabe^as  de  Portugnescs,  porque  dava  gram   nicliis  ct  suppliciis 

premio  a  quem    Ihe   tracia   cabeca  de   Portugues,  e  assi    nenhuma  «**»lct*«n       fortissi- 

mum  affectum,  tan- 

ficou  no  campo  que  nam  Ihe  levasem,  e  mostrandoas  a  dom  Chri-  dem  sua  ipse  manu 
stovam,  Ihe  disse :  Eis  aqui  com  quem  me  queriais  tomar  minha  **P**®  ^  tmncat. 
terra.  Conheces  agora  tua  parbuicja  ?  Por  este  atrevimento  te  quero 
facer  huma  grande  honrra.  E  foi  mandalo  logo  despir  num  e  atar 
as  maos  atras  e  a^oitar  cruelmente.  Depois  Ihe  davam  no  rosto  com 
os  (japatos  de  seus  escravos  e,  levandoo  pollo  arrayal  a  as  tendas 
dos  capitaes,  Ihe  ficeram  outras  muytas  injurias  e  afrontas  e  como 
todos  se  acavaram  de  desenfadar  com  elle,  o  tomaram  a  tenda  do 
Granh,  e  mandou  que  das  barbas  Ihe  ficessem  torcidas  com  cera 
e  Ihc  pusescm  fogo  e  que  Ihe  arrancasem  as  pestanhas  e  sobren- 
celhas  com  as  mesmas  tenacinhas,  que  dom  Christovam  primeiro  Ihe 
mandou,  dicendo  que  pera  isso  as  guardara.  O  que  tudo  o  esfor- 
<;!ado  c  catholico  capitam  sufria  com  admiravel  paciencia,  dando 
gragas  a  Deos,  e  com  os  olhos  pregados  no  ceo  Ihe  pedia  perdam 
de  seus  peccados  e  Ihe  oiferecia  sua  alma.  Mandou  depois  o  Granh 
que  o  desatasem  e  por  escarnio  cubrir  com  hum  panno  sujo  e  vil, 
dicendolhe  entre  outras  cousas  que  Ihe  perdoaria  a  morte  e  Ihe 
faria  honrras  c  merces  e  o  deixaria  embarcar  pera  India  com  todos 
os  seus  que  se  achasem  vivos,  com  condicjam  que  os  mandase  cha- 
mar  ondequer  que  estivesem  e  que  viesem  pera  elle.  Ao  que  re- 
spondco  dom  Christovam:  Se  tu,  mouro,  conhecera  quem  sam 
f ,  J3V.  *Portugueses,  nam  falaras  cousas  de  vento.  De  mi  podes  facer  o 
que  quiseres,  pois  estou  em  teu  poder.  Mas  sabe  certo  que,  ainda 
que  me  deses  a  metade  de  tuas  terras,  nem  hum  so  Portugues  faria 
vir  pera  ti,  porque  os  Portugueses  nam  acostumam  a  viver  com 
Mouros,  que  sam  sujos  e  enemigos  da  santa  fe  de  Christo  meu  se- 
nhor.  Indignouse  o  mouro  tanto  com  esta  reposta,  que,  levantandose 
de  onde  estava  e  arrancando  seu  ter^ado,  Ihe  cortou  a  cabecja. 


1 


324  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

4.  Turcae  propter  Sabendo  os  Turcos  a  morte  de  dom  Christovam,  tiveram  mu^^ta 

mortem  Christopho-  j        ..  j      ,  /-  i-  t.  ^ 

ri  iniram  conversi,  paixam,  porque  deseijavam  de  levar  vivo  ao  Ciram  lurco  hum  tam 
castraGrinhfereom-  yaleroso  e  osforcado   capitam   e  irmSo  do   ^overnador  da  India,  e 

nes  relinquunt.  Per-  1  x-  o        ^ 

fuga  lusitanus  Impe-  assi  se  foram   pera  a  tenda  do  Granh  e  Ihe   disseram    como   sem 

ratrici  narrat  necem  * 

Christophori.  Prodi-  conselho  ficera  huma  cousa  tam  grave,  e  vieram  a  taes  palavras  que 

gia  subsecuta:  Au-  ficaram   muvto  quebrados  e  detorminaram   de  se  ir  logo  a  embar- 

ctoris  vana  tentami- 

na  pro  recuperandis  car  pera  Zebid  e  levar  a  cabe(;:a  de  dom  Christovam  e  trece  Por- 

e  usdem  ezuviis.         tugueses,  que  estavam  presos ;  mas  deixaramlhe  200   Turcos,  por- 

que  assi  o  tinha  mandado  o  Gram  Turco,  por  re^am  do  tributo  que 
cada  anno  Ihe  pagava ;  e  a  noite,  antes  que  partisem,  Ihes  fugio  hum 
dos  Portugueses  e  foi  a  ter  com  a  Emperatriz  e  contou  todas  estas 
cousas,  que  da  prissam  e  morte  de  dom  Christovam  tenho  referido ; 
e  ainda  dicem  que  affirmou  que,  acabando  o  mouro  de  Ihe  cortar 
a  cabe^a,  saio  logo  huma  fonte  de  agoa  do  mesmo  lugar  onde  o 
corpo  caio  e  seu  sangue  se  derramou ;  e  ate  agora  falam  mu^rto  em 
Ethiopia  daquella  fonte  e  dicem  que,  quando  os  christaos  senhorea- 
vam  aquella  terra  (que  agora  tem  huns  gentios  que  chamam  Galas 
e  nam  deixam  entrar),  hiam  la  muytos  doentes  poUa  devo^am  grande 
que  tinham  a  dom  Christovam  e,  labandose  com  aquella  agoa,  sara- 
vam  de  diversas  infirmidades. 

Tambem  dicem  que,  no  mesmo  dia  e  hora  que  morreo  dom  Chri- 
stovam,  se  arrancou  huma  arvore  muyto  grande,  que  estava  na 
crasta  de  hum  mosteiro  de  frades  e  se  viraram  as  raices  pera  cima, 
com  estar  o  dia  muyto  quieto  e  sereno;  do  que  se  maravilharam 
os  frades  e  o  atribuiram  a  algum  grande  misterio  e  assi  notaram 
o  dia  e  hora,  e  depois  souberam  que  naquella  mesma  hora  mata- 
ram  a  dom  Christovam ;  e  secandose  a  arvore,  cortavam  os  frades 
os  ramos  pera  servi^o  do  mosteiro,  mas  dalli  a  seis  meses,  o  dia 
que  os  Portugueses  tornaram  a  peleijar  com  o  Granh  e  o  mataram, 
a  arvore  se  virou  e  metendo  as  raices  na  terra,  como  antes  as  ti- 
nha,  lan^ou  logo  folhas  verdes.  O  que  ouvindo  os  Portugueses,  fo- 
ram  a  ver  a  arvore  e  a  acharam  com  novas  folhas,  e  os  frades  Ihes 
afirmaram  que  passara  aquello  desta  mesma  maneira.  E  pregiin- 
tando  eu  agora  a  alguns  frades  por  isto,  me  disseram  que  o  ouvi- 
ram  contar  a  outros  mais  velhos  por  cousa  muyto  certa;  e  todas 
estas  *cousas  attribuem  a  querer  Deos  Nosso  Senhor  honrrar  seu  f.  134. 
servo  e  mostrar  quanto  Ihe  agradou  em  sua  vida  e  morte;  e  to- 
dos  grandes  e  piquenos  o  tem  e  pregoam  ate  agora  por  grande 
martyr;  o  que   piadosamente   se  pode  crer,  polla  muyta  paciencia 


LIVRO   I,    CAPITULO    XXXIV.  325 

com  quc  sofreo  tudo  e  pello  odio  grande  de  nossa  santa  fe  com 
que  aquelle  enemigo  della  Ihe  tirou  a  vida.  Este  mesmo  nome  Ihe 
da  muytas  veces  o  emperador  Seltan  (,^agued,  que  oje  vive,  e  de- 
seijando  eu  tirar  os  ossos  pera  os  embiar  a  India,  Ihe  pedi  orde- 
nase  a  hum  seu  capitam,  que  estava  perto  daquella  terra,  que  dese 
ajuda  a  algnns  Portugueses,  que  la  hiam  pera  oste  eflfeito,  e  elle 
Ihe  escreveo  huma  carta  muyto  encarecida  e  entre  outras  cousas 
Ihe  decia,  que  nam  convinha  deixar  estar  no  campo  os  ossos  da- 
quelle  santo  martyr;  que  trabalhase  o  possivel  pollos  haver  e  os 
entregase  aos  padres  da  Companhia,  pera  que  os  pusesem  em  sua 
igreja  com  a  honrra  devida.  Mas  isto  nam  teve  efFeito,  por  mais 
que  se  procurou,  intentando  muytos  meios  e  dando  peitas  aos  gen- 
tios,  porque  sam  muyto  falsos  e  tinham  concertado  de  matar  os 
Portugneses  e  a  gente  da  terra  que  entrase  com  elles;  o  que  Ihes 
descubriram  alguns  que  sabiam  do  conselho,  e  assi  se  tornaram  sem 
nada,  de  pois  de  terem  gastado  muyto  fato. 

Do  que  temos  dito  se  vee  claramente  quam  longe  da  verdade      5.    Rcfcrtur  pro- 

/•••r  ^  rT*jTT^i_  j  brosa    calumnia    ab 

101  <i  iniorma^am  que  teve  frey  Luis  de  Urreta  sobre  o  modo  com   urrcta  imposita  lu- 
que  dom  Christovam  e  seus   soldados  se  ouveram  em   esta  ultima  8i**^p  nomini  caquc 

cx  dictis  rcfutatur. 

batalha,  pois  a  refer  por  estas  palavras,  pag.  360: 

«  Entretanto  que  los  christianos  tenian  cercado  al  rey  moro 
«  Gradahametes,  se  ha  de  presuponer  que  el  monte,  donde  estava, 
«  tiene  las  espaldas  al  mar  de  Arabia,  por  donde  embio  su  emba- 
«  xadora  los  Reyes  moros,  pidiendoles  favor  y  suplemento  de  gente  y 
«  armas,  dandoles  ra^on  del  peligro  em  que  estava  y  de  los  danos  que 
«  le  avian  hecho  los  Portugueses.  Acudiole  mucha  gente  muy  pro- 
«  veida  de  armas  y  arcabuceria  y  ocho  piegas  de  campaiia,  con  la 
«  qual  ayuda  engrosso  su  exercito,  y  poniendose  en  orden  de  batalla, 
«  baxo  del  monte  en  demanda  de  los  Portugueses.  Hallolos,  qual  el 
«  fue  hallado  dellos,  derramados  por  los  campos,  unos  en  tiendas  y 
«  otros  en  caserias,  sin  orden  de  guerra  ni  diciplina  militar ;  y  dando 
«  de  repente  el  moro  Gradahametes  sobre  los  descuidados  christia- 
«  nos,  unos  dormidos,  porque  era  de  noche,  otros  aturdidos  con  la 
«  artilleria,  otros  descuidados  y  todos  desapercebidos,  alfin,  aunque 
«  mostraron  alguna  defensa,  al  cabo  come^aron  a  ciar,  y  despues  a 
«  se  retraer,  hasta  que,  no  pudiendo  mas  resistir,  huyeron  alegres 
f.i34,v.  «  con  llevar  las  *vidas.  Huyo  el  capitan  Christoval  de  Gama,  mas 
«  fue  preso  en  un  bosque  de  los  soldados  que  yvan  en  su  segni- 
«  miento  y  Uevado  al  rey  moro  Gradahametes  etc.  ». 


326  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

No  que  aqui  diz  o  Author  do  grosso  socorro,  que  o  mouro  teve 
de  Arabia,  falou  verdade,  como  acima  vimos,  ainda  que  pudera  acre- 
centar  que  entre  os  Arabios  vieram  900  Turcos.  Mas  no  modo  de 
discuido,  neglijjencia,  desordem  e  falta  de  diciplina  militar,  em 
que  affirma  que  tomou  os  Portugueses  descuidados  e  dormindo,  por 
ser  de  noite,  e  na  remissam  e  fraque^a  com  que  mostra  que  pe- 
lejaram  e  fugiram,  nam  foi  asi  como  elle  pinta,  senam  como  ja  te- 
mos  contado.  Onde  quem  atentar  bem,  achara  que  dom  Christovam 
da  Gama,  depois  que  do  Mar  Roxo  saio  em  terra  e  come^ou  a  ca- 
minhar  por  Ethiopia  ate  o  ponto  em  que  Deos  permitio  que  fosse 
desbaratado,  nam  faltou  em  seu  officio  em  cousa  alguma  de  tudo 
quanto  de  hum  muy  grande  e  excellente  capitam  se  podia  desejar; 
nem  seus  soldados  deixaram  nunca  de  mostrar  o  valor  e  esfor^o 
dos  que,  poUo  terem  muyto  grande,  sam  mais  afamados  nas  histo- 
rias;  porque,  deixando  as  espantosas  batalhas  que  venceram  e  as 
insignes  victorias  que  tiveram,  quem  nam  pasmara  do  que  em  esta 
ultima  batalha  ficerao[?];  pois  sos  335  Portugueses,  contando  os 
dous,  que  ultimamente  vieram  com  recado  das  fustas,  que  chegaram 
a  Mapua  a  saber  novas  e  nam  se  puderam  tornar,  porque,  dos  400, 
que  primeiro  sairam,  ja  eram  mortos  37  e  outros  30  ficaram  no  ca- 
minho  de  ^emen  com  os  80  cavallos,  nem  os  Ethiopes  que  esta- 
vam  com  a  Emperatriz,  Ihes  ajudaram  aquelle  dia  em  nada ;  quem 
pois  nam  se  maravilhara  de  que  sos  335  Portugueses  pelejasem  com 
900  Turcos  tam  bem  armados,  como  ja  dissemos,  e  com  tantos 
Arabios  e  outros  Mouros  de  pe  e  de  cavallo,  que  nam  tinham 
conto,  desde  que  saia  o  sol  ate  que  se  punha,  sem  nunca  jamais 
terem  hum  so  momento  de  descanso,  nem  deixarem  de  andar  em 
huma  roda  viva  saindo  das  tranqueiras  a  pelejar  no  campo  com  os 
Mouros  ora  huns  capitaes,  ora  outros,  poUo  modo  que  ja  dissemos 
matando  tantos  e  levandoos  de  vencida  todas  as  veces  que  saiam, 
sem  Ihes  ficar  a  victoria  mais  que  por  falta  de  cavallos  com  que 
a  siguisem  [?  |  Nam  ha  duvida  senam  que  o  ficeram  como  excellen- 
tes  cavalleiros,  mostrando  o  maior  esfor^o  que  podia  ser,  de  ma- 
neira  que  parecia  que  o  Senhor  Ihes  dava  for(;as  mais  que  huma- 
nas.  Pollo  que  com  muyta  re^am  os  podemos  pregoar  por  dignos 
de  perpetua  memoria  e  fama,  e  condenar  muyto  o  que  tam  sem  re- 
gam  o  Author  Ihe  impoe  a  dom  Christovam,  sendo  assi  que  foi 
preso  e  morto  como  temos  dito,  depois  de  ter  feito  tam  estranhas 
provas  que  sSo  honrra  do  nome  Portugues. 


f.i35.  CAPITULO  XXXV. 

De  como  os  Portugueses,  que  escaparam  da  batalha,  se 
juntaram  com  a  Emperatriz  e  depois  com  o  Preste 
Joam,  e  deram  batalha  ao  Grlinh. 


Acabada    aquella  tam  triste  e  dolorosa   tragedia   em  que,  de-       i.  Lusitani  super- 

■t      .  .ii_  •  ^     •  j     r       stitea    Imperatricem 

pois  de  tam  prosperos  sucessos  e  maravilhosas  victorias,  se  desfez  aequuti    in    vertice 

como  fumo  a  roda  de  tam  grande  felicidade  e  ditosa  fortuna,  fica-  nioatis  natura  mu- 

nitissimi    se     colli- 

ram  os  Portugueses   que  escaparam  da  batalha   espalhados   pollos  gimt.  Reliqui  la,  per 
matos,  e  como  os  tomou  logo  a  noite  e  nam  sabiam  os  caminhos,  Jes""*^*/**^^ 

hia  cada  hum  por  onde  sua  ventura  o  guiava.  Os  milhor  librados  dunt,  quos  incredi- 

^  bili  audacia  adoriun- 

eram  os  que   puderam    seguir  a  Emperatriz,  porque,  como   levava  tur  et  in  fugam  ver- 

comsigo  gente  da  terra  que  sabia  onde  se    podiam  recolher,  facil-  ^'ip* ;  *ai^d«™  «d  «los 

salvi  perveniunt. 

mente  se  puseram  em  salvo,  metendose  em  huma  serra  muyto  forte ; 
mas  dos  que  ficaram  entre  os  matos  hiam  outro  dia  dez  ou  1 2  jun- 
tos,  caminhando  devagar,  por  estarem  muyto  feridos  e  cansados  e, 
sendo  ja  dez  horas  de  dia,  foram  vistos  dc  muytos  mouros  de  pe 
e  dous  dc  cavallo,  que  corriam  o  campo.  e  logo  foram  com  grande 
furia  pcra  eUes.  Disseram  entam  dos  que  estavam  menos  feridos, 
e  se  chamavam  Fernam  Cardoso  e  Pero  de  Almansa,  que  os  de- 
mais,  pois  nam  podiam  pelejar,  se  fossem  a  toda  pressa  e  se  em- 
brenhassem,  em  quanto  elles  ficavam  pelejando  ate  morrerem  o  se- 
rem  cativos ;  ao  que  se  offereciam  de  boa  vontade,  porque  elles  se 


328  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

salvasem.  Com  esta  determina^ao  se  tornaram  pera  os  mouros  com 
suas  adargas  e  fains  em  as  maos  e  se  concertaram  que,  se  os  cati- 
vasem,  por  mais  tormento  que  Ihes  dessem,  nam  descubrisem  os 
que  hiam  diante. 

Foramse  chegando  os  dous  mouros  de  cavallo  e  como  esti- 
veram  perto,  se  detiveram  esperando  pollos  de  pe  pera  os  toma- 
rem  e  deciamlhes  que  entregassem  as  armas  e  que  nam  os  mata- 
riam.  Vendo  elles  tanta  gente  e  que  traciam  muytos  arcos  e  fre- 
chas,  disseram  entre  si  que  milhor  era  entregaremse,  porque  as  fre- 
chadas  e  pedradas  os  aviam  de  matar,  antes  que  pudesem  chegar  a 
elles  com  os  fains  e  entregandose  poderia  ser  que  dalli  se  tornasem, 
e  salvarse  hiam  os  outros;  e  assi  disse  hum  delles,  que  ja  sabia  al- 
guma  cousa  da  lingoa  da  terra,  que  gucirdasem  o  que  prometiam  e 
que  tomasem  embora  as  zirmas,  e  chegando  *pera  as  entregarem,  f.i^s.v. 
se  sintiram  interioritiente  com  novo  espiritu  e  amos  subitamente 
disseram :  Santa  Araria,  com  nossas  mesmas  armas  nos  hemos  de 
matar?;  e  dicendo  estas  palavras,  deo  cada  hum  no  seu  mouro  tal 
golpe  que  amos  cairam  em  terra,  hum  morto  e  outro  muyto  mal 
ferido,  ficando  os  cavallos  sem  se  bulirem.  O  que  vendo  a  gente  de 
pe,  com  ser  muyta,  come^ou  a  fugir;  entam  os  Portugueses  su- 
biram  em  os  cavallos  e  foram  hum  pouco  apos  elles,  dando  mostra 
de  que  os  queriam  seguir,  mas,  como  os  mouros  se  foram  afastando 
e  encubrindo  com  os  matos,  voltaram  logo  amos  e  foram  em  busca 
de  seus  companheiros,  a  quem  dalli  a  pouco  acharam,  ficando  todos 
maravilhados  dos  ver,  porque  os  tinham  ja  por  m<!yffds  "ou  cativos,  e 
sabendo  o  que  passara,  o  atribuiram  a  milag^e  e  deram  gragas  a 
Deos  por  tam  grande  merce,  e  tomando  em  os  cavallos  os  que  esta- 
vam  mais  feridos,  foram  com  muyto  trabalho  caminhando,  ate  que 
polla  misericordia  do  Senhor  acejftaram  a  chegar  a  sera  onde  estava 
a  Emperatriz  com  alguns  Portugueses. 
a.  Luctus  Impera-  Tinha  ja  mandado  a  Emperatriz  muyta  gente  da  terra  que  cor- 

stophori'  dc  Gama~  ^^^^  ^^  caminhos  e  os   matos    pera  que  guiasem    onde  ella   estava 

Viribus  refectis  lao   qs  Portngiieses  que  achasem  e  procurasom,  aver  novas  de  dom  Chri- 

Lusitani    Imperatri- 

cemaequunturinCe-   stovam,   que  nam  sabiam    mais  de  que    saira    muyto  ferido.    Estes 

men;  reliqui  50  Ma-  trouxeram  alt^uns,  o  uutro  dia  tambem  entraram  os  que  vinham  com 
9uam  vemunt  m  In-  '^  1 

dias  transmissuri.       os  cavallos  e  ate  entani  nam  sabiam  do  desvarate,  e  assi.  vendo  seus 

companheiros  tam  feridos  e  em  tam  lastimoso  estado,  foi  grande  o 
sentimento  que  tiveram  e  muytas  as  lagrinias  que  derramaram.  Em 
isto  chegou  o  Portugues,  que  escapou  quando  prenderam  a  dom  Chri- 


LIVRO  I,   CAPITULO  XXXV.  329 

stovam,  e  dalli  a  pouco  o  que  fugio  dos  Turcos,  depois  de  sua 
morte,  e  contaram  o  que  sucedera  na  forma  que  no  capitulo  pre- 
cedente  referimos.  O  que  lastimou  tanto  a  todos,  que,  esquecidos 
de  todos  os  outros  males  e  perdas,  so  esta  choravam  com  g^andis- 
sima  dor  e  angustia  de  cora^am.  Nam  foi  menor  o  sentimento  que 
teve  a  Emperatriz  e  o  pranto  que  fez  com  suas  donas  e  doncellas 
polla  morte  de  dom  Christovam,  porque  o  chorou  por  muytos  dias 
como  se  fora  seu  proprio  filho,  o  Emperador,  sem  admitir  nenhuma 
consolaijam,  posto  que  se  esfor^ava  a  dar  aos  Portugueses  o  mi- 
Ihor  que  podia. 

Em  esta  serra  estiveram  algfuns  dias  pera  se  curar  e  descansar 
e  que  se  recolhesem  os  que  andavam  espalhados ;  e  juntaramse  como 
cento  e  vinte,  e  tiveram  nova  que  Manoel  da  Cunha  com  cinquenta 
Portugueses,  sem  saberem  o  caminho  por  onde  hiam,  entraram  em 
f.  136.  as  terras  do  Bahar  Nagax,  onde  *foram  muyto  bem  agassalhados. 
Depois  determinou  a  Emperatriz  com  parecer  dos  Portugxieses  pas- 
sarse  a  serra  Oati  de  Qemen,  que  dom  Christovam  ganhara  no  in- 
verno,  porque  alli  estavam  mais  seguros  e  tinham  em  abundancia 
tudo  o  necessario,  que,  demais  de  ser  muyto  forte  e  casi  inexpu- 
gnavel,  tem  acima  campos  largos  de  sementeiras  e  herbas  bastantes 
pera  muytos  gados  e  agoa  em  grande  abundancia  de  fontes  e  ribei- 
ras  que  nunca  se  secam.  Por  isto  se  foram  la  e  recebeoos  com 
muyto  amor  e  benevolencia  o  capitam  que  dom  Christovam  deixara 
naquella  serra,  dando  a  todos  liberalmente  nam  so  o  necessario,  mas 
o  que  pera  outras  cousas  particulares  Ihe  pediam. 

Dez  dias  depois  que  a  Emperatriz  e  os  Portugueses  entraram  3.  ciaudius  impe- 
em  aquella  serra  ou,  como  outros  dicem,  20,  chegou  o  Preste  Joam  "^"^vcni^^ubr  wU 
ao  pe  della  com  tam  pouca  e  tam  triste  gente  que,  se  a  serra  nam  lecto  ezercitu  500  e- 

quitum  et  8  miHium 

estivera  tomada,  nam  somente  nam  a  pudera  elle  tomar  aos  mou-  peditum,   Lusitano- 

ros,  mas  nem  se  atrevera  a  chegar  alli.  Como  os  Portugueses  sou-  "^™  "orfSh  ^^^^^ 

beram  que  estava  tam  perto,  deceram  em  ordem  levapido  por  van-  tare  statuit. 

deira  a  da  Misericordia,  e  quando  chegaram,  vendoos  daquella  ma- 

neira  e  qne  eram  tam  poucos  e  sabendo  do  desvarate  e  morte  de 

dom  Christovam,  foi  tam  grande  o  sentimento  e  triste^a  que  teve  qual 

pudera  ter  se  Ihe  morrera  o  unico  filho  erdeiro  do  imperio,   tanto 

que  nem  depois  avia  consolalo,  porque  vinha  muy  desejoso  de  ver 

a  dom    Christovam,   pola  fama  gprande  que    delle  tinha.   Receoos 

toda  via  com  muyta  honrra  e  falou  com  g^ande  benignidade  con- 

solandoos  e  dicendo  que  se  nam  ouvesem  por  estrangeiros  e  de- 

C.  BiccARi.  /P#r.  Am/M,  Sert^/.  oec.  iued.  —  U.  49 


330  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

semparados  em  seu  imperio,  porque  elle  o  tinha  por  del  Rey  de 
Portugal  seu  irm^o,  pois  com  o  sangne  de  seus  Portug^eses  ver- 
dadeiros  christSos  fora  comprado;  e  a  tudo  proveo  logo  muy  co- 
piosamente  de  vestidos,  tendas,  mulas,  criados  que  os  sirvisem  e 
tudo  o  mais  necessario. 

Esteve  em  esta  serra  alguns  meses  em  quanto  se  Ihe  foi  ajun- 
tando  gente  e,  tendo  ja  como  500  de  cavallo  e  oito  mil  de  pe,  pa- 
recendolhes  aos  Portugueses  que  com  aquella  gente  se  podia  dar 
batalha  aos  mouros,  pidiram  muyto  ao  Emperador  Ihe  quissese  aju- 
dar  a  vengar  a  morte  de  dom  Christovam.  Duvidou  elle  muyto  de 
se  poder  facer  com  tam  pouca  gente,  mas  sabendo  de  pois  que  os 
Tnrcos  eram  idos  a  suas  teras,  sem  ficar  mais  que  docentos  com 
o  Granh,  e  facendo  muyta  instancia  os  Portugneses,  determinou  se- 
guir  *seu  conselho  e  pera  isto  mandou  recado  aos  50  Portugueses,  f.i36,v. 
que  foram  a  as  terras  do  Bahar  Nagax,  que  viesem  a  ter  com  elle 
com  a  mor  pressa  que  pudesem  e  de  caminho  trouxesem  as  armas 
que  dom  Christovam  deixara  na  serra  Damo,  onde  achou  recolhida 
a  Emperatriz,  e  por  ser  cousa  muyto  forte,  guardou  alli  as  que  tracia 
de  sobresalente ;  mas  quando  chegaram  os  criados  do  Empera- 
dor,  nam  acharam  alli  os  Portugueses,  porque,  parecendolhes  que 
ja  os  demais  eram  acabados  e  que  elles  nam  podiam  chegar  onde 
estava  o  Emperador,  se  foram  pera  a  vanda  de  Ma^ua  a  esperar 
se  vinham  algumas  fustas  em  que  se  embarcasem  pera  India ;  e  assi 
se  tornaram,  tracendo  toda  via  as  armas,  que  foram  de  grande  im- 
portancia,  porque  tinham  muyto  poucas. 

Sabendo  o  Emperador  que  nam  avia  que  esperar  por  aquelles 

Portugueses,   que  estavam   muyto   longe,  se  partio   dalli  a  seis  de 

fevereiro  de  1543    com   os   que   tinha   comsigo,  que    eram  cento  e 

vinte  ou  30,    em  que  entravam  alguns  aleijados,  a  quem  o  Empe- 

rador  decia  que  ficasem;  mas  elles  o  nam  quiseram  facer  de  nen- 

huma  maneira,  deseijando  de  ir  morrer  com  seus  companheiros.  Que- 

rialhes  sinalar  por  capitam  algum  delles,  mas  nem  isto  admitiram, 

dicendo  que,  pois  tinham  perdido  tal  capitam  como  dom  Christo- 

vam  da  Gama,  nam  aviam  de  ter  outro  senam  a  elle  e  a  vandeira 

da  s.**  Misericordia. 

4.    In    provincia  Com   estes  Portugueses  e  com  os  quinhentos  de  cavallo   seus 

men  hostium,  duce  ^  8000  de  pe  foi  em  busca  do  mouro  Granh,  deixando  a  Empera- 

interempto,  profligat  triz  sua  may  em  aquella  serra,  e  chegando  a  provincia  de  Oagra, 

achou  hum   capitam    do  Mouro  com  300  de  cavallo  e  2000  de   pe 


LIVRO  I,  CAPITULO  XXXV.  33 1 

e  mandou  que  desem  nelle  antes  de  amanhecer,  indo  cinquenta 
Portugueses  de  cavallo  na  dianteira;  e  em  pouco  espapo  os  desba- 
rataram,  matando  o  capitam  e  os  mais  delles,  e  tomaram  muytos 
cativos,  de  quem  souberam  como  o  Granh  estava  pouco  mais  adiante 
no  reyno  de  Dambia,  perto  da  lagoa,  por  onde  passa  o  Nilo,  com 
sua  molher  e  filhos,  que  por  aver  muyto  tempo  que  os  deixara  alli 
e  por  ser  terra  fertil,  se  veio  pera  elles  pouco  depois  que  venceo 
a  dom  Christovam.  Teve  logo  novas  da  ida  do  Emperador  e  que 
tracia  Portugneses  comsigo,  do  que  ficou  muy  espantado,  porque 
cuidava  que  todos  eram  mortos,  e  os  seus  nam  pouco  arreceosos, 
por  conhecer  muyto  bem  o  esforQo  dos  Portug^eses  e  entender  que 
nam  vinham  senam  a  se  vengar  do  passado.  Aparelhouse  com  muyta 
pressa  e  facendo  alardo  de  sua  gente,  achou  que  tinha  trecemil 
homens  de  pe  e  de  cavallo  e  docentos  Turcos. 
f.  137.  Chegando  o  Emperador  a  vista  dos  mouros   asentou  *seu  ar-      5.  Ixide  magnis  iti- 

rayal  em  huma  terra  que  chamam  Oinadaga  e,  antes  de  dar  batalha,  propJucum  SambU 
tiveram  por  alguns  dieis  muytas  escaramu^as,  saindo  de  ordinario,  y«*"*  «*  castra  ponit 

in  conspcctu  caatro- 

70  Portugueses  de  cavallo,  que  faciam  maravilhas,  e  vendo  huma  rom  Qr&nh.  Per  plu- 
vez  contra  elles  hum  famoso  capitam  do  mouro  com  200  de  ca-  "^^eUiaho^te**!"^^ 
vallo,  o  mataram  no  primeiro  encontro  com  1 2  cavalleiros   muyto  «it  qui,  inaidias  mo- 

n  .  n  ,.  ^  .^.  ju.  liti,  ducem  e  primis 

esfor^ados  e  ficeram  birar  os  outros;  o  que  smtio  grandemente  o  Aethiopum    interfl- 

Granh,  porque  era  o  milhor  capitam  que  tinha.  Tambem  o   geral  *^*^*' 

do  campo  do  Emperador  era  grande  cavalleiro  e  facia  muyto  boas 

sortes  com  sua  gente,  de  maneira  que  sempre  levavam  os  mouros 

o  pior.  Vendo  o  Granh  o  dano  grande  que  este  capitam  Ihe  facia, 

determinou  de  Ihe  armar  huma  cilada  com  que  o  matase  a  trai^am, 

e  pera  isto  mandou  que  cuatro  Turcos  bons  espingardeiros  se  em- 

boscasem   de  noite  a  longo  de  huma   ribeira,   que  estava  a  vanda 

do  Emperador,  e  como   amanhecese  fossem  dous    de  cavallo  com 

huma  vandeira  branca  e  fingissem  que  Ihe  queriam  dar  algum  aviso 

em  segredo  e  tratar  de  se  passar  pera  elle  e,  como  chegasse  Ihe 

tirasem  os  Turcos.  Ficeramo  assi  por  huma  parte  que  parecia  que 

os  dous  de  cavallo  escondidamente  sairam  de  seu  arrayal  e,  postos 

a  borda  da  ribeira,  chamaram  por  seu  nome  ao  capitam.  Elle  que 

ja  aquella  hora  andava  a  cavallo,   mandou   saber  que   queriam,  e 

responderam  que  tinham  huma  cousa  que  Ihe  relevava  muyto  e  que 

nam  a  podiam  dicer  senam  a  elle.  Ouvindo  isto,   se  foi  chegando 

com   muyta  gente   e   vendo  que  nam   eram  mais   que  dous,  pare- 

ceolhe  que  se  queriam  passar  pera  elle  ou  darlhe  algum  aviso  de 


332  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

importancia,  mandou  ficar  toda  a  gente  e,  levando  sos  dous  criados, 
se  chegou  a  borda  da  ribeira  e  estandolhe  preguntando  o  que  que- 
riam,  Ihe  tiraram  os  turcos  com  suas  espingardas  e  o  mataram  e 
logo  fugiram  todos  com  muyta  pressa,  e  como  a  gente  do  capitam 
ouvio  as  espingardas  e  vio  fugir  os  mouros,  entendeo  a  trai^am  e 
correram  muytos  de  cavallo  apos  elles,  mas  nam  os  puderam  al- 
can^ar,  porque  os  Turcos  tinham  alli  perto  cavallos  prestes  e  de 
seu  arrayal  sairam  muytos  aos  receber,  e  assi  se  tomaram  com 
seu  capitam  morto. 
6.  Altcra  die  prae-  Sintio  muyto  o  Emperador  a  perda  deste  capitam,  porque  era 

lium      committitur.  .  c  •*  .  * 

Res  diu  manet  in  an-  niuy  valeroso  e  com  o  esfor^o  g^ande  que  mostravao  dava  aos  ou- 
cipiti:attandemip8e  ^^.Qg  ^  ^ssj^  vendo  que  faltava,  o  perderam  muytos,  de  maneira  que 

GrAnh  gravi  vulnere  *  jt  ^ 

saucius  capite  plecti-  tiveram  por  impossivel  a  victoria  e  tratavam   de  fugir  do  arrayal 
ti^timivexwiamau^  segredamente.  *Mas  nam  faltou  quem  dissese  ao  Emperador  o  que  f.isr.v. 

praecipiti  fuga  terga  passava,   poUo  que  determinou   dar  outro  dia  batalha,   arreceando 
vertit. 

que,  se  tardase,  o  deixariam  so ;  e  em  amanhecendo  mandou  que  se 

pusesem  todos  em  ordem  e  juntandose  os  Portugueses,  arvoraram 

a  vandeira  da  s.^  Misericordia  e  postos  todos  de  joelhos  se  encomen- 

daram  a  Deos,   pidindolhe  pellos   merecimentos  da  Virgem  Nossa 

Senhora  da  Piedade,   que  nella  estava   pintada,  os  quisese   ajudar 

contra  seus  enemigos  e  recebese  as  almas  dos  que  tivese  por  bem 

que  acabasem  naquella  batalha,  e  alevantandose,  se  puseram  em  or- 

dem  e  tomaram  a  dianteira,  como  o  Emperador  Ihes  tinha  conce- 

dido,  levando  comsigo  docentos  e  cinquenta  Habexins  de  cavallo  e 

tresmil  e  quinhentos  de  pe,  e  na  retaguarda  hia  o  Emperador  com 

outros  250  de  cavallo  e  cuatro  mil  e  quinhentos  de  pe.  Desta  ma- 

neira  se  foram  pera  os  Mouros  que  ja  vinham  tambem  repartidos 

em  duas  batalhas  e  o  Granh  na  primeira  com  docentos  Turcos  de 

espingarda  e  seiscentos  Mouros  de  cavallo  e  sete  mil  de  pe,  e  na 

retaguarda  vinha  hum  grande  capitam  com  seiscentos  de  cavallo  e 

seismil  de  pe. 

Como  se  juntaram  os  campos,    arremeteram  de  huma  e  outra 

parte  com  grande   impetu  e  come^ouse  a  travar   fortemente  a  ba- 

talha,  mas   carfegando  por  huma   vanda  os  Turcos   hiam   levando 

diante  aos  Habexins,  o  que  vendo  os  Portugueses,  voltaram  sobre 

elles  com  muyta  preste<;!a  e  mataram  muytos,  e  os  demais  se  reti- 

raram  hum  peda^o  ate  se  ajuntarem  com   os  outros   mouros;  mas 

os  Portugueses  nam  os  deixaram,  porque  com  elles  principalmente 

o  queriam   aver;  e  assi  70,  que  tinham  cavallos,   se  meteram   por 


LIVRO  I,  CAPITULO   XXXV.  333 

elles  facendo  maravilhas  e  muytos  dos  do  Emperador,  por  nam  fica- 
rem  envergonhados,  os  acompanharam  e  se  acendeo  mu^rto  por  bom 
espa^o  a  batalha,  mas  pelejaram  os  Portugueses  com  tam  extraor- 
dinairia  bravega  que  ficerao  virar  os  Turcos  e  Mouros,  que  estavam 
naquella  parte;  o  que  veado  o  Grinh,  acudio  elle  mesmo  com  hum 
seu  filho  mancebo  e  os  que  o  acompanhavam,  e  fez  que  se  detive- 
sem  e  pelejasem,  e  chegouse  tanto  esfor^andoos  que  foi  conhecido 
dos  Portugueses,  e  logo  carregaram  todos  a  aquella  vanda  e  tantos 
tiros  Ihe  ficeram  com  as  espingardas  que  hum  Ihe  deo  em  ospei- 
tos  e  caio  de  bra^os  sobre  o  ar^am  dianteiro  do  cavallo.  Vendo 
isto  os  seus,  Ihe  acudiram  e,  abatendo  as  vandeiras,  o  levaram  fu- 
gindo,  mas  de  pois  o  deixaram  no  cham,  querendo  antes  ir  desem- 
f.  138-  bara^ados  pera  salvar  suas  vidas,  que  acarretar  *sem  proveito  o 
corpo  que  Ihes  avia  de  ser  causa  de  suas  mortes,  porque  logo  seu 
exercito  se  come^ou  a  desvaratar  e  por  em  fugida.  So  o  capitam  dos 
Turcos  se  determinou  de  morrer  peleijando  e  venderse  por  justo 
pre^o  e  assi,  alevantando  as  mangas  da  camisa,  com  os  bra^os  nus 
e  com  hum  alfange  largo  e  sua  rodela  em  as  maos,  acometeo  a 
cinco  Habexins  de  cavallo  e  Ihes  deo  bem  que  facer  e,  queren- 
dolhe  hum  dar  com  a  lan^a,  pegou  elle  della  [szc]  e  Iha  tirou  das  maos 
e  a  outro  cortou  as  pemas  do  cavallo :  pello  que  nam  se  atraviam 
ja  a  chegar  a  elle.  Estando  em  isto,  chegou  hum  Portugues  de  ca- 
vallo  e  Ihe  deo  huma  grande  ferida  com  a  langa,  mas  tambem 
lan^ou  mao  della  com  tanta  forga  que  nam  avia  facerlha  largar,  e 
fose  chegando  tanto  que  alcan^ou  com  o  alfange  ao  Portugues  so- 
bre  hum  joelho  e  Ihe  cortou  os  nervos  de  maneira  que  ficou  aleijado. 
Lebou  elle  entam  da  espada  e  acabou  de  matar  ao  Turco. 

A  este  tempo  hia  a  gente  do  Emperador  sigiiindo  o  alcance      »•    Uxor    OrAnh, 

caede  viri  sui  et  ma- 

dos  mouros  e  facendo  nelles  grande  matan^a,  mas  os  Portugueses  ioris  partis  ezercitus 
principalmente  se  ocupavam  com  os  Turcos,  que,  como  Ihes  tinham  ^***^?'  ^Y^  paucis 
tam  boa  vontade,  nam  se  curavam  tanto  de  outros  e  assi  de  todos  ripit.  Aethiopes  vi- 

ctores     castris     ho- 

docentos  nam  escaparam  mais  que  40.  Estes  foram  pera  a  molher  gtium  et  copiosa 
do  Granh,  que,  sabendo  o  desbarate,  se  acolheo  com  340  de  cavallo,  pr*ed*  potiuntur. 
que  estavam  em  sua  guarda,  e  lebou  o  thesouro  que  seu  marido 
tinha  tomado  ao  Emperador  e  escapou,  por  andarem  muyto  todos  tam 
ocupados  matando  e  tomando  os  despojos  do  campo  e  do  arrayal, 
onde  acharam  grande  numero  de  cativos  christaos,  particularmente 
mininos  e  molheres;  o  que  Ihes  foi  de  grande  alegria  e  contenta- 
mento,  porque  huns  acharam  su2is  irmaas,  outros  suas  molheres  e 


334  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

outros  seus  filhos,  a  quem  nam  tinham  esperan^a  de  ver  nunca.  Era 
tam  grande  o  pracer  de  todos  que  Ihes  parecia  sonho,  e  reconhecendo 
que  por  via  dos  Portugfueses  Ihes  viera  tam  grande  bem,  se  bota- 
vam  a  seus  pes  e  Ihos  beixavam,  dandolhes  muytas  ben^oes  e  agar- 
decimentos.  O  Emperador  tambem  Ihes  fez  muytas  honrras  e  se 
mostrou  mais  obrigado  do  que  podia  satisfazer,  porque  via  que  elles 
Ihe  deram  o  imperio,  que  estava  tam  perdido  que  nam  avia  quem 
cuidase  que  se  podia  tomar  a  recuperar;  e  foi  cousa  maravilhosa 
que,  com  ser  esta  batalha  tam  travada  e  do  principio  della  andarem 
os  Portugueses  na  dianteira  metendose  tanto  poUas  espingardas  dos 
Turcos  e  esquadroes  dos  mouros,  nam  morreo  nella  nenhum.  Por 
onde  se  pode  ter  por  sem  duvida  que  a  Virgem  da  Piedade  (a  quem 
antes  de  entrar  na  batalha  se  encomendaram)  a  teve  delles  e  *lhes  f.i^s.v. 
alcan^ou  do  Pay  das  misericordias  esta  tam  grande. 
9.  Quae  hucusque  Tudo  o  que  temos  dito  em  este  capitulo,  assi  como  nos  demais 

a*  tesdbus^^de  "^bu  ^^®  tocam  a  dom  Christovam  da  Gama,  he  por  informagam  de  pes- 
flde  dignis.  Quomo-  soas  de  vista  e  fide  dignas :  pello  que  se  Ihes  deve  dar  mais  cre- 

do  eadem  narraverit 

Urreta.  dito  que  a  quem  informou  a  frey  Luis  de  Urreta  sobre  esta  histo- 

ria,  que  elle  conta,  pag.  361,  tam  diferentemente  do  que  na  ver- 
dade  passou,  quanto  vera  o  letor  em  suas  palavras,  que  sam  as 
signintes : 

«  Mientras  estas  cosas  passavan  en  el  reyno  de  Adel,  el  Pre- 

<  ste  Juan  baxava  con  un  copiosissimo  campo,  que  cubria  los  cam- 
«  pos,  los  montes  y  valles  y  quitava  la  luz  de  la  tierra,  donde  avia 
«  mas  de  seiscientos  mil  hombres.  A  tres  u  quatro  jomadas  antes  de 
«  Uegar  al  reyno  de  Adel  encontro  con  muchos  de  los  suyos  quehuyan, 
«  y  con  algnnos  Portugueses,  que  le  dieron  las  tristes  nuevas  de  todo 
«  lo  que  passava  y  de  la  muerte  de  don  Christoval  de  Gama.  Grande 
«  fue  su  mosta^a  y  enojo  con  la  desgracia,  mas  corrido  algo  de  mo- 
«  strar  sentimento  por  tales  pajueleis,  compuso  su  semblante  y  con 

<  una  fingida  risa  dixo:  Pues  a  f e  a  fe,  Gradahametes,  que  algum 
«  dia  me  pagareis  tanto[s]  agravios,  y  no  tardara  mucho  el  ca- 
«  stigo.  O  illustre  capitam  Gama,  dichoso  fuiste,  pues  padeciste  una 
«  muerte  tan  gloriosa.  Alegrate,  pues  tienes  un  Emperador  que  ven- 
«  gara  tu  muerte ;  y  doi  palavra  que  ni  el  Rey  de  Portugal  mi  her- 
«  mano,  ni  el  Vissorey  de  la  India  hermano  tuyo  se  podran  quexar 
«  de  mi  en  ning^n  tiempo.  Y  marchando  a  buela  pie  toda  aquella 
«  numerosa  muchedumbre  alegres  y  contentos,  dando  mil  saltos  de 
«  placer,  dieron  sobre  los  Moros,   hallandolos  tan  descuidados  que 


LIVRO  I,  CAPITULO  XXXV.  335 

€  estavan  aun  haciendo  mil  dan<;as  y  bailes  por  la  victoria  passada. 
€  Pero  presto  se  bolvieron  en  tristes  lagrimas,  porque,  estando  el 
€  rey  Gradahametes  dando   saltos  y  brincos,  le  cogio   en    el  ayre 

<  una  dichosa  bala,  que  le  atraveso  los  costados  y  dio  con  el  muerto 
€  en  aquellos  campos.  Muerto  el  Rey,  a  todos  los  suyos  se  les  mu- 
«  rieron  los  ccracjones  y  viendo  aquella  muchedumbre  de  gente  que 
«  descargava  sobre  ellos,  dieron  a  huyr  enflaquecidos,  desmayados 
« y  debilitados,  asaltadas  las  almas  y  juicios  con  aquel  sobre- 
€  salto.  Pera  los  valientes  Ethiopes  dieron  en  aquelle  batallon  de 

<  los  mouros  hiriendo  y  matando  con  la  brave^a  y  colera  qual  la 

<  vengan^a  de  tales  agravios  pedia.  Era  un  juicio  y  asombro  ver 

<  y  oyr  el  temeroso  ruido  de  las  trompetas  y  caxas,  el  rebramar 

<  de  la  alcabuceria,  el  rugir  de  las  balas,  la  ferocidad  de  los  ca- 
t  vallos,  el  quebrar   de  las  lan^as,  el  caer  y  el  gritar,  las   voces, 

f.  139.   <  los  alaridos,  los  suspiros,  las  heridas  crueles,  *las  muertes  desa- 

<  piadadas,  los  arroyos  de  sangre,  el  polvo,  el  humo,  la  confusion 

<  y  esto  es  guerra.  El  emperador  Claudio,  como  animoso  y  valiente, 

<  vestido  de  una  fuerte  cora^a  hasta  media  pierna  de  piel  de  elefante 

<  con  su  rodela  azerada  y  con  lan^a  de  dos  hierros,  puesta  su  visera 

<  y  hielmo  con  una  vanda  de  carmesi  colgada  de  la  cabe^a  (modo 

<  antiguo  de  entrar  en  las  batallas  los  Preste  Juanes),  se  metia  por 

<  los  escuadrones  mas  serrados  de  los  enemigos  y  los  trato  de  arte 

<  que  no  dexo  alguno  que  no  muriese   a  sus  manos,    o  no  huyese 

<  de  sus  manos.  Murieron  casi  todos  los  Moros,  dando  mil  gritos 

<  que  hundian  los  cielos,  llamando  a  su  Mahoma,  sino  que,  como 

<  esta  en  el  infierno,  no  los  oyo  ». 

Ate  aqui  sam  palavras  de  frey  Luis  de  Urreta,  em  que,  con-      ^^   Calumniosa 
forme  ao  que  com  certeca  temos  dito,  falta  muyto  na  verdade  da  *^"atio  pluribus  ar- 

gumentis    refutatur. 

historia ;  porque  primeiramente  o  desbarate  de  dom  Christovam  nam 
foi  no  reyno  de  Adel,  senam  (como  ja  dissemos)  em  Ofla  confins 
do  reyno  de  Tigre  e  entrada  do  de  Angot,  muyto  longe  de  Adel, 
nem  o  Preste  Joam  vinha  com  seiscentos  mil  homens,  como  elle 
diz,  que,  ainda  que  naquelle  tempo  nam  se  tiveram  apoderado  os 
mouros  de  casi  todo  seu  imperio,  senam  que  estivera  muyto  flo- 
rente  e  pacifico,  nam  pudera  juntar  nem  a  metade  da  gente  que 
fingio  quem  o  informou,  nam  teve  nunca  senam  tam  pouca  que  fora 
impossivel  recuperar  seu  imperio,  se  os  Portugueses  nam  vieram; 
porque,  como  contam  seus  livros,  morrendo  seu  pay  David  (que 
tambem  se  chamou  Onag  Qagued)  no  reyno  de  Tigre  na  serra  Damo, 


336  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

onde  dom  Christovam  achou  a  Emperatriz  Zabela  Oenguel,  que  por 
serem  muyto  forte  se  tinham  acolhido  a  ella  por  medo  dos  mou- 
ros,  o  levantaram  a  elle  alli  por  Emperador,  sendo  de  i8  annos, 
e  tinha  tam  pouco  poder  que  indo  sobre  elle  dalli  a  cuatro  ou  cinco 
meses  hum  capitam  do  Granh,  que  se  chamava  Amir  Ozman  o  de- 
sbarato[u]  e  escapou  com  muyto  trabalho  e  se  foi  pera  o  reyno  da 
Xaoa  com  so  80  homens  e  por  la  andou  sempre  fugindo  em  ter- 
ras  muyto  fortes  com  tam  pouca  gente  que,  com  estar  dom  Chri- 
stovam  em  suas  terras  mais  de  hum  anno  (pois  entrou  em  julho 
de  1541  e  a  batalha  em  que  foi  desbaratado  se  deo  a  28  de  agosto 
de  42),  e  mandoulhe  muytas  veces  recado  que  viese,  que  elle  tam- 
bem  se  hia  chegando,  nunca  se  atreveo  ao  facer  ate  que  ouvio 
como  dom  Christovam  tinha  tomado  a  serra  Oati  da  provincia  de 
Cemen,  nem  estava  tam  longe  que  nam  pudera  chegar  a  juntarse 
com  dom  Christovam  em  menos  de  hum  mes;  mas  por  medo  de 
alguns  mouros,  que  estavam  no  meio,  o  nam  fez,  e  quando  veio, 
tracia  tam  pouca  gente,  como  a  cima  dissemos,  e  depois  de  se  jun- 
tar  naquella  serra  com  os  Portugueses  e  estar  *tanto  tempo,  nam  f.139,, 
pode  juntar  mais  que  8000  de  pe  e  quinhentos  de  cavallo  e  taes 
que  nam  se  ouvera  de  atrever  a  pelejar  com  o  Granh,  se  os  Por- 
tugueses  nam  o  animaram  e  importunaram  tanto,  e  ainda  o  dia  an- 
tes  da  batalha  estavam  pera  fugir,  por  ver  que  Ihes  faltava  o  ca- 
pitam,  que  o  Granh  matou  a  trai^am. 

Tambem  foi  mera  imagina^am  que  o  Preste  Joam,  quando  ouvio 
o  caso  de  dom  Christovam,  ficesse  contra  o  Granh  os  feros  e  amia- 
Qas  que  o  Author  diz ;  nem  teve  por  cousa  tam  de  pajuelas  a  morte 
de  dom  Christovam  e  mais  Portugueses  que  se  correse  de  mostrar 
a  grande  triste^a  e  mortal  sentimento  que  Ihe  causou  esta  nova ;  e  com 
muyta  re^am  porque,  demais  de  que  Ihe  ficavam  muy  poucas  espe- 
ran^as  de  poder  recuperar  seu  imperio,  toda  boa  re^am  e  termo  de 
agardecimento  pedia  que  mostrase  triste^a  e  sentimento,  pois  hum  se- 
nhor  tam  grande  como  dom  Christovam  da  Gama  viera  com  os  Por- 
tugueses  ao  socorrer  em  tempo  de  tanta  necessidade  e,  depois  de 
ter  feito  tantas  maravilhas  pelejando  tam  valerosamente,  como  te- 
mos  visto,  derramou  seu  sangue  e  acabou  a  vida  em  seu  servigo. 
Nem  o  Emperador  com  os  seus  deo  de  subito  em  os  Mouros,  achan- 
doos  em  dan^as  e  balhos  poUa  victoria  passada,  como  elle  diz,  pa- 
recendolhe  que  avia  pouco  que  a  tivera,  sendo  assi  que  eram  ja 
passados  seis  meses ;  e  o  Granh  nam  estava  no  lugar  onde  se  deo 


LIVRO   I,  CAPITQLO    XXXV.  337 

a  batalha,  senam  muyto  longe  em  Dambia,  nem  desapercebido :  que 
bem  sabia  que  o  Emperador  hia  sobre  elle  e  alguns  dias  antes  da 
batalha  tiveram  escaramu^as.  Nem  o  Emperador  tinha  por  armas 
pelles  de  elephante,  que  elle  nam  usava  tal  cousa,  nem  ha  quem 
diga  agora  que  entrase  na  batalha,  senam  que  ficava  na  retaguarda, 
e  ainda  que  entrara,  era  grande  encarecimento  dicer  que  tratou  aos 
mouros  de  maneira  que  nam  deixou  algum  que  nam  morrese  a  suas 
maos  ou  nam  fugisse  dellas,  senSlo  he  que  entenda  por  suas  maos 
as  dos  Portugneses  e  as  dos  demais  de  seu  exercito;  nem  morre- 
ram  tantos  mouros  como  diz,  por  que  muytos  escaparam  e  se  fo- 
ram  com  a  molher  do  Granh. 


C.  Bbccari.  Rer,  Aeik,  Seript»  oce,  ined,  —  IL  4J 


CAPITULO   XXXVI. 

De  algumas  cousas  que  sucederam  depois  que  Preste 
venceo  ao  Gr&nh,  e  das  exequias  que  fez  a  dom  Chri- 
stovam  e  aos  demais  Portugueses  que  morreram. 


Como  o  Emperador  teve  por  sua  a  victona,  mandou  logo  armar      »•  ciaudius  ad  la- 

^  ^  cum  DaxnbiA  instruit 

suas  tendas  a  longo  da  gram  lagoa  de  Dambia,  que  estava  perto,  em  castra  ibique  a  duce 
quanto  os  soldados  seguiam  o  alcance  dos  Mouros  e  recolhiam  os  dis-  ^J^^^*^*^!  q^^! 
pojos  do  campo,  que  nam  foram  poucos,  e  entrando  nellas  com  grandes  sed  suam  sororem 
f.  140.  musicas  *e  festas  muyto  contente  por  tam  bom  sucesso,  so  Ihe  dava  iungere  recusat,  quia 
cuidado  nam  saber  que  fora  do  Granh,  que,  ainda  que  Ihe  afiirmavao  *®*®  QrAnh  lam  de- 

^  .  mortuo    caput     ab- 

que  nam  podia  escapar  com  vida,  porque  o  levaram  ferido  de  morte,  scidit. 
com  tudo  isso  nam  se  quietava,  por  ser  tam  grande  enemigo ;  mas 
quis  Deos  darlhe  perfeita  alegria,  porque  dalli  a  pouco  veio  hum  seu 
capitam,  que  se  chamava  Calid,  correndo  em  seu  cavallo  e  facendo 
grande  festa,  porque  tracia  a  cabe^a  do  Granh,  que  era  bem  conhecida 
e,  pondoa  diante  do  Emperador,  Ihe  pidio  cumprise  a  palavra  que 
tinha  dada  que  era  que  a  qualquer  Ethiope  que  matase  ao  Granh, 
o  casaria  com  sua  irmaa,  e  se  fosse  Portugues,  Ihe  faria  muyto  gran- 
des  merces.  Nam  faltou  quem  dissese  que  elle  o  nam  matara,  se- 
nam  que  o  [a]chara  morto,  quando  Ihe  cortou  a  cabe^a ;  poUo  que 
o  Emperador  mandou  facer  diligencia  sobre  isso,  e  acharam  que  os 
Portugueses  o  firiram,  nem  outros  tinham  espingardas  mais  que 
elles,  e  assi,  ainda  que  o  capitam  affirmou  que  elle  o  matara,  que 
estava  vivo  quando  elle  chegou  a  Ihe  cortar  a  cabega,  e  se  oflFereceo 
a  provar  isto,  julgaram  que  demais  de  aver  muytos  que  affirmavam 


340  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

que  o  achara  morto,  ainda  que  provara  o  que  pretendia,   nam  ba- 

stava  pera  o  Emperador  ficar  obrigado  a  Ihe  dar  sua  irmaa,  pois 

os  Portugueses  o  firiram  de  morte  e  elle  o  achara  caido,  que  de  ou- 

tra  maneira  nam  o  ouvera  de  alcan^ar.  PoUo  que  o  Emperador  nam 

Ihe  deo  sua  irmaa,  mas  remuneroulhe  com  outras  cousas  o  presente, 

nem  aos  Portugueses  fez  as  merces  prometidas,  porque  nam  se  souve 

qual  delles  o  firira,  que,  se  se  pudera  provar,  nam  faltara  com  sua 

palavra. 

2. 50  Lusitani,  qui  Mandou  logo  por  a  cabe^a  em  huma  lan^a  cumprida  pera  que 

rcvcrttmtur^in^^-  ^  visem  todos  os  do  arrayal    e  depois  a  imbiou  a  Emperatriz  sua 

mto,   indeque  cum  mav,  que  ficara  na  serra  de  Cemen,   e  que  dalli  a  levasem  pollas 

Imperatrice  ad  Clau- 

dium  8e  conferunt.  outras  terras,  peraque  a  gente  nam  pusese  duvida  em  ser  morto,  e 
o^sA^^iaere-  ^^^^  ^  Emperatriz  vio  a  cabecja,  deo  muytas  gra^as  a  Deos,  que 
gna  circumfertur.       librara  seu  imperio  das  maos  de  tam  grande  e  cruel  tyrano  e  Ihe 

deixara  ver  com  os  olhos  o  castigo  que  merecia  a  inhumanidade 
que  usara  com  dom  Christovam  da  Gama,  a  quem  ella  amava  como 
a  filho,  e  assi  com  grande  alegria  e  contentamento  mandou  facer 
muytas  festas,  a  que  ajudaram  os  cinquenta  Portugueses  que  foram 
a  Ma^ua,  porque,  nam  achando  embarcac^oes  pera  ir  a  India,  e  sa- 
bendo  do  recado  que  Ihes  mandara  o  Emperador,  se  tomaram  e 
tinham  ja  chegado  onde  estava  a  Emperatriz,  a  qual,  como  festejou 
alguns  dias  a  victoria,  se  foi  pera  onde  estava  seu  filho,  levando 
comsigo  os  Portugueses,  e  receberam  a  todos  com  grande  appa- 
rato  e  alvoro^o,  que  ate  entam  nam  se  ocupavam  senam  em  mu- 
sicas  e  festas,  por  se  verem  libres  de  tam  grande  tyrania  e  duro 
cativeiro.  Aos  Portugueses  tambem  recebeo  o  Emperador  com  muyta 
benignidade  e  mostras  de  amor,  dandose  por  muy  obrigado  ao  que 
por  elle  tinham  feito,  e  mandou  que  os  provesem  abundantemente 
de  tudo  o  necessario. 
3.    Claudius    ve-  *A  este  tempo  veio  recado  ao  Emperador  de  hum  senhor  grande,  f.i^o.v. 

niam  dat  ErAg  Defifa-  ,  t^a-t-x  ^  i-i-ktA-vTAT 

nA  aliisque  ducibus,   ^^®  ^^  chamava  Eraz  Degana,  pay  do  Bahar  Nagax  Isaac,  que  avia 

qui    partes     Grinh  niuyto  que  se  lancara  com  o  Granh,    por  Ihe  parecer  que  ja  nam 

fuerant  sequuti.   Ex"^^  ^  r  r-  ^        j 

iUis  unus,  qui  parti-  era  possivel  poderse  recuperar  o  imperio  e  estimavaho  tanto  o 
^ristot^^ri  de^Ga-  ^^"^^  V^^  ^  tinha  feito  ayo  de  seu  filho  e  capitam  de  muyta  gente, 
ma,  a  Lusitanis  in-  e  escapando  da  batalha  com  o  filho  do  Granh,  como  soube  que  o 

pay  era  morto,  mandou  dicer  ao  Emperador  que  se  Ihe  quisese 
perdoar,  Ihe  entregaria  o  filho  do  mouro ;  mas  ainda  que  era  cousa 
de  tanta  importancia  aver  aquelle  mo^o  as  maos,  nam  queria  o  Em- 
perador  dar  o  perdam,  pollo  sentimento  gfrande  e  justa  indigna^am 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXXVI.  341 

que  tinha  contra  elle,  por  se  ter  lan^ado  da  vanda  dos  mouros  e 
pelejado  muyto  tempo  contra  os  christaos.  Mas  depois,  por  inter- 
cessam  de  seu  filho  Isaac  (a  que  o  Emperador  nam  negava  nada, 
porque  Ihe  trouxera  os  Portugueses),  Ihe  perdoou  e  mandou  segnro; 
e  assi  veio  logo  tracendo  comsigo  o  mancebo,  a  quem  o  Empera- 
dor  mandou  facer  bom  tratamento,  mas  que  o  guardasem  com 
diligencia. 

Ouvindo  outro  grande  capitam  do  mouro  como  o  Emperadoi 
perdoara  a  Eraz  Degana,  metio  tambem  muytos  intercessores  pera 
que  Ihe  perdoase  e  dese  seguro ;  o  que  o  Emperador  concedeo  por 
alguns  respeitos,  ainda  que  se  tinha  feito  mouro  e  destruido  muyto 
a  terra,  mas  depois  que  entrou  no  arrayal,  soube  o  Emperador  que 
elle  fora  hum  dos  que  prenderam  a  dom  Christovam  e  desejou 
muyto  do  matar,  mas  por  Ihe  ter  dado  seguro,  o  deixava  de  facer. 
Os  Portugueses  desejavam  isto  muyto  mais,  porque  o  conheceram 
logo,  e  tinham  grande  paixam  poUo  verem  cada  dia  diante  de  seus 
olhos,  e  assi  se  foram  ao  Emperador  e  Ihe  pidiram  encarecida- 
mente  o  mandase  matar,  pois  o  merecia  tanto ;  mas  respondeo  que 
nam  podia  facer  tal  cousa,  por  Ihe  ter  dado  seguro  e  procurou  dos 
satisfacer  com  boas  palavras,  em  que  entenderam  claramente,  que 
nam  Ihe  pesava  se  elles  o  matasem ;  e  assi  foram  dous  a  sua  tenda 
e  o  mataram  a  as  punhaladas ;  do  que  nam  Ihe  pesou  ao  Empera- 
dor,  nem  ouve  quem  Ihe  falase  em  isso.  A  alguns  tambem  mandou 
matar  o  Emperador  dos  que  andavam  com  o  mouro,  mas  depois  d[e]o 
perdam  geral,  porque  se  a  todos  os  que  mereciam  a  morte  ouvera 
de  matar,  poucos,  ao  menos  dos  grandes,  Ihe  ficaram  em  todo  seu 
imperio. 

Esteve  o  Emperador  em  aquelle  lugar  dous  meses,  em  quanto      ^.  Ezacto  iam  pro- 
Ihe  entraram  alinins  homens  crandes,  que  andavam  com  o  mouro,  Pf  hicme,  ciaudius, 

o  o  '   ^  plusquam  600  mona- 

e  depois  passou  tres  legoas  mais  adiante  a  huma  cidade,  que  estava  chis  undequaque  col- 

_^       n  1  1  .  ji    ■»  ^        lectis,  iusta  solemnia 

perto  da  mesma  lagoa,   por  ser  lugar  mais  acommodado  pera  ter  ^^^^^  memoriae 
o  invemo  que  ja  se  chegava,  e  repartindo  a  gente  de  guerra  pol-  Cliristophori  persol- 

vit.     Inde,     eoUecto 

los  lugares  aroda,   deo   hum  muyto   perto   aos   Portugueses,   onde  exercitu,  per  omnes 
foram  providos  abundantemente  do  necessario,  e  cada  dia  ivam  ao  diTOurrit^casque  buo 
pa^o,  porque  o  Emperador  folgava  muyto  com   isso.  E  na  fim  de  impcrio  denuo  subii- 
agosto,  no  mesmo  dia  que  morreo  dom  Christovam  da  Gama,  deter- 
minou  de  Ihe  facer  humas  solennes  exequias  como  elles  acostumao 
f.  141.    quando  se  cumpre  o  anno;  e  pera  isso  mandou  lancpar  pregam  *pol- 
las  terras   alguns  dias  antes,   que  todos  os  pobres  que   ouvese  se 


342  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

juntasem  alli  pera  aquelle  dia,  e  vieram  mais  de  seis  mil  e  arma- 
ramlhes  muytas  tendas  no  campo,  onde  por  mandado  do  Empera- 
dor  se  Ihes  deo  esplendidamente  de  comer  e  juntamente  de  vestir. 
Fez  tambem  que  viesem  seiscentos  frades  ou  mais  e  ficeram  com 
muyta  solennidade  seus  ofiicios  na  forma  que  elles  acostumam  e  de- 
clararemos  no  2°  libro;  e  mandoulhes  dar  grossas  esmolas.  E  como 
passou  o  inverno  (que,  como  temos  dito,  se  acaba  ordinariamente 
por  todo  setembro),  mandou  juntar  a  gente  de  g^erra,  que  ja  eram 
como  dous  mil  de  cavallo  e  vinte  mil  de  pe,  e  com  elles  foi  cor- 
rendo  as  terras  que  os  mouros  Ihe  tinham  conquistado,  pera  as  aca- 
bar  de  redducir  e  quietar ;  em  o  que  gastou  muyto  tempo  com  nam 
pouco  trabalho,  porque  os  mouros,  que  ainda  em  ellas  estavam, 
eram  muytos. 
5,  Referuntur  alia  Algumas   destas   cousas   conta  frey   Luis  de  Urreta   pag.  363 

commenta  Urretae  et 

ex  dictis  refutantur.  por  modo   differente,   pollo  ser  muyto  e  de  tudo   contraria  a  ver- 

dade  a  informa^am  que  sobre  esta  materia  teve ;  e  assi  sera  neces- 
saxio  referir  suas  mesmas  palavras  que  sSlo  as  que  se  vam  conti- 
nuando  com  as  que  no  capitulo  precedente  pusimos,  desta  maneira : 
€  No  quedo  contento  com  este  castigo  o  Preste  Juan,  ni  sati- 
€  sfi^o  el  desseo  de  su  vengan^a  con  las  muertes  de  aquellos  mo- 
«  ros,  sino  que  como  un  rayo  y  con  una  brave^a  que  salia  de  madre, 
«  acordandose  de  la  muerte  de  su  hermano,  determino  de  una  vez 
«  quitar  tan  penoso  y  enojoso  enemigo  de  sobre  sus  espaldas,  y 
«  assi,  entrando  por  el  reyno  de  Adel,  no  dexo  lugar  ni  villa  que 
«  no  quemase  y  derribase  y  fueron  tantos  los  moros  que  murieron 
«  a  manos  de  los  christianos  Ethiopes,  que  se  pudo  decir  por  via 
«  de  encarecimiento  gracioso :  Que  seno  infernal  podia  bastar  a  re- 
«  ceber  tantos  diabolos  como  alla  entravan  ?  Basta  que  siendo  un 
«  reyno  muy  poblado  y  de  infinita  gente  y  tan  grande  que  tenia 
«  trecientas  leguas  de  circuito,  apenas  quedaron  vivas  cuatro  mil 
«  personas.  Derribo  fortale^as,  hi^o  otras  de  nuevo  en  los  passos 
«  mas  importantes  y,  trayendo  gente  de  la  Ethiopia  para  que  po- 
«  blasen  aquel  reyno,  dio  los  puertos  a  los  Portugueses  con  sus  for- 
«  tale^as  para  que  ellos  los  guardasen  de  los  moros  de  la  Arabia 
«  y  se  pudiesen  recoger  las  armadas  de  Portugal,  quando  van  y 
«  vienen  de  la  India.  Este  fin  tuvieron  las  guerras  del  Rey  de  Adel  » . 
Isto  diz  o  Author ;  tudo  porem  he  mera  fic^am  tra<;ada  no 
entendimento  daquelle  que  o  informou;  por  que  o  emperador 
Claudio  nam   somente   nam   fez   estas  cousas  no   *reyno   de   Adel,  f.i^i.v. 


LIVRO  I,   CAPITULO   XXXVI.  343 

mas  nem  em  toda  sua  vida  entrou  nelle,  nem  ficaram  os  mouros  com 
tam  grande  perda  com  o  desbarate  e  morte  do  Granh,  que  nam  se 
ouveram  de  defender  muyto  bem,  se  la  fora.  Antes  o  mouro,  que 
sucedeo  ao  Granh  no  cargo  de  Guazir,  scilicet  governador,  veio 
dalli  a  alguns  annos  com  exercito  contra  o  mesmo  emperador  Clau- 
dio,  e  dandolhe  batalha,  o  desbaratou  e  matou  nam  muyto  longe 
de  onde  elle  tinha  sua  corte,  como  dicem  todos  e  conta  sua  historia, 
que  referiremos  no  livro  3°. 

Com  tudo  me  parece  muy  provavel  que  nam  informaram  a 
frey  Luis  de  Urreta  desta  maneira,  senam  que  se  confundio  com 
os  papeis  de  Joam  Balthesar,  de  onde  elle  mesmo  affirma  que  ti- 
rava,  e  que  estavam  muyto  embaracjados ;  e  assi  atribuio  ao  empe- 
rador  Claudio  o  que  seu  pay  David  fez  em  Adel  (o  que  veremos  em 
sua  historia  que  se  pora  no  principio  do  3**  livro),  e  acrecentou 
muyto  mais  assi  como  a  outras  cousas  que  Ihe  disse  Joam  Balthe- 
sar,  o  que  elle  mesmo  testificou  depois  em  huma  peti^am  que  deo 
a  Magestade  del  Rey  dom  Phelippe,  queixandose  que  acrecenta- 
ram  quatro  veces  mais  do  que  elle  dissera;  cuio  treslado  vio  o 
padre  Fernam  Guerreiro  de  nossa  Companhia,  como  elle  affirma 
fol.  268  da  Addigam,  que  fez  a  Rela^am  annua  de  607  e  608. 


I 

L 


j^^ 


CAPITULO   XXXVII. 

De  como  o  emperador  Claudio  escluio  ao  patriarcha 
dom  Joam  Bermudez  e  fez  seu  asento  no  reyno 
de  6y6. 


Depois  que  o  emperador  Claudio,  e  por  outro  nome  Atanaf  «•  Rebus  imperH 
Qagued,  teve  redducidas  a  sua  obediencia  as  terras  que  tomaram  os  fidem  iamdiu  datam 
mouros  e  pacificado  seu  imperio,  vendose  ja  libre  das  angiistias  e  P*tti»«ba«  Bermu- 
temores,  com  que  sempre  andava  fugindo  de  huma  parte  pera  ou-  Romani  obedientiae 

j  j  j'jT>.-itToii        Bubmisaurum    prae- 

tra,    quando   ouvera  de   ser  mas   agardecido  a  Deos   N.  S.  poUas  ^^  renuit  et  alium 
merces  crandes  que  de  sua  misericordiosa  mao  tinha  recebidas  e  su-  «pwcopum  ab  Ale- 

^  zandnno   Patriarcha 

getarse  de  todo  cora^am  a  s.**  Igreja  romana,  siguindo  a  doctrina  ezpoacit. 
que  insinava  o  santo  Patriarcha  dom  Joam  Bermudez,  a  quem  avia  tres 
annos  que  por  tal  tinha  recibido  e  entregado  as  terras  do  Patriar- 
chado,  que  sam  muyto  grandes,  entam  mostrou  quam  longe  estava 
desta  obediencia  e  de  seguir  esta  doctrina  e  nam  receber  de  outra 
parte  Patriarcha  senam  de  Roma,  como  elle  mesmo  escreveo  al  rey 
de  Portugal  dom  Joam  3®,  que  Ihe  tinha  mandado  o  emperador 
f.  142.  David  seu  pay;  *porque  fez  tracer  outro  Patriarcha  de  Alexandria, 
pera  escluir  o  que  tinha  de  Roma  e  no  mesmo  tempo  se  concer- 
taram  os  frades  de  hum  mosteiro  grande  pera  infamar  a  dom  Joam 
Bermudez,  cuja  santidade  de  vida  Ihes  era  muyto  molesta ;  e  estando 
elle  na  corte,  tomaram  algiimas  pe^as  de  prata  da  igreja  de  seu 
mosteiro  e,  entrando  na  casa  do  Patriarcha,  que  era  perto,  tiveram 
modo  pera  as  meter  secretamente  entre  sua  roupa,  e  depois  se  fo- 
ram  ao  Emperador  dicendo  que  faltavam  aquellas  pe^as  da  igreja 

C.  Bbccaju.  X0r.  Aetk.  ScripU  oce,  ined»  —  IL  44 


346  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

e  que  ningnem  as  podia  ter  tomado  senam  o  Patriarcha.  Mandou 
entam  o  Emperador  que  o  chamasem  e  disselhe  diante  dos  frades 
que  ouvise  o  que  deciam,  e  elles  sem  nenhum  temor  de  Deos  tor- 
naram  a  affirmar  que  faltavam  aquellas  pe^as  e  que  ninguem  as 
podia  tomar  senam  elle.  Ficou  muyto  maravilhado  o  Patriarcha  e 
disse  que  nem  por  pensamento  Ihe  passara  nunca  tal  cousa,  nem 
sabia  como  se  atreviam  a  cuidar  aquello  delle.  Pidiram  os  frades 
ao  Emperador  que  mandase  ver  sua  casa  e  preguntar  seus  criados, 
pera  que  se  soubese  a  verdade;  e  deolhe  pouco  disso  ao  Patriar- 
cha,  como  estava  innocente;  e  assi  foram  alguns  criados  do  Em- 
perador  com  os  frades  e  olhando  as  cousas  da  casa,  vieram  a  dar 
com  as  pe^as  entre  a  roupa,  e  levaram  as  ao  Emperador.  Disse 
entam  o  Patriarcha  que  aquello  nam  podia  ser  senam  maldade  de 
alguns  que  Ihe  queriam  mal,  porque  elle  nunca  tomara  taes  pegas 
nem  tinha  pera  que.  Bem  entendeo  o  Emperador  que  o  Patriarcha 
nam  avia  de  facer  tal  cousa,  mas  com  tudo  isso  estranhou  muyto 
o  caso ;  do  que  tomaram  outros  motivo  pera  falar  muyto  largo. 
a.  Bermudez,  pro-  Vendo  o  Patriarcha  estas  cousas  e  que  nam  avia  que  esperar 

brosacalumniaamo-    j-i^j  j  j  j-j.* 

nachis  conscioCiau-  ^^  Emperador,  nem  dos  seus  acerca  de  sua  redui^am,  determmou 
dio,  ezpetitus,  terris  ^e  se  tornar  pera  India  e  dicem   alcfuns  que  escomungou  ao  Em- 

Aethiopiae  mala  pre-  o  x  « 

catur  et  in  indias  re-  perador   em  sua   presen^a  e  lan^ou  sua   maldi^ao  a  as   terras  por 
vertitur.  onde  passou,   excepto  ao  reyno  de  Tigre,   que  affirmam   deixou  a 

rogo  de  alguns  Portugneses  que  o  acompanhavam,  que  por  terem 
grande  conceito  de  sua  santidade  ja  davam  por  perdidas  as  terras 
que  elle  amaldi^oava,  e  assi  Ihe  pidiram  muyto  que'deixase  a  Tigre, 
porque,  se  em  algum  tempo  viesem  Portugueses,  achasem  onde  po- 
derem  entrar;  e  por  isto  o  deixou.  E  decia  que  via  entrar  em  as  terras 
do  Emperador  humas  formigas  pretas  que  a[s]  destruiam,  que  parece 
eram  huns  gentios  muyto  pretos  que  chamam  Galas,  que  pouco  depois 
se  foram  chegando  e  facendo  algumas  entradas  com  grande  dano  da 
terra,  e  continuaram  tanto  isto  que  vieram  a  destruir  todas  as  terras 
a  que  o  Patriarcha  lan^ou  maldi^am,  que  sam  tres  ou  4  reynos  e  algu- 
mas  provincias,  as  milhores  que  o  Emperador  tinha,  e  oje  sam  senho- 
res  absolutos  delles,  sem  aver  quem  os  possa  tirar  de  suas  maos,  *e  f.i^z.v. 
ainda  no  que  fica  dam  sempre  asaltos,  matando  muyta  gente  e  levando 
fato  sem  conto.  E  se  todos  se  juntaram  e  vieram  unidos,  nem  o  Em- 
perador  Ihes  pudera  facer  rosto ;  mas,  por  nam  terem  Rey  (como  ja  dis- 
semos  no  cap.  1°),  nunca  se  unem,  antes  os  que  sam  de  huma  casta 
ou  familia  pelejam  muytas  veces  com  os  de  outra,  permitindoo  assi 


i 


LIVRO  I,    CAPITULO    XXXVII.  347 

Deos  N.  Senhor,  pera  que  nam  acavem  de  destruir  esta  tam  an- 
tigna  christandade,  que,  ainda  que  inficionada  com  muytos  erros, 
sempre  ouve  alguns  bons  que  os  condenasem  e  chorasem,  pidindo 
ao  Senhor  misericordia,  e  oje  mais  que  nunca,  pello  que  espero  que 
a  tera  delles  e  Ihes  acudira.  Tudo  isto  que  referi  do  patriarcha 
dom  Joam  Bermudez  dicem  que  he  cousa  muyto  certa,  e  me  con- 
taram  alguns  filhos  dos  Portugueses,  que  entraram  com  o  mesmo 
Patriarcha,  que  o  ouviram  muytas  veces  a  seus  pays. 

Em  o  mesmo  tempo  que  passavam   estas  cous^is   entre  o  Pa-      3«  Claudius  in  lo- 

^  *^    ^  co  dicto  2df  BAr  re- 

triarcha  e  o  Emperador,  fez  elle  seu  asento  no  reyno  de  Oye,  por  ^  (^^  sedem  regni 
ser  terra   muyto  forte  e  com   que  mais  folgava;   e  pondo  seu  ar-  conatituit,  ibique  ma- 

gnam  urbem  ez  par- 

rayal  em  hum  fermoso  campo,   perto  de  huma  serra  que  chamam  viscaais  moreaeiio- 
Zef  Bar,  se  edificou  logo  huma  jyrande  cidade,  mas  nam  tam  bem  ^l"^?.^^.  il'.«-iJ^! 

<^  o  '  i2  annos   mansit  et 

aruada  [sicly  nem  do  lustre  e  fermosura  que  as  de  Europa,  onde  ha  casas  tandem  a  mahume- 

_         ,  .  ,  .,,  dano    duce    Nur    in 

tam  grandes   de   cantena,   pa^os  tam   sumptuosos  de   maravilhosa  praelio     interfectus 

tra^a  e  architectura,  senam  de  tam  differentes  edificios  que  a  muy-  **** 

tos  delles  com  mais  re^am  se  Ihe   podia  dar  nome  de  cavanas  de 

pastores  que  de  casas  de  corte  de  Emperador ;  porque  eram  redon- 

das,   muyto   estreitas  e  baixas  e  em   lug^ar   de   paredes   quaesquer 

paos  toscos  postos  em  pe  e  acafelados  por  dentro  e  fora  com  lama 

e  cubertas  de  palha.  Nem  as  casas  dos  grandes  se  differenciavam 

destas  mais  que  en  serem  maiores  e  terem  as  paredes  de  pedra  e 

barro  e  no  alto  milhor  madeira  e  outras  nam  serem  redondas  se- 

nam  cumpridas,  porem  todas  terreas.   O  mais  a  que  chegou  a  po- 

licia  e  grande^a  do  Emperador  foi  a  facer   huma  casa  sobardada, 

mas  bem  triste  e  alhea  de  pessoa  imperial.  A  esta  chamaram  Gamb, 

quc  este  nome  dam  a  toda  casa  sobardada,  e  a  redonda,  que  o  nam  he, 

Beit,  e  se  for  cumprida  e  terrea,   Qacala.  Em  esta   cidade   esteve 

o  emperador  Claudio  casi  de  ordinario  alguns  12  ou  trece  annos,  e 

no  fim  delles  veio  com  gente  hum  mouro  de  Adel,  que  se  chamava 

Nur,  e  o  matou  em  batalha,  como  tocamos  no  fim  do  cap.  prece- 

dente  e  declararemos  no  3°  livro,  e  por  nam  ter  filhos  Ihe  sucedeo 

no  imperio  hum  seu  irmSlo,  que  se  chamava  Minas,  o  qual  mudou 

a  corte  daquella  cidade,  e  assi  logo  se  foi  diminuindo,  e  depois  to- 

maram  todo  aquelle  reyno  os  Galas,  e  assi  ha  muytos  annos  que  o 

asento   daquella   cidade  esta  tam   deserto,  que  nem  vestigios  della 

aparecem. 


TAB.  II. 


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EXEMPLAR  SCRIPTIONIS  II  LIBRI  ALIENA  MANU  TRANSCRIPTI. 


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LIVRO  II 

DA  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

EM  QUE  SE  TRATA  DA  f6  QUE  PROFESSAO  O  PRE- 
STE  JOAO  E  SEUS  VASSALOS,  DOS  RITOS  E  CE- 
REMONIAS  ECCLESIASTICAS  QUE  USAM  COM 
OUTRAS  COUSAS  TOCANTES  A  ELLAS. 


CAPITULO  I. 

Do  principio  que  teve  a  f6  e  religiao  christaa 

em  Ethiopia. 

Muito  se  prezao  os  vassalos  do  Preste  Joao  da  nobreza  e  an-      i.iuxulibrosaxu- 
ticfuidade  de  seus  Emperadores  que  tem  por  tao  sem  duvida  proce-  °*i**«>»  Aethiopes  fi- 

°  iT  ^  jT  x-  dem  chmtianam  am- 

derem  da  Salamao,  que  nao  Ihes  parece   pode  nisso  aver  contro-  piezati  sunt  tempore 

n  t.  «j.   1        o   j  •        •        1*  reginae  Candacis. 

veisia  aJgnma,  como  dissemos  no  capitulo  2  do  pnmeiro  livro,  e 
assim  na  nobreza  de  sua  descendencia  e  antiguidade  os  querem  an 
tepor  a  todos  os  Reis  do  mundo.  Mas  nao  menos  se  honrrao  por 
terem  tambem  por  cousa  certa  que  seu  imperio  foj  o  primeiro  que 
publica  e  universalmente  recebeo  a  santa  fe  de  Christo  Nosso  Se- 
nhor  sem  as  contradi^oes  e  trabalhos  que  ouve  em  outros  reinos, 
antes  que  se  pudesse  acabar  de  introduzir;  o  que  elles  contao  em 
seus  livros  por  estas  palavras: 

€  Antes  que  a  rainha  Sabaa  fosse  a  Hierusalem  a  ouvir  a  sa- 

«  bedoria  de  Salamao,  todos  os  de  Ethiopia   erao  gentios  e  ado- 

f.i43»v.   «  ravao  differentes  idolos;  mas  quando  ella  *tomou  de  Hierusalem, 


350  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

<  Ihes  trouxe  a  Historia  do  Genesis  e  estiverao  na  lei  dos  Judeus 
«  ate  a  vinda  de  Christo,  soieitandose  a  seus  ritos  e  ceremonias  e 
«  guardando  os  mandamentos  de  Deos.  Depois  a  causa  de  serem 
«  christaos  foi  a  ida  do  eunuco  da  rainha  Candasse  a  Jerusalem 
«  a  adorar  na  festa  da  Pascoa,  porque  os  gentios,  que  receberao  a 
«  lei  dos  Judeus,  hiao  a  Pascoa  a  Jerusalem,  por  nao  se  Ihes  ser 
«  licito  sacrificar  em  sua  terra,  senao  no  luguar  onde  foi  invocado 
«  o  nome  de  Deos.  Por  esta  rezao  pois  foj  o  eunuco  da  rainha  Can- 
«  dasse  de  Ethiopia  a  Jerusalem  a  fazer  a  festa  da  Pascoa  e  tor- 
«  nandose,  o  anio  do  Senhor  falou  a  Phelipe  dizendolhe :  Levantate 
«  e  vaj  pera  a  banda  do  meio  dia  ao  caminho  que  dece  de  Jeru- 
«  salem  a  Gaza  a  deserta.  Elle  foj  la  e  achou  hum  Ethiope  eunuco 
«  da  rainha  Candace  de  Ethiopia,  que  era  thesoureiro  de  todas 
«  suas  riquezas  e  viera  a  adorar  a  Jerusalem,  donde  tornava  pera 
«  sua  casa  em  hum  carro,  e  chegandose  Phelipe  ao  carro,  ouvio  que 
«  lia  huma  profesia  de  Isaias  e  perguhtoulhe  se  entendia  o  que  lia. 
«  Respondeo  que  se  alguem  Iho  nao  ensinasse,  como  podia  enten- 
«  der[?J,  e  rogou  a  Phelipe  que  subisse  no  carro ;  o  que  elle  fes  e, 
«  tomando  ocasiao  do  que  pergnntou  sobre  aquella  profesia,  Ihe 
«  pregou  a  Jesu  Christo  e  o  converteo  e,  informandoo  nas  cousas 
«  da  fe,  o  baptizou,  e  logo  o  Spirito  levou  a  Phelipe  e  nao  o  vio 
«  mais  o  eunuco;  o  qual,  prosegiiindo  seu  caminho  mui  alegre  e 
«  contente  do  que  Ihe  tinha  soccedido,  chegou  a  Ethiopia  e  a  casa 
«  de  sua  senhora  e,  contando  esta  historia,  crerao  no  Evangelho  da 
«  gra^a  de  Jesu  Christo  ». 
3.  Opiniones  SS.  Ate  qui  sao  palavras  de  hum  livro  muito  antigo,  que  se  guarda 

«f^if,^*- *?,???,^^!^  ria  igreja  de  Agcum   do  reino    de  Tigre,   onde  a  rainha   Candace 

ram  circa   eunucum  o     j  ot  o      » 

Candacis.  teve  seu  asento,  e  dizem  que  ella  fes  edificar  aquella  igreja  e  que 

foj  a  primeira  e  mais  sumptuosa  que  nunca  ouve  em  Ethiopia;  o 
que  mostrao  bem  suas  *ruinas,  como  declaramos  compridamente  no  f.  144. 
capitulo  22  do  primeiro  livro.  Mas  hase  de  advertir  que  esta  Rainha, 
que  nos  chamamos  Candace,  os  de  Ethiopia  chamao  Handeke,  mas 
do  nome  proprio  de  seu  criado  nao  achei  quem  me  soubesse  dar 
noticia.  Tem  porem  todos  por  tradi^ao  muito  certa  que  era  eunuco 
e  o  nome  que  Ihe  da  aquelle  livro  antigo,  que  conta  sua  historia 
e  o  mesmo  texto  dos  Actos  dos  Apostolos,  que  he  Heceii,  nenhuma 
outra  significa^ao  admitte  senao  eunuco.  Por  onde  o  que  affirma 
frei  Luis  de  Urreta  pag.  381,  que  os  Ethiopes  tem  e  tiverao  sem- 
pre  por  cousa  muito  certa,  que  este  santo  varao  nao  era  eunuco  se- 


i 


LIYRO  II,  CAPITULO  I.  351 

nao  perfeito  e  enteiro  de  todos  seus  membros,  foj  falta  de  infor- 
ma<;&o  e  pello  consiguinte  reprovou  sem  rezSo  a  opiniSio  de  sam  Hie- 
ronimo,  s.  Athanasio,  s.  Augfustinho  e  outros  doutores  que  ali  cita, 
que  affirmao  que  era  eunuco,  se  nesta  parte  (como  parece)  avemos 
de  dar  credito  aos  livros  de  Ethiopia  e  aos  letrados  della.  O  que 
►  o  converteo  foj  sam  Phelipe  diacono,  segundo  declarao  os  sagrados 

doutores,  tirando  Alberto  Magno,  que  tem  pera  si  que  foi  sam  Phe- 
lipe  apostolo. 

Outra  duvida  movem  os  Doutores  e  Santos  sobre  se  este  eu- 
nuco  era  gentio,  ou  ja  convertido  ao  judaismo,  quando  foj  a  Je- 
rusalem,  e  por  huma  e  outra  opiniao  cita  frei  Luis  de  Urreta  pag.  383 
muitos  e  graves  autores  e  segne  os  que  dizem  que  era  gentio;  mas 
os  de  Ethiopia  tem  por  cousa  muito  certa  que,  quando  este  eunuco 
foj  a  Jerusalem,  ja  era  convertido  ao  judaismo  e  dilo  claramente  o 
livro  de  sua  Historia,  pois,  como  assima  refirimos,  a  causa  por  que 
foj  a  Jerusalem  affirma  que  foj  porque  aos  gentios,  que  recebiao  a 
lei  de  Moises,  nao  Ihes  era  licito  sacrificar  em  sua  terra,  senao  no 
luguar  onde  foi  invocado  o  nome  de  Deos. 

Como  aquelle  livro  acaba  de  contar  o  que   temos  referido  do      3-  Historia  s.  Fm- 

mendi    iuxta   libros 
eunuco,  continua  desta  maneira:  c  Passados  muitos  annos  depois  disto  Aethiopum. 

i  f.i44,v.   «  veio  hum  mercador  de  *Tiro  com  dous  criados,  hum  chamado  Fre- 

c  menatos  e  outro  Sydracos,  e  adoecendo  o  mercador  morreo  perto  do 
«  mar  na  terra  de  Ethiopia;  pello  que  trouxerao  os  mancebos  a  el  Rei 
«  e  elle  folgou  muito  com  elles  e  mandcu  que  os  tivessem  juntos  com 
€  seus  filhos.  Elles  se  maravilhavao  muito  do  modo  da  gente  de 
<  Ethiopia  e  perguntavao  como  crerao  na  fe  de  Christo,  porque  os 
«  viao  fazer  oragao  e  adorar  a  santissima  Trindade  e  que  suas  mo- 
«  Iheres  traziao  sobre  suas  cabe^as  o  sinal  da  santa  cruz  e  davao 
«  muitas  gra^as  a  Deos  que  fizera  tam  grande  merce  aquella  gente, 
«  como  era  crer  sem  prega^ao  e  receber  a  fe  sem  Apostolo.  Esti- 
«  verao  em  quanto  viveo  aquelle  Rei  em  sua  casa  e  na  hora  da 
«  morte  os  forrou  e  deu  licenga  que  fossem  onde  quisessem ;  pello 
«  que  Sydracos  se  tornou  pera  sua  terra  de  Tyro  e  Fremenatos  foi 
«  ao  Patriarca  de  Alexandria,  deseiando  se  desse  remedio  a  sal- 
«  va^ao  dos  de  Ethiopia,  e  referiolhe  tudo  o  que  tinha  visto  e  como 
«  creiao  sem  ensino  dos  Apostolos.  O  Patriarca  se  alegrou  muito 
«  e  deu   gracjas  a  Deos   pella  misericordia   grande  que  Ihes   tinha 

*  «  feito  em  Ihes  manifestar  sua  santa  fe.   Depois  disse  a  Fremena- 

«  tos :    Vos  Ihe   sereis  pastor,   porque  a  vos   escolheo  e  alevantou 


352  HISTORIA  DE  ETHIQPIA 

«  Deos.  E  ordenandoo  sacerdote,  o  fez  bispo  de  Ethiopia;  e  tor- 
«  nando  a  ella  paptizou  seus  moradores  e  ordenou  muitos  sacer- 
«  dotes  e  diaconos  que  Ihe  aiudassem ;  e  de  todos  era  estimado  e 
«  venerado,  e  porque  Ihes  trouxe  pax,  o  chamarao  Abba  Salama 
«  (que  quer  dizer  Padre  de  pas,  ou  pacifico).  Sua  entrada  em  Ethio- 
«  pia  foj  no  tempo  que  reinavao  Abra  e  Asba  irmaos,  os  quais  re- 
«  ceberao  o  ensino  de  justi^a  como  a  terra  seca  a  chuva  do  ceo  ». 
4.  De  novem  san-  Isto  he  o  que  achei  naquelle  livro  do  principio  e  progresso  que 

ctis  monachis   iuxta   ^  ^,  i-    •*        1.   •  ^»  t-^i.-       •      t-  ^       i* 

eosdem  libros.  Com-  ^^^e  a  f e  e  religiao  chnstaa  em  Ethiopia.  E  em  outro  livro,  que  se 
menta  Urretae  brevi-  gruarda  na  mesma  icTeia  de  *Ai?cum  e  trata  da  rainha  Sabaa  e  dos  f.  145. 

ter  refutantur.  ^  6  &y  . 

Emperadores  que  Ihe  socederao,  se  dis  no  catalogo  delles,  que,  rei- 
nando  Amiamid  (que  foy  muito  depois  destes  dous  irmaos  Abra 
e  Asba)  entrarao  em  Ethiopia  muitos  Religiosos  santos  que  vierao 
de  Rum.  Alguns  por  esta  palavra  «  Rum  »  entendem  Roma,  outros 
affirmao  que  nao  quer  dizer  Roma,  senao  huma  terra  que  senhorea 
o  Turco  chamada  Rum,  e  della  vem  chamarem  aos  Turcos  Rumes, 
ainda  que,  estando  eu  cativo  entre  elles,  me  disserao  que  aos  que 
sao  Turcos  de  na^ao  nao  os  chamao  Rumes,  senao  aos  que  sam 
de  casta  christaos.  Mas  ainda  que  fossem  aquelles  religiosos  desta 
terra,  certo  he  que  aviao  de  obedecer  a  igreja  romana  e  ensinar 
sua  doutrina,  pois  erao  santos,  que  de  outra  maneira  nao  o  pude- 
rao  ser.  E  isso  nos  basta,  quando  nao  viessem  de  Roma.  Nove  de- 
stes,  cuios  nomes  posemos  no  cap.  5  do  primeiro  livro,  fizerao  seu 
assento  no  reino  de  Tigre,  onde  edificarao  muitasigrejas,  que  agora 
chamao  de  seus  nomes,  e  ainda  alguns  tem  pera  sy  que  sos  estes 
vierao  a  Ethiopia,  os  quais  fizerao  muitos  milagres,  com  que  os 
daquelle  reino  se  acabarao  de  converter ;  e  tenho  pera  mim,  pellas 
cousas  que  agora  contao,  que  entao  floreceo  muito  a  religiao  chri- 
staa  em  Ethiopia,  e  que  nao  somente  elles,  mas  tambem  muitos 
de  seus  discipolos  forao  santos,  e  que  sao  delles  muitos  corpos  de 
frades,  que  de  tempo  immemoravel  ategora  estao  inteiro[s]  na  pro- 
vincia  de  Bur  do  reino  de  Tigre ;  mas  depois  pello  trato  e  conver- 
sa<;ao  que  tinhao  com  os  Judeus,  que  ate  oje  sempre  ouve  em  Ethio- 
pia,  e  por  Ihes  virem  seus  prelados  de  Alexandria  inficionados  com 
erros,  se  Ihes  pegarao  tantos  que  quasi  em  todos  os  sacramentos 
e  misterios  de  nossa  santa  fee  os  tem,  como  iremos  vendo  pellos 
capitulos  adiante.  Por  onde  o  que  frei  Luis  de  Urreta  pretende  pro- 
var  por  todo  o  livro  2°  de  sua  Historia  Ethiopica,  que  o  Preste 
Joao  e  seus  vassalos  sempre  forao  mui  bons  catholicos  e  obedien- 


r 


LIVRO  II,   CAPITULO   I.  353 

tes  a  Igreja  Romana  e  que,  ainda  que  por  muito  tempo  ignorarao 
f.i45iv.  algnmas  ceremonias  della,  toda  via  *no  que  toca  a  fe  do  misterio 
da  santissima  Trindade  e  dos  14  artigos  e  dos  sacramentos,  sempre 
do  principio  da  igreia  ate  oje,  se  conservarao  em  toda  a  pureza  e 
sinceridade  da  mesma  maneira  que  se  cre  na  Igreja  catholica,  tudo 
he  fundado  em  falsa  informagao,  que,  como  elle  dis,  Ihe  deu  o  ethiope 
dom  Joao  Balthesar. 

Tambem  se  ha  de  advertir  que  o  que  o  Autor  affirma  no  fim 
do  cap.  I®  e  2®  do  segundo  livro,  que  os  Ethiopes  vassalos  do 
Preste  Joao  se  acharao  em  muitos  concilios,  que  ali  nomea,  prin- 
cipalmente  no  Florentino  em  tempo  do  papa  Eugenio  4®,  onde  dis 
que  em  nome  do  Preste  Joao  e  de  todo  seu  imperio  fizerao  huma 
protesta^ao  da  fe,  ainda  que  fosse  assim,  do  que  muito  duvido, 
aproveitou  pouco,  porque  nao  somente  nao  guardarao,  de  muitos 
annos  a  esta  parte,  nem  guardao  oje  o  que  naquelles  santos  con- 
cilios  se  decretou ;  nem  o  que  refere  que  elles  protestarao,  mas  an- 
tcs  quasi  todo  o  contrario  tiverao  e  tem  por  verdadeira  fe. 

Outra  cousa  dis  no  mesmo  luguar,  de  que  nao  pude  achar  me- 
moria  em  Ethiopia,  com  perguntar  ao  Emperador  e  a  muitos  fra- 
des  e  homens  grandes  velhos,  que  sempre  continuarao  o  passo  dos 

.  Emperadores;   e  he   que  o  emperador   Alexandre   3**  enviou  a  dar 

obediencia  ao  Summo  Pontifice  Gregorio  13°  com  doze  sacerdotes 
e  doze  cavaleiros  de  sam  Antam,  entre  os  quais  hia  dom  Joao  Bal- 
thesar.  Isto  tem  por  fabula  muitos  daquelles,  a  quem  perguntei,  por- 
que  nao  podiao  deixar  de  o  saber  ou  ouvir  alguma  cousa,  avendo 
tam  pouco  tempo  que  se  mandou  a  embaixada  e  sendo  tantos  os 
que  a  levarao,  e  cuido  que  tem  rezao,  e  que  se  la  se  deu  tal  embai- 
xada,  que  a  fingio  no  caminho  Joao  Balthesar,  como  outras  muitas 
cousas  que  disse  ao  autor  frei  Luis  de  Urreta;  porque  nao  digo  eu  24 
embaixadores,  mas  nem  hum  se  pudera  mandar,  que  pello  menos 
alguns  dos  grandes  o  nao  souberao,  pello  pouco  segredo  que  ha 
em  esta  terra.  Demais  disto  e  de  que  nunca  ouve  em  Ethiopia  tal 
Alexandre  3**,  he  mera  fic^ao  e  fabulosa  patranha  que  aia  em  Ethio- 
pia  cavaleiros  de  s.  Antao,  como  adiante  veremos.  E  assim,  refe- 
rindo  eu  huma  ves  ao  Emperador  o  que  delles  conta  frei  Luis  de 
f.  146.  Urreta  no  cap.  ultimo  do  livro  *3°,  se  rio  muito  e  disse :  Parece 
que  aquelle  Joao  Balthesar  vio  em  vossas  terras  alguma  ordem  de 

f  cavaleiros  como  a  que  aqui  pinta,  e  dali  tomou  motivo  pera  querer 

honrrar  nossa  terra,  dizendo  que  avia  nella  outra  semelhante ;  mas 

C.  Hkccari.  ^tfr.  Ae/A,  Scrifi,  occ,  ined,  —  II.  45 


354  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

a  verdade  he  que  nunca  tal  cousa  ouve.   Do  que  se  pode  coUegir 
que  assi  como  fingio  que  os  embaixadores  erSlo  cavaleiros  de  s.  An- 
tao,  assim  tambem  fingio  a  embaixada  a  sua  vontade. 
5.  Quaeinsequen-  Supposto  isto,  irei  declarando  por  capitulos  o  que  tenho  achado 

tibus  capitibus  Au-  .^         j.        ^  .  ^.  ^.      1  j 

ctorezponetcircaer-  ^^   muitas   disputas   gerais  e  praticas   particulares,   que    do  anno 
rores  Aethiopum  ex  ^^  1603,  que   entrei  em  Ethiopia,  tive  com  os  principaes  letrados 

propna  ezperientia,  v/     ^  r  jt  jt 

ex  eorum  libris  et  ex  della  ecclesiasticos  e  seculares,  refirindo   singellamente  seus  erros 

disputationibus  cum  ,  j     j  •  j.  •  •    j  j.     •  'j. 

monachis   comperta  ^^^  nenhum  modo  de  encarecimento,  pois,  amda  em  materias  muito 
habuit,  ideoque    fi-  leves  nSo  convem  ao  Religioso  usar  delle,  quanto   mais  em  cousa 

dem  merentur. 

tam  grave,  como  seria  infamar  a  toda  huma  na^ao  christaa  e  a  hum 
imperio  tam  grande  e  tam  celebre  no  mundo,  usando  de  encareci- 
mentos  ou  de  palavras  que  agravessem  de  maneira  suas  cousas,  que 
parecessem  erros,  nao  o  sendo. 


CAPITULO   II. 

Em  que  se  declara  como  os  Ethiopes 
negao  proceder  do  Pilho  o  Espirito  Santo. 


Mui  gfrande  deva^ao  mostrao  os  Ethiopes  a   santissima  Trin-      ,,  Licct  Aethiope» 
dade,  aquem  em  sua  lengoa  chamao  c  Quedezt  Celace  »  Santa  Trin-  mysteriumTrinitatis 

^  o  *»  vcncrentur,    tamcn 

dade  e  nao  c  Tinhiniah  >,  como  diz  frei  Luis  de  Urreta  pag.  405,  por-  pertinaciter  cum 
que  tem  muitas  igrejas  dedicadas  a  ella  e  cada  mes  no  7**  dia  de-  11^^"  spiritu ^Sanl 
pois  dentrado  Ihe  fazem  festa  e  hum  dia  no  anno  a  festeiao  com  cto  proccdere. 
grande  solennidade,  e  no  principio  de  seus  livros,  que  escrevem  to- 
dos  de  mao,  por  nao  terem  impressao,  e  nas  cartas  que  mandao 
pera  fora  do  imperio  comummente  come^ao  com  estas  palavras: 
€  Bazma  Ab  tia  Uald  tla  Manfaz  queduz  ahadu  Amlac  » ,  que  quer 
dizer :  «  No  nome  do  Padre  e  do  Filho  e  do  Spirito  Santo  hum  Deos  » ; 
e  quasi  todos  as  veses  que  come<;ao  alguma  obra  ou  se  maravilhao 
de  alg^ma  cousa,  repetem  as  mesmas  palavras,  de  maneira  que  muito 
de  ordinario  as  trazem  na  boca,  no  que  confessao  as  3  divinas  pes- 
soas  realmente  distinctas  e  a  summa  ig^aldade  que  ha  entre  ellsis. 
f.i46,v.  Mas  negao  como  os  Gregos  *que  o  Espirito  Santo  proceda  do  Filho, 
affirmando  que  so  procede  do  Padre,  com  tanta  pertinacia  que,  por- 
que  antiguamente  hum  frade  quis  defender  que  procedia  tambem 
do  Filho,  o  matarao  as  pedradas,  como  a  s.  Estevao,  parecendo- 
Ihes  que  nem  ouvir  se  podia  cousa  tam  sacrilega  como  era  dizer 
que  o  Spirito  Santo  procedia  tambem  do  Filho. 

Sabendo  eu  isto,  logo  como  entrei  em  Ethiopia,  e  entendendo      ^^  Auctor  pcrsua- 
a  pertinacia  com  que  defendiao  tam  crande  erro,  procurei  de  os  ti-  ^}^  multit  veritatem 

^  ^  o  JT  doctnnae  catholicae» 

rar  delle,  mostrandolhes  claramente  a  verdade   com  as  Escrituras  quam  etiam  profeasi 


356  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

sunt  Cela   Christ^s  SagradsLs,  com  os  santos  concilios,  com  autoridades  de  santos  e  com 
aliique  ex  pnmon-  j-g^oes,  buscando  sempre  occasiao  pera  Ihes  falar  nesta  materia,  e 

o  mesmo  fizerSo  com  muito  cuidado  os  Padres  meus  companhei- 
ros,  que  qua  estavSo,  com  o  que  foi  o  Senhor  servido  que  mui- 
tos  letrados  religiosos  e  seculares  se  convencerao,  de  maneira 
que,  deixado  o  erro  em  que  estavSo,  crem  oie  firmamente  que  o 
Espirito  Santo  procede  iuntamente  do  Padre  e  do  Filho.  Os  prin- 
cipaes  destes  sao  o  Emperador  e  hum  seu  irmao,  que  se  chama 
Cela  Christos  e  oje  tem  o  titulo  de  Eras,  que  quer  dizer  «  cabe^a  », 
porque  o  he  de  todos  debaixo  do  Emperador,  e  sendo  primeiro 
tam  contrario  a  nossa  santa  fe,  que,  como  elle  mesmo  me  dis  agora 
muitas  vezes,  Ihe  pareciao  nossas  cousas  peores  que  as  dos  mou- 
ros ;  depois  que  as  entendeo  as  recebeo  com  tanto  affecto  e  as  cre 
con  tanta  firmeza  que  por  veses  se  pos  em  risco  de  morte  poUas 
defender,  e  agora  que  ia  se  confessa  e  comunga  com  nosco,  dis 
publicamente  que  a  fe  da  Igreja  Romana  he  a  verdadeira  e  que 
ninguem  se  pode  salvar  fora  della,  e  aos  que  o  contradicem  nesta 
materia,  por  grandes  letrados  que  seiao,  os  convence  com  suas  re- 
z5es  como  a  meninos,  porque  he  homem  de  grande  entendimento 
e  muito  visto  nos  livros  de  Ethiopia,  e  assim  com  isto  e  autori- 
dade  grande,  que  pera  com  todos  tem,  fas  muito  fruto  e  redus 
muitos,  e  particularmente  os  que  sao  de  sua  obriga^ao  estao  mui 
firmes  na  fe  e  falao  tambem  publicamente  como  seu  senhor,  con- 
fessando  e  defendendo  a  verdade  de  nossas  cousas ;  e  nos  perigos, 
que  se  Ihes  offerecem,  acometem  com  grande  confianza  na  santa  fe 
que  professao;  e  assim  tendo  novas  Cela  Christos  no  fim  de  no- 
vembro  de  1617,  que  vinhao  Galas  gentios  muito  fortes  a  dar  em 
humas  terras  que  tem  da  outra  banda  do  Nilo,  chamou  hum  de 
seus  capitaes  chamado  *Ascader,  e  disselhe  que  passasse  logo  com  f.  147. 
sua  gente  em  quanto  elle  aiuntava  a  demais  pera  ir  em  suas  co- 
stas  e,  dandolhe  sua  bandeira  diaute  de  muita  gente,  Ihe  enco- 
mendo  muito  que,  se  tivesse  algum  encontro  ante  delle  chegar,  se 
ouvesse  com  a  prudencia,  valor  e  esfor^o  que  delle  se  esperava; 
e  tomando  o  capitao  a  bandeira,  levou  da  espada  dizendo:  Com 
esta  peleiarei  por  meu  senhor  ate  morrer  sem  tornar  o  pe  atras,  e 
se  os  enemigcs  me  ferirem  nas  costas  e  escapar  de  suais  maos,  nao 
fa^a  meu  senhor  conta  de  mim,  nem  me  veia  mais. 
3.  Cela  Christ68  a-  Ouvindo  isto,  Cela  Christos  Ihe  disse :  Muito  pouco  vos  ha  de 

liusque  duz  militum,  .^  1    •      ji  ji         •  1    •    •        n     r>'   j     /^i.   • 

fidem  catholicam  aproveitar  se  peleiardes  por  amor  de  mim:  peleiai  polla  fe  de  Chri- 


LIVRO  II,  CAPITULO   II.  357 

sto  que  ensina  a  Igreia  Romana,  e  entSlo  Deos  vos  dara  victoria  e  amplexi,    victoriam 

prosperara   todas  vossas   cousas.   E    eu   tambem   vos  farei   muitas  ™e?!^^     *     *  ** 

honrras  e  merces.  Nao  sabeis  quantas  me  tem  feito  derubando  sem- 

pre  a  meus  pes  todos  meus  enimigos,  depois  que  comecei  a  seguir 

e  defender    esta    santa  fe;  pois  assim  fara  a  vos,  se  de  cora^ao  a 

seguirdes  e  peleiardes  por  ella.  Respondeo  o  capitao :  Lembroume, 

meu  senhor,  huma  cousa  muito  boa:  digo  que  nSo  hei  de   peleiar 

senao  pella   santa  fe  de  s.  Pedro  e  por  ella  hei  de  morer,  e  se  pe- 

leiar  por  outro  respeito,  ainda  que  Deos  me  de  victoria  e  destrua 

os  enimigos,  el  tire  a  vontade  a  meu  senhor  de  por  isso  me  fazer 

honrras  e  merces  nem  eu  Ihas  hei  de  agradecer,  ainda  que  mas  fa^a. 

Por  huma  cousa  estou  mui  obrigado  a  meu  senhor  e  Iha  s^adeceo 

mais  que   quanto  me  tem   feito,   que  he  terme   dado  a  conhecer  a 

Deos  e  entender  qual  seia  sua  santa  fe,  pera  me  poder  salvar ;  que 

antes  nSo  a  conhecia  nem  sabia  por  onde  andava.  Disse  entao  Eras 

Cela  Christos :  Se  o  que  prometeis  com  as  palavras  de  peleiar  pella 

santa  fe  de  Roma,   comprirdes   com  as  obras,   tudo   vos   socedera 

muito  bem;  ide  com  a  ben^ao  do  Senhor. 

Com  isto  se  despedio  o  capitao  Ascader  e  o  dia  seguinte  to- 
mou  a  benpao  de  hum  padre  meu  companheiro,  que  de  ordinario 
esta  com  Eras  Cela  Christos  e  elle  Ihe  deu  hum  frade,  que  ha 
muito  tempo  se  converteo  e  reduzio  a  nossa  santa  fe,  pera  que  o 
acompanhasse  e  o  encaminhasse  nas  cousas  de  sua  alma.  E  pas- 
sando  o  rio  Nilo  com  muito  trabalho,  por  ir  muito  crecido  e  fu- 
rioso,  dali  a  poucos  dias  teve  vista  dos  Galas,  que  erao  muitos  e 
f.i47,v.  bem  consertados,  como  gente  que  saira  de  sua,  s6  pera  effeito  *de 
peleiar  e  destruir  os  christaos.  Ordenou  elle  tambem  logo  sua  gente 
e  deu  batalha,  cuio  successo  escreveo  a  seu  senhor  por  estas  pala- 
vras ;  Antes  de  daremos  batalha  aos  Galas,  que  vinhao  repartidos . 
em  muitos  esquadrOes,  mandei  a  todos  meus  soldados  que  adoras- 
sem  a  santissima  Crus,  que  estava  na  bandeira  e  se  esfor^assem  a 
pelleiar  nao  por  cobi^a  de  achar  preza,  nem  por  outros  respeitos, 
senao  por  serem  estes  crueis  enemigos  da  santissima  Crus  e  lei  de 
Nosso  Senhor.  E  animandoos  com  isto,  demos  batalha,  levando 
diante  a  bandeira  da  santa  Crus;  e  affirmo  diante  de  Deos  nosso 
Senhor  que  nao  por  nossos  zargunchos,  nem  por  nossos  arcos  e  fre- 
chas,  senao  por  meio  e  milagre  da  sanctissima  Crus,  alquangamos 
tam  facilmente  victoria,  que  em  pouco  tempo  os  mais  delles  se  pu- 
serao  em  fugida,  com  tam  grande  medo,  que,  deixando  suas  molhe- 


358  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

res  e  filhos  e  todos  seus  gados,  nao  procuravao  outra  cousa  mais 
que  salvarem  suas  vidas.  Outros  com  virem  primeiro  como  fero- 
cissimos  leOes,  se  entregarSo  nas  nossas  maos,  como  se  forao  man- 
90S  cordeiros. 

Este  tempo  ia  hia  Eras  Cela  Christos  com  grande  exercito  e, 
passando  o  rio  Nilo,  se  iuntou  com  este  capitao  e  foj  em  busca  dos  Ga- 
las,  que  escaparao,  que  ia  se  tinhao  tomado  a  refazer,  iuntandoselhes 
outros  muitos  tam  resolutos  em  peleiar  que  Ihe  apresentarao  logo 
batalha  em  campo,  mas  com  o  favor  divino  forao  desbaratados  e 
mortos  muitos  e  Eras  os  seguio  2  dias  fazendo  grande  matan^a, 
cativando  molheres  e  filhos  e  tomando  gados  sem  conto,  como  elle 
mesmo  logo  me  escreveo  pera  que  desse  gra^as  a  Deos  por  tantas 
e  tam  grandes  merces,  como  Ihe  fazia,  e  todas  as  atribuia  a  ter  elle 
recibido  a  doutrina  e  fe  da  santa  Igreja  Romana  e  defendela  com 
tam  bom  cora^ao;  o  que  confessa  e  afirma  publicamente. 

4.  imperator  Scl-  Tambem  o  Emperador  fcis  muito  procurando  sempre  acreditar 

tftn  Sag4d  favet  ca-  _  . 

tholicae  fidei  et  ipse  nossas  cousas  e  afei^oar  os  seus  a  ellas,  sem  perder  nunca  occasiao 
etiam  Ichegu6;  sed  ^j^  ^^^   ^^^  ^  louve  e  declare  da  maneira  que  Ihas   temos   ensi- 

hic    nescit    solvere  ^  ^ 

argumenta   contra  nado;  e  assim,  estando  hum  dia  com  elle  no  pa^o  muitos  grandes 

processionem  Spiri-        ^      ,  ^  ••11.  it^u- 

tuB  Sancti  a  Filio :  ®  irades,  em  que  entrava  o  prmcipal   que  ha  em   Ethiopia,  a  que 

ab  imperatore  advo-  chamao   Ichegue  e  he  Geral  da  Religiao  *de  Abba  Taquela  Hai-  f.  148. 

catur  pater  Paex   ad  *^  ®  . 

disputandum.  manot,  disse  que  nao  Ihe  parecia  bem  os  que  affirmavao  que  o  Espi- 

rito  Santo  procedia  s6  do  Padre;  que  a  doutrina  dos  Portugueses 
era  a  verdadeira,  que  affirma  que  procede  do  Padre  e  do  Filho.  Fo- 
raolhe  logo  todos  a  mao  dizendo  que  nao  trouxesse  tal  cousa,  por- 
que  era  contraria  a  verdadeira  fe.  Deu  elle  algumas  resOes  em 
prova  do  que  dizia,  mas  a  todas  Ihe  replicarao  e  trouxerao  outras 
em  contrario.  Disse  entao  o  Emperador:  Chamem  ao  padre  Pero 
Paes,  que  elle  vos  mostrara  claramente  ser  verdade  o  que  eu  digo. 
Respondeo  hum  delles:  Senhor,  nao  pode  mostrar  tal  cousa,  nem 
dar  resao  que  nao  seia  apparente,  e  que  nao  Iha  desfa^amos  logo. 
Disse  o  Emperador  (segundo  me  contou  depois  hum  meu  amigo 
que  estava  presente):  Nao  somente  Ihe  nao  desfareis  suas  resOes, 
mas  nem  Ihe  aveis  de  saber  responder. 

5.  Auctor  probat  A  esta  sazao   estava  eu  na  corte,  como   estou  de  ordinario,  e 

veritatem  catholicam  1        1  t  1  r 

ez  ipBo  libro  Haima-  assim  me  mandou  logo  chamar,  e  entrando  me  fes  assentar  perto 
n6t  Abb6.  in  cuius  ^q  gy    ^  percfuntou,  se  o  Espirito  Santo  procedia  s6  do  Padre,  ou 

recentioribus  ezem-  ^  r-     o  »  r-  x- 

plaribus  demonstrat  se  procedia  tambem  do  Filho.  Respondi:  Senhor,  procede  do  Pa- 
Filio »  abrasa  fuisse.  ^^^  ^  ^^  Filho ;  e  esta  verdade  esta  declarada  por  16  Concilios  ge- 


LIVRO   II,  CAPITULO  II.  359 

rais  e  determinada  por  artigo  de  fe ;  coUigesse  claramente  do  santo 
evangelho  e  de  s.  Paulo  que  dis  que  o  Espirito  Santo  he  espirito 
do  Padre  e  do  Filho,  pello  que  assi  o  ensinao  todos  os  doutores 
sagrados  e  os  mesmos  livros  de  Ethiopia.  Disse  hum  frade,  que  se 
chama  Abba  Marca  (que  por  ser  dos  mais  velhos  e  Ihe  parecer 
que  podia  responder  melhor,  tomou  a  mao  a  todos) :  Nem  os  livros 
de  Ethiopia  ensinSo  que  o  Espirito  Santo  procede  do  Filho,  nem 
se  pode  diser  tal  cousa,  que  he  contra  nossa  santa  fe.  O  principal 
livro  de  Ethiopia,  disse  eu,  he  Haimanot  Abbo  (que  quer  diser  c  fe 
dos  Padres  »,  porque  he  de  peda^os  de  humilias  de  santo  Athanasio, 
Basil,  Chrysostimo  e  outros  Santos).  Este  dis  em  muitas  partes  que 
procede  do  Padre  e  do  Filho.  Respondeo  o  frade  que  nSo  avia  tal 
cousa  em  todo  o  Haymanot  Abbo;  e  pidindo  eu  que  trouxessem 
o  livro,  veio  logo  e  mostrei  duas  partes,  que  ia  tinha  notadas,  onde 
dis  procede  do  Padre  e  do  Filho  e  em  16  luguares:  «  he  espirito  do 
Padre  e  do  Filho.  »  Respondeo  elle :  Nunca  tal  vi  ategora :  este  li- 
vro  esta  errado ;  tragSo  outro.  E  como  veio,  achou  que  dezia :  «  pro- 
cede  do  Padre  j>  e  a  palavra :  «  e  do  Filho  »  estava  raspada ;  o  que  he 
f.i48,v.  facil,  por  ser  a  escritura  em  pargaminho.  *Disse  entao:  Este  esta 
bem.  Respondi  eu:  Frimeiro  tambem  estava:  «e  do  Filho»  :  eis  aqui 
o  rasparao.  Disse  o  Emperador:  He  verdade:  Azax  Qadenguil  o 
raspou;  venha  outro.  Trouxerao  sinco  mais,  c  em  todos  estava:  «  Pro- 
cede  do  Padre  e  do  Filho.  »  Ultimamente  veio  hum  novo,  que  em 
todos  os  luguares  dizia :  «  Procede  do  Padre :»  e  todos  o  aprovarSo, 
dizendo  que  aquelle  era  bem.  Respondi  eu:  Este  tresladarao  agora 
do  que  esta  raspado;  os  antigos  sao  os  verdadeiros,  que  estao  tre- 
sladados  dos  mesmos  li vros  dos  Santos.  Disse  o  frade :  Nao ;  este  esta 
certo:  emmendense  todos  por  elle.  Respondi  eu:  Nao  pode  aver 
maior  mal  que  tirar  palavras  dos  livros  dos  Santos,  ou  acrescentar 
as  que  elles  dizem,  pera  mostrar  os  que  isto  fazem  que  ensinao  o 
que  pretendem,  ou  pera  que  nao  Ihe  seia  contraria  sua  doutrina. 
E  por  ser  esta  cousa  tam  pemiciosa  e  grave,  fechou  s.  Joao  seu 
Apocalipsi  dizendo:  Se  algum  acrescentar  a  estas  palavras,  acre- 
scentara  Deos  sobre  elie  as  pragas  escritas  neste  livro,  e  se  demi- 
nuir  das  palavras  delle,  tirarlhe  ha  Deos  a  parte  que  tinha  do  livro 
da  vida  e  da  cidade  santa,  e  das  cousas  que  estao  escritas  em  este 
livro.  Disse  entao  o  Emperador,  mostrandose  enfadado:  Ninguem 
tire  palavras  dos  livros ;  deixemnos  como  estavao,  pois  sao  de  San- 
tos.  E  assi  se  calarao  todos. 


36o  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

6.  Probat  idcm  ex  Vendo  eu  que  nao  passavao  adiante  na  pratica,  disse :  Deixe- 

hac^re^tici  nesdunt  ^^^  ^  Haimanot  Abbo,  e  vamos   ao   santo   evangelho,   que   nelle 
soivere     argumenta  acharemos   tambem  clara   esta  verdade,  porque  o  mesmo  Christo, 

Auctoris. 

falando  do  Spirito  Santo,  dis  no  cap.  i6  de  sam  JoSo:  «  Tomara  de 
mim  e  denunciarvos  ha  a  vos  outros  > .  Nenhuma  cousa  pode  tomar 
o  Espirito  Santo  do  Filho  sem  tomar  sua  essencia.  Logo  nao  s6 
tomou  a  essencia  do  Padre,  mas  tambem  do  Filho.  Respondeo  o 
frade :  Quando  Christo  dis:  «  Tomara  de  mim  ^,  nao  fala  mais  que  da 
sciencia.  He  verdade,  disse  eu,  que  fala  da  sciencia,  mas  se  o  Spi- 
rito  toma  do  Filho  a  sciencia,  sem  tomar  a  essencia,  nao  he  Deos 
senao  criatura.  Respondeo  que  elles  tambem  tinhao  suas  esplica- 
Qoes  pera  este  luguar;  e  com  isto  se  fechou,  sem  dar  nenhuma, 
nem  querer  responder.  Disse  eu  entao:  Pois  *respondame  V,  R.  ao  f.  149. 
que  disse  Christo  nosso  Senhor  no  mesmo  cap.  de  s.  Joao  e  no 
seguinte:  ♦  Todas  as  cousas  que  tem  o  Padre  sao  minhas  >;  de  ma- 
neira  que  tudo  o  que  tem  o  Padre  tem  o  Filho,  excepta  a  relagao 
de  paternidade,  como  dizem  os  santos :  O  Padre  tem  ser  principio 
do  Espirito  Santo;  logo  o  mesmo  tem  tambem  o  Filho.  Por  onde 
nao  procede  so  do  Padre,  senao  tambem  do  Filho.  Virouse  elle  pera 
os  outros,  dizendo:  Nao  vedes,  nao  vedes  que  falacia  tira  do 
Evangelho  [?].  Respondi  eu:  Mostre  V.  R.  onde  esta  a  falacia. 
Todas  sao  palavras  do  Evangelho,  de  que  nao  se  pode  tirar  fa- 
lacia.  Desta  maneira,  disse  elle,  tivera  o  Espirito  Santo  dous  pa- 
dres.  Respondi:  Nao  se  segue,  porque  o  Espirito  Santo  nao  pro- 
cede  do  Padre  em  quanto  formalmente  he  padre,  que  entao  o 
Espirito  Santo  fora  filho,  senao  do  Padre  em  quanto  tem  a  essencia 
comum  com  o  Filho,  e  assi  necessariamente  procede  tambem  do 
Filho.  Aperfiou  elle  que  era  falacia,  que  nao  avia  gera  que  respon- 
der,  mas  os  outros  bem  entenderao  que  o  dizia  porque  nao  tinha 
reposta.  Vendo  eu  isto,  Ihe  disse:  Ja  que  V.  R.  nao  quer  respon- 
der  aos  argumentos,  declareme  como  o  Padre  gera  ao  Filho  e  como 
o  Espirito  Santo  procede  do  Padre,  que  ahi  Ihe  mostrarei  claro  que 
necessariamente  o  Espirito  Santo  procede  tambem  do  Filho,  ou 
que  nao  ha  differen^a  nenhuma  entre  ambos,  e  assi  nao  serao  tres 
pessoas  senao  duas. 

Disse  outro  frade:  Deixemnos  iuntar  nossos  frades  pera  re- 
sponderemos  a  isso.  Acudio  o  Emperador  dizendo:  Esta  muito  bom 
desvio  esse :  se  o  Padre  dissera :  Deixemme  iuntar  meus  Padres  pera 
responder,  tivera  alguma  cor  sua  escusa,  porque  esta  s6;  mas  vos 


LIVRO    II,   CAPITULO   II.  36 1 

outros  sois  tantos,  e  ainda  dizeis  que  vos  deixem  iuntar  mais?  Re- 
spondei :  que  essa  escusa  nSo  aproveita.  Disse  outro  muito  privado 
do  Emperador:  Nos  bem  sabemos  estas  cousas:  declareas  o  Padre, 
pcra  veremos  de  que  maneira  as  entendem  os  Portugucses.  Ao  que 
respondi :  VV.  RR.  tcm  obriga^ao  de  responder,  pois  eu  perguntei 
primeiro;  e  depois  rcspondcrei  ao  que  me  perguntarem.  Mas  fes 
tanta  instancia,  que,  porque  nao  cuidassem  que  me  escusava  por  nSo 
f.i49,v.  mostrar  nossas  cousas,  ou  porque  me  nao  atrevia  diante  *delles,  o 
declarei  por  estas  palavras: 

«  Bem  sabem  VV.  RR.  que,  como  Deos  nosso  Senhor  seia  de 
«  todo  perfeito  e  benavonturado,  he  neccssario  que  entenda  e  ame, 
«  pois  vemos  que  o  mais  perfeito  que  ha  em  nos  he  o  entender  e 
«  amar ;  e  nisto  excedemos  aos  animais ;  nem  Deos  pode  ter  sua 
«  gloria  e  benaventuran(;:a  senao  em  entenderse  e  amarse,  porque 
«  com  todas  quantas  cousas  criou  nao  se  Ihe  acrescentou  hum  ponto 
«  de  gloria,  nem  perderia  cousa  algiima,  ainda  que  as  anichilasse, 
«  assim  como  huma  toca  acesa  nao  ganha  nada  em  sua  lus  ainda,  que 
«  acenda  outras  muitas,  nem,  porque  se  apagnem,  pcrde  cousa  al- 
«  guma.  Vem  pois  como,  sendo  Deos  N.  S.  de  todo  perfeito,  he  ne- 
«  cessario  que  entenda?  E  de  resao  de  entender  he  que  esteia  nelle 
«  tambem  presente  a  cousa  entendida  e  conhecida,  que  fica  na 
«  noticia  com  perfeitissimo  retrato  e  debuxo  dessa  mcsma  cousa. 
«  Isto  vemos  claramente  por  experiencia,  porque,  quando  nos  pomos 
«  a  considerar  as  arvores  e  flores,  as  tcmos  tam  presontes  que  quasi 
«  nao  parece  que  ha  differen(;ta  dellas  ao  que  nos  formamos  dentro 
«  de  nos,  e  se  tivera  alguem  virtude  pera  dar  ser  e  vida  aquilo  quc 
«  esta  dentro  de  seu  entendimento,  sem  duvida  fora  huma  perfei- 
«  tissima  frol  ou  outra  cousa  contemplada ;  mas,  ainda  que  nosso  en- 
«  tendimento,  por  sua  fraqueza,  nao  fac^^a  isto,  ao  menos  tira  hum 
«  debuxo  tam  perfeito  e  acabado  da  cousa  que  conhece,  que  nao 
«  ha  pintor  que  tire  tam  perfeito  retrato  com  pincel  como  o  tira 
«  nosso  entendimento. 

«  Entendesse  pois  Deos,  e  nesse  entendor  tira  hum  perfei- 
«  tissimo  debuxo  de  si  mesmo.  Este  debuxo  nao  podo  ostar  fora 
«  dello,  porque  em  ncnhuma  (ousa  criada  pode  sor  tirado  perfeita- 
«  mento  sou  retrato,  pois  todas  silo  finitas  e  olle  infinito.  A  este 
<c  debuxo  Ihe  da  ser  c,  como  esteia  dentro  de  Deos,  dalhe  seu  me- 
«  smo  ser  de  Deose  a  este  acto  de  rotratarse  Deos  chcmao  os  Sa- 
«  grados   Doutores   «  gcrar  »,  e  ao   debuxo  chamao  filh<^,  o  qual  he 

C.  iiBC.ARi.  /ier.  Aeik,  Scrtpt,  occ,  tned.  —  II.  46 


362  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  Deos  como  o  Padre,  infinito  e  eterno  como  *elle,  e  chamao  esta  f.  150. 
«  gera^ao  eterna,  porque  nunca  se  pode  entender  Deos  que  esti- 
r  vesse  sem  se  conhecer  e  debuxar.  Neste  acto  mostra  Deos  suas 
€  riquezas  e  omnipotencia,  onde  comunica  a  seu  filho  toda  sua  gran- 
«  deza,  sua  fermosura,  sua  sabedoria,  poder  e  virtude,  porque  em 
«  todas  as  creaturas  nSo  se  comunica  senao  como  huma  gota  de 
«  suas  infinitas  perfeigoes.  E  nSo  somente  se  entende  Deos,  senao 
«  que  tambem  he  necessario  que  se  ame,  como  tenho  dito.  Vendo 
«  pois  o  Padre  a  fermosura,  a  bondade,  a  virtude  e  riquezas  em 
«  seu  filho,  aquem  gerou  tambem  como  elle  tao  sabio  como  elle  e 
«  tao  poderoso  e  omnipotente  como  elle,  naturalmente  ama  a  esse 
«  filho,  que  produzio  tam  conforme  a  sy,  e  vendo  tambem  o  Filho 
«  todas  as  grandezas  e  thesouros  do  Padre,  de  quem  ve  que  Ihe 
«  vem  todas  as  riquezas  e  bens  infinitos  que  tem,  necessariamente 
«  ama  o  seu  padre  que  o  gera,  e  este  amor,  com  que  se  amao  o 
«  Padre  ao  Filho  e  o  Filho  ao  Padre,  he  amor  produzido  e  he  a 
«  pessoa  do  Espirito  Santo ;  e  como  o  entender  de  Deos  he  infinito 
«  e  gera  filho  infinito,  assim  o  amar  de  Deos  he  infinito  e  poderoso 
«  e  produs  hum  amor  infinito  e  poderoso.  Estas  sao  as  3  pessoas 
«  que  dizemos  aver  em  Deos  e  nao  pode  aver  mais  que  hum  s6 
«  Filho  e  hum  Espirito  Santo,  porque  em  Deos  nao  ha  mais  que 
«  hum  entender  e  hum  amar.  Vem  aqui  VV.  RR.  como  da  mesma 
«  maneira  que  o  Padre  produs  ao  Espirito  Santo  o  produs  tambem 
«  o  Filho,  pois  he  o  mesmo  amor  com  que  o  Padre  ama  ao  Filho 
«  e  o  Filho  ao  Padre;  e  assim  de  todo  o  ponto  nos  he  necessario 
«  affirmar  e  crer  que  o  Espirito  Santo  procede  do  Padre  e  do 
«  Filho,  porque  de  outra  maneira  nenhuma  distin^ao  podiamos  dar 
«  entre  o  Filho  e  o  Espirito  Santo  e  assi  nao  seriao  tres  pessoas 
«  divinas  se  nao  duas  ». 
7.  Inopportuna  Tudo  isto  ouvirao  com  grande  aten^ao,  e  depois  que  eu  acabei, 

percontatio    cuius-  ,  ,  ,.  1.        •  ,  ,  < 

dam  viri   principis  ^  nenhuma  cousa  das  que  disse  replicarao,  mas  hum  senhor  grande, 
et  responsio  Aucto-  ^q^  qyg  a.li  estavao,  saio  com  este  dcsproposito :  Pois  diganos  V  R., 

Irlo. 

se  as  trevoas  sao  creatura  corporea  ou  nao  ?  Respondi  eu :  Senhor, 
que  tem  que  ver  as  trevoas  com  o  Espirito  Santo  de  quem  trata- 
mos?  *Diga  V.  S.  que  sao  creatura  corporea  ou  que  nao  sao,  que  f.i5o,v 
pouco  vaj  nisso.  Disse  elle :  Queremos  saber  que  opiniao  tem  V.  R. 
acerca  disto?  Quanto  a  mim,  respondi  eu,  nao  me  parece  que  sao 
creatura  corporea,  senao  somente  priva^ao  da  lus,  Disse  elle :  Logo 
nao  he  verdade  o  que  affirmao  os  Judeus,  que  as  trevoas  sao  crea- 


LIVRO   II,   CAPITULO   II.  363 

tura  corporea.  Respondi  que  a  autoridade  dos  Judeus  era  muito 
fraca,  e  que  nom  tudo  o  que  affirmavao  era  verdade,  pois  affirmSlo 
que  nao  veio  ainda  o  Messias,  que  em  Deos  nao  ha  Trindade  de 
pessoas  e  tem  por  certissimas  outras  muitas  cousas  contra  nossa 
santa  fe;  mas  ou^a  V.  Senhoria  huma  das  resOes  em  que  me  fundo  pera 
>  dizer  que  as  trevoas  [nao]  sao  creatura  corporea.  Se  fechassem  agora 

esta  sala,  de  maneira  que  nao  entrasse  lus  nenhuma,  estaria  nella 
esta  creatura  corporea;  e  se  a  abrissem,  subitamente  se  desfaria,  e 
todas  as  vezes  que  de  noite  tirassem  e  metessem  aqui  tochas  ace- 
sas,  se  faria  e  desfaria  esta  creatura  corporea;  o  que  nao  parece 
possivel  em  boa  philosophia.  Disse  o  Emperador  rindo:  Boa  esta 
a  creatura  corporea,  que  tantas  vezes  e  tam  facilmente  se  pode  fa- 
zer  e  desfazer.  Acodio  entao  o  frade  Abba  Marca:  Pera  que  ga- 
stamos  tempo  em  cousa  de  tao  pouca  importancia[?].  Que  vaj  que  as 
trevoas  seiao  creatura  corporea  ou  nao  [?].  E  com  isto  se  acabou  a 
pratica  e  saimos  todos. 

Poucos  dias  depois  me  disse   hum  primo  do  Emperador,   que      8.  Auctor  privatim 
se  chamava  Bela  Christ6s  e  tinha  bem  entendidaa  verdade  de  nos-  lyiSrSicuiMuedeve- 
sas  cousas:  Nao  perca  V.  R.  ocasiao  nenhuma,  em  que  nao  declare  '*_^®_^^®^*ff*flit* 
a  todos,  como  o  Espirito  Santo  procede  tambem  do  Filho,  porque, 
^  com  primeiro  terem  por  certo  que  nao  procedia  mais  que  do  Padre, 

;  ia  muitos  vao  entendendo  que  nao  pode  deixar  de   proceder   tam- 

■  bem  do  Filho.  E  indo  eu  a  visitar  a  Abba  Marca,  pera  ver  se,  fa- 

lando  com  elle  em  particular,  o  podia  tirar  daquelle  erro,  como  o 
f.  151.  tinha  tirado  de  autros  que  adiante  ve*remos,  me  mostrou  hum  lu- 
guar  no  Concilio  Niceno,  que  elles  tem,  em  que  dizia:  O  Espirito 
Santo  procede  do  Padre  e  nao  do  Filho.  Disse  eu:  Nao  ha  tal 
cousa  no  Concilio  Niceno,  nem  ali  se  tratou  esta  questao  do  Espi- 
rito,  porque  ainda  nao  avia  tal  erro,  nem  se  levantou  senao  dahi 
alguns  100  annos  ou  mais,  como  consta  de  muitos  autores;  por 
onde  esta  palavra:  «  e  nao  do  Filho  »  esta  acrescentada.  Respondeo 
elle :  He  verdade ;  aqui  em  Ethiopia  a  acrescentarao.  Mostreilhe  eu 
entao  quam  grandes  males  se  seguiao  de  acrescentar  palavras  nos 
;  Santos  Concilios  e  nos  demais  livros,  que  ensinao  a  verdadeira  fe, 

!  e  declareilhe  compridamente  como  o  Spirito  Santo  procede  do  Pa- 

dre  e  do  Filho,   com  que  ficou   satisfeito.   E  posto    que  em  muito 
tempo  nao  se  atreveo  a  confessar  publicamente  esta  verdade,  ia  a 
^  confessa  e  affirma  sem  ter  de  ver  com  ninguem. 

Outras  muitas  cousas  pudera  referir  de  praticas  particulares,  que 


perauasum   dimittit. 


364  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

tive  por  vezes  com  alguns  letrados  ecclesiasticos  e  seculares,  que 
pertinasmente  defendem  que  o  Espirito  Santo  procede  s6  do  Padre, 
mas  bastara  o  que  temos  dito,  pera  que  se  veia  quanto  se  enga- 
nou  frei  Luis  de  Urreta  no  que  affirma  pag.  416  por  estas  palavras: 
g.  Bz  dictis  con-  «  Esta  verdad  catholica,  que  la  Iglesia  crc  contra  los  GTiogos, 

hbtorfcus  Vrretal^^   ^  ^^^  ^^   Spirito  Santo   procede   del   Padre  e   del   Hijo,  la  tienen, 

«  creen  y  professan  los  Ethiopes  con  grandes  veras  contra  los  mis- 
«  mos  Griegos,  diziendo :  *  Spiritus  Sanctus  Paracletos  Deus  vivus. 
«  qui  ex  Patre  et  Filio  procedit '».  Isto  dis  o  Autor  fundado  em 
huma  protesta^ao  da  fe,  que  affirma  fizerao  huns  embaixadores  do 
Preste  Joao  no  Concilio  Florentino  e  a  refere  pag.  397;  mas  aquella 
protestagao  nao  fas  contra  o  que  temos  dito,  que  os  Ethiopes  vas- 
salos  do  Preste  Joao  tem  que  o  Espirito  Santo  procede  s6  do  Pa- 
dre,  porque,  ainda  que  concedamos  que  aquelles,  que  se  nomearao 
por  embaixadores  do  Preste  Joao,  nao  fingissem  muitas  das  cousas 
que  ali  se  referem,  pera  serem  bem  recibidos  dos  nossos  e  acre- 
ditar  pera  com  elles  sua  fe,  como  facilmente  fazem  onde  se  achao, 
e  temos  mostrado  por  todo  o  livro  primeiro,  nas  que  o  ethiope 
Joao  Balthesar  meteo  em  cabega  *ao  mesmo  autor  e  no  que  aqui  f.i5i,v. 
exprimentamos  em  alguns  frades,  que  forao  a  Roma,  onde  prova- 
velmonte  aviao  de  dizer  que  professavao  a  santa  fe  da  Igreia  Ro- 
mana  e  depois  que  tornarao  qua,  falao  conio  os  demais  frades  da 
terra;  ainda  que  concodamos  que  aquolla  embaixada  foj  verdadeira 
e  tudo  o  que  professarao  certo,  nom  por  isso  se  segue  que  de  en- 
tao  ate  oje  guardem  perfeitamente  todas  as  cousas  que  ali  prote- 
starao,  a  verdade  he  que  de  muitos  tempos  a  esta  parte  tiverao  e 
tem  oje  esta  heregia  que  o  Spirito  Santo  procede  s6  do  Padre  e 
outras  muitas  que  adiante  veremos. 


CAPITULO  m. 

Em  que  se  referem  os  erros, 
que  os  Ethiopes  tem  sobre  a  sacrosanta  humanidade 

de  Jesu  Christo  N.  S. 

Affirmao  os  Ethiopes  vassalos  do  Preste  Joao  que  a  natureza       z.  Probatur  Aethi- 
humana  em  Christo  Nosso  Senhor  he  icfual  a  divina  e  que  esta  em  ^^  unam  ^^}^^ 

^  ^  naturam   in  Chrxsto 

toda  a  parte ;  e  dizem  que,  depois  que  a  natureza  humana  se  unio  proflteri  cx  ipsis  eo- 
a  pessoa  divina,  nao  se  pode  dizer  que  cm  Christo  ha  duas  natu-  xnan6t  Abb6  et  Ma-/ 
rezas  senao  huma  natureza,  e  a  Dioscoro,  que  ensinou  estes  tam  Mg«*bt  HaimanAt. 
grandes  erros,  tem  por  santo  c  como  a  tal  Ihe  fazcm  grande  festa 
cada  anno,  e  a  s.  Leao  papa,  porque  dis  que  estao  em  Christo 
duas  naturezcLS,  sem  se  mesturarem,  confundirem,  nem  afastarem, 
Ihe  tem  muito  grande  aborrecimento  e  dao  nomes  bem  alheos  de 
gente  christaa ;  e  assim,  falando  eu  com  hum  frade  velho  sobre  elle, 
disse  que  falara  nesta  cousa  por  boca  de  s.  Paulo,  e  que  fora  san- 
tissimo  varao ;  ao  que  respondeo  com  extraordinaria  impaciencia  de 
ouvir  isto :  Nao  foj  senao  hum  satanas.  Nem  me  espanto  muito  que 
Ihe  tenhao  tanto  aborrecimento,  pois  os  incita  a  isso  a  doutrina  de 
seus  livros,  que  elles  tem  por  fe  verdadeira ;  porque,  como  ia  dis- 
semos  no  cap.  24  do  primeiro  livro,  as  Homilias  de  Santos,  que 
tem  no  livro  que  chamao  Haimanot  Abbo,  aiuntarao  muitas  cousas 
f.  152.  de  Patriarcas  *de  Alexandria  hereges,  e  hum  delles,  que  se  chama 
Theodoseos.  dis  no  cap.  2°  estas  palavras:  «  Nao  afastamos  como 
aquelle  inimigo  Leao  maldito,  que  afastou  a  quem  nao  se  afastou, 
e  disse  duas  naturezas,  duas  complacencias  e  duas  obras  em  hum 
Christo:  >  E  pouco  mais  adiante  toma  a  dizer:  «  Este  maldito  e  tredo 


366  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 


I 
4 


Leao  disse  duas  naturezas  e  duas  obras  e,  dizendo  huma  pessoa,  ni- 
sto  quis  (scilicet  encobrir)  o  maldito  seu  erro,  em  dizer  huma  pes- 
soa:  »  E  outro,  a  quem  chamao  Cenutheos,  dis  assim :   c  Os  que  falao  1 

e  cuidao  como  o  Concilio  baixo,  sujo,  judeu,  roim  dos  que  se  iun- 
tarao  em  Calcedonia,    em  que  estava  Leao,   que  nao  tem  lei,  lobo  I 

serval,  robador,  despeda^ador  das  almas  ».  E  outro,  que  se  chama  4 

Philatheos,  tambem  diz:  «Nao  crem  como  o  Concilio  judeu  dos  que 
se  inntarao  em  Calcedonia  e  o  livro  da  treicjao  de  Leao  mentiroso.  » 
Demais  disto  em  hum  livro,  que  elles  chamao  Mazagu6bt  Hai- 
manot,  que  quer  dizer  «  Thesouro  da  f6  » ,  dizem  do  Concilio  Calcedo- 
nense,  porque  declarou  por  de  fe  a  doutrina  de  s.  Leao  sobre  as 
duas  naturezas,  vontades  e  operagoes  em  Christo  Nosso  S.**' ,  e  con- 
denou  a  Dioscoro:  «  Juntaraose  mestres  parvos  630  com  vamgloria 
«  e  soberba,  querendo  ser  dobrados  que  os  318  iustos  da  fe  ».  E 
pouco  mais  adiante  dis ;  «  Tirarao  huma  palavra  da  fe  de  Nestor, 
«  que  pos  duas  pessoas  em  Christo,  huma  do  filho  de  Maria,  outra 
«  do  filho  de  Deos,  e  disserao  que  polla  uniao  se  fizerao  huma  pes- 
«  soa.  Isto  deixarao  polla  excomunhao  do  padre  Cyrilo,  e  compo- 
«  serao  das  palavras  do  p.  Cyrilo  e  das  palavras  de  Nestor ;  e  as-  . 

«  sim  disserao  Christo  huma  pessoa,  duas  vontades,  duas  naturezas,  I 

«  duas  complacencias  da  divindade  e  da  humanidade.  Disserao   que  ^ 

«  a  divindade  fas  obra  de  divindade,  e  a  humanidade  obra  de  hu- 
«  manidade  por  dous  caminhos:  hum  obra  maravilhas,  outro  padece  \ 

«  infirmidades,  e  por  isso  he  menor  a  humanidade  que  a  divindade  » . 
Ate  qui  sao  palavras  daquelle  livro. 
a.  Confirmatur  ez  Outras  muitas  cousas   semelhantes   pudera  referir    de  seus  li- 

di8putationibu8,qtias  vros,  que  deixo  por  brevidade;  bastara  contar  *em  confirma^ao  do  f.i52,v. 

anno  1 604  Auctor  ha- 

buit  cum  quibusdam  q^^  pretendo  as  que  passei  com  os  principaes  letrados  de  Ethiopia 
doctis  monachis  co-  ecclesiasticos  e  seculares  em  humas  disputas  eerais,  que  por  mui- 

ram   Imperatore   Za  x-  o  »   t         r- 

Deng:ull.Summapri-  tos  dias  tive  com  elles  em  junho  de  1604  diante  do  emperador  Za 

mae  disputationis.       t^mji  1  tii  « 

Denguil  e  de    muitos  senhores,   estando   elle  em   huma   terra  que 

chamao  Ondegue,  ao  longo  da  grande  lagoa,  que  divide  o  reino  de 

Goiam  do  de  Dambia,  nas  quais  se  tratou  quasi  de  todos  os  erros 

que  ha  em  Ethiopia  e  principalmente  destes  que  imos  falando,  que 

forao  dos  primeiros  com  que  sairao ;  porque,  mandandome  chamar  I 

o  Emperador  a  seu  pa^o   pera  este  effeito,   me  fes  assentar  perto  i 

de  si  e  disse,  que  folgaria  de  ouvir  algnma  cousa  sobre  o  que  ti-  j 

nhao  controversia  os  de  Ethiopia  com  os  Portugueses,  pera  ver  se  ^ 

era  certo  que  avia  tam  grande  diflferen^a   como    diziao.   Respondi 


l 


LIVRO   II,   CAPITULO   III.  367 

que  perguntassem  o  que  quizessem,  que  eu  declararia  como  o  en- 
tendiamos.  Disse  logo  hum  frade :  Em  muitzis  cousas  temos  grande 
differenQa,  particularmente  em  que  dizem  que  em  Christo  estao 
duas  naturezas,  e  que  a  natureza  humana  nao  he  igual  a  divina. 
Respondi  que  sim  diziamos  e  que  esta  era  a  fe  catholica,  por- 
que,  deixando  o  que  dis  s.  Paulo  em  muitas  partes  que  Deos  der- 
ramou  seu  sangue  pella  Igreia,  que  nos  remio  com  seu  precioso 
sangue,  no  que  mostra  claramente  que  em  Christo  estao  duas  na- 
turezas,  porque  Deos  em  quanto  Deos  nao  tem  sangne,  he  spirito, 
e  assim  o  que  he  Deos  e  derramou  sangne  necessariamente  ha  de 
ter  duas  naturezas,  tambem,  escrevendo  aos  Romanos,  cap.  8,  dis 
que  Deos  nao  perdoou  a  seu  proprio  filho,  mas  que  por  todos  nos 
o  entregou;  e  mais  adiante,  cap.  9,  que  Christo  nosso  Senhor  he 
de  pais  judeus  seg^ndo  a  carne,  e  que  o  mesmo  he  Deos  sobre 
todas  as  cousas;  que  mais  claro  pode  dizer  s.  Paulo  que  Christo 
Nosso  Senhor  tem  natureza  divina  e  humana[?].  Isto  mesmo  ensina 
s.  Joao  em  sua  primeira  Epistola  com  palavras  muito  claras.  Mas 
deixando  tudo  isto,  vamos  ao  santo  Evangelho,  que  he  a  fonte  donde 
elles  tirarao  esta  verdade  pera  denunciar  ao  mundo. 
f-  »53-  *Falando  Christo  N.  S.**'  com  Nicodemos,   como  conta  s.  Joao 

no  cap.  3®,  Ihe  disse:  Ninguem  sobe  ao  ceo,  senao  o  que  desceo 
do  ceo,  o  filho  do  homem,  que  esta  no  ceo.  No  que  mostrou  cla- 
ramente  que  tem  duas  naturezas,  porque  este,  que  falava  e  sabia  e 
dizia  que  era  filho  do  homem,  nao  estava  entao  no  ceo  senao  na 
terra  com  Nicodemos,  nem  era  Deos  senao  homem;  porque  Deos 
nao  se  pode  ver  nem  tocar  com  os  sentidos  corporais,  nem  de- 
scera  do  ceo,  mas  nacera  na  terra  da  Virgem  Nossa  Senhora, 
Luc.  2 ;  e  com  tudo  isso  elle  mesmo  affirmou  que  descera  do  ceo, 
e  que  entao  quando  falava  na  terra  estava  no  ceo.  Logo  Christo 
N.  S.***"  tinha  outra  natureza  afora  a  humana,  segundo  a  qual  pu- 
desse  estar  no  ceo,  quando  com  a  natureza  humana  estava  na  terra. 
E  mais  adiante  no  cap.  9  dis  s.  Joao,  que  achando  Christo  N.  S. 
aquelle  cego  a  nativitate,  a  que  pouco  antes  tinha  dado  vista,  Ihe 
perguntou :  Tu  cres  no  filho  de  Deos  \Y].  Respondeo :  Quem  he,  Se- 
nhor,  pera  que  crea  nolle[?].  Disselhe  Jesu:  Ja  o  viste,  e  o  que  fala 
contigo  elle  he.  Disse  o  que  fora  cego:  Creo,  Senhor;  e  prostran- 
dose  o  adorou.  Que  mais  claramente  podia  mostrar  Christo  N.  S.**^que 
tem  duas  naturezas,  pois  aquelle,  que  o  cego,  depois  de  receber  vi- 
sta,  vio,  ouvio  e  adorou,  dis  que  iuntamente  he  filho  de  Deos  [?J. 


368  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

A  isto  respondeo  hum  dos  seculares:  «  Depois  da  resurrei^ao,  nSo 
ficou  mais  que  huma  natureza  ».  «  Qual  dellasp],  disse  eu;  se  se  perdeo 
«  alguma,  avia  de  ser  a  humana.  Mas  isto  he  contra  o  santo  Evan- 
«  gelho.  Senao  dizeime  quem  era  aquelle  que  no  8  dia  depois  da 
«  resurrei^ao,  estando  entre  os  dicipolos,  disse  a  Thome,  que  nao 
«  fosse  incredulo  cuias  erao  aquellas  chagas  que  Ihe  mostrou  e 
«  Ihe  oflFereceo  que  tocasse[?];  porque  a  divinidade  nao  sc  pode  ver 
«  com  os  olhos  corporaes,  nem  tocar  com  as  mSos,  nem  ter  cha- 
«  gas;  logo  o  que  Ihe  ofFereceo  que  tocasse  e  elle  via,  nSo  era  a 
«  divinidade  senSo  a  carne;  e  com  tudo  isso  a  aquelle  mesmo  que 
«  via  confessou  por  Deos  e  Senhor,  Joafi,  20.  Que  mais  claramente 
«  se  nos  pode  mostrar  que  Christo  N.  S.**^  depois  da  resurreigao 
«  tinha  duas  naturezas,  divina  e  humana  [?]. 

«  Alem  disto  quem  era  aquelle  dis  s.  Lucas  no  *cap.  ultimo,  que  f.i53.v. 
«  aparecendo  aos  dicipolos,  depois  de  sua  resurrei^ao,  e  ficando  elles 
«  turbados  cuidando  que  era  spirito,  Ihes  disse :  Quid  turbati  estis 
«  et  cogitationes  ascendunt  in  corda  vestra  [?] ;  vede  minhas  maos 
«  e  meus  pes,  que  eu  mesmo  sou;  palpaj  e  vede,  porque  o  espi- 
«  rito  nao  tem  carne  nem  ossos  como  vedes  que  eu  tenho.  Logo 
«  nao  se  pode  duvidar,  senao  que  tinha  verdadeiramente  natureza 
«  humana,  nem  vos  t^mpouco  negais  a  divina.  vSabei  que  a  prin- 
«  cipal  causa  porque,  depois  da  resurrei^ao,  esteve  Christo  N.  S.°'  na 
«  terra  40  dias  comendo  e  bebendo,  conversando  e  tratando  com 
«  seus  dicipolos,  foj  pera  mostrar  que  verdadeiramente  tinha  natu- 
«  reza  humana  e  que  conhecessem  que  aquelle  mesmo,  que  tinhao 
«  visto  crucifigado  e  morto,  resucitara  » . 

A  isto  me  nao  respondeo  uada,  mas  come^ou  a  falar  com  os 
autros  sobre  a  interpretagao  destes  luguares.  Disselhe  eu :  «  Todas 
«  sao  palavras  claras  do  Evangelho,  que  interpretagao  tem  \stc\ ;  mas 
«  pera  que  incurtemos  a  pratica,  respondoime  so  a  esta  palavra  : 
«  Christo  N.  S.""^  he  oie  perfeito  Deos  e  perfeito  homem,  ou  nao  [?].  » 
Nao  queria  responder,  senao  misturar  outras  cousas,  ate  que  Ihe 
disse  o  Emperador:  «  Porque  nao  respondeis?  Podeis  negar  que 
«  Christo  seia  perfeito  Deos  e  perfeito  homem?  ^-^  Respondeo  entao 
que  nao  se  podia  negar.  «  Logo  tem,  disse  eu,  perfeita  natureza  di- 
<.<  vina  e  perfeita  natureza  humana.  »  Respondeo  outro :  «j:  Nos  nao  ne- 
«  gamos  que  em  Cliristo  esteia  natureza  divina  e  natureza  humana; 
«  mas  depois  que  se  unirao,  nao  se  pode  dizer  que  estao  duas,  senao 
«  huma.  »  Respondi  que  isto  era  dizer  que  cstao  duas  e  que  nao  estao 


LIVRO   II,   CAPITULO   III.  369 

duas.  Estando  em  Christo  verdadeiramente  a  natureza  divina  e 
humana,  que  sSio  distintas,  porque  nao  se  pode  dizer  que  estSlo 
duas  [?].  c  Se  quereis  dizer  que  Christo  N.  S.**'  nSo  se  pode  dizer 
f.  154.  «  dous  senao  hum,  he  cousa  certissima,  porque  *nao  tem  mais  que 
€  huma  so  pessoa.  E  isto  principalmente  pretende  mostrar  s.  Joao 
«  em  sua  i**  Epistola,  mas  neste  hum  Christo  estao  duas  perfeitis- 
«  sima^  naturezas,  divina  e  humana  ».  Tornou  a  responder  que  as 
naturezas  nao  se  podiao  dizer  duas  senao  huma,  depois  que  se  unirao 
e  ficarao  iguais.  Disse  eu  que  por  rezao  da  uniao  nao  deixarao  de 
ser  duas  perfeitas  e  distinctas  naturezas  e  que  me  maravilhava 
muito  que  affirmassem  que  estas  duas  naturezas  erao  iguais;  pois 
nos  ensinava  o  contrario  o  Evangelho  e  s.  Athanasio  (cuia  doutrina 
me  diziao  que  elles  seguiao)  o  declarava  expressamente  em  seu 
symbolo,  dizendo  que  Jesu  Christo  N.  8.°'  he  igual  ao  Padre  se- 
gundo  a  divindade  e  menor  que  o  Padre  segundo  a  humanidade. 
Respondeo  hum :  «  Quantos  falsos  testemunhos  alevantais  a  s.  Atha- 
nasio  ».  Disse  eu,  que  lesse  bem  seu  symbolo,  que  nelle  acharia 
estas  mesmas  palavras;  mas  que  nao  tinhamos  necessidade  da 
autoridade  de  s.  Athanasio,  onde  estava  tam  expressa  a  de  Chisto 
N.  S.**',  que  dis  em  huma  parte  por  s.  Joao  cap.  10  que  he  igual 
L  com  suo  eterno  Padre  e  huma  mesma  cousa  com  elle :  e  em  outra, 

cap.   14,  que  o  Padre  he   maior  que  elle;  no  que   nos    ensina  que 

tem  natureza  divina,  segundo  a  qual   he   igual   ao  Padre,  e   natu- 

reza  humana,  segnndo  a  qual  he  menor  que  elle.  Respondeo,  que 

quando  disse  que  era   menor   que   o   Padre,  falou   por   humildade, 

porque  segundo  a  humanidade  tambem    era   igual    a  elle,  como   o 

manifestou  s.  Marco  no  cap.  ultimo  dizendo,  que,  quando  subio  ao 

ceo,  se  assentou  a  sua  mao  direita,  que  he  o  mesmo  que  dizer  que 

he  igual  a  elle,  e  em  quanto  Deos  nao  se  cissentou  senao  en  quanto 

1  homem.   «  Nao  nos  avia  de  enganar  Christo  N.  S.®*"  por  humildade 

;  «  (disse   eu) :  com    palavras  affirmativas  nos  declara  que  he  menor 

'  «  que  o  Padre,  nem  em  quanto  homem  pode  ser  igual  a  elle,  porque 

«  muitas  cousa[s]  ha  em  Deos,  que  implica  contradi^ao  comunica- 
f.i54,v.  «  remse  a  creatu*ra,  como  he  ser  increado,  actu  puro,  infinito  e  outras 
«  cousas  semelhantes ;  tambem  se  seguirao  muitas  cousas  contra  a 
«  Sagrada  Escritura,  como  aver  no  mundo  dous  omnipotentes,  immen- 
«  sos,  infinitos,  a  deidade  e  a  humanidade  de  Christo  N.  S."^  Demais 
^  «  disto  s.  Joao  e  s.  Paulo  nos  ensinao  claramente  que,  em  quanto  ho- 

«  mem,  he  menor  que  o  Padre,  porque  s.  Joao   i'*  epist.  cap.  2  dis 

C.  BsccAiti.  /ier,  Aetk.  Scri^t,  oce,  intd,  —  II.  47 


\ 


370  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

«  que  he  nosso  avogado  pera  com  elle,  e  sam  Paulo  affirma,  ad  Rom.  8, 
«  que,  estando  a  mSlo  direita  de  Deos  intercede  por  nos.  Se  fora  ignal, 
«  nSo  podia  ser  avogado  e  interceder;  e  na  i*  ad  Corinth,  cap.  15, 
«  dis  que,  quando  o  Padre  tiver  soieitado  ao  Filho  todas  as  cousas 
«  (que  sera  no  dia  do  juizo),  ainda  entao  o  Filho  sera  soieito  ao  Padre  ». 

Comeijarao  elles  a  intrepretax  estes  luguares ;  mas  vendo  o  Em- 
perador  que  nSo  levavao  caminho,  os  interrompeo,  perguntandome 
como  se  entendia  aquelle  luguar  de  s.  Marco,  porque  assentarse  a 
mSo  direita  do  Padre  parecia  que  denotava  ser  igual  a  elle.  Re- 
spondi  que  isto  nao  queria  dizer  mais  de  que,  em  quanto  Deos,  tem 
a  mesma  gloria,  honrra  e  poder  que  o  Padre  e,  em  quanto  homem, 
Ihe  deu  o  mesmo  Padre  mais  gloria,  mais  honrra  e  mais  poder  que 
a  todos  os  santos  e  anjos.  Mas  ainda  que  dissessemos  que  sentarse 
a  mao  direita  [he]  reinar,  iulgar  e  governar  todas  as  cousas  com  igual 
poder  e  honrra,  nem  por  isso  se  segue  que  a  natureza  humana  seia 
igual  a  divina,  porque  isto  nao  Ihe  foj  dado  a  ella  em  sy  mesma, 
senao  na  pessoa  divina,  e  assim  nao  se  pode  dizer  que  a  natureza 
humana  em  si  mesma  esta  assentada  a  mao  direita  do  Padre,  senao 
que  he  natureza  humana  daquella  pessoa  divina  que  esta  sentada 
a  mao  direita  de  Deos  Padre.  Assi  como  na  incarna^ao,  nem  porque 
Deos  incarnou  a  humanidade  ficou  sendo  Deos,  senao  humanidade 
de  Deos,  mas  tomando  tudo  iunto  en  concreto  dizemos:  Este  ho- 
mem  he  Deos  e  esta  assentado  a  mao  direita  de  Deos  *Padre.  f.  155. 
Por  huma  comparagao  me  declararei  melhor:  «  Quando  Vossa 
«  Magestade  se  assenta  em  sua  cadeira  pera  iulgar  e  governar  seu 
«  imperio,  esta  com  sua  roupa  imperial,  mas  nam  por  isso  se  pode 
«  dizer  que  a  roupa  esta  sentada  e  que  iulga  e  govema,  senao  que 
«  he  roupa  de  Vossa  Magestade  que  esta  assentado  iulgando  e  go- 
«  vernando  ». 

«  Muito  folguei,  disse  o  Emperador,  de  vos  ouvir ;  por  oie  basta 
isto  >.  E  alevantandose,  porque  era  ia  muito  tarde,  sairao  todos, 
sem  ficar  mais  que  hum  muito  seu  privado  chamado  Lac  Mariam 
e  hum  frade  bem  letrado,  que  se  chama  Abba  Za  Manoel  e  eu.  E 
disseme  diante  delles  o  Emperador :  «  Eu  sou  parvo,  que  nao  entendo 
muy to  bem  que  a  creatura  nao  pode  ser  igual  ao  criador ;  com  tudo 
folgaria  que  me  mostrasses  aquelle  ultimo  luguar,  que  alegastes  de 
s.  Paulo  ».  Disse  eu  onde  estava,  e  mostrouo  logo  o  frade  em  seu 
livro  e  dizia:  «  Quando  Ihe  forem  soieitas  todas  as  cousas,  entao  se 
vera  que  o  Filho  he  menor  que  o  Padre  »  ;  porque  em  alguns  de  seus 


j  LIVRO   II,   CAPITULO   III.  37 1 

!  li\Tos  estk  isto  acrescentado.  «  Que  necessidade  temos  de  mais  rezoes, 

disse  o  Emperador,  falando  s.  Paulo  tam  claramente.  Ide  embora 
descansar  » . 

O  seguinte  dia  mandou  o  Emperador  que  se  tomassem  a  iuntar      3.  Summa  alterius 
todos   os   letrados  e  das  primeiras  cousas  que  perguntarao  foj,  se      ^^^  ^   "' 
^  avia  em  Christo  N.  S.°'  duas  vontades,  e  respondendo  eu  que  sim, 

[  se  rio  hum  como  se  ouvira  algum  absurdo  muito  grande.  Disselhe 

eu  entao,  que  isto  mesmo  confessara  elle  o  dia  precedente  no  que 

me  concedera  que  Christo  he  perfeito  Deos  e  perfeito  homem,  ver- 

dade  certissima ;  o  que  nao  podia  ser  se  nao  ti vera  iuntamente  von- 

tade   divina    e   vontade  humana,    pois   a   vontade   he  tam    grande 

perfei^ao,  que  ninguem  pode  ser  perfeito   se   Ihe   faltar,  e   que  o 

mesmo  Senhor  tivera  por  bem  de  nos  tirar  de  duvida,  ensinandonos 

no  Evangelho   com   palavras   claras,  que  tem  iuntamente   vontade 

divina  e  vontade  humana,  porque  no  cap.  6  de  s.  Joao  diz :  «  Desci 

do  ceo  nao  pera  que  fa^a  minha  vontade,  mas  a  vontade  daquelle 

f.i55,v.  que  me  mandou  »;  e  em  s.  Matheus  26,   s.  Marcos  14  e  *Lucas  22 

dis :  «  Padre,  se  quereis,  passaj  de  mim  este  calis  ;  porem  nao  se  fa^a 

minha  vontade  senao  a  vossa  » .  Que  mais  claro  nos  podia  dizer  que 

j  tem  vontade  humana  com  que  se  conformava  e  soieitava  a  vontade 

L  ^e   seu   Eterno   Padre,  que   he   a   mesma  que  elle  tem  em  quanto 

Deos  [?].  Respondeo  elle,  que  aqui  por  vontade  se  entendia  affecto  na- 
tural.  «  Nao  se  entende,  disse  eu,  senao  vontade  propriamente,  porque 
assi  como  fala  propria  e  precisamente  da  vontade  do  Padre,  dizendo 
que  veio  a  fazer  a  vontade  do  que  o  mandou  e  que  se  fa^a  a  von- 
tade  do  Padre,  assim  tambem  fala  propria  e  precisamente  da  vontade 
humana  dizendo :  Deci  do  ceo  nao  pera  fazer  minha  vontade,  e  nao 
se  fa^a  minha  vontade  ». 

«  Bem  fora,  disse  elle ;  poremos  em  Christo  duas  vontades,  pera 

que  quisesse  iuntamente  duas  cousas  contrarias  » .  Respondi  eu  que 

nao  cuidasse  que  a  vontade  divina  e  a  humana  em  Christo  erao  como 

1  a  sua  vontade  e  a  minha,  que  elle  quereria  huma  cousa  e  eu  outra 

I 

!  contraria,  senao  muito  unidas  e  conformes,  sempre  a    vontade  hu- 

mana  se  soieitava  e  obedecia  em  tudo  a  divina ;  o  que  nos  declara 

muito  bem  s.  Paulo    ad  Philip,  2°,  dizendo  que  se  humilhou   assy 

mesmo  feito  obediente  ate  a  morte  e  morte  de  crus. 

:  A  toda  esta  pratica,  que  foy  comprida,  porque  mesturarao  muitas 

w  cousas  fora  de  proposito,  esteve  mui  attento  o  Emperador  e  fes  bom 

conceito  da  verdade,  como  o  tinha  feito  o  dia  dantes,  de  aver  duas 


\ 


y 


372  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

naturezas  em  Christo  N.  S.°' ;  e  assim  disse  que  passassemos  a  outra 
cousa;  que  nSlo  era  necessario  porfiar  mais  nesta.  Disse  eu:  «  Se 
«  Vossa  Magestade  da  licen^a,  folgara  que  me  disserao  so  isto:  se 
«  Christo  N.  S.°'  tem  perfeita  alma  racional  ».  Respondeo  hum:  Que 
sim,  perfeitissima.  «  Pois  das  cousas  mais  perfeitas  que  tem  a  alma 
«  rational,  disse  eu,  he  a  vontade,  tanto  que  ella  he  a  que  escolhe 
«  ou  engeita  o  bem  ou  o  mal,  que  o  entendimento  Ihe  representa, 
«  logo  a  alma  de  Christo  N.  S.°*^  tem  vontade ;  que  sem  ella  nao  fora 
«  perfeita.  E  mais,  quando  Deos  N.  S.***^  disse :  Fa^amos  o  homem 
«  a  nossa  imagem  e  semelhan^a,  Genes,  i°,  na  alma  o  asemelhou 
«  a  sy,  pondo  nella  (que  he  huma  so  substancia)  tres  potencias  in- 
«  separaveis,  que  sSo  intendimento,  vontade  e  memoria  *assim  como  f.  15^- 
«  elle,  sendo  huma  so  simplicissima  substancia,  tem  tres  pessoas,  a 
«  do  Padre,  do  Filho  e  do  Spirito  Santo.  Tambem  vos  concedeis 
«  que  em  Christo  N.  S.°^  esta  a  vontade  divina,  por  onde  forgada- 
«  mente  aveis  de  confessar  que  nelle  estao  duas  vontades,  divina  e 
«  humana,  mas  muito  unidas  entre  sy ,  como  ia  disse  » .  Respondeo 
elle  que  se  estavao  tam  unidas,  que  a  humana  seguia  sempre  o  que 
queria  a  divina,  ia  nao  era  mais  que  huma  so  vontade.  «  Muito  mal 
«  infiris,  disse  eu,  porque,  ainda  que  esta  uniao  seia  tam  grande  e  que 
«  a  vontade  humana  siga  o  que  quer  a  divina,  nem  por  isso  perde 
«  seu  ser,  assim  como  porque  vos  unais  e  sugeitois  vossa  vontade  a 
«  do  Emperador,  nem  por  isso  perde  ella  seu  ser ;  tam  perfeito  o  tem 
«  depois  que  se  soieitou  como  o  tinha  antes  » .  Disse  o  Emperador,  que 
nao  avia  que  falar  mais  nisso ;  e  assim  passamos  a  tratar  de  outros 
erros  que  tem  sobre  as  almas  rationais  e  refirirei  adiante  em  seu 
luguar. 
4.  Ex  dictis  refel-  Bem  claro  se  mostra  do  que  temos  dito  a  pouca   noticia   que 

T?"*  ta  ^d**"*  to  d^'  ^^^^^  destas  cousas  frey  Luis  de  Urreta ;  pois,  defendendo  aos  Ethiopes^ 

ctrina  Aethiopum  dis  pag.  424:  «  Los  Ethiopes,  como  catholicos  christianos  obedientes 
circa  Incarxiatioxieni* 

«  a   los   sagrados   Concilios,  e  em   particular  al  Concilio   Calcedo- 

«  nense,  confiessan  e  creen  en  Christo  dos  naturalezas  perfectas,  in- 

«  comutables,  distinctas,  divina  y  humana  >.  Mas  pera  que  se  veia 

ainda  melhor  quam  longe  estao  disto  os  Ethiopes,  referirei  no  ca- 

pitulo  siguinte  o  que  Ihes  soccedeo  estes  annos  passados  ao  empe- 

rador  Seltan  Sagued,  que  oie  vive,  por  querer  fazer  receber  aos  seus 

esta  verdade  catholica,  que  em  Christo  N.  S.**"^  estao  duas  perfeitis- 

simas  naturezas,  divina  e  humana;  o  que  tenho  por  certo   folgara 

de  ver  o  leitor,  ainda  que  seia  comprido,  porque;  demais  de  ser  go- 


LIVRO  II,   CAPITULO   111.  373 

stosa  historia,  achara  nao  pequena  occasiao  de  louvar  a  Nosso  Senhor 
polla[s]  merces  grandes  que  fes  a  este  bom  Emperador  e  a  Eraz  Cela 
Christos  seu  irmao,  livrandoos  por  vezes  da  morte,  e,  o  que  mais  he, 
dandolhes  conhecimento  de  sua  santa  fe;  e  rogara  ao  padre  das 
misericordias,  que  Ihes  fes  esta  tam  grande,  a  quiera  tambem  fazer 
f.i56,v.  *a  todos  os  demais  deste  imperio,  alumiandolhes  os  entendimentos, 
pera  que  deixem  seus  erros  e  se  soieitem  a  sua  santa  igreia. 


CAPITULO  IV, 

Em  que  se  prosegue  a  prova  de  que  os  Ethiopes  negao 

duas  naturezas  em  Christo  N.  S.""^. 


Ainda  que  nas  disputas,  que  tive  com  os  letrados  diante  do  i.  imperator  Za 
emperador  Za  DengTiil,  ficarao  alguns  frades  e  homens  grrandes  veriStem^mpl^d^ 
conhecendo  a  verdade  de  nossa  santa  fe,  todavia,  como  depois,  en-  ^"'5  q"*™  <>*> "«» « 

monachis    commota 

tendendo  outros  que  o  Emperador  a  tinha  recebido,  amotinarSlo  o  piebe,  vita  privatur. 
povo  e  o  matarSio,  como  diremos  adiante  no  livro   4,  nSo  se  atre-  ^^.^^  auadet  Cela 

^  ^  ChnstOBeiuaquecon- 

viao  a  falar  em  publico  sobra  ella,  posto  que  em  segredo  comuni-  aobrino  Abeithum 

.,,,  J01..0  j^  B«^*   Chriatda  duaa 

cavao  comigo.  Mas  de  poes  que  o  emperador  Seltan  Sagued  tomou  ease  in  Chriato  natu- 

posse  do  imperio,  deseiou   muito  saber  o  fundamento  dcus   contro-  **•• 

versias  que  temos  com  elles  e  assim   humas  vezes  me  perguntava 

estando  s6,  outras  vezes  fazia  que   me   perguntassem   diante   delle 

alg^ns  frades  de  quem  se  fiava,  e  foj   Nosso   Senhor   servido  que 

por  este  meio  viesse  a  entender  bem  nossas  cousas ;  e  tratando  sobre 

ellas  com  Cela  Christos  seu  irmSo,  Ihe  disse  que  Ihe  pareciao  muito 

bem,  e  que   tudo   quanto   diziamos   provavamos   com   a   Escritura, 

Respondeo  elle :  Senhor,  nao  ha  pera  que  dar  ouvidos  a  suas  cousas, 

que  sSo   tam   differentes   das   nossas,  que  de  nenhuma  maneira  as 

podemos  admitir.  Disse  o    Emperador:  Nao  desistais  de  as   ouvir, 

porque  nao  sao  da  maneira  que  dizem  nossos  frades  e  atentai  muito 

bem  se  achais  algiima  cousa  contra   a   Escritura.  Dali    por   diante 

come(;ou  a  me  perguntar  meudamente  e  o  mesmo  fazia  a  qualquer  dos 

demais  Padres  que  achava,  mais^por  curiosidade  e  ver  se  avia  al- 

guma  cousa  dc  que  pegar  pera  zombar  de  nossas  cousas.  que  pera 


i 

376  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

se  aproveitar  dellas.  Mas  achandoas  tam  conformes  a  rezao  e  a 
Sagrada  Escritura,  e  vendo  que  todos  nos  ensinavamos  huma  mesma 
cousa,  entendeo  clara*mente  que  a  doutrina  da  Igreia  Romana  era  f.  157. 
a  verdadeira;  e  assim  se  determinou  a  seguila  e  morrer  por  ella. 
PoUo  que  disse  ao  Emperador  que  elle  primeiro  estava  muito  en- 
ganado,  mas  que   sem   duvida  a  fe  que   ensinavamos  era  a  verda-  4 

deira;  do  que  folgou  muito  o  Emperador.  A  isto  se  aiuntou  que 
a  hum  seu  primo,  que  se  chamava  Abeithum  Bela  Christos,  a  quem, 
ainda  que  homem  casado,  tinhao  todos  por  oraculo  em  cousas  de 
leteras  e  na  verdade,  na  curiosidade  e  continua^ao  do  estudo  podia 
competir  com  muitos  dos  estudiosos  de  nossas  terras,  e  este  tendo 
tambem  entendida  a  verdade  de  nossa  santa  fe,  disse  ao  Emperador 
o  mesmo  que  seu  irmao  Ihe  tinha  dito  e  comegou  a  falar  nisto  com 
outros  letrados,  e  assim  se  foy  espalhando  que  elle  e  o  irmSo  do 
Emperador  aprovavao  nossa  doutrina. 
a.  SeltAnSagAdfa-  Sabendo  pois  desta  maneira  os  frades,  que  de  segredo  estavao 

vet  monachis  caUio-  ^^  nossa  banda,  como  tinhao  por  si  tam  cfrandes  senhores,  come- 

I1CI8  ct  lubet  haben  t-  ^ 

conventum  omnium  (^arao  elles  tambem  a  falar  sem  medo  e  disserao  ao  Emperador,  que 

doctorum Aethiopiae  ,  •      ^         -i.      ^  t   ^     j 

ad  doctrinam  de  du-  niandasse  mntar  diante  sy   os   letrados   que   avia   na   corte,  e  que 
plici  in  christo  na-  elles  Ihes  mostrariao  claramente   polla   Escritura   que   em   Christo 

tura  excutiendam. 

estao  duas  naturezas,  divina   e   humana,  sem   se   misturarem,  nem  ^ 

confundirem.  Folgou  muito  o  Emperador  de  ouvir  isto  e  mandou 
logo  que  todos  se  iuntasem  certo  dia  em  seu  pa^o,  o  que  elles 
fizerao  estando  a  caso  hum  padre  e  eu  com  o  Emperador,  e  elle  Ihes 
fes  huma  pratica  com  muito  boas  e  consertadas  palavras,  em  que  em 
suma  Ihes  disse  que  tinha  entendido  aver  entre  elles  duas  fees  mui 
difFerentes,  nao  podendo  ser  mais  que  huma  a  verdadeira,  e  que 
entre  outras  cousas  huns  Ihe  diziao  que  em'Christo  estao  duas  na- 
turezas,  outros  que  s6  huma;  que  deseiava  saber  a  verdade  disto, 
pera  fazer  que  todos  a  seguissem  uniformemente,  poes  nao  era 
bem  que  em  cousas  de  fe  ouvesse  tam  grande  difFeren^a.  Respon- 
derao  todos  que  era  isto  cousa  muito  importante  e  necessaria. 
3.  Dtsputatio  mo-  Comegando  poes   logo  a  disputar   a  questao,  os  que  erao  *de  f.i57,v. 

Marc&^<»u^iicus  ad  ^^^^  parte   convenciao  aos  contrarios  com  a  Escritura  e  rezoes  fun- 
silentium  redigit  ad-  dadas  nella,  de  maneira  que  nao  podiao  responder  senao  cousas  ri- 

versarios.  Monachuf , 

quia  coram  Impera-  dicolas,  e  vendoso   hum  dolles    muito    apertado,    disse:  Por   huma 
tore  probrosa  verba  gemelanca  me  declararei:  Assim  como  quando  aiuntao  o  ferro  com 

leceratcontraMarca,  r  ~i 

severa  mulctatur.       o  fogo,  fica  tam  aceso  e  feito  fogo  que  nao  se  pode  dizer  que  alli  ^ 

estao  duas  naturezas  senao  huma,  assim  tambem,  depois  que  a  na- 


i 


LIVRO   II,    CAPITULO   IV.  377 

tureza  divina  unio  assi  a  humana,  ficarSlo  de  maneira  que  n^o  se 
pode  dezir  que  sSo  duas  senao  huma.  Respondeo  o  irmSo  do  Em- 
perador  rindo :  «  Vem  muito  a  proposito  a  semelanga  pera  provar 
nosso  intento  » .  E  hum  frade  chamado  Marca  disse :  «  Com  isso  de- 
«  clarais  o  que  nos  dizemos  que  em  Christo  estao  duas  naturezas, 
«  que  por  a  natureza  divina  unir  assy  a  humana,  nao  perdeo  esta 
«  seu  ser,  assim  como  o  ferro  por  se  unir  com  o  fogo  nao  perde 
«  sua  natureza.  Senao  dizeime  que  he  o  que  ali  peza,  o  ferro  ou  o 
«  fogo?  Em  que  se  dao  as  marteladas  no  ferro  ou  o  fogo?  »  Ne- 
stas  cousas  gastarao  a  maior  parte  do  dia ;  e  se  alevantarao  sem 
acabar  de  assentar  em  nada. 

Aiuntaraose  depois  outrcis  duas  ou  tres  vezes  e  ficarao  os 
contrarios  tam  convecidos  que  vierao  a  confessar  em  Christo  duas 
naturezas,  mais  por  cran^a  com  a  boca  que  com  o  cora^ao,  como 
depois  se  vio.  S6  hum  frade,  dos  que  ali  estavao  ficou  sempre  mo- 
strando  sua  pertinacia  aflirmando,  que  em  Christo  nao  avia  mais  que 
huma  natureza ;  pello  que  o  Emperador  o  entregou  a  outros,  pera  que 
mais  devagar  Ihe  mostrassem  a  verdade,  e  mandou  lan^ar  pregao 
que  ninguem  dali  por  diante  soppena  de  morte  dissesse  que  em 
Christo  estava  huma  s6  natureza,  senao  duas  perfectissimas,  divina 
e  humana.  E  outro  dia,  estando  eu  com  o  Emperador,  trouxerao  ao 
frade  pertinas  e  disselhe  Abba  Marca :  Entendestes  ia  a  verdade  do 
que  dissemos?  Pera  que  aporfiais  em  cousa  tam  clara  na  Escritura  [?]. 
f.  158.  Respondeo  elle  algumas  cousas  em  que  *parecia  que  queria  dizer 
como  ia  entendera  como  em  Christo  estavao  duas  naturezas;  mas 
antes  que  se  acabasse  de  declarar,  ficou  subitamente  tam  enfiado 
que  de  bem  preto  que  era  se  tornou  seu  rosto  como  branco  e  co- 
me^ou  a  deshonrrar  a  Abba  Marca.  Disse  este  entao  ao  Empe- 
rador :  Senhor,  como  se  a  de  sofrer  que  este  me  deshonrre  diante 
de  Vossa  Magestade  [?].  Mandeme  o  Emperador  fazer  iusti^a.  Se- 
naloulhe  logo  juizes  e  hum  iulgou  que  merecia  morte,  por  ser 
tam  descomedido  diante  do  Emperador;  outros  dous  disserao  que 
era  homem  ignorante,  que  bastava  a(;outalo.  E  isto  aprovou  o  Eni- 
perador,  e  assim  Ihe  derao  muitos  e  bons  ac^outes  no  terreiro  do  pa^o 
diante  de  muita  gente,  e  ainda  que  o  castigo  foy  pollas  deshonrras  que 
disse  e  o  atrivimento  que  teve  diante  do  Emperador,  a  mais  da  gonte 
cuidou  que  era  porque  affirmava  que  em  Cliristo  estava  huma  s6 
natureza ;  e  assim  ficarao  com  medo  arreceando  que,  se  o  Emperador 
se  enfadava,  tambcm  mandaria  executar  o  pregao  que  tinha  dado. 

C.  Bbccaju.  R0r,  Atth,  6eri^t.  occ.  tMd,  —  II.  48 


i 


378  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

4.  Alia  ct  acrior  A  este  tempo  estava  seu   Patriarca  em  outras   terras  longe,  e 

disputatio  cvun  ipso 

Abuna  qui  cogitur  vindo  depois  a  corte,  se  forao  logo  a  elle  os  frades  que  primeiro, 
?*f  A*  duas  naturas.       j.  g^  acharem  convencidos,  confessarSo  em  Christo  duas  naturezas, 

Seltl^  SagAd  dat  de-   ^  ' 

cretum  pro  doctnna  e  Ihe  affirmarao  que  por  forga  disserSo  aquilo,  mas  que,  poes  elle 

era  cabec^a,  tornasse  por  sua  fe.  Outros  homens  grandes  o  exhor- 
tarao  tambem  a  isso  em  segredo  e  Ihe  offerecerao  todo  o  favor  e 
aiuda;  pello  que  elle  foj  ao  Emperador  e  se  mostrou  mui  sentido 
de  que  em  cousas  de  fe  se  determinasse  nada  sem  elle  estar  pre- 
sente.  Respondeo  o  Emperador  que  nao  pretendera  mais  que  saber 
a  verdade,  porque  nao  ouvesse  scisma,  mas  que,  se  Ihe  nao  parecia 
bem  o  que  estava  assentado,  faria  que  se  tornassem  a  iuntar  todos 
e  que  de  novo  se  disputasse  a  questao.  Disse  o  Patriarca  que  assim 
era  necessario  e  senalando  dia  em  que  por  mandado  do  Emperador 
todos  se  iuntarao  diante  delle  no  pa^o,  e  come^^ando  os  que  erao  f.isS.v, 
de  nossa  parte  a  propor  seus  argiimentos  e  trazer  luguares  da  Escri- 
tura,  vio  o  Patriarca  que  nao  podia  responder:  alevantouse  dizendo 
que  escomungava  a  todos  os  que  affirmasem  que  em  Christo  estavao 
duas  naturezas.  Disse  o  primo  do  Emperador  Abeithum  Bela  Chri- 
stos :  As  cousas  da  fe  nao  se  determinao  dessa  maneira,  senao  vendo 
primeiro  muito  bem  o  que  dizem  os  santos  e  o  que  ensinao  as 
Escrituras  Sagradas.  Nao  seia  V.  Senhoria  tam  apressado  em  cousas 
de  tam  grande  importancia :  ou^a  nossas  rezoes  e  depoes  com  ma- 
duro  conselho  resolvera  o  que  Ihe  parecer  que  se  deve  segnir.  O 
Emperador  tambem  Ihe  disse  que  se  assentasse  e  que  com  quieta^ao 
propusessem  huns  e  outros  suas  duvidas  e  as  resOes  em  que  se  fun- 
davao,  pera  que  milhor  se  pudesse  declarar  a  verdade.  Assentouse 
elle  entao  e  depois  de  muitas  porfias,  nao  podendo  responder  aos 
luguares  de  Escritura,  que  Ihe  traziao,  veio  a  conceder  que  em 
Christo  N.  S.®*^  estao  duas  naturezas ;  e  assim  o  Emperador  mandou 
outra  vez  lan^ar  pregao,  dizendo  que  de  novo  se  virao  os  livros  e 
acharao  como  primeiro  que  em  Christo  estao  duas  perfectissimas 
naturezas,  pello  que  ninguem  dali  por  diante  ensinasse  o  contrario 
soppena  de  morte. 

5.  Attamen  Abuna  Com  todos  estes  preg5es  nao  se  acabou  a  cousa,  antes  secre- 

sacris  interdicit  om- 

nibus  qui  fidem  Lu-  tamente  buscavao  meios  pora  desfazer  o  que  tinhao  assentado  e  dizer 
sitanorum  reccpcrint  ^^^  ^^  Christo  nao  avia  mais  que  huma  s6  natureza,  particular- 
frequenteverint.  im-  mente  o  Patriarca,  que  como  nao  disse  de  cora<;ao  que  em  Christo 

perator     e    contra  111 

utrumque  liberum  cstao  duas  naturezas,  senao  por  nao  poder  responder  aos  luguares 
esse  omnibus  decer-  ^^^  Escritura,  tinha  grande  paixao,  e  sabendo  muito  bem  que  todas 


LIVRO   II,   CAPITULO   IV.  379 

estas  cousas  procediao  de  nos,  pollas  teremos  ensinadas  ao  Empe- 
rador  e  aos  demais  que  as  defendiao,  determinou  de  nos  fechar  as 
portas  de  maneira  que  ninguem  pudesse  trattar   com   nosco   sobre 

f.  IS9.  ellas;  e  pera  isto  esperou  *hum  dia  em  que  ouve  grande  concurso 
de  gente  em  huma  igreia  grande,  que  esta  no  terreiro  do  pago  a 
mao  direita,  e  saindo  a  porta  porque  da  banda  de  fora  estavSo  mui- 
tos,  pedio  aten^ao,  fazendo  alevantar  huma  como  bandeirinha  e  disse 
que  pello  poder  que  tinha  de  s.  Pedro  e  s.  Paulo  excomungava  a 
quem  tomasse  a  fe  dos  Portugueses,  ou  entrasse  em  suas  igreias  ou 
falasse  com  elles  nas  cousas  da  fe.  Assertou  de  estar  ali  hum  Por- 
tugues  e  chegandose  a  elle  hum  frade  dos  que  erao  da  nossa  parte 
e  Ihe  disse  zombando  de  sua  escomunhao :  Portugues,  dizei  a  este 
nosso  Abuna  que  escomungue  pello  poder  que  trouxe  de  Dioscoro 
e  deixe  o  poder  de  sam  Pero  e  s.  Paulo  que  esta  em  Roma.  Dis- 
seme  logo  o  Portugues  o  que  passava,  que  eu  tambem  estava  na 
corte :  e  a  outro  dia  fui  ao  Emperador  e  Ihe  disse :  Veia  Vossa  Ma- 
gestade  o  que  nos  fas  o  Patriarca :  hontem  pos  cscomunhao  diante 
do  pa<;:o  nesta  forma.  Respondeo  o  Emperador :  Nao  tinha  V.  R.  pai- 
xao  disto;  que  eu  darei  remedio.  E  mandou  logo  a  hum  homem 
grande,  que  ali  estava,  que  fosse  aos  desembargadores  do  pa^o  (a 
cuio  cargo  esta  fazer  apregoar  as  ordens  do  Emperador)  e  Ihes  dis- 
sese  que  langassem  pregao,  que  todos  os  que  quissessem  entrar  na 
fe  dos  Portugueses  o  pudessem  fazer  publicamente.  Foy  elle,  mas 
responderao  que  nao  podiao  dar  tal  pregao,  sem  primeiro  ouvir  isto 
de  boca  do  Emperador,  porque  o  Patriarca  tinha  posta  excomunhao 
nao  s6  contra  os  que  tomassem  a  fc  dos  Portugueses,  mas  contra 
os  que  entrassem  em  suas  igreias.  Estava  eu  ainda  com  o  Empe- 
rador,  quando  tornou  esta  reposta,  e  enfadouse  muito  e  disse  que 
langassem  logo  o  pregao,  como  Ihes  mandava ;  que  nao  tinhao  ne- 
cessidade  de  ouvir  de  sua  boca.  E  assim  o  fizerao,  posto  que  muito 
contra  sua  vontade,  porque  tambem  elles  tinhao  pera  sy  que  cm 
Christo  nao  estao  mais  que  huma  s6  natureza. 

f.i59,v.  Com  este  pregao  ficou  sobre  maneira  enfadado  o  *Patriarca   e      c.    Abuna   fretus 

os  de  sua  parte  com  tam  grande  paixSo  que  a  nao  podiao  dissimular;  ch*  ^  ^l*  *  *  afriB  *lm- 
mas  esperarao  tempo,  pera  vomitar  a  pe^onha  que  recoziao  em  seus  peratoris  anathcma- 

r-T-  j  L  v..i-i_  t«    *"«^*t    profitcntes 

cora9(^es,  e  foi  ir  o  Emperador  com  hum  exercito  sobre  huns  gen-  diiaa  in  Christo  na- 
tios   que   se   tinhao   rebellado,  e   ainda   que  se  Ihe  soieitarao  lojro   *^™  «*   commovet 

^  T  o       populum  contra  Im- 

muitos,  ficou  a  invernar  perto  delles  em  huma  torra  que  se  chama  peratorem  et  Ccla 
Achafer,    pera    deixar    melhor   as    cousas    assentadas.    Entretanto 


^ 


38o  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

persuadirao  ao  Patriarca  que  pusesse  excomunhao  contra  todos 
os  que  dissesem  que  em  Christo  estavao  duas  naturezas,  e  sem  fazer 
conta  nenhuma  do  Emperador,  a  pos,  pera  que  tinha  de  sua  parte 
muitos  homens  grandes  e  entre  elles  hum  irmao  do  Emperador, 
que  se  chama  Jemana  Christos,  que  entao  era  muito  poderoso,  porque 
o  tinhao  feito  Eraz,  e  assi  dependiao  todos  tanto  delle  que  nao  se 
atreviao  ao  encontrar  em  cousa  nenhuma  e  muito  menos  no  que 
elle  dizia  que  em  Christo  estava  s6  huma  natureza,  porque  elles 
tambem  o  tinhao  por  fe  verdadeira.  Sabendo  isto  o  Emperador,  o 
sentio  muito  e  escreveo  logo  ao  Patriarca  como  fizera  aquillo,  tendo 
primeiro  declarado  diante  delle  com  tantos  frades  e  letrados  que 
em  Christo  avia  duas  naturezas  e  posto  elle  mesmo  excomunhao 
contra  quem  dissesse  que  s6  huma?  que  se  achara  alguma  cousa  de 
novo,  o  ouvera  de  avisar,  pera  que  iuntando  outra  vez  os  frades  e 
letrados  se  examinasse,  antes  de  desfazer  o  que  com  tanto  con- 
selho  tinhao  declarado.  Respondeo  o  Patriarca  que  atentasse  muito 
bem  pollas  cousas  dos  Padres  dos  Portugueses,  porque  erao  como 
os  que  em  copo  de  ouro  dam  a  beber  aguguar  misturado  com  mor- 
tifera  pegonha.  Tornoulhe  a  escrever  o  Emperador  que  nao  Ihe  per- 
guntava  por  isso,  se  nao  que  como  mandara  sem  conselho  o  que 
com  tanto  tinhao  assentado ;  quc  respondesse  ao  ponto,  pois  era  de 
tanta  importancia,  porque  as  cousas  da  fe  nao  se  mudavao  daquella 
maneira.  *Mas  nao  quis  responder,  nem  desistir  do  que  fazia  iunta-  f.  i6o. 
mente  com  alguns  frades  e  homens  grandes  seculares,  que  era  com 
palavras  de  grande  encarecimento  procurarem  amotinar  contra  o 
Emperador  e  Cela  Christ6s  seu  irmao  os  que  achavao  presentes  e 
com  cartas  aos  ausentes,  dizendo  que  deixavao  sua  fe  antigua  e  to- 
mavao  a  dos  Portugueses. 
7.  Prorex  Tigren-  Entre  outros  a  quem  escreverao  foj  ao  Viso  Rei  de  Tigre,  e 

ris  *^^radcHter*"^  ^^^   ^^^  genrro   do  Emperador   Ihe  fizerao   aquellas  cousas   tanto 

cum  catholicis  ipsas-  abalo,  que  se  pos  logo  de  sua  parte  e  com  grande  ira  determinou 

que  LfUsitanoram  u- 

zores  bonis  omnibus  ^^  ^^^  perseguir,  por  entender  que  tudo  procedia  de  nos;  e  assim 

spoliat.  impcrator  mandou  que  tomassem  as  fazendas  a  todos  os  que  tivessem  entrado 

ccrtior  factus  de  his  ^ 

ab  Auctore,  irascitur  em  nossa  fe,  n^o  so  em  nosso  tempo,.  mas  no  dos  Padres  antigos, 
co^eddi*omnia:proI  ^^^  deixar  nem  o  fato  das  molheres  que  estavao  casadas  com  Por- 
mittit    se   suumque  tugueses,    amea^ando    sobre    isso,   que,  se  nao  tornassem  a  sua  fe, 

imperium  fidem  ca-. 

tholicam  amplexu-  Ihes  avia  de  cortar  as  orelhas  e  narizes;  e  pera  mais  nos  molestar, 
'^™'  encomendou  a  execu^ao  disto  a  huns   homens   muito   nossos   con- 

trarios,  que   vendo   tam   boa  occasiao,  se  aproveitarao  della,  pera 


LIVRO   II,   CAPITULO   IV.  38 1 

mostrar  o  odio  grande  que  nos  tinhao  e  fizerao  muitas  crueldades 
no  tomar  do  fato  ate  deixarem  nuas  molheres  honrradas,  pagan- 
donos  com  isto  muitos  bens  que  sempre  Ihes  fizemos,  acodindolhes 
com  muita  charidade  e  nao  pouco  trabalho  em  suas  necessidades 
e  tribula^Oes.  Mas  os  nossos  sofrerao  todos  estes  roubos  e  inhu- 
manidades  com  grande  paciencia  e  alegria  determinados  de  ofFe- 
recer  ao  cutello  nao  somente  as  orelhas  e  narizes,  com  que  o  Viso 
Rei  Ihes  queria  fazer  medo,  mas  ainda  os  pesco^os,  antes  que  fal- 
tar  hum  ponto  na  fe  daquelle  Senhor  em  que  tinhao  postas  suas 
esperan^as. 
f.i6o,v.  Todas  estas  cousas  me  escreveo  logo  hum  Padre  que  *estava 

em  Tigre,  e  foj  en  coniun^ao  que  o  Emperador  me  tinha  mandado 
dizer  que  como  o  invemo  desse  de  sy  (que  entao  estava  mui  fe- 
chado),  fosse  ter  com  elle.  Pello  que,  ainda  que  chovia  muito,  parti 
sem  esperar  mais  tempo,  e  chegando  me  recebeo  com  grande  ale- 
gria,  porque  deseiava  minha  ida,  ainda  que  me  nao  obrigava  por 
rezao  do  inverno ,  e  contoume  o  que  escrevera  ao  Patriarca  e  o  que 
elle  respondera. 

Referilhe  eu  tambem  o  que  passava  em  Tigre,  e  disse  quam 
mal  pagava  o  Viso  Rei  aos  Portugueses  o  que  seus  paes  tinhao 
feito  em  Ethiopia,  pois  ainda  o  fato  de  suas  molheres,  que  fossem 
da  terra,  mandava  tomar.  Ouvio  elle  isto  com  tam  grandes  mostras 
de  sentimento  que  se  Ihe  arrosavao  os  olhos  com  lagrimas,  e  disse: 
Bem  sei  donde  procedem  todas  estas  cousas  e  quem  escreve  ao 
Viso  Rei  pera  nos  emburulhar,  como  tem  por  custume.  Contra  o 
emperador  Za  Denguil  meu  irmao  (que  assim  o  chama,  ainda  que 
era  so  primo)  amotinarao  o  povo  dizendo  que  deixara  sua  fe  e  to- 
mara  a  dos  Portugueses,  e  assim  o  matarao.  Isto  mesmo  me  que- 
rem  fazer  a  mym.  Se  Deos  Ihe  tem  dado  licen^a,  cumprasse  sua 
santa  vontade,  e  se  nao,  nenhuma  cousa  me  podem  fazer.  Quanto 
ao  Viso  Rey,  eu  Ihe  mandarei  que  se  nao  meta  mais  nas  cousas 
da  fe  e  que  torne  logo  o  fato  que  tomou,  porque  se  nao,  ha  de  ter 
depois  muita  paixao,  e  certo  que  ma  deu  agora  muito  grande  em 
se  aver  desta  maneira  com  os  Portugueses.  Beizeilhe  a  mao  poUa 
merce,  e  disselhe  que  seus  imigos  nao  aviao  de  prevalecer,  porque 
bem  tinha  Nosso  Senhor  mostrado,  que  o  escolhera  pera  cousa  de 
tam  grande  servi^o  seu,  como  era  a  redu^ao  deste  imperio,  pois 
f.  161.  com  tam  pouco  trabalho  seu  Ihe  dera  nas  maos  treze  *que  emdif- 
ferentes  partes  atc  entao    se   tinhao   alevantado   com  muita    for^a, 


i 

t 


3^2  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

pretendendo  cada  hum  o  imperio  e  victoria  de  outros  muitos  ini- 
migos,  e  que  tivesse  por  certo  que  Deos  Ihe  avia  de  aiudar  em 
cousa  tam  alta  e  que  por  ella  o  avia  de  prosperar  e  perpetuar  em 
seus  descendentes  o  imperio.  E  conteilhe  donde  procedera  sairem 
todos  os  Reis  da  casa  de  Austria ;  mas  que  as  cousas  do  servi^o  de 
Deos  sempre  tinhao  difficultades  e  contradi^oes  no  principio,  e  que 
a  esta  que  elle  tinha  come^ada  avia  de  trazer  o  Demonio  muitas, 
porque  via  o  mal  grande  que  della  se  Ihe  seguia ;  mas  que  nSo  ti- 
vesse  paixao  que  Deos  as  venceria  todas  e  alevantaria  a  verdade 
honrrando  iuntamente  a  quem  a  defendia. 

Ao  que  respondeo  que,  depois  que  a  acabara  de  entender,  fi- 

cara  muito  quieto  em  seu  cora^ao  e  resoluto  de  a  defender,  e  que 

por  mais  adversas  que  sucedessem  as  cousas,  avia  de  trabalhar  ate 

morrer  por  introduzir  em  seu  imperio  a  santa  fe  de  Roma.  Mandou 

logo  escrever  ao  Viso  Rei  de  Tigre,  que  se  maravilhava  muito  de 

que,  sabendo  que  os  Padres  e  Portugueses  erao  seus  amigos  de  co- 

ra^ao,  os  tratasse  daquella  maneira;  que  nao  se  metesse  mais  nas 

cousas  da  fe  e  que  tornasse  logo  todo  o  fato  que  tivesse  tomado. 

E  pera  que  nao  andasse  com  dilagftes,   mandou  a  carta   por   hum 

seu  pagem.  Mas  nem  por  isso  Ihe  faltarao  escusas  pera  o  nao  tornar. 

8.  Concionem  so-  Outro  dia,  nao  estando  eu  presente,  disserao  alguns  nossos  ami- 

Htterasmater^^urct  ^^^  ^^  Emperador,  que  avia  muitas  murmura^Oes  no  arrayal.  por- 

frateretprimoresre-  que  favorecia  tanto  as  cousas  da  fe  dos  Portugueses  e  que  muitos 

gni  eum  a  proposito  .  ,,       x^  n  t^  .     . 

deterreri    conantur;  estavao  como  amotinados  contra  elle.  Respondeo:  Pouco  vaj  nisso, 
Ceia  Chri8t6s  gravi  porque  quanto  elles  podem  fazer,  nao  pode  passar  da  morte.  Esta 

morbo  cornpitur,  at    '^      ^         ^  '^  ^  r  r 

Deo  favente  conva-  n^o  nos   he  possivel   fugir,   pois  a  menhaa  ou   outro  dia   forQada- 

lescit. 

mente  nos  ha  de  chegar  a  todos ;  por  onde,  se  for  necessario,  mor- 
ramos  logo  poUa  verdade.  E  virandose  pera  hum  clerigo,  que  en- 
tendia  bem  nosscis  cousas  e  ia  se  confessava  com  nosco,  Ihe  disse: 
*Porque  nao  falais  livremente  o  que  sabeis?  Tendes  medo?  Sy,  f.it>i,v 
Senhor,  respondeo  elle ;  arreceo  esta  gente  que  he  trabalhosa.  Disse 
o  Emperador :  Nao  tenhais  medo ;  falai  publicamente :  quem  quiser 
se  aproveitara,  e  quem  nao,  sua  sera  a  culpa;  nao  fique  por  vos. 
Vendo  o  Emperador  que  o  Patriarca  nao  Ihe  respondia,  Ihe 
tornou  a  escrever  que  no  fim  do  inverno  fosse  ter  com  elle,  e  man- 
dou  que  todos  os  Superiores  de  mosteiros  e  os  letrados  do  reino 
de  Gojam,  de  Begmederi,  de  Dambea,  que  erao  vizinhos,  fossem 
tambem  naquelle  tempo,  pera  que  se  acabassem  de  determinar  as 
cousas  da  fe.  Com  isto  se  come^ou  a  alvoro^ar   mais  a  gente  po- 


LIVRO  II,  CAPITQLO  IV.  383 

pular,  e  diziao  que  ia  que  o  Emperador  nSlo  queria  estar  pollo  que 
ordenava  o  Patriarca,  que  se  unissem  todos  e  dissesem  como  pri- 
meiro,  que  em  Christo  estava  huma  so  natureza  e  morressem  por  isso. 
Tambem  diziSo  que  alguns  frades  mancebos  tomavao  espada  e 
rodella  e  esgrimiao  dizendo  que  morreriao  por  sua  fe  antigua.  Sa- 

^  bendo   isto  Jemana   Christos   irmao  do  Emperador,   que  estava  no 

reyno  de  Begmederi,  Ihe  escreveo  persuadindolhe  com  muitas  rezOes 
que  nSo  fosse  avante  com  as  couscis  da  fe,  senSo  que  mandasse  quc 
todos  seguissem  a  doutrina  do  Patriarca,  se  nao,  que  avia  de  per- 
der  seu  imperio.  E  na  mesma  forma  Ihe  escreveo  sua  maj,  que 
estava  em  outra  parte,  porque  os  frades  Ihe  meterao  em  cabega  que 
elle  e  seu  irmao  Cela  Christos  aviao  de  morrer,  se  instassem  em 
querer  introduzir  a  fe  dos  Portugueses. 

Sentio  muito  o  Emperador  que  Ihe  escrevessem  desta  maneira, 
e  tendo  na  mao  a  carta  de  seu  irmao  disse  diante  de  mim  mui  en- 
fadado  que  logo  sem  esperar  mais  avia  de  concluir  o  que  tinha  co- 
f.  162.  me^ado  e  mandou  *chamar  a  Cela  Christos,  que  estava  perto  no 
reino  de  Gojam  e  assim  apressou  sua  vinda,  trazendo  comsigo  os 
principaes  frades  daquelle  reino,  com  determina^ao  de  morrerem 
todos  por  nossa  santa  fe;  com  o  que  se  alegrou  muito  o  Empera- 

|b  dor  e,  tomando  conselho  com  elles  do  que  aviao  de  fazer,  Ihe  dis- 

serao  que  se  mostrasse  como  indifFerente  por  ambas  as  partes,  af- 
firmando  que  nao  pretendia  mais,  senao  que  se  declarasse  a  verdade 
pera  fazer  que  todos  a  seguissem  e  que  a  elles,  que  erao  letrados, 
pertencia  declarala;  e  entao  elles  mostrariao  claramente  com  as 
Escrituras  como  em  Christo  estao  duas  naturezas  E  saindo  do  pa<;:o, 
se  iuntarao  todos  em  casa  do  primo  do  Emperador  Abeit  Hum  Bela 
Christos  e  me  mandarao  chamar  e  propuserao  as  autoridades  e  re- 
zOes  que  traziao  por  sy  os  contrarios,  que  erao  ridicolas,  e  escre- 
verao  a  reposta  e  as  autoridades  da  Escritura  e  rezois  que  Ihes 
apontei  pera  confirmar  nossas  cousas. 

Poucos  dias  depois  adoeceo  Cela  Christos  de  hum  prioris  muito 
forte,  o  que  sentio  na  alma  o  Emperador  e  todos  nossos  amigos, 
por  ser  pessoa  de  tanta  importancia,  e  se  morrera,  aviao  de  dizer 
os  frades  que  por  defender  nossa  fe  Deos  o  matara.  Sangrouse  logo 

\  4  vezes  e  tomou  algumas  mezinhas,  mas  com  tudo  isso  o  7°  dia  a 

nojte  se  achou  tam  fraco  e  pertado  da  doen^a  que  Ihe  parecco  que 

r  morria;  pello  que  mandou  sair  todos:  ficando  eu  s6  com  elle  (que 

de   ordinario   o   acompanhava),  me   disse:    Eu   veio   que   vou   aca- 


i 


384  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

bando.  Certo  que  nSo  me  pesa  de  morrer,  mas  sinto  muito  fica- 
rem  as  cousas  da  fe  desta  maneira;  se  se  concluirao  e  o  seguinte 
dia  eu  acabara,  fora  muito  consolado.  Agora  hao  de  di/.er  os  fra- 
des,  que  porque  nao  quis  desistir  destas  cousas,  como  elles  me  pe- 
diao,  me  matarSo  com  suas  ora^oes,  que  publicamente  as  fazem  al- 
guns  mosteiros  e  tomao  as  pedras  de  ara  nas  cabe^as  pedindo  a 
nosso  Senhor  que  me  tire  isto  do  corac^^ao  ou  que  me  mate.  E  di- 
zem  *que  assim  o  fizerao  em  tempo  do  emperador  Za  Dengnil  e  que  f.i62,v. 
Deos  os  ouvira  e  o  matara.  Confesseme  V.  R.  e  fagasse  sua  santa 
vontade.  Respondi  que  tinha  muito  grande  confian^a  na  divina  miseri- 
cordia  que  Ihe  avia  de  dar  saude,  mas  que  bem  era  confessarse ;  e  in- 
struio  no  modo  com  que  se  avia  de  aparelhar,  por  que  nao  me  parecia 
que  estava  tanto  no  cabo,  como  elle  cuidava.  E  assim  foj ;  porque  ou- 
tro  dia  se  achou  melhor,  pollo  que  me  disse  que  ia  que  Nosso  Senhor 
Ihe  fazia  merce  de  o  aliviar,  defiriria  a  confissao  pera  quando  a  pudese 
fazer  com  mais  aparelho  e  quieta^ao,  como  fes  depois.  Soube  logo  sua 
maj  que  adoecera  e  teve  grande  sentimento,  porque  o  amava  muito 
como  menor  de  seus  filhos  e  merecelo  elle  por  suas  excelentes  partes 
e  acabou  de  dar  credito  ao  que  os  frades  Ihe  diziao  que  Deos  o  avia 
de  castigar  por  defender  a  fe  dos  Portugueses,  e  assim  le  escreveo 
que  ia  achara  o  que  tanto  ella  arreceava,  que  pedisse  a  Deos  perdao 
do  passado  e  proposesse  enmenda,  e  como  teve  novas  que  estava 
melhor,  Ihe  tornou  a  escrever  exhortandoo  com  muitas  palavrsis  a 
que  deixasse  de  defender  as  cousas  dos  Portugueses  e  seguisse  a 
doutrina  do  Patriarca,  ia  que  Deos  Ihe  dera  saude,  porque  Ihe  nao 
viesse  outro  maior  cctstigo ;  o  que  elle  me  referio  zombando  de 
como  os  frades  Ihe  metiao  na  cabe^a  tam  facilmente  quanto  queriao. 
g.  Abunaconvoca-  Como  se  chegou  o  tempo  que  o  Emperador  tinha  senalado  pera 

tis  muitts  monac  is  iuntassem  os  letrados,  veio  o  Patriarca  com  muitos  frades. 

coram    Imperatore    ^  ' 

defendit    crrorem  Juntaraose  tambem  muitos  superiores  de  mosteiros  e  traziao  com- 

Dioscori,    non    qui-      .         ^      ^  ,     .  ^  •   1  « 

dem  rationibus,  sed  sigo  tantos  companheiros  que  nao  se  via  no  arraial  se  nao  esqua- 
clamoribus  et  minis.   d^^es  de  frades.  Vierao  tambem  muitas  freiras  que  qua  andao  por 

onde  querem,  e  assim  ellas  como  muitos  dos  frades  diziao  a  todos 
que  vinhao  a  morrer  por  sua  *fe  antigua,  ia  que  a  queriao  trocar,  f.  163. 
e  nao  fes  isto  tao  pouco  abalo  na  gente  ignorante,  que  nao  viessem  a 
cstar  cm  grande  perigo  os  que  defendiao  nossas  partes,  e  a  mim  me 
avisarao  que  me  guardasse,  porque  me  aviao  de  matar,  e  alguns  me 
a  conselhavao  que  me  fosse  do  arrajal ;  o  que  deixei  de  fazer  por  mui- 
tas  rezOes  e  principalmente  porque  era  necessario  animar  alguns  dos 


1 


LIVRO  II,   CAPITULO   IV.  385 

que  esUvao  da  nossa  parte  e  mostrarlhes  as  autoridades  da  Escritura 
e  dos  Santos,  com  que  se  prova  a  verdade,  e  soltar  os  argumentos 
dos  contrarios.  E  chegou  a  tanto  o  atrevimento  de  alguns  frades  que 
se  consertarao  secretamente  pera  matar  ao  Emperador  e  Cela  Chri- 
stos  seu  irmao  a  primeira  vez  que  saissem  iuntos  a  cavalo,  e  depois 
fazerem  sua  vontade  nas  cousas  da  fe  e  em  tudo  o  mais ;  do  que  teve 
noticia  o  Emperador  e  assi  dissimuladamente  pos  remedio  espa- 
Ihandoos. 

Estando  ia  iuntos  todos  os  frades  e  letrados  pedirao  ao  Em- 
perador  Ihe  sinalasse  o  dia  em  que  se  aviao  de  comegar  as  dispu- 
tas,  e  elle  ordenou  que  fosse  aos  29  de  setembro  de  16 13,  dia  do 
glorioso  Archanjo  sam  Mignel ;  e  indo  naquelle  dia  o  Patriarca 
com  todos  os  mais  diante  do  Empersidor,  disse  elle,  antes  que  se 
propusesse  nada,  que  estava  mui  queixoso  do  Patriarca,  porque, 
tendo  primeiro  declarado  com  os  letrados  que  a  verdadeira  fe  era 
estarem  em  Christo  duas  naturezas,  divina  e  humana,  unidas  na  pes- 
soa  divina,  e  posto  excomunhao  contra  quem  dissese  outra  cousa, 
pello  que  elle  mandara  dar  pregao  que  assim  o  praticassem  todos, 
sem  ninguem  dali  por  diante  ensinar  o  contrario,  depois  tornara  a 
publicar  que  em  Christo  nao  avia  mais  que  huma  s6  natureza,  sem 
esperar  que  elle  viesse  da  guerra,  nem  Ihe  mandar  dizer  nada,  nem 
iuntar  os  letrados  que  primeiro  estavao  presentes.  Respondeo  o 
Patriarca,  que  elle  nunca  dissera  que  em  Christo  avia  duas  natu- 
rezas  senao  huma.  Ficou  o  Emperador  maravilhado  e  disse  que 
como  afiirmava  tal  cousa,  pois  diante  delle  e  de  tantos  letrados  o 
dissera  e  assentara  com  excomunhao  [?] ;  pello  que  nao  podia  escu- 
f.i63,v.  sarse  *que  fora  falto  de  lingoa,  senao  que  ali  estavao  quasi  todos 
que  testemunhassem.  Respondeo  o  Patriarca  que  nao  podiao  teste- 
munhar  contra  elle,  porque  todos  erao  seus  contrarios.  Disse  o  Em- 
perador :  Nao  he  rezao  que  minha  verdade  fique  desta  maneira :  iul- 
gem  se  basta  o  que  diz  pera  que  nao  testemunhem.  E  sinalando 
juizes  julgarao  que  pois,  sendo  Patriarca  e  paj  de  todos,  affirmava 
que  aquelles  erao  seus  contrarios,  isso  bastava  pcra  serem  dados 
por  sospeitos.  Pollo  que  o  Emperador  se  calou ;  mas  nem  por  isso 
deixou  de  ficar  bem  desacreditado  o  Patriarca.  Levantoase  logo  Cela 
Christos  e  pedio  iustiga  contra  hum  letrado  secular,  porque,  affir- 
mando  primeiro  que  em  Christo  estavao  duas  naturezas  e  falando 
elle  com  os  mais  letrados  que  se  pusesse  excomunhao  duas  vezes 
contra  quem  dissesse  o  contrario,  tornava  a  affirmar  que  nao  avia 

C.  BiccARl.  Rtr,  Aeik,  Seripi,  occ,  ined,  —  II.  49 


386  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

mais  que  huma.  Respondeo  elle,  que  nao  avia  tal  cousa,  porque 
sempre  tivera  que  em  Christo  esta  huma  s6  naturezd.  Mas  logo  foj 
ganhado  e  convencido  com  muitas  testemunhas ;  pello  que  o  Em- 
perador  o  mandou  levar  prezo ;  o  que  sentirao  muito  os  contrarios 
que  tinhao  nelle  grande  aiuda,  nSo  tanto  por  rezao  de  suas  letras, 
quanto  por  abundancia  de  suas  palavras,  porque  era  muito  falador; 
mas  depois  o  soltarao,  porque  diziao  que  de  proposito  Ihes  tiravao 
o  principal  que  tinhao  de  sua  parte  pera  que  nao  pudessem  provar 
a  verdade.  Mas  daqui  se  seguio  verem  todos  claramente  como  o 
Patriarca  negara  o  que  primeiro  tinha  affirmado. 

Nestas  e  outras  porfias  gastarao  todo  aquelle  dia,  sem  fazer  mais 
que  propor  a  questao ;  e  no  seguintc  provarao  claramente  Cela  Chri- 
st6s  e  os  demais  que  estavao  da  sua  banda,  que  em  Christo  N.  S."' 
estao  duas  naturezas  com  seus  mesmos  livros,  com  s.  Paulo  e  com 
o  Evangelho.  E  vendose  os  contrarios  convencidos,  disserao  que 
nao  aviao  de  responder,  ncm  ouvir  suas  cousas,  senao  o  que  Ihes 
ensinara  seu  mestre  Dioscoro,  que  em  Christo  esta  huma  s6  natu- 
reza  e  que  isto  tinhao  guardado-em  Ethiopia  todos  os  antepassa- 
dos;  que  tambem  o  fisesse  guardar  o  Empcrador  *e  nao  Ihe  vies-  i 
sem  com  fe  nova.  Disse  Ccla  Christosr  Logo  nao  quereis  rezao, 
senao  for^a.  Nao  ha  de  ser  desta  maneira:  aveis  de  ouvir  e  re- 
sponder.  NSi)  podemos,  disserao  elles,  porque  temos  excomunhao 
de  Dioscoro  que  nao  ougamos  as  cousas  de  LeSo.  Respondeo  Cela 
Christos:  Que  aproveita  essa  excomunhao  contra  o  que  nos  ensina  o 
Evangelho[?].  Vos  outrose  nos  temos  excomunhao  de  s.  Paulo,  pera 
que  nao  admittamos  cousa  em  contrario  do  que  elle  ensinou,  ainda 
que  hum  anio  o  viesse  a  dizer.  Julgem  por  quai  excomunhao  de- 
vemos  estar:  polla  de  sam  Paulo  ou  poUa  de  Dioscoro?  Disserao 
os  juizes  que  pella  dc  sam  Paulo:  que  vissem  bem  o  que  elle  en- 
sinava  e  isso  guardassem.  Responderao  os  contrarios  gritando  que 
a  doutrina  de  Dioscoro  nao  era  contraria  a  de  s.  Paulo,  que  nao 
se  aviao  de  por  a  disputar  sobre  isso,  pois  elle  Ihes  mandara  que 
o  nao  fizessem.  Que  julgasse  o  Emperador. 

Mandou  elle  entao  calar  a  todos  e  disse:  As  cousas  da  fe  nao 
se  determinao  com  gritas,  nem  as  duvidas  so  podem  resolver  senao 
perguntando  e  respondendo.  Os  que  tiveram  difficultades  as  pro- 
ponhao  e  os  outros  respondao,  pera  quo  se  declaro  a  verdade,  que 
isto  he  o  que  prctendemos.  Sairao  logo  todos,  porque  era  ia  tarde 
e  diziao  publicamente  que  Ihes  queriao  fazer  trocar  sua  fe  e  darlhes 


f 


LIVRO  II,   CAPITULO   IV.  387 

dous  Deoses,  e  que  o  Emperador  era  Portugues  perfeito,  com  outras 
muitas  cousas,  em  que  mostravao  bem  sua  soberba  e  pertinacia. 
Ate  os  mesmos  criados  do  Emperador  diziao  que  nSo  queria  iu- 
sti^a  senao  de  toda  a  maneira  defender  as  cousas  dos  Portugue- 
ses;  com  o  que  cada  hora  hia  creccndo  mais  o  motim. 

Vondo  o  Patriarca  que  a  principal  for^a  dos  que  diziao  que  em  10.  Abuna  ad  pc- 
Christo  N.  S."^  estao  duas  naturezas  era  o  irmao  do  Emperador,  provolutuseummul- 
determinou  buscar  os  meios  possiveis  pera  o  afastar  dclles,  c  mcteo  **»  Togat  ne  a  fidc 

patrum  sinat  Aethio- 

algumas  pcssoas  grandes  que  Ihe  persuadissem  quisesse  desistir,  e  piam  dcsciscere ;  re- 

f.i64,v.  depois  foj  elle  mesmo  a  sua  *casa  e  botandose  a  seus  pes  Ihe  pedio  dc^^^duplici^^natuni 

com  muita  instancia  deixasse  de  porfiar  naquellas  cousas  e  se  lan-  Christi    cssc   fldem 

maiorum    clare    de- 

gasse  de  fora.  Felo  elle  alevantar  e  disse  que,  se  Ihe  tivera  morto  mostrari   cx   Evan- 

algum  irmao  ou  feito  iniurias  muito  graves,  deixara  logo  tudo  por  ^^^^J    concihis   et 

sua  intercessao,  mas  que  as  cousas  da  fe  nao  se  podiao  deixar  por 

rogos    Que  nao  Ihe  falasse  naquillo.   Disse  o  Patriarca  que  aten- 

tasse  quantos   Emperadores  e  letrados   grandes   ouve  em  Ethiopia 

que  forao  por  este  caminho;  que  nao  quissese  elle  ir  por  outro  e 

deixar   de  sy  tal  nome   que  fizera   trocar  a  fe  antigua;   que  dese- 

stisse  e  que  publicaria  que  sabia  mais  que  elle  e  com  suas  rez5es 

o  concluira. 

Respondeo  Cela  Christos,  que  elle  nao  buscava  honrras  nem 
trocava  a  fe  antigua,  antes  a  defendia,  como  o  tinha  mostrado  no 
Evangelho,  em  sam  Paulo  e  nos  mesmos  livros  que  Ihes  vierao  de 
Alexandria;  que  nao  Ihe  alegava  com  os  de  Roma.  Disse  o  Pa- 
triarca :  Quem  sabe  se  estes  livros,  que  vierao  de  Alexandria,  os  fez 
algum  herege[?].  Nao  quero  mais  de  que  nds  deixe  entre  nos,  sem 
aiudar  a  huns  nem  a  outros.  Nestas  porfias  esteve  de  polla  menhaa 
ate  meio  dia,  que  Cela  Christos  Ihe  disse  que  nao  cansasse  mais, 
porque  ate  morrer  avia  de  defender  que  em  Christo  estao  duas  na- 
turezas,  pois  esta  era  a  verdadeira  fe.  Saio  com  isto  mui  enfadado 
o  Patriarca  e,  iuntando  seus  frades,  determinarao  de  nao  ouvirem 
senao  gritar  que  fosse  como  primeiro,  e  a  isto  incitavao  tambem 
aos  seculares. 

O  outro  dia  poUa  menhaa  me  mandou  chamar  Cela  Christos  e  „.  cela  Christ^s 
me  contou  o  que  passara  com  o  Patriarca,  e  disse  que  estava  muito  ®*  ipscmct  J™P^*" 
triste,  porque  nao  queriao  ouvir  rezao  nem  ver  seiis  mesmos  livros,   Abunacumsuis  mo- 

,  ^.  ^  .11  nachis  instaurat  di- 

senao  levar  as  cousas  por  motim ;  e  que  ate  seus  criados  se  levan-   spuutiones;  victus 
tavam  contra  elle,  de  maneira  que  arreseava  o  matassem  de  noyte,  auctoritatibus    non 

dat  maniis,    sed  m- 

6  que  soubesse  de  certo  que  o  Emperador  e  elle  nao  estavao  hum  sutproservandatra- 


388  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

ditione    maionim.  passo  da  morte.  Pollo  que  era  necessario  fazer  muita  ora^ao  e  con- 
omnes  sequantur  fi-  siderar  bem  que  conselho  toma*riao.  Vendo  eu  tambem  que  as  cou-  f.   165. 
dem  in  libris  ezpo-  sa,s  se  hiao  armando  pera  mal,  Ihe  disse  que  nSo  me  parecia  que 

sitam. 

convinha  levar  aquillo  por  for^a,  pois  o  Emperador  por  entam  a 
nao  tinha,  senao  que  trabalhasem  o  possivel  com  bom  modo  pera  que 
ouvissem  as  rezC^es  e  vissem  os  livros,  que  com  isso  mais  suave- 
mente  se  renderiao,  mas  que,  se  ultimamente  Ihes  parecesse  que  nao 
podiao  sair  com  o  que  pretendiao,  que  o  Emperador  dessc  de  suio 
pera  que  ficasse  em  aberto  sem  se  determinar  huma  cousa  nem 
outra,  dizendo  que  isto  era  ponto  de  grande  importancia  e  que  pedia 
muito  exame  e  considera^ao  antes  de  se  resolver;  que  ia  que  avia 
tam  varios  pareceres,  tornassem  todos  a  ver  os  livros  devagar,  pera 
que  depois  pudessem  determinar  melhor  qual  das  duas  cousas  era 
verdadeira;  que  como  passasse  aquella  furia,  logo  se  esfriariao  e 
poderiao  ir  persuadindo  a  verdade  aos  principaes,  ou  dilatariao  isto 
ate  que  o  Emperador  tivesse  forga  bastante.  Respondeo  elle  que 
assim  o  fariao,  mas  que  nao  cessassem  dc  rogar  a  Nosso  Senhor 
os  aiudasse  o  que  continuamente  eu  fazia  e  escrevia  aos  demais 
Padres  fizessem  o  mesmo,  que  cada  dia  aiuntavao  nas  igreias  os  Por- 
tugueses  e  meninos  dos  seminarios  e  diziao  ladainhas  por  esta  in- 
ten^ao. 

Como  o  Patriarca  teve  instruido  seus  frades  no  que  aviao  de 
fazer,  foj  com  elles  ao  pa^o  e  pedio  ao  Emperador  mandasse  iuntar 
os  demais  pera  que  acabassem  de  tomar  resolu^ao  no  come^ado; 
o  que  elle  fes,  e  em  vespora  do  glorioso  s.  Francisco,  a  quem  eu 
pedi  com  muita  instancia  aquelle  dia  e  o  siguinte,  que  estiverao 
debatendo,  alquan^asse  do  Senhor  tivesse[m]  bom  fim  nossas  cousas; 
e  tornando  a  provar  Cela  Christos  e  os  dc  sua  parte  que  em  Chri- 
sto  N.  S.*"^  estao  duas  natureza^  com  s.  Chrysostomo,  Basilio,  Atha- 
nasio  e  com  outros  muitos  Santos  antiguos,  que  elles  tambem 
tem  em  seus  livros,  responderao  os  outros  que  nao  aviao  de  ad- 
mittir  estes  Santos;  e  depois  de  m.uitas  porfias  disse  Cela  Chri- 
stos:  «  Pois  respondeime  ao  que  dis  o  sagrado  Evangelho,  *ia  que  f.i65,v. 
«  nao  dais  credito  aos  Santos.  Quando  Christo  N.  S.""^  no  horto 
«  rogou  com  tam  grandes  angustias  que  passasse  delle  aquelle  ca- 
«  lis,  quando  suou  sangue,  padeceo  e  morreo,  quando  disse  na  crus: 
«  Deos  meu,  porque  me  desemparastes,  [?J  e  depois  a  seus  dicipolos : 
«  Vou  a  meu  Padre  e  a  vosso  Padre,  a  meu  Deos  e  a  vosso  Deos, 
<  como  disse  e  padeceo  todas  estas  cousas?  em  quanto  homem  ou 


» 


LIVRO   II,  CAPITULO   IV.  389 

«  em  quanto  Deos?  »  Responderao  que  em  quanto  homem.  <  Logo 
tem  natureza  humana,  disse  elle,  nem  a  natureza  divina  se  afastou 
nunca  della,  depois  que  a  unio  a  sy  *.  Concederao  tudo.  «  Logo  em 
Christo  estao  duas  naturezas,  divina  e  humana  » ,  inferio  elle.  Respon- 
derao  que  nao,  porque  depois  que  se  unirao  nao  se  pode  dizer  que 
duas  senao  huma.  «  Vos  outros,  disse  Cela  Christ6s,  affirmais  duas 
«  cousas  contrarias,  que  em  Christo  esta  a  natureza  divina  e  humana, 
«  sem  se  trocar  nem  misturar,  e  que  nao  esta  mais  que  huma  natu- 
«  reza.  Se  quereis  dizer  qtie  ha  hum  so  Christo,  eu  tambem  digo  isso, 
«  porque  nao  tem  mais  que  huma  pessoa,  mas  nelle  estao  duas  per- 
«  feitissimas  naturezas  ». 

Nestas  porfias  estiverao  muito  tempo,  e  vendose  ultimamente 
convencidos  o  Patriarca  e  os  seus,  e  que  nao  podiao  responder,  se 
botarao  aos  pes  do  Emperador  gritando  que  fosse  como  primeiro, 
que  nao  Ihes  trocasse  sua  fe  antigua,  guardada  e  defendida  por 
tantos  Emperadores.  Vendo  o  Emperador  que  nao  queriao  lcvar 
a  cousa  por  rezao,  senao  por  motim,  nao  se  atreveio  a  dizer  cla- 
ramente  que  assentassem  em  duas  naturezas,  senao  que  dessem 
pregao  que  ia  virao  os  livros,  que  todos  guardassem  o  que  nel- 
les  estava.  Responderao  Cela  Chnstos  e  os  seus :  «  Isso  he,  Se- 
nhor,  o  que  pretendemos,  que  guardem  o  que  esta  nos  livros,  por- 
que  nao  ensinao  outra  cousa  (como  temos  mostrado)  senao  que  em 
Christo  N.  S.  estao  duas  perfeitissimas  naturezas,  divina  e  humana  ». 
f.  166.  Deuse  *o  pregao  como  mandou  o  Emperador,  mas  gritou  hum 

frade  que  ali  estava,  que  queria  dizer  como  antes,  pello  que  mui- 
tos  affirmarao  depois  que  assim  como  antes  tinhao  que  em  Christo 
esta  huma  so  natureza,  assim  aviao  de  ter.  Mas  o  Patriarca  e  os 
que  estavao  de  sua  parte  nas  disputas  bem  entenderao  o  que  queria 
dizer,  e  assi  sairao  mui  enfadados,  posto  que  o  disimulavao  quanto 
podiao,  publicando  que  se  avia  de  ter  como  antes  que  em  Christo  esta 
so  huma  natureza,  ainda  que  nao  faltarao  entre  elles  alguns  que 
entendessem  muito  bem  a  verdade  que  em  Christo  estao  duas  na- 
turezas,  e  posto  que,  por  vergonha  do  que  ia  tinhao  dito,  nao  se 
atreviao  a  o  confessar,  depois  o  affirmarao  publicamente. 

O  domingo  siguinte  mandou  chamar  o  Emperador  hum  frade  e  xa.  SeltAn  Sag&d 
hum  senhor  grande  cabo<;as  dos  que  defendiao  que  em  Christo  N.  S.**'  gujt  quemdam  mo- 
estava  huma  so  natureza  e  sos  os  fes  falar  diante  delle  com  Cela  Chri-  ^«^^^m  asaerentem 

unam  esse  in  Chn- 

stos  seu  irmao  muito  grande   espa^o  e  apertouos  de  maneira   que  sto  naturam.  Mona- 

r     -      r  j  1  '^         1-        j  n  ii_        chi  incolentes  insu- 

lorao  for^ados  a  conceder  cousas  muito   absurdas;   pello    que  Ihes  ^^^^  g^  respuunt 


390  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

donarialxnperatoris:  disse  o  Emperador:  Eis  aqui  a  lei  que  tendes,  que  pera  a  defen- 
scitur,  sed  rogatus  a  ^^r  aveis  de  admitir  cousas  tam  falsas.  Quis  o  frade  dar  rezao  ao 
matre  gravcm  iniu-  TTniperador,    mas  no  fim  da  pratica   Ihe   infirio  do  que   dizia,  que 

morrera  a  divindade.  Respondeo  o  frade  que  assim  era.  Ouvindo 
isto  o  Emperador,  se  enfadou  tanto,  que  com  ser  homem  muito 
grave  e  mesurado  no  falar,  disse  em  alta  voz :  «  Como  se  pode  so- 
fror  isto[?];  se  morreo  a  divindade  em  Christo,  morreo  tambem  o 
Padre  e  o  Spirito  Santo.  Como  pode  morrer  a  divindade  ?  »  E  ale- 
vantouse  mostrando  muita  paixSlo  e  foyse  p^ra  outro  aposento;  pello 
que  elles  se  sairao,  sem  se  atraverem  a  responder  palavra. 

Pouco  tempo  depoes  tornou  o  Emperador  a  sua  corte  de  Dambea, 
deixando  concertadas  as  cousas  daquellas  terras  que  estavao  ale- 
vantadas  e  chegando  a  somana  santa  mandou  muitas  tochas  e  in- 
censo  as  igreias,  *como  sempre  naquelle  tempo  custuma,  e  parti-  f.i66,v. 
cularmente  ao  mosteiro  grande,  que  esta  em  huma  ilha  da  alagoa 
de  Dambia,  a  que  chamao  Sana,  e  chcgando  o  que  as  levava,  que 
era  homem  grande,  sairao  sinco  frades  e  Ihe  disserao  que  nao  se 
acendiao  em  sua  igreia  tochas  de  quem  dizia  que  em  Christo  esta- 
vao  duas  naturezas,  e  nao  as  quiserao  receber,  por  mais  que  im- 
portunou,  dizendolhes  que  era  materia  de  grande  escandalo,  e  que 
o  Emperador  nao  avia  de  deixar  passar  aquillo  sem  castigo.  E  nem 
a  elle  deixarao  confessar  e  comungar  naquella  igreia,  porque  tam- 
bem  dizia  que  em  Christo  estao  duas  naturezas.  Vendo  elle  que 
nao  aproveitavao  nada  seus  rogos  nem  amea^as,  se  tornou  e  referio 
ao  Emperador  tudo  o  que  passara ,  o  que  elle  sentio  muito  e  mandou 
que  Ihe  trouxessem  logo  aquelles  frades  e  segundo  estava  cuidavao 
que  em  chegando  os  avia  de  mandar  matar,  ou  dar  algum  outro 
grave  castigo.  Vierao  elles  e  ficando  fora  do  pacjo,  mandou  o  Em- 
perador  chamar  muitos  frades  e  homens  grandes  da  corte  e  disse 
que  iulgassem  o  que  mereciao  aquelles  frades  pollo  agravo  e  des- 
honrra  que  Ihe  fizerao.  Que  se  algum  mouro  ou  gentio  Ihes  mandara 
cera  pera  a  igreia,  a  ouverao  de  toniar,  e  a  sua  engeitarao  com  pa- 
lavras  de  grande  soberba  e  desprezo.  Disserao  todos  hum  e  hum: 
Vossa  Magestade  fes  iuntar  no  fim  do  inverno  os  principaes  letrados 
de  Ethiopia  e  depois  de  tantas  porfias  como  tiverao  mandou  dar 
pregao  que  todos  dissessem,  como  primeiro  tinha  declarado,  que  em 
Christo  estao  duas  naturezas  (que  ainda  que  o  pregao  foj  na  forma 
que  assima  disse,  bem  entenderSo  o  que  significava).  Nao  somente 
forao  contra  este  mandamento,  mas  fizerao  grande  desacato  e  iniuria 


i 


LIVRO   11,   CAPITULO   IV.  39 1 

ao  Emperador,  poUo  que  mereciao  morte ;  mas  visto  serem  homens 
[f.  167.  ignorante[s]  e  de  pouco  *entendimento,  parece  que  era  bem  usar 
o  Emperador  com  elles  de  sua  acustumada  clemencia.  Intercedeo 
tambem  por  elles  sua  maj  e  aiudarao  outras  senhoras  grandes,  que 
de  proposito  se  tinhao  ali  aiuntado  dissimuladamente  pera  este  ef- 
feito;  e  assim  o  Emperador  Ihes  perdoou. 

Bem  temos  mostrado  com  quanta  pertinacia  defendem  os  mais 
dos  Ethiopes  que  em  Christo  N.  S.°^  esta  huma  so  natureza,  mas 
porque  ainda  manifestarao  muito  mais  de  pois  de  tudo  isto  quam 
arraigada  tem  esta  heregia  em  seus  cora^oes  no  que  fizerao  contra 
o  Emperador  e  Cela  Christos  seu  irmao,  o  refirirei  no  capitulo 
seguinte. 


CAPITULO  V. 

De  como  os  Ethiopes  determinarao  de  matar  ao  empe- 
rador  9^^^^^  Sagued  e  a  Celd  Christ6s  seu  irmao, 
por  dizerem  que  em  Christo  N.  S.  estao  duas  na- 
turezas. 


Vendo  o  Patriarca  e  os  mais  que  erao  da  sua  parte  que  o  Eni-      x.  Monachi,  duce 

j    -.        /-•   1 '    r»u   w  •*         »  •^jj»i.'i  Abuna  cum  lemana 

perador  e  Cela  Chnstos  seu  irmao  nao  aviao  de  desistir  do  come-  christds  fratre  ct  lu- 
<;ado,  senSo  procurarem,  por  todas  as  vias  que  pudessem,  acabar  que  ^**?  ^S^  ^^^^  impera- 
nao  se  falasse  que  em  Christo  N.  S.°'  esta  huma  s6  natureza  senao  Christds  intcrficicn- 
duas,  se  determinarao  de  os  matar  e  fazer  outro  Emperador  tal  que     ^ssecretoconiurant. 
nao  deixasse  por  mais  em  questao  as  cousas  da  fe,  senao  que  cor- 
ressem  como  antes,  e  pera  melhor  poderem  effeituar  seu   intento, 
escolherao  por  cabegas  de  sua  coniura^ao,  nao  homens  que  por  al- 
guma  via  pudessem  aligar  agravos  do  Emperador,  senao  a  hum  seu 
irmao  que  se  chama  Jemana  Christos,  a  quem  o  Emperador  tinha 
dado  o  supremo  mando  depois  de  si  do  imperio  fazendoo  Eras,  como 
ia  dissemos,  e  a  outro   dos  mais  famosos  capitaes  e  demais  gente 
que  avia  em  Ethiopia  chamado  Julios,  homem  mui  arrogante  e  so- 
berbo  e  muito  mais  desagradecido  pera  com  o  Emperador,  porque 
tendoo  criado  de  minino  e  alevantado,  tanto  que  Ihe  deu  por  molher 
f.  67,v.  sua  propria  filha  e  grandes  terras  e  riquezas  *e  o  amava  de  maneira 
que  continuamente   escusava  suas  cousas  e  dava  por  sospeitos  aos 
que  Ihe  faziao  queixumc  delle,  e  quasi  nunca  deixava  de  Ihe  con- 
ceder   quanto  Ihe  pedia  e  era  tam   apaixonado  por  elle  e  fazialhe 
tantas  honrras  que  diziao  todos  que  Ihe  nao  faltava  mais  que  a  coroa 

C.  Beccari.  Rer,  Aeih.  Scripi,  occ,  %H€d*  —  II.  50 


394  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

emperial;  e  em  pago  de  tudo  isso  Ihe  tinha  tam  grande  odio  no 
cora^ao  que  elle  era  o  principal  dos  que  Ihe  deseiavao  e  procu- 
ravSo  a  morte,  mostrandose  mui  zeloso  de  sua  enganosa  e  falsa  fe. 
Nem  o  irmao  do  Emperador  aiudava  a  isto  por  pretender  o 
imperio,  porque  bem  sabia  que  Ihe  nao  partencia,  nem  Iho  aviao 
de  dar,  porque  nao  he  filho  do  paj  do  Emperador,  senSo  de  sua 
mai ;  mas  parecialhe  que  facia  grande  sacrificio  a  N.  S."'  em  aiu- 
dar  a  matar  seus  irmaos,  ia  que  deixavao  a  fe  que  elle  tinha  por 
verdadeira,  e  porque  entendiSo  muito  bem  os  coniurados  o  que 
tinhao  no  cora^ao  estes  dous  senhores,  nSo  tiverao  arreceo  de  os 
tomar  cabe^as  pera  o  que  pretendiao,  mas  em  segredo  e  de  ma- 
neira  que,  ainda  que  o  Emperador  sabia  que  elies  tinhao  pera  sy 
que  em  Christo  N,  S."'  esta  huma  s6  natureza,  nao  imaginava  que 
pudesse  chegar  a  tanto  sua  maldade  que  Ihe  procurassem  a  morte, 
nem  se  unissem  daquella  maneira  com  seus  contrarios, 

Com  o  mesmo  segredo  forao  amotinando  contra  o  Emperador 

cB^liciafavni^Co^  quasi  toda  a  gente  da  corte,  e  vendo  o  Patriarca  que  tinha  tantos 

niurati  ad  auiam  se  pQj.  ^y ^  f^y  j,  huma  igreia,   que  esta  dentro  da  primeira   cerca  do 

clancuJum     inatni-  pai;o,  e  sem  fazer  caso  do  Emperador,  pos  e.tcomunhao  contra  os 

•rrofTante^"™^  ^^^   dissessem   que   em  Christo   estao   duas   naturezas  e  contra  os 

scunt  pubiicam  fidel  criados   que  servissem  ou  obedecessem  aos  tais  em  alguma  cousa, 

auae  dedaratioiiem.  ,  ,    .  ,,  . 

SeltAn  SagAd.  ambi-  senao  que  logo  os  deixassem  e  as  molheres  se  atastassem  de  seus 

gae  reapondet.  maridos.  Ouvindo  isto  o  Emperador  e  entendendo  (como  elle  mesmo 

me  disse  depois)  que  pretendia  que  sua  gente  Ihe  nao  obedecesse,  se 

enfadou   muito   e  Ihe   mandou   dizer  como   fazia   huma  cousa   tam 

grave[?];  *quealevantasselogoaquellaexcomunhao.queagenteigno-  f.  i68. 

rante  cuidava  que  os  obrigava,  se  nao,  que  atentasse  por  sua  cabeija. 

Teve  elle  medo  disto  e  publicou  que  alevantava  a  excomunhao,  mas 

mandou  dizer  ao  Emperador  que  ttnha  que  falar  sobre  cousas  da  fe. 

Respondeo  elle  que  quando  quisesse  o  podia  fazer.  E  assim  o  outro 

dia  pella  menhaa  convocou  os  seus  e,  entrando  dentro  da  primeira 

cerca  do  pa<;o,  se  assentou  em  sua  cadeira  de  baixo  de  huma  arvore. 

Logo  se  encheo  de  gente  o  terreiro   com  ser  grande,  e  todos  dis- 

simuladamente  traziao  suas  armas  e,  como  estiverao  iuntos,  mandou 

dizer  ao  Emperador  que  a  palavra  com  que  declaravao  «  natureza  » 

queria  dizer  tpessoa»,  pello  que  nao  podiao  dJzer  que  estao  duas  em 

Christo  senao   huma.    Isto  nao  era  mais  quo  buscar   dondc   pegar 

pera  matar  ao  Emperador,  ou  quando  menos  deixalo  e  sairemse 

logo  todos  da  corte  e  levantar  outro,   como   ia  come^avao   alguns 


LIVRO  ir,   CAPITULO   V.  395 

a  dizer,  porque  a  palavra  de  que  usdo,  que  he  Bahari,  nao  quer  dizer 
«  pessoa  >  senao  «  natureza  » ,  e  Acab  «  pessoa  » . 

Estava  entao  com  o  Emperador  Cela  Christos  seu  irmao  e,  ou- 
vindo  o  recado,  disse :  Senhor,  estes  se  iuntarao  aqui  com  soberba, 
parecendolhes  que  tem  for^a  pera  acabar  o  que  pretendem.  Deme 
Vossa  Magestade  licen^a  que  eu  irei  e  matarei  com  minha  espada 
tres  ou  quatro  dos  que  sao  cabe^as  deste  motim,  e  vera  como  nin- 
gnem  se  atreve  a  falar  mais.  Disse  o  Emperador  que  nao  convinha 
levar  as  cousas  daquella  maneira,  e  com  conselho  dos  que  ali  estavao 
respondeo  que,  se  aquella  palavra,  de  que  usavao  pera  dizer  que  em 
Christo  N.  S.°'  estao  duas  naturezas,  significava  «  pessoa  » ,  que  elle 
mandaria  que  nao  usassem  mais  della.  Tornou  a  mandar  dizer  o 
Patriarca  que  declarassem  sua  fe,  e  como  aviao  de  falar.  Respondeo 
o  Emperador  que  a  verdadeira  fe  era  ser  Christo  Nosso  Senhor 
perfeito  Deos  e  perfeito  homem;  que  assim  falassem  todos.  Nao  se 
contentou  com  isso  o  Patriarca,  antes  andou  com  perguntas  e  re- 
f.i68,v.  postas  dando  muitas  voltas  *e  vendo  que  nao  achava  de  que  pegar, 
se  foj  dizendo  que  aquillo  era  o  que  pretendia  que  nao  disse- 
sem  duas. 

Ainda  que  o  Patriarca  procurava  lan^ar  esta  fama,  pera  que  a      3-  l>ao  primi  du- 

,.,  -^^i.  ^j»      cea  exercitus  et  eu- 

gente  popular  cuidasse  que  saira  com  seu  mtento,  bem  entenderao  nucus  Cafl6  coniura- 
elle  e  os   principaes  que   estavao  da  sua  parte  que  o  Emperador  **■  iun^tur.   Sei- 

tAn  Sagad,  specioso 

dizia  estarem  em  Christo  N.  S.°'  duas  naturezas  e  que  o  tinha  tam  praeteztu,  a  Cela 
fixo  no  cora^ao  que  de  nenhuma  maneira  o  avia  nunca  de  mudar.  ^^^  qucMit^Sbos 
Pello  que  seu  genrro  Julios  se  acabou  de  resolver  com  outros  muy-  tmcidare.  At  res  e 

.  voto  non  Buccedit. 

tos  de  o  matar ;  e  pera  que  estivessem  mais  nrmes  em  seu  maldito 
proposito,  deu  iuramento  ao  capitao  da  mao  direita  do  Emperador 
e  ao  da  ezquerda,  que  tinhao  muita  gente  e  quasi  a  todos  os  se- 
nhores  grandes  da  corte,  e  sobre  o  iuramento  acrecentou  excomu- 
nhao  a  hum  eunuco,  que  se  chamava  Caflo,  primeira  pessoa  no  im- 
perio  depois  de  Eras,  e  delle  dependiao  todos  muito,  porque  por 
rezao  de  seu  officio  nao  fazia  nada  o  Emperador  sem  seu  conselho, 
antes  era  tam  absoluto  que  muitas  cousas  determinava  elle  contra 
vontade  do  Emperador  e  ficavao  firmes.  Este  como  a  todas  as  horas 
que  queria  entrava  na  camara  do  Emperador,  prometeo  de  o  matar 
com  muita  facilidade,  com  condi^ao  que  Julios  tomasse  a  sua  conta 
matar  a  Cela  Christos,  e  assentado  isto  com  grande  segredo,  pedio 
Julios  licen<;a  ao  Emperador  pera  ir  as  terras,  onde  tinha  seu  as- 
sento,   que  era  huma   provincia  que   chamao   Oagra,   dous  dias  de 


396  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

caminho  da  corte,  e  elle  Iha  deu,  e  assim  se  foj   pera  dali   como 
achasse  occasiao  procurar  de  executar  o  que  tinhao  consertado. 

A  este  tempo  sucedea  que  alguns  quinhentos  mouros  de  ca- 
valo  se  desavierao  com  seu  Rei  e  fugindo  entrarao  em  humas  terras 
fortes  do  Emperador  e  parecendolhe  ao  eunuco  bom  luguar  aquelle 
pera  matar  ao  Emperador  mais  a  seu  salvo  que  dentro  *do  pa^o,  f.  169. 
porque  os  capitaes  se  aviao  de  por  da  sua  parte,  como  elle  o  matasse, 
determinou  de  o  fazer  ir  la,  dizendo  que  nao  convinha  que  aquelles 
mouros  estivessem  ali,  que  ia  que  fugirao  de  seu  Rei,  que  era  amigo, 
e  entrarao  naquellas  terras  sem  licen^a,  devia  o  Emperador  tomar 
aquelles  cavallos  e  castigalos  a  elJes  ou  mandalos  pera  seu  Rej,  e  que 
pera  que  isto  se  fizesse  mais  dissimuladamente,  era  bem  ir  elle  me- 
smo,  lan^ando  fama  que  se  queria  desenfadar  alg^ns  dias  cassando ; 
e  tanto  o  importunou  que  veio  nisso  o  Emperador,  e  assim  foj  a  toda 
apressa,  mas  nao  alquan^ou  aos  Mouros,  ainda  que  o  capitao  da 
dianteira  chegou  a  peleiar  com  elles,  porque,  vendo  que  a  gente 
era  muita,  fugirao,  e  como  tinhao  bons  cavalos,  facilmente  se  pu- 
serao  em  salvo.  Pollo  que  o  Emperador  deu  volta  mais  de  pressa 
do  que  cuidavao,  e  assim  o  eunuco  nao  se  atreveo  a  fazer  nada, 
porque  esperava  que  Julios  se  declarasse  primeiro  por  alevantado. 
4.   Tunc  Iuli68  Vindo   saindo   o   Emperador  daquellas    terras  asperas,  langou 

Imperatorem  aperte  Julios  pregao  na  provincia  de  Oagra,  onde  estava,  que  todos  os  que 
rcbeUat  eumque  in  quisessem  defender  que  em  Christo  estao  duas  naturezas  se  fossem 

itinere,  aquadamex-    ^  ^ 

peditione  cum  pau-  pera  o  Emperador  ou  pera  Cela  Christos  seu  irmao;   mas  que  os 
riri  parat.       '  *  ^  ^^®  tinhao   zelo  de  sua  antigua  fe,  que  em  Christo  esta  huma  s6 

natureza,  o  seguissem.  Com  o  que  se  Ihe  aiuntou  grande  numero 
de  gente  a  que  tinha,  que  era  rouita,  e  foj  marchando  pera  o  reino 
de  Goiam,  onde  estava  Cela  Christos,  que  he  perto,  muito  confiado 
de  o  poder  matar,  assim  pella  multidao  de  gente  que  levava,  como 
por  estar  tambem  consertado  com  muitos  dos  daquelle  reino;  mas 
pouco  antes  que  passasse  o  rio  Nilo  pera  entrar  em  Goiam,  foj  a 
elle  o  Patriarca  e  Ihe  disse  que  nao  era  bom  conselho  ir  a  peleiar 
com  Cela  Christos  que  tinha  muita  gente;  que  tornasse  sobre  o 
Emperador,  que  trazia  os  cavalos  cansados  e  os  mais  *dos  soldados  f.i69,v. 
se  tinhao  ia  ido  pera  suas  casas;  que  depois  de  morto  o  Empe- 
rador,  nao  averia  difficuldade  em  matar  a  Cela  Christos,  e  que  sou- 
besse  de  certo  que,  se  matava  o  Emperador,  Ihe  perdoaria  Deos 
seus  peccados  e  faria  grandes  merces,  porque  tinha  deixado  sua 
fe,  e,  se  elle  morresse  na  batalha,  era  martir.  E  como  acabou  isto 


LIVRO  II,   CAPITULO  V.  397 

com  elle,  fes  huma  pratica  a  todo  o  arrajal,  exortandoos  a  que 
peleiassem  valerosamente  contra  o  Emperador,  e  que  procurassem 
de  o  matar,  porque,  se  assim  o  fisessem,  Ihe  seriao  perdoados  todos 
seus  peccados  por  grandes  que  fossem.  Depois  pos  excomunhao 
que  ninguem  se  afastasse  daquelle  arrajal,  senao  que  todos  seguis- 
sem  a  Julios  e  Ihe  obedecessem,  e  a  elle  pedio  encarecidamente  pro- 
metesse  de  Ihe  entregar  os  sinco  Padres  que  qua  estavamos.  E  as- 
sim  Iho  prometeo,  e  dizia  que  nos  queria  fazer  cortar  as  cabe^as 
diante  de  si,  ou  que  nos  avia  de  meter  dentro  na  nossa  igreia  com 
os  Portug^eses  e  queimarnos  ali  a  todos  iuntos,  porque  nos  eramos 
os  que  tinhamos  feito  trocar  a  fe  ao  Emperador  e  aos  que  estavao 
da  sua  parte.  E  com  este  conserto  o  acompanhou,  e  os  mais  dos 
dias  no  caminho  tornava  a  renovar  a  excomunhao,  que  ninguem  se 
afastasse  do  arrajal. 

Como  o  Emperador  soube  o  que  fizera  Julios  e  que  hia  pera      5- SeltAaSagftdin 

his  angustiis  consi- 

Goiam  determinado  de  peleiar  com  Cela  Christos,  apressou  sua  vinda,  uum  pctit  a  p.  Pe- 
e  checfando  hum  dia  de  caminho  de  onde  eu  estava,  o  fui  a  visitar  ^^  ^***  **  f**.^**^ 

^  prozimo     rebellium 

e,  mandando   sair  da  tenda  toda  a  gente,  me  disse :  Veia  V.  R,  o  adventu    opportuno 

-  ^  1  ^   .  ^      ^  j      «*  elcvato  loco  castra 

que  me  fazem :  ate  meu  genrro,  a  quem  alevantei  tanto,  procura  de  ponit. 
me  matar.  Que  conselho  me  da,  como  farei  [?].  Respondi :  c  Que  con« 
€  selho  posso  eu  dar  a  Vossa  Magestade,  que  entende  tam  bem  as 
«  cousas  de  sua  gente  e  sabe  por  experiencia  como  se  ha  de  levar  [?] ; 
«  mas  o  que  por  agora  se  me  ofFerece,  he,  que  se  os  coragOes  deste  ar- 
«  rajal  estao  com  Vossa  Magestade,  seguramente  pode  ir  por  este 
f.  170.  «  caminho;  que  Julios  nao  se  ha  de  atrever  a  peleiar;  *e  mandar  re- 
«  cado  a  Cela  Christos  que  nao  peleie  com  elle  ate  Vossa  Magestade 
«  chegar,  senao  que  Ihe  tome  os  passos,  porque  nao  se  passe  pera 
«  os  Galas,  porque  nao  damne  a  terra  tornando  depois  com  elles.  Meis 
«  se  ha  arreceos  de  que  tenhao  algum  conserto  com  Julios,  parece  que 
«  fora  bem  mandar  Vossa  Magestade  chamar  os  capitaes  e  disserlhes: 
«  Julios  vai  peleiar  com  Cela  Christos;  vamos  nos  por  estoutro  ca- 
«  minho,  que  he  mais  perto,  a  iuntar  com  Cela  Christos,  porque 
«  ordenemos  as  cousas  de  maneira  que  nao  morra  gente.  Que  como 
«  Vossa  Magestade  se  aiuntar  com  Cela  Christos,  nem  estes  se  atre- 
«  verao  a  fazer  nada,  nem  Julios  pode  escapar  >• 

Disse  entao  elle:  «  Nao  ha  que  arrecear  dos  deste  arrajal,  por- 
que  todos  de  hum  cora^ao  estao  comigo  ».  Respondi:  «  Senhor,  como 
«  o  Emperador  tem  o  cora^ao  limpo,  parecelhe  que  todos  sao  dessa 
<  maneira;   pois  eu  ouvi  dizer  por  cousa  muito  certa,  que  affir- 


398  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

€  mava  Julios  que  todos  os  principais  deste  crrajal  estavSo  conser- 
«  tados  com  elle,  tirando  7  dos  que  tem  menos  for^a,  a  quem  se  nao 
«  atrevio  a  falar,  porque  o  nao  descubrissem :  «  Nao  pode  ser  isso, 
«  (disse  o  Emperador) ;  lan^a  de  proposito  estas  novas  pera  me  fazer 
«  desavir  com  minha  gente.  Pareceme  que  sera  melhor  ir  por  este 
€  caminho  apos  elle  e  mandar  a  Cela  Christos  que  venha  poUa 
«  outra  banda,  pera  que  nos  nao  escape ;  que  quanto  os  outros  ca- 
«  minhos  dos  Galas,  ia  tenho  mandado  tomar.  Tome  V.  R.  pera 
«  sua  casa  e  escreva  muito  de  pressa  a  Tigre  ao  capitao  dos  Por- 
«  tugueses  que  me  avise  logo  do  que  la  passa  » ;  porque  nao  tinha 
muita  confian^a  do  Viso  Rei  que  la  estava  que,  segundo  diziao, 
se  corteava  com  os  coniurados, 

O  seguinte  dia  depois  que  eu  me  despedi  do  Emperador,  man- 
dou  hum  capitao  com  gente  de  espinguarda,  que  fosse  a  toda  a 
pressa  aiudar  a  *Cela  Christos,  se  Julios  Ihe  quisesse  dar  batalha;  f.i7o,v. 
mas  encontrando  a  Julios  no  caminho,  se  tomou  e  mandou  de  pressa 
dizer  ao  Emperador  como  vinha,  pello  que  o  Emperador  caminhou 
mais  devagar  e  com  ordem,  e  chegando  perto  de  Julios,  mandou  que 
vissem  algum  luguar  mais  acomodado  pera  poderem  peleiar,  e  o 
Eunuco  com  os  outros  capitaes  da  coniura^ao  escolherao  hum  valle 
donde  nao  podia  fugir  o  Emperador  a  cavallo,  porque  por  diante, 
por  onde  avia  de  entrar  o  imigo,  era  muito  chao  e  nas  costas  humas 
ribanceiras  muito  altas;  mas  o  Emperador,  que  he  grande  homem 
de  guerra,  disse  que  nao  aproveitava,  e  passou  a  hum  oiteiro  alto, 
que  tinha  ao  pe  muitas  pedras  grandes ;  por  onde  nao  podiao  correr 
os  cavalos,  que  erao  os  que  elle  mais  arreceava. 
6.  lulios,   spretis  ^   outro  dia  chegou  Julios   com   muita  gente  de  pe  e  de  ca- 

precibus  et  lacryxnis  valo,  e  assentou  suas  tendas  no  campo  pouco  mais  de  hum  tiro  de 

8uae  uxons,  acie  in-  '^ 

structa  imperatorem  espinguarda  do  Emperador;  e  o  seguinte  pella  menhaa,  que  forao 
pr^o  c^ncursu^^-  ^^  ^®  majo  de  161 7,  mandou  por  em  ordem  sua  gente;  o  que  vendo 
ztnim  et  sinistrum  sua   molher,  Ihe  pedio   com  grande   instancia  e  lagrimas   que  nao 

comu  per  defectio- 

nem  a  pugna  desi-  peleiasse ;  que  ella  Ihe  faria  amizade  com  o  Emperador  seu  paj ; 
8tunt.  lulios,  ceu  vi-  ^^^  respondeo  que  nao  queria  sua  amizade,  senao  sua  morte.  Disse 

ctoripermediaaacies  r-  -1  ^ 

Imperatorem    petit,  ella   entao   chorando,   pera   ver  se  Ihe  podia   abrandar  o  cora^ao: 

atlapidisictupercul-   o      t.  •  •         ^  j  t^  j 

8U8,abequopraecepa  '^enhor,  nao  vos  apresseis ;  comei  antes  que  vades.  Respondeo 
ruitetagregariomi-  elle:    Primeiro  hei  de  ir  trazer  a  cabeca  de  vosso   pai,  e  como  a 

llte  capite  minuitur;  ,      , 

rebellium  copiae  fu-  puser  aqui  diante,  comerei  a  minha  vontade ;  e  come^ouse  logo  a 
Su^multis^^neri-  ^^^^^'  Entretanto  estava  o  Patriarca  com  huma  crus  na  mao,  lan- 
bus  acceptia  et  veati-  <;ando  muitas  ben^Oes  a  cada  esquadrao,  de  hum  lugiiar  alto,  e  como 


4 


LIVRO  II,    CAPITULO    V.  399 

Julios  se  acabou  de  armar,  pos  esporas,  ""cousa  mui  desacostumada  bus  ezutus,  et  ipae 

T-.i_.       -  i_»j  t-  jr  ir-j'^      capite     obtruncatur. 

em  Ethiopia  e  sobmdo  em  num  grande  e  femioso  cavalo,  foj  diante  ^ 
do  exercito  com  os  cavaleiros  de  quem  mais  se  fiava,  e  bom  poda^o 
antes  de  chegar  a  gente  do  Emperador,  que  tambem  estava  ia  posta 
em  ordem,  aremeteo  com  grande  furia.  O  que  vendo  o  capitSlo  da  mao 
direita  do  Emperador,  se  retirou  com  sua  gente  pera  huma  banda  e  o 
capitao  da  izquerda  e  Eunuco,  que  tinhao  muita  gente,  se  deixarSo 
estar  em  seus  luguares,  entrando  o  imigo  pello  meio  sem  nenhuma 
resistencia,  dizendo  em  alta  vos ;  «  Onde  esta  o  Emperador,  onde  esta 
o  Emperador?  »,  ate  chegar  perto  da  gente  de  sua  guarda,  que  era  bem 
pouca  e  toda  de  pe.  Mas  estes  arremeterao  com  hum  animo  mui 
forte,  e  pera  mostrar  Deos  Nosso  S.°^  quam  pouca  cousa  basta  pera 
derubar  os  soberbos  do  mundo,  permitio  que  hum  dos  mais  baixos 
daquelles  soldados,  que  nunca  tinha  entrado  em  giierra,  atirasse 
huma  pedra,  com  que  Ihe  deu  perto  do  olho  esquerdo  e  o  derubou 
do  cavalo,  e  levantandoselhe  a  malha  hum  peda^o  ao  cair,  Ihe  se- 
gfundou  por  ali  com  o  zarguncho  e,  indo  logo  sobre  elle,  Ihe  cortou 
a  cabe^a,  e  acabou  como  Goliat  o  mais  persumptuoso  e  arrogante 
capitao  que  avia  em  Ethiopia.  Matarao  tambem  alguns  dos  cava- 
leiros  que  o  acompanhavao  e,  carregando  os  de  mais  capitaes  do 
Emperador  sobre  os  outros,  se  puserao  logo  em  fugida,  por  verem 
a  seu  geral  morto. 

Como  o  soldado  cortou  a  cabe^aa  Julios,  a  levou  ao  Empe- 
rador  e  vendoa  mandou  logo  tocar  a  recolher,  mas  nao  obedece- 
rao  os  soldados  tam  de  pressa  que  nao  matassem  primeiro  muita 
gente  e  ao  mesmo  Patriarca,  que  se  deixou  estar  em  seu  posto  sem 
fugir,  ou  por  ficar  muito  turbado,  vendo  o  desbarate,  como  alguns 
f.i7i,v.  dizem,  ou  por  Ihe  parecer  *que  ninguem  se  atreveria  a  Ihe  fazer 
mal.  E  na  verdade  passarao  muitos  por  elle  sem  Ihe  tocarem  nem  no 
vestido,  que  pode  ser  o  deixassem,  por  estar  da  sua  parte  nas  cousas 
da  fe,  mas  chegando  hum  cavaleiro,  que  por  estas  mesmas  cousas 
Ihe  tinha  boa  vontade,  Ihe  deu  huma  lan^ada  no  pescosso  com  que 
o  derrubou  e  os  que  vinhao  detras  o  despirao,  sem  Ihe  deixarem 
cousa  alguma.  E  assim  esteve  ali  bom  espa^o  pedindo  a  quantos 
passavao  com  muita  instancia  alguma  agoa,  que  parece  Ihe  causava 
grande  sede  o  muito  sangue  que  da  ferida  Ihe  saia.  Mas  nem  este 
tam  pequeno  refrigerio  achou  naquella  tam  angustiada  hora,  antes 
em  luguar  de  agoa  Ihe  tirarao  o  sangue  que  Ihe  ficava,  cortandolhe  a 
cabega;  e  assim  acabou  miseravelmente  e  ficou  seu  corpo  nu  dous 


i 


400  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

dias  sem  sepultura,  Levarao  logo  a  cabe^a  ao  Emperador,  e  man- 
doua  por  diante  de  sy  no  chSo  sobre  huma  alcatifa  iunta  com  a  de 
Julios,  e  assim  os  que  forao  tam  .amigos  na  vida  nao  se  afastarao 
achando  a  mesma  que  nos  queriao  dar  a  nos.  Depois 
Emperador  cortar  as  cabepas  a  7  dos  principaes  criados 
que  Ihe  trouxerao  prezos,  e  aos  demais  perdoou  e  lan^ou 
e  Ihe  trouxessem  todos  os  cavallos,  capacetes,  malhas  e 
pre<;o,  que  erao  muitas,  e  o  mais  ficasse  aos  soldados; 
!  muitos  enriquecerao,  porque  todos  05  do  exercito  de 
iao  comsigo  seu  ouro,  prata  e  as  petjas  de  mais  estima 
),  por  Ihes  parecer  que  ali  as  tinhao  mais  seguras  com 
que  tinhao  da  victoria,  tanto  que,  quando  sairao  pera 
;a,    mandarao  que  Ihes  tivessem   aparelhado  o  que  aviao 

que  logo  aviao  de  tornar  a  iantar  e  *assim   me   diziao   f.  1 
Portugueses,  que  estavao  com  o  Emperador,  que  quando 
Iquanije  entravao  por  suas  tendas,  arharao  as  mesas  po- 
omer  aparelhado. 

ro  dia  chegou  Cela  Christos  com  grosso  exercito  e  en- 
os  com  as  lan^as  baixas  em  sinal  de  sentimento  por  nao 
1  na  batalha,  ainda  que  o  procuiarao,  vindo  a  toda  a  pressa. 
e  que  o  ordenou  o  Senhor  assim,  pera  que  nao  attribuis- 
ria  a  suas  fon;as,  senao  que  a  ttvessem  por  dada  do  ceo, 
ide  por  tal  a  tiverao  todos  os  desapaixonados,  principal- 
Lmperador;  porque,  indo  eu  logo  a  Ihe  dar  os  perabens 
iisse :  Veia  V.  R.  a  misericordia  grande  que  me  fes  Nosso 
le,  com  trazer  este  homem  tanta  gente  de  pe  e  de  cavalo  e 
ite  espinguardas,  mos  entregou  todos  sem  que  me  matasem 
'  homem.  Nao  he  este  mui  grande  milagre?  Respondi  que 
tinha  eu  tambem  e  que  o  Senhor  o  fizera  pera  mostrar 
i  agradava  o  defender  Sua  Magestade  as  cousas  da  santa. 
jou  elle  logo  a  pratica,  dando  muitas  graijas  a  Deos  pol- 
s  que  Ihe  fazia;  mas  nao  estava  alegre  com  a  victoria, 
teiou  muito,  antes  se  vestio  de  veludo  preto,  mostrando 
I  polla  perda  dos  que  morrerao,  E  na  verdade,  se  elles 
)  de  enmendar  e  ser  fieis,  se  pudera  ter  por  muito  grande, 
lo  valerozos  cavaleiros. 

se  acabou  isto,  come(;ou  o  Emperador  a  informarse  dos 
ao  na  coniura<;ao,  e  achou  tantos  que  Ihe  foy  necessario 
com  muitos ;  s6  publicou  e  degradou  alguns,  e  entre  elles- 


UVRO  II,  CAPirULO  V.  401 

a  Jemana  Christos  seu  irmSo,  que  pello  ser  Ihe  perdoou  a  vida, 
merecendo  com  tanta  rezcio  a  morte;  mas  com  saberem  alguns  as 
cousas  daquelle  eunuco,  nao  se  atreverao  ao  descobrir,  poUo  grande 

f.i72,v.  medo  que  delle  ^tinhao.  Elle  tambem  mandava  matar  dissimulada- 
mente  aquelles  de  quem  mais  se  temia,  como  fes  a  hum  frade,  que 
sabia  do  conserto  que  tinha  com  Julios  e  Ihes  pusera  excomunhao  a 
ambos  por  que  o  cumprissem,  e  a  hum  seu  criado  que  levava  os 
recados.  Com  tudo  isso  nao  se  teve  por  seguro,  e  assim,  arreceando 
que  por  derradeiro  se  avia  de  saber  sua  trei^ao  e  que  nao  podia 
escapar,  se  resolveo  em  matar  de  toda  a  maneira  ao  Emperador  e 
Cela  Christos,  que  entao  estava  na  corte  com  pouca  gente;  e  pera 
isto  disse  ao  Emperador  que  Ihe  queria  dar  mostra  dos  soldados 
que  tinha  a  sua  conta :  que  Ihe  desse  licen^a  pera  os  trazer  diante 
do  pa^o  e  que  os  veria  da  varanda,  fazendo  conta  de  entrar  entao 
e  o  matar,  que  o  pudera  fazer  facilmente,  por  estar  o  Emperador  de- 
scuidado  e  com  muito  pouca  guarda  nas  portas,  e  logo  ir  com  sua 
gente,  que  era  muita,  a  matar  a  Cela  Christos,  que  de  nenhuma 
maneira  podia  resistir.  Mas  o  Emperador,  com  estar  bem  alheo  de 
imaginar  tal  trei^ao,  Ihe  disse  que  nao  era  necessario,  nem  estava 
pera  isso. 

Vendo  o  eunuco  que  Ihe  nao  saira  esta  traga,  mandou  fazer 
muito  vinho,  que  qua  he  de  mel,  e  chegou  em  5  ou  6  dias,  pera 
convidar  a  cear  Cela  Christos,  e,  como  estivesse  no  milhor  do  vinho, 
matalo,  e  ir  logo  ao  pacjo  pera  matar  ao  Emperador,  e  pera  isto 
tinha  acabado  com  hum  pajem  pequeno  que  Ihe  abrisse  a  porta  a 
qualquer  hora  que  chegasse,  porque  avia  de  vir  a  tratar  hum  ne- 
gocio  de  muito  segredo  com  o  Emperador;  mas  foj  nosso  Senhor 
servido,  que  pouco  antes  do  dia,  em  que  elle  determinava  de  fazer 
isto,  tivesse  o  Emperador  algumsis  atoardas,  pollo  que  o  mandou 
prender  e  lan^ar  pregao  que  todos  os  que  sabiao  delle  alguma  cousa 
a  viessem  dizer  soppena  de  morte.  Testemunharao  logo  muitos,  que 

f.  173.  queria  matar  ao  Emperador  *e  a  todos  seus  filhos  e  a  Cela  Chri- 
stos  e  depois  levantar  outro  a  sua  vontade,  poUo  que  le  mandou 
cortar  a  cabe^a  no  terreiro  do  pago;  ao  que  deu  toda  a  corte 
grande  aplauso  e  fes  muita  festa,  parecendolhes  a  todos  que  Ihes 
tinhao  tirado  do  pescosso  hum  iugo  muito  pesado,  polla  grande 
oppressao  que  em  tudo  Ihes  dava,  tratandoos  com  excessiva  vio- 
lencia,  procurando  que  ninguem  alevantasse  cabe<;a  de  maneira  que 
o  pudesse  encontrar,  e  se  entendia  que  alg^m,  por  grande  que  fosse, 

C.  Beccari.  Rtr*  Aeih*  Script,  oee,  ined*  —  IL  5' 


402  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

• 

o  encontrava  em  alg^ma  cousa,  logo  buscava  modo  pera  o  derrubar 
e  o  queria  ingolir  como  hum  lobo;  e  assim,  por  ser  tal  sua  vida, 
permittio  Deos  N.  S.®'  que  na  morte  seu  corpo  fosse  botado  no 
campo  aos  lobos,  e  que  nSlo  achasse  sepultura,  senSo  huma  cova  delles, 
onde  o  meterao  seus  parentes  e  taparflo  com  pedra,  levandoo  secre- 
tamente  de  nojte,  por  ter  prohibido  o  Emperador  que  ninguem  o 
enterrasse. 
8.  Ez  dictis  pro-  Todcis  estas  cousas  referi,  assim  por  serem  dignas  de  memoria, 

batur  qiiam   temere  •  i   «^  •        t  .  ^  r     > 

asserueritUrreuAe-  ^omo  porque  visse  o  leitor  mais  claramente  quanto  se  enganou  frei 
thiopesomnesdupli-  Luis  de  Urreta  no  que  disse  pag.  424  da  sua  Historia,  que  os  Ethio- 

cem  in  Chnato  natu- 

ram  cum  catholicis  pes  como   catholicos  christaos  confessao  e  crem   em  Christo  duas 
pro  ten.  naturezas  perfeitas,  incommutaveis  e  distinctas,  porque  ainda  agora 

estao  muitos  tam  longe  disso  que,  com  verem  a  providencia  grande, 
que  Deos  Nosso  Senhor  tem  dos  que  defendem  sua  santa  fe,  e  os 
manifestos  castigos  que  deo  as  principaes  cabe^as  dos  que  a  per- 
seguem,  nao  mudao  proposito,  nem  os  conhecem  por  tais,  antes 
alguns  affirmao  que  o  Patriarca  e  Julios  com  os  demais  que  mor- 
rerao  naquella  guerra  forao  martires.  E  se  acertasse  agora  de  mor- 
rer  o  Emperador,  que  Deos  nao  permitta,  tenho  por  sem  duvida 
que  aviao  de  matar  logo  a  Eraz  Cela  Christos,  e  que  nem  a  nos  f.i75tv- 
nos  nao  aviao  de  deixar;  o  que  elle  *mesmos  me  tem  dito  por  vezes. 


CAPITULO  VI. 

Bm  que  se  trata  dos  erros  que  os  Ethiopes  tem  acerca 

das  almas  racionaes. 


Ja  que  temos  visto  o  que  os  Ethiopes  dizem  sobre  a  sacro-      x.  Aethiopes  clrca 
santa  humanidade  de  Christo  N.  Senhor,  sera  bem   referir  agora  !fi^/**^**^l*l^ 

'  o  serunt:    x}  eas  non 

brevemente  o  que  affirmao  acerca  de  sua  sanctissima  alma  e  das  crcari  sed  per  tradu- 

,.i  ^^  '     '  r\       '       '         cem  producl ;  a)  eas 

demais  almas  racionais,  que  sto  tres  erros  gravissimos.  O  pnmeiro,  quae  poenis  infemi 
que  Deos  N.  S.**'  nao  cria  as  almas  racionais,  senao  que  vem  dos  ^'f*''"**  ■f.**  ^^"" 

^  ^  8tum  addictae,  a 

pais,  e  que  ainda  a  de  Christo  Nosso  Senhor  tomou  o  Espirito  Santo  Christofuisselibera- 
da  sanctissima  alma  da  Virgem  Nossa  Senhora,  porque  s6  a  de  animas,  ante*^  ^^m 
Adao   criou  Deos;  e  outros  dizem  que  a  fes  dos  4  elementos.   O  ittdiciiextrcmum,vi- 

^  sione    Dei   beatxfica 

2^  erro  he  que,  quando  a  sanctissima  alma  de  Christo  Nosso  Se-  non  fmi. 
nhor  desceo  aos  infernos,  tirou,  nao  somente  as  dos  Santos  Pa- 
dres  que  estavao  no  seo  de  Abrahao,  mas  tambem  todas  as  dos 
condenados  no  inferno.  O  3^,  que  todas  as  almas  dos  Santos»  por 
gfrandes  que  fossem,  estao  no  parajso  terreal,  sem  gozar  da  glo- 
ria,  e  ali  hao  de  esperar  ate  o  dia  do  juizo,  em  que  se  unirao 
com  seus  corpos  e  entrarao  iuntamente  no  ceo.  Nem  as  dos  con- 
denados  estap  no  infemo,  senao  em  outro  luguar,  nem  hao  de  ser 
atormentadas  ate  que  se  iuntem  com  seus  corpos. 

Estes  tres  erros  condemnao  os  Doutores  e  Santos  por  heregias 
e,  deixando  outros  muitos,  o  glorioso  santo  Thomats,  falando  do  pri" 


404  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

meiro,  i  parte,  quest.  ii8,  ar.  2,  dis  que  he  heretico  affirmar  que  as 
almas  intellectivas  nSto  as  cria  Deos,  senSLo  que  vem  dos  pais;  e 
s.  Augustinho  lib.  De  haeres,  cap.  79,  tratando  do  2^  erro,  affirma 
que  he  heregia.  Quanto  ao  3^,  esta  condemnado  no  Concilio  Floren- 
tino  sess.  ultima  e  no  Concilio  Tridentino  sess.  25, 
a.  Auctor  narrat  Sobre  todos  estes  erros  tratei  muitas  vezes  em  *disputas  e  pra-  f.  174. 

se   multoties   coram   ^.  ^.1  •      •      •     1   ^     j       j      T-^t_-      •  1 

Imperatore  primum  ticas  particulares  com  os  pnncipais  letrados  de  Ethiopia  e  algumas 
errorem    confutasse  diante  do  emperador  Seltan  Sacfued ;  e  percfuntandolhes  sobre  o  pri- 

cx  ipsis  Aethiopum  ^  o  jt     o  jt 

libri8,multosqueiam  meiro  em  que  se  fundavao,  responderSo  que  na  Escritura,  que  dis 

doctnxiam  de  anima-    y-i  "o  t^-vt  oi_  "i_j*„^j 

nim  creatione  susce-  Genests  2**,  que  como  Deos  Nosso  Senhor  acabou  de  criar  todasas 
P*s««-  cousas,  descansou  no  7°  dia,  que  quer  dizer  que  dali  por  diante  nao 

criou  cousa  alguma ;  e  que  affirmar  que  Deos  cria  todas  as  almas 
racionais  era  nSo  Ihe  dar  descansso,  senao  telo  sempre  ocupado  em 
criar  tantos  milhares  de  almas  como  era  necessario  infundir  cada 
dia  nos  corpos  por  todo  o  mundo.  Respondi  que  a  divina  Escri- 
tura  nao  queria  dizer  ahi  mais  de  que  no  7°  dia  cessou  Deos  Nosso 
Senhor  de  criar  mais  cousas  novas,  nem  com  novo  modo  do  que 
tinha  criado  as  outras,  mas  governa  e  multiplica  as  obras  que  na- 
quelles  primeiros  dias  fes ;  e  assim  dis  Christo  N.  S.**"^  por  s.  Joao 
c.  5°  que  seu  Padre  e  elle  ategora  obrao.  Por  onde  nao  he  incon- 
veniente  que  crie  agora  as  almas,  porque  nao  sao  cousas  novas, 
nem  as  cria  com  novo  modo  do  que  criou  a  primeira,  nem,  por  criar 
cada  dia  tantas,  tem  Deos  nisso  ocupagao,  assim  como  a  nao  teve 
quando  criou  o  ceo  e  a  terra  e  quantas  cousas  ha  nelles ;  pois,  como 
dis  David  PsaL  148,  nao  fes  mais  que  dizer  e  logo  forao  feitas, 
mandar  e  logo  forao  criadas.  E  desta  mesma  maneira  podera  criar 
outros  mil  mundos,  se  quisera.  Depois  Ihe  trouxe  algumas  autori- 
dades  dos  Santos,  de  quem  elles  tem  noticia,  como  de  sam  Chry- 
sostomo,  que  na  Homilia  23  in  varia  loca  Mathei  dis  que  a  alma 
nem  gera,  nem  he  gerada,  nem  conhece  outro  pai,  afora  daquelle 
per  cuia  vontade  he  criada;  e  de  sam  Hylar.  que  no  libro  10,  tra- 
tando  da  sanctissima  Trindade,  dis,  que  a  alma  do  homem  he  obra 
de  Deos  e  que  a  gera^ao  da  carne  sempre  he  da  carne.  Mas  fize- 
raolhe  estas  autoridades  pouca  forcja  porque,  como  elles  nao  tem 
estes  livros,  cuidao  que  *aligamos  falso.  Pello  que,  passando  adiante,  f.i74»v. 
Ihe  trouxe  alguns  luguares  da  Escritura,  com  que  se  prova  esta 
verdade,  como  de  Job  c.  33 :  O  espirito  de  Deos  me  fes  e  o  espi- 
raculo  do  Omnipotente  me  vivificou;  e  David  /j*.  32  e  99:  EUe  nos 
fes  a  nos,  e  nao  nos  a  nos;  tambem  Salamam  Ecclesiasies  ultimo, 


I 


\. 


LIVRO  II,   CAPITULO  VI.  405 

onde  dis:  Lembrate  de  teu  criador  em  tua  mocidade,  antes  que  che- 
g*ue  a  morte  e  torne  o  p6  a  sua  terra  donde  era,  e  o  espirito  torne 
a  Deos  que  o  deu;  e  Macabaeorum  cap.  7,  lib.  2,  onde  se  conta 
que,  exhortando  santa  Felicitas  a  seus  7  filhos  que  fossem  e  sof- 
fressem  com  bom  animo  os  tormentos  que  Ihes  davao  e  morressem 
polla  lei  de  Deos,  Ihes  disse  entre  outras  cousas  que  ella  nSlo  Ihes 
dera  a  alma,  senao  o  criador  do  mundo.  Respondeo  hum  frade  que 
tinhao  excomunhao  pera  nao  admittir  tal  doutrina,  que  Deos  cria 
as  almas  e  assim  nao  era  necessario  gastar  tempo  em  disputar  sobre 
esta  materia,  e  que  nem  estes  luguares  queriao  dizer  o  que  eu  in- 
feria;  mas  outros  entenderao  bem  a  verdade  e  nem  os  mais  que 
defendiao  o  contrario  a  puderao  negar,  antes  a  vierao  a  conceder, 
porque  Ihes  trouxe  autoridades  de  seus  livros  e  do  mesmo  que  rezao 
em  huma  de  suas  missas,  e  Ihes  provei  que,  se  as  almas  dos  filhos 
'  vierao  dos  pajs,  nao  forao  immortais ;  e  assim  ia  muitos  crem  e 
confessao  publicamente  que  Deos  as  cria. 

O  2®  erro  fundao  em  dizerem  de  suas  cabecjsts,  que  pollos  me-  3.  Idcm  wt  prae- 
recimentos  do  sangue  de  Chnsto  Nosso  S^**'  sairao  nao  somente  as  altemm  errorem  et 
almas  dos  Santos  Padres,  que  estavao  no  seo  de  Abrahaam,  mas  ^^"**  ifMcX  exitu,  in- 

caasiim    reclamanti- 

tambem  as  dos  damnados,  e  que  dizer  que  as  dos  Santos  sairao  e  bas  quibuadam  mo- 
nao  mais  he  deshonrar  o  sangue  de  Christo^  nachw. 

Quam  falso  seia  isto  mostrei  por  vezes  a  muitos  com  luguares 
da  Escritura,  com  autoridades  de  Santos  e  com  rez5es;  e  alguns 
convencidos  da  verdade  a  receberao,  em  particular  o  Emperador  e 
f.  i75^  seu  irmao  Cela  Christos;  o  que  entendendo  *alguns  frades,  traba- 
Iharao  muito  pollos  tirar  disso,  e  trouxerao  hum  livro  ao  Empe- 
rador  que,  sem  declarar  se  falava  tambem  do  inferno  dos  damnados, 
dizia  que  Christo  N.  Senhor  tirara  todas  as  almas.  Respondeo  o 
Emperador  que  aquilo  nao  queria  dizer  mais  de  que  tirou  todas  as 
almas  do  seo  de  Abrahaam ;  disserao  elles  que  tambem  se  entendia 
dos  damnados.  Disse  eu  entao :  c  Dessa  maneira  milhor  foj  a  sorte 
«  dos  maos  que  a  dos  santos,  porque  estes  trouxerao  sempre  sobre 
«  seus  pescossos  o  iugo  da  lei  de  Deos,  com  ser  tam  pesado,  que 
«  como  dis  sam  Pedro  Act.  15,  nem  seus  pais,  nem  elles  o  podiao 
«  levar  e  afora  disso  padecerao  trabalhos  sem  conto,  andando  fu- 
«  gindo  pellos  desertos,  como  dis  s.  Paulo,  angustiados,  affligidos, 
«  huns  mortos  a  espada^  outros  scrrados,  outros  esfolados,  e  os  mais, 
«  com  nao  terem  de  ver  com  a  lei  de  Deos,  senao  matar,  roubar, 
«  dar  a  seus  apetites  quanto  deseiavao  e  chegar  ate  o  fim  da  vida 


406  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  coin  grande  prosperidade  e  abundancia  de  todas  as  cousas,  e  mui- 
€  tos  delles  adorando  idolos  e  sacrificando  seus  filhos  e  filhas  aos 
«  demonios,  como  diz  David  Psa/.  105.  Que  saissem  depois  suas 
€  almas  iuntamente  com  as  dos  santos,  que  estavao  no  seo  de  Abra- 
«  haam,  pera  receberem  o  premio  da  gloria,  milhor  foi  a  sorte  da- 
«  quelles  que  a  destes,  isto  nflo  se  pode  dizer ;  que  Deos  N;  Senhor 
«  nao  fas  iguais  os  maos  com  os  bons ;  mas,  como  dis  a  divina 
«  Escritura  a  cada  passo,  da  a  cada  hum  conforme  suas  obras  e 
«  porque  as  dos  maos  mereciSlo  fogo  etemo,  os  tinha  condenado  a 
«  elle,  e  como  ia  estavEo  la,  nSio  os  remio  o  sangue  de  Christo  N. 
«  Senhor,  porque  no  inferno  nao  ha  reden^ao  nenhuma  >.  Disse  hum 
frade :  Deixenos  V.  R.  nao  se  meta  agora  em  nossas  cousas ;  pello 
que  calei;  mas  o  Emperador  Ihes  respondeo  de  maneira  que  ulti- 
mamente  n&o  tiverSo  que  falar. 

Outra  ves  se  unirSlo  alguns  frades  pera  acusar  *hum  primo  do  f.i75,v. 
Emperador  que  se  chamava  Eda  Christos,  porque  dizia  que  Cri- 
sto  N.  S.**'  nao  tirara  mais  que  as  almas  dos  santos  Padres,  que  estavSo 
no  seo  de  Abrahao,  e  veio  elle  a  mim  nSo  pouco  attribulado,  di- 
zendo  que  queriao  que  Ihe  desse  o  Emperador  juis  contra  elle  e 
que  determinavao  de  o  fazer  matar:  que  Ihe  aconselhasse  o  que  seria 
bem  fazer  e  o  que  avia  de  responder.  Respondi  que,  ia  que  defendia 
verdadeira  fe  e  era  senhor  tam  grande,  assim  tivesse  o  animo  e 
coracao;  que  aquelles  nenhuma  cousa  Ihe  podiao  fazer,  nem  Ihe 
aviao  de  saber  responder;  que  dissesse  livremente  que  esta  he  a 
verdade  e  que  a  provaria  con  autoridades  de  Santos,  com  rezois  e 
com  a  Escritura  Sagrada;  e  aponteilhe  alguns  Santos  e  luguares, 
como  aquelle  de  Salamao  Ecclestastes  9 :  «  Os  mortos  nao  conhecerao 
mais  cousa  alguma,  nem  tem  ia  mais  premio  »  ;  quer  dizer  que  no 
que  Deos  N.  S.  determina,  quando  os  homens  morrem,  nao  ha  de- 
pois  mudan^a,  nem  recebem  novo  preraio;  se  merecem  gloria  e  nao 
tem  que  purguar,  logo  Iha  da,  e  se  inferno,  la  os  lan<?a  pera  sem- 
pre;  e  o  que  dis  mais  adiante  cap.  11:  «  Se  cair  o  pao  pera  o  austro 
ou  pera  o  aquilo,  em  qualquer  lugnar  que  caio  ali  estara  *  ;  porque 
por  austro  entende  a  gloria  celestial,  por  aquilo  as  penas  do  inferno ; 
e  assim  quer  dizer  que  os,  que  huma  ves  cairao  naquellas  penas, 
nunca  mais  saem  dellas. 

Tambem  EccUsiast,  24  falando  da  divina  sabedoria  dis  que  pro- 
meteo  de  ver  a  todos  os  mortose  alumiar  os  que  esperavao  no  Se- 
nhor.  Os  que  ^speravao  no  Senhor  erao  somente  os  que  estavao  no 
seo  de  Abrahao,  porque  os  que  estavao  no  infemo  nao  esperavao 


LIVRO  II,   CAPITULO   VI.  407 

no  Senhor,  antes  muitos  delles  nam  tiverao  nunca  noticia  do  Se- 
nhor,  porque  erPLo  gentios,  idolatras,  e  gastarao  toda  sua  vida  em 
gravissimos  peccados,  e  assim  Christo  N.  8.°'  nao  os  alumiou,  ali 
ficarSo  em  suas  trevoas  e  tormentos.  Isto  mesmo  nos  declarou  s.  Ju- 
f.  176.  das  no  prin^^^cipio  de  sua  epistola,  dizendo  que  os  anjos  maos  estao 
nas  prisoins  etemas,  assim  como  os  de  Sodoma  e  Gomorra,  que  por 
seus  peccados  estSo  na[s]  penas  do  inferno.  Tambem  se  collige  isto 
claramente  do  cap.  11  de  sam  Matheus,  onde  dis  Christo  Nosso 
Senhor  que  se  ha  de  aver  com  mais  brandura  no  dia  do  juizo  com 
os  de  Tyro,  de  Sidao  e  de  Sodoma,  que  com  os  de  Coro^aim,  de 
Betsaida  ecc,  quer  dizer  que  estes  hao  de  ter  maior  pena  no  dia 
do  juizo  que  aquelles,  porque,  ouvindo  a  doutrina  que  elle  pregava 
e  vendo  as  maravilhas  e  milagres  que  fazia,  nao  se  emmendavao  de 
seus  peccados  e  faziao  penitencia;  que  os  de  Tiro,  de  Sjdao  ecc.  [se] 
virao  estas  maravilhas  se  ouverao  de  emmendar  e  fazer  penitencia, 
mas  porque  as  nao  virao,  sua  culpa  he  menor  que  a  daquelles,  e 
assim  tambem  o  sera  a  pena  no  dia  do  juizo.  Por  onde,  ia  que  entao 
hao  de  ter  tormentos,  seguesse  que  nao  os  tirou  Christo  N.  Senhor 
dos  que  ia  tinhao  quando  deceo  aos  infemos,  porque,  se  entao  os 
tirara,  nao  os  ouvera  de  tornar  a  meter  nelles  no  dia  do  juizo. 

O  mesmo  se  coUige  no  que  mostrarao  a  sao  Joao  ApocaL  14, 
falando  dos  idolatras  que  morrerao  ante  de  Christo  N.  Senhor  (como 
elle  declarou  mais  adiante  c.  17)  dis  que  o  fumo  de  seus  tormen- 
tos  subira  pera  sempre  dos  sempres  e  que  nao  tem  descango  dia 
e  nojte. 

Depois  que  [0]  acabei  de  instmir  no  que  avia  de  fazer  e  dizer,  me 
pedio  que  fosse  ao  Emperador,  pera  me  achar  presente ;  porque  logo 
aviao  de  vir  os  frades,  a  Ihe  pedir  juis.  Fui  eu,  entrando  elle  logo 
apos  mim,  e  dali  a  pouco  veio  hum  frade  dos  mais  principaes  e  en- 
trando  comc^ou  a  dizer  em  alta  vos :  <  Deme  o  Emperador  iusti^a 
contra  Eda  Christos,  quo  deshonrra  o  sangue  de  Christo,  affirmando 
que  quando  deceo  aos  infemos,  nao  tirou  mais  que  as  almas  dos  san- 
tosPadres  >.  Respondeo  Eda  Christos:  <  Senhor,  eu  nao  deshonrro 
o  sangue  de  Christo,  antes  o  tenho  em  grande  veneracjao  e  defendo 
a  verdade.  Este  frade  deshonrra  a  iusti^a  de  Deos  Nosso  S.°S  que, 
f.i76,v,  tendo  condenados  a  tormentos  *eternos  aos  gentios  idolatras  e  aos 
que,  quebrantarao  sua  santa  lei  e  gastarao  toda  a  vida  em  pecca- 
dos,  dis  que  depois  se  salvarao.  Mandelhe  Vossa  Magestade  que 
me  responda  e  seia  o  Padre  juis,  que  eu  mostrarei  claramente  na 
Sagrrada  Escritura  ser  falso  o  que  elle  affirma». 


408  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Enfadouse  muito  o  frade  e  disse :  €  Porque  ha  de  ser  o  Padre 
nosso  juis?  Por  ventura  falta  entre  nos  quem  o  possa  ser  tam 
bem  como  elle  [?]  » ;  e  come^ando  a  porfiar  com  mais  liberdade  do 
que  convinha  naquelle  luguar,  Ihe  disse  o  Emperador  enfadado  que 
se  fosse  embora  hum  e  outro ;  que  nao  Ihes  pertencia  a  elles  deter-  . 
minar  aquellas  cousas;  e  assim  se  sahio  o  frade  sem  levar  juis,  nem  o 
pedio  mais,  por  ver  que  o  Emperador  estava  da  nossa  parte,  mas 
sempre  profiao  muitos  contra  nos  e  contra  os  que  tem  esta  verdade. 

4.  Ex  Scripturis  et  Acerca  do  3°  erro,  tinhSlo  comummente  em  Ethiopia,  quando  eu 

Pfttribus  demozistrat  - 

tcrtiam  Aethiopum  entrei  nella,  por  tam  certo  que  as  almas  dos  Santos,  por  grandes 
opmionem  errorem  q^^  seiSo,  estao  no  parayso  terreal,  sem  gozar  da  gloria  e  que  ali 
tiam  e  doctioribus  hao  de  esperar  ate  o  dia  do  juizo,  em  que  se  unirSo  com  seus  corpos 

concedunt* 

e  entrarao  mntamente  no  ceo,  e  que  as  dos  maos  nSo  estao  no  m- 
ferno,  senao  em  outro  luguar  perto  do  parayso  terreal,  e  que  nSo 
hao  de  ser  atormentadas  ate  que  se  aiuntem  com  seus  corpos,  que 
nao  avia  quem  nisso  pusesse  duvida.  Mas  depois  que  os  padres  e 
eu  Ihe  fomos  declarando  esta  materia  em  disputas  publicas  e  pra- 
ticas  particulares,  Ihe  mostramos  claramente  com  luguares  da  Escri- 
tura  e  rezOes  que  as  almas  dos  Santos,  que  nao  tem  que  purgar, 
logo  em  morrendo  entrao  no  ceo  e  gozao  da  gloria  que  merecem 
suas  obras,  e  que  as  almas  dos  que  morrem  em  peccado  mortal  vao 
logo  ao  inferno,  onde  sao  atormentadas,  muitos  receberao  esta  ver- 
dade  e  a  crem;  porem  muitos  mais  *sao  os  que  ainda  ficao  em  seu  f-  i77« 
orro.  E  assim  estando  eu  com  o  Emperador,  pouco  tempo  ha,  entra- 
rao  alguns  frades  e  come^arao  a  falar  sobre  esta  materia,  e  com  Ihes 
trazer  eu  resOes  e  luguares  da  Escritura,  a  que  nao  souberao  nem  po- 
diao  responder,  nao  se  mostravao  convencidos,  ate  que  Ihes  trouxe 
autoridades  de  seus  mesmos  livros,  que  nao  puderao  negar;  e  assim 
Ihes  disse  o  Emperador :  «  Pera  que  porfiais  em  cousa  que  o  Padre  tem 
tam  bem  provada  com  a  Escritura  e  com  nossos  mesmos  livros  [?]  »; 
e  assim  respondeo  o  principal  delles  que  nao  se  podia  negar. 

5.  Quid  Urreta  de  jy^  q^g  temos   dito  se  ve  claramente  quam  falsa  foy  a  infor- 

hac  re  perperam  nar- 

raverit.  magao   que  frei   Luis  de  Urreta   teve  sobre   esta   materia,  pois  na 

pag.  420  de  sua  Historia  Ethiopica  dis  que  os  Ethiopes  nao  tem  este 
erro  dizendo:  «  Los  Ethiopes  con  catholico  sentimiento  cren  y  tie- 
«  nen  y  siempre  han  creido  que  las  almas  de  los  buenos,  si  no  tienen   . 
«  que  purguar  en  el  punto  que  salem  desta  vida,  veen  la  divina  es- 
«  sencia  y  gozan  de  Dios  como  bienaventurados  ». 


1 

I 


I 
4 


CAPITULO  VII. 

Em  que  se  mostra  como  os  Ethiopes  vassalos  do  Preste 
Joao  de  muitos  tempos  a  esta  parte  sao  scismaticos 
desobedientes  a  santa  Igreja  Romana. 


Perguntando  a  muitos  dos  principaes  letrados  e  velhos  de  Ethio-  x.  Doctiores  inter 
pia  de  quantos  tempos  e  esta  parte  estao  desunidos  da  Igreia  Ro-  th1op\am*a*^empore 
mana,  me  responderSo  que  do  tempo  de  Dioscoro:  e  esta  he  comum  i^ioacori  obedien- 

^  tiamPontificiRoma- 

pratica  entre  elles  e  parece  cousa  certa,  porque  sempre  seguirao  no  detrectasse. 
suas  partes  e  maldita  doutrina  e  o  venerSo  por  santo  e  a  sam  Liao 
papa,  que  o  condenou,  tem  por  herege,  como  fica  dito  no  cap,  3 
deste  2°  livro;  e  ainda  que  o  emperador  David,  que  depois  se  cha- 
f.i77tv«  mou  *Onag  Qagued,  escreveo  cartas  ao  summo  Pontifice  e  Reis  de 
Portugual  o  anno  dc  1524,  mostrando  querer  unir  seu  imperio  a 
santa  Jgreia  Romana,  nao  teve  isto  efFeito,  porque  morreo  antes 
que  qua  chegassem  os  Portugneses,  com  cuia  aiuda  o  queria  fazer; 
e  posto  que  seu  filho  Claudio  (a  quem  quando  fizerao  emperador,  cha- 
marao  Athanaf  ^agued)  recebeo  por  patriarca  a  dom  Joao  Bermu- 
des,  que  veio  com  dom  Christovao  da  Gama  e  mais  Portugueses 
no  anno  de  1541,  parece  que  nao  fes  isso  maisquepor  contempo- 
rizar  com  os  Portugueses,  de  quem  naquelle  tempo  tinha  tanta  ne- 
cessidade;  porque,  depois  de  Ihe  terem  livrado  seu  imperio  da  ti- 
rania  dos  Mouros  e  soieitados  todos  seus  inimigos,  quando  se  ouvera 

C.  Bbccari.  Rer,  Aeik,  Scrt/i,  occ,  insd,  —  II.  53 


» 


4IO  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

de  mostrar  mais  agradecido  a  Nosso  Senhor,  quc  Ihe  fizera  tam  gran- 
des  merces,  e  aos  Portugiieses,  que  por  elle  tomarao  tantos  traba- 
Ihos,  entao  mostrou  quam  longe  estava  de  receber  a  santa  fe  da 
Igreja  Romana  e  de  obedecer  a  seu  Patriarca,  porque  trouxe  outro 
de  Alexandria,  e  dom  Joao  Bermudes  se  tornou  pera  a  India,  dei- 
xandoo  excomungado,  como  dissemos  no  cap.  lo  do  primeiro  livro. 
E  pera  que  se  veia  mais  claramente  que,  ainda  que  mostrou  aceitar 
por  patriarca  a  dom  Joao  Bermudes,  seu  animo  nao  era  de  obedecer 
a  Igreja  Romana,  refirirei  algumas  das  cousas,  que  poUo  tempo 
adiante  soccederao,  em  que  elle  mesmo  mostrou  bem  este  seu  animo. 
a.  Quam  tenaciter  Primeiramente,  entrando  em  Ethiopia  o  padre  mestre  Gon^alo 

adhaereant,     nostro    -n     *  •  i  /-h  «•  i^ji-rN*  tn* 

hoc  tempore»   schi-  Rodriguez  de  nossa  Companhia  com  o  embaixador   Diogo  Dias  o 
smati  Aiezandrino  anno  de   1555,   por  ordem  de  dom  Pedro  Mascarenhas  entao  Viso 

probatur  ex  modo  a-  ^^y^     m. 

gendi  Claudii  impe-  Rei  da  India,   pera   dispor  e  prevenir  a  este  emperador   Claudio 
cts^Patrlarch^  Berl  P®^^  ^  vinda  do  padre  patri*arca  dom  Joao  Nunes  Barreto  da  nossa  f.  178, 
mudez  et  Oviedo,  utt  Companhia  e  de  seus  companheiros  que  ia  se  ficavao  aparelhando 

constat  ez  relationi-  r  .  .         ,.  . 

bu8  Consalvi  Rodri-  em  Portugnal,  procurou  fazer  isto  com  muita  diligencia,  mostran- 
guex  e  s.  I.,  dolhe  com  rezOes  a  obriga^ao  que  tinha  de  receber  ao  padre  Pa- 

triarca  e  seus  companheiros  e  dar  obediencia  a  santa  Igreja  Ro- 
mana,  e  trazendolhe  a  memoria  as  cartais,  que  elle  mesmo  escrevera 
a  Portugnal  e  Roma,  em  que  prometia  de  se  unir  com  a  santa 
Igreja,  e  pera  mais  o  mover  a  isto  fes  hum  tratado,  em  que  com 
luguares  da  Escritura  e  rezOes  claras  mostrava  quam  grandes  erao 
os  erros  de  Ethiopia  e  a  verdade  de  nossa  santa  fe,  e  como  todos 
os  christaos  estavao  obrigados  a  obedecer  ao  Pontifice  Romano,  e 
Iho  apresentou;  mas  nao  aproveitou  nada,  como  o  mesmo  Padre 
affirma  em  huma  comprida  carta,  que  de  Goa  escreveo  aos  Padres 
da  Companhia  em  Portugual  em  13  de  setembro  de  1556  e  a  re- 
fere  o  padre  Femao  Guerreiro  de  nossa  Companhia  na  Rela^ao  an- 
nual  das  cousas  que  fizerao  nossos  Padres  na  India  oriental  o  anno 
de  1607  e  1608,  pag.  a8i,  onde,  depois  de  contar  muitas  cousas  que 
passou  com  o  Emperador,  dis  assim :  «  Finalmente  passadas,  muitas 
€  rezOes  de  parte  a  parte,  estando  presentes  os  Portugueses,  Ihe  disse 
«  pello  capitao,  que  o  que  eu  pretendia  naquelle  papel,  que  Ihe  dei 
«  escrito,  era  saber  seu  intento  acerqua  de  dar  a  obediencia  ao  Pon- 
«  tifice  Romano  e  receber  os  letrados  e  religiosos  que  el  Rei  de 
«  Portugual  seu  irmao  Ihe  queria  mandar.  Porque  se  elle  os  nao 
€  queria,  nem  queria  obedecer,  nao  tinhao  elles  pera  que  vir  a  seu 
«  reino;  que  visse  sua  Alteza  se  queria  dar  obediencia,  como  a  dera 


LIVKO  II,  CAPITULO  VII.  4I.I 

e  mandara  a  Sua  Santidade  estando  em  tal  parte.  A  isto  respon- 
deo  que  elle  religiosos  e  letrados  tinha  em  seu  reino  e  por  isso 
f  x78,v.  €  dos  del  Rei  *de  Portugual  nao  tinha  necessidade,  nem  menos  dera 
nunca  obedientia  ao  Romano  Pontifice;  que  a  obediencia  que 
G.*'  de  Magalhaes  levaira,  elle  a  nSo  dera,  mas  que  hum  frade 
arabio,  que  tresladou  suas  cartas  pera  el  Rei  de  Portugual,  er- 
rara  e  as  nSo  entendera.  Finalmente  concluio  que  elle  nflo  queria 
obedecer  senSo  ao  Patriarca  de  Alexandria,  a  quem  sempre  obe- 
decera.  PoUo  que  vendo  eu  sua  delibera<;ao  e  obstina^ao,  me  de- 
spedi  delle  »• 

Ate  aqui  sam  palavras  do  padre  mestre   Gonzalo,  em   que  se      3.  ez  Utteris  Al- 

.     «  j        01      j*  i^  j_-  phonai  de  Pranca  et 

ve  que,  amda  que  o  emperador  Claudio  recebeo  por  patriarca  a  Andrcae  de  Oviedo» 
dom  JoSo  Bermudes,  nSlo  foj  de  cora^Sio,  pois  dis  que  nunca  deo 
obediencia  ao  Papa,  nem  obedecera  senao  ao  Patriarca  de  Alexan- 
dria  e  ainda  que  o  Padre  tomou  a  falar  outras  vezes  com  elle,  nSio 
pode  alquan^ar  mais  que  licen<;a  pera  que  viessem  os  Padres  e 
que  os  ouviria ;  e  depois  que  se  partio  da  corte  caminho  da  India, 
onde  chegou  em  setembro  de  1556,  Ihe  escreveo  huma  carta  hum 
Portugues  honrrado,  que  se  chamava  Affoncjo  de  Franga  e  foy  o 
interprete  do  Padre.  assim  no  tratado  que  escreveo,  como  quando 
falava  com  o  Emperador,  por  saber  bem  a  lingoa  e  andar  sempre 
na  corte,  na  qual  Ihe  refere  huma  comprida  disputa  que  teve  com 
o  Emperador  sobre  as  cousas  da  fe,  e  Ihe  declara  bem  sua  obsti- 
nai^o  e  porfidia,  concluindo  depois  a  carta  com  estas  palavras: 
€  Pollo  que  entendo  que  antes  tomara  el  Rei  ser  subdito  dos  Mou- 
c  ros,  como  os  povos  dioscoreos,  que  sSo  os  de  Alexandria  e  Egypto, 
€  que  dar  a  tal  obediencia  a  santo  Pontifice.  E  esta  verdade  nunca 
c  quis  descobrir  ategora  a  V.  R.,  poUo  nSo  desconsolar,  de  maneira 
c  que  deixasse  de  fazer  a  diligencia  que  a  seu  oificio  competia  ». 
f.  179,  Esta  mesma  dureza  e  obstina^ao  mostrou  *sempre  ate  a  morte 

o  emperador  Claudio,  como  o  testificar£lo  os  Padres  da  Companhia, 
que  depois  em  marcjo  de  1557  entrarao  em  Ethiopia  com  o  padre 
Bispo  dom  Andre  de  Oviedo,  em  huma  carta  que  iuntamente  escre- 
verSlo  a  Roma  no  anno  de  1562  ao  padre  Diogo  Laines  G^ral  que 
entao  era  da  Companhia,  e  a  refere  o  padre  Femao  Guerreiro  na 
Rela^ao  annual  assima  citada  pag.  294;  porque,  tendo  contado  meu- 
damente  o  discurso  de  seu  caminho  e  chegada  ao  Emperador,  dizem  . 
assim :  c  Depoes  de  alg^mas  praticas  Ihe  deu  o  Bispo  as  cartas  do 
c  Govemador  da  India  e  do  nosso  Patriarca  e  outras,  e  el  Rei  to* 


412  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

.«  mandoas  se  come^ou  logo  a  mostrar  desgostoso  nas  cousas  de  sua 
«  redu^ao,  da  qual  elle  estava  tao  longe  como  Roma  de  Ethiopia. 
.«  Mas  como  era  nobre  e  discreto  e  amigo  dos  Portugueses  encubria 
«  seu  desgosto,  ainda  que  nao  tanto,  que  deixasse  de  dar  manifestos 
«  desenganos  de  si  e  de  sua  porfidia.  Porem  sempre  se  ouve  mui  co- 
«  medidamente  com  o  Bispo  >.  E  mais  adiante,  tendo  tratado  das 
disputas  que  o  padre  Bispo  teve  diante  delle  com  seus  letrados  e 
como  todos  diante  do  Bispo  pareciao  bu^aes,  ainda  que  com  gritos 
procuravao  mostrar  que  elle[s]  venciao,  proseg^em  desta  maneira. 
«  Vendo  o  padre  Bispo  o  pouco  que  nisto  se  fazia,  tomou  todos 
€  as  principaes  materias  e  pontos  de  seus  erros  e  se  deu  a  escrever 
«  sobre  elles  e  Ihe  apresentou  estes  escritos,  aos  quais  el  Rei  respon- 
«  deo  com  fazer  outros  sobre  elles,  resolvendose  iuntamente  que  nao 
«  avia  de  obedecer  a  Roma,  e  depois  de  ter  isto  assas  declarado 
«  e  se  mostrar  desgostoso  contra  o  Bispo  e  dizer  publicamente  que 
«  nao  queria  o  Concilio  Efesino  primeiro,  pera  o  qual  o  Bispo  o 
«  chamava,  senao  somente  os  custumes  e  fe  de  seus  antepassados, 
«  o  Bispo  se  despedio  *delle  com  determina^ao  de  (saltem  ad  tem-  f.i79i'^. 
«  pus)  dar  luguar  a  seus  desgostos.  Estes  tao  claros  desenganos  deu 
«  el  Rei  no  fim  de  dezembro  de  58  e  logo  no  janeiro  seguinte  de  59 
«  o  Bispo  se  despedio  delle,  e  no  mes  de  fevreiro  pouco  de  pois 
«  vierao  a  esta  teira  os  mouros,  a  que  qua  chamao  Malacais  (que 
«  por  ventura  serao  os  Amalecitas),  e  no  mes  de  margo  logo  se- 
«  guinte,  na  5  feira  da  somana  santa  se  encontrou  el  Rei  com  elles, 
«  e  sua  gente  Ihe  fugio  e  o  deixou  no  campo  onde  o  miseravel 
«  morreo  e  com  elle  nosso  capitao  com  18  Portugueses.  E  foj  a 
«  victoria  tam  pouco  esperada  dos  Mouros  que  seu  capitao,  atri- 
«  buindo  isto  a  so  Deos,  se  deceo  do  cavalo  e  cavalgando  em  hum 
«  asinho,  celebrou  o  triunfo  de  sua  victoria  ». 

Todas  estas  sao  palavras  dos  padres  da  Conpanhia,  em  que  se 
mostra  bem  quam  longe  esteve  sempre  o  emperador  Claudio  de 
obedecer  a  santa  Igreia  Romana ;  mas,  porque  falando  o  padre  Bispo 
dom  Andre  de  Oviedo  delle  e  de  seus  vassalos,  declarou  isto  mesmo 
por  senten^a,  a  qual  eu  tenho  na  minha  mao  assinada  da  propria 
sua,  a  refirirei  aqui  por  suas  mesmas  palavras: 
4.  et  ez  sententla  «  Andreas  de  Oviedo  Dei  et  Apostolicae  Sedis  gratia  Episco- 

lata  ab  eodeoti  ^)vie*. 

do  contra  errores  et   *  P^^  Hieropolensis  ac  coadiutor  Reverendissimi  in  Christo  patris  et 
achlama  Aetfaiopum.   «  domini  Joannis  Barreto  Patriarchae  Aethiopiae.  Porque  assi  como 

«  aiuda  publicar  y  loar  los  bienes  para  imitarlos,   assim  tambien 


LIVRO  II,  CAPITULO  VII.  41 3 

€  ahida  los  males  publicos  dizirlos  y  estranarlos  para  que  se  huian ; 

«  por  tanto   aviendo  nos  predicado   publicamente  en  Ethiopia  las 

.«  cosas  de  la  fe  y  eScritolas,  y  veniendo   a   noticia  de   muchos  i> 

f.  180.   «  los  mas  que  han  querido  saberlas,  y  hasta  ahora  no  han  *querido 

«  recebir  nuestra   dotrina,  ni  la  fe  de  Roma,  antes  en  oye  el  afio 

L  ^  passado  por  la  Crus  se  dio  pregon  que  nadie  entrasse  en  nuestra 

«  iglesia  soppena  de  la  muerte  y  hazerse  a  costumbres  de  sus  pa- 
«  dres;  y  nos  parece  que  no  hierran  por  ignorancia  y  tienen  muchas 
«  cosas,  que  no  son  buenas,  ni  servicio  de  nuestro  Senor;  por  tanto 
«  defininimos  y  por  sentencia  declaramos,  que  la  gente  de  Ethiopia 
«  en  comun,  grandes  y  baxos  y  letrados  y  otros  del  pueblo  Abe- 
«  xines  no  quieren  obedecer  a  la  santa  Iglesia  de  Roma,  siendo 
«  obligados  a  ello  como  todos  los  christianos,  siendo  la  Iglesia  de 
«  Roma  cabe^a  de  todas  las  iglesias  (y  el  Papa  de  Roma  padre 
«  y  pastor  y  superior  de  todos  los  christianos),  y  se  rebautizan  mu- 
«  chas  vezes  y  por  muchas  causas,  lo  qual  es  contra  la  berdad  de 
«  la  fe.  Item  guardan  publicamente  los  sabbados  y  primero  no  los 
«  guardavan  en  la  Ethiopia,  y  se  circuncidan  y  a  muchos  esclavos 
.«  y  otros  que  hazen  christianos  tambien  suelen  circuncidar;  y  mu- 
<  chos  estranan  o  tienen  por  peccado  comer  came  de  puerco  y  lebre 

^  «  y  otras  cosas,  lo  qual  era  de  la  lei  de  Moyses,  que  en  estas  cosas 

.«  ia  ceso  por  la  muerte  de  Christo;  y  descasanse  por  iusticia  contra 
«  razon  y  contra  lo  que  manda  Christo  en  los  evangelios;  y  mu- 
«  chos  tienen  por  peccado  los  hombres  que  tienen  aiuntamiento  com 
«  sus  mugeres  entrar  otro  dia  en  las  iglesias,  no  siendo  manda- 
«  miento  esto  de  Christo,  ni  de  la  Iglesia:  y  muchos  letrados  de- 
«  fienden  porfiosamente  que  em  Christo  haj  una  naturaleza  y  una 
«  operacion  y  que  la  humanidad  de  Christo  es  igual  a  la  divini- 
«  dad,  lo  qual  es  contra  la  fe  y  el  evangelio  y  los  synodos,  que 
«  dizen  que  Christo  una  sola  persona  tiene,  dos  naturalezas  y  dos 
«  operaciones  y  dos  voluntades,  y  que  Christo,  segun  la  divinidad, 
«  es  ig^al  al  Padre  y  segun  la  humanidad  es  menor  que  el  Pddre ; 
f.i8o,v.  «  *y  en  comun  hazen  fiesta  a  14  dias,  parece  que  es  de  nuestro  se- 
«  tiembre,  de  Dioscoro  defensor  de  Eutiques  heretico,  siendo  entre 
«  ambos  condemnados  por  la  Iglesia  y  por  esto  no  devian  de  tener  por 
«  santo  en  Ethiopia  a  Dioscoro;  y  tienen  otras  cosas  contra  la 
«  fe  de  Roma,  lo  qual   no  devian   de  hazer,   porque  la  fe  es  una 

^  fi  sola,  y  la  fe  de  la  Iglesia  de  Roma  por  promessa  de  Christo  no 

«.puede  errar. 


414  HISTORIA  D£  ETHIOPIA 

€  Por  lo  qual  amondstamos  a  nuestros  hijos  spirituales  que  se 
«  aparten  destos  y  otroa  errores  que  tienen  los  de  Ethiopia  y  que 

<  no  caigan  en  ellos,  y  a  los  Ethiopes   remitimos  al  iuizio  de  la 

<  Iglesia  y  de  los  Superiores  de  ella  quanto  al  castigarlos  en  sus 
€  personas  y  bienes  en  publico  6  en  secreto,  o  usar  con  ellos  de 
«  misericordia,  segun  mejor  les  pareciere  y  con  quien  les  pare- 
«  ciere,  en  todo  6  en  parte,  maiormente  aviendo  enmenda,  la  qual 
«  Dios  les  de  por  su  misericordia. 

<  Hecha  en  el  Doumo  [su]  en  la  Ethiopia  a  2  dias  de  fevrero 
de  1559. 

«  Gon<;:alo  Cardoso  Notario  Apostolico. 

«  Andreas  Episcopus  Jeropolensis. 

<  Fue  publicada  en  nuestra  Iglesia  en  el  Doumo  [sic]  a  2   de 

<  fevrero  de  1559  ». 

5«   Probator  mic-  Ate  aqui  sam  palavras  da  8enten<;a  do  padre  Bispo  dom  Andre 

ccsBorcs  ClAudii  sci'*     «^**  ••         •«•••n*  <ii  t       * 

licct    BAinas    Saraa  ^®  Oviedo,  que  depois  foj  Patnarca,  e  delas  e  do  demais  que  te- 
Dcngftl    ct   lacob  ^ios  dito  se  mostra  bem  claro  que,  em  quanto  viveo  o  emperador 

fldiistnati      Alcxan- 

drino  paritcr  adhac«  Claudio,  nem  elle  nem  seus  vassalos  obedecerSo  a  santa  Igreja  Ro- 
■*••  mana;  nem  seu  irmao  Minas,  que  Ihe  socedeo  no  imperio  e  se  cha- 

mou  Adamas  Sagued,  deu  nunca  obediencia,  antes,  4  annos  que  viveo 
no  imperio,  perseguio  acerrimamente  os  cathoIicos'e  a  muitos  fes 
retroceder  com  suas  amea<;as  e  crueldades,  como  o  affirmarSo  os  pa- 
dres  da  Companhia  na  mesma  carta  que  antes  desta  sentep<;a  co- 
me^amos  a  referir  *e  a  continuaremos  no  livro  3®,  onde  tr^taremos  f,  181. 
de  proposito  deste  emperador  Adamas  Sagued. 

Morto  Adamas  Sagued,  Ihe  socedeo  no  imperio  Zer^a  Dengruil 
seu  filho,  que  se  chamou  Malac  Sagued  e  reinou  trinta  e  tres  annos, 
mas  ainda  que  nSlo  perseguio  aos  catholicos  como  seu  paj,  nSlo  deu 
nunca  obediencia  a  Igreja  Romana,  porque,  posto  que  no  ahno 
de  1576  mandou  hum  homem  a  India  e  depois  no  de  593  hum  frade, 
que  se  chamava  Tacla  Mariam  a  Roma  por  via  do  Cairo,  e  levava 
carta  do  capitSo  dos  Portugueses  por  nome  Antonio  de  Gois  pera 
Sua  Megestade,  e  dos  padres  pera  sua  Santidade  e  pera  o  Geral 
da  Companhia,  nSo  escreveo  o  Emperador,  nem  pretendia  unirse 
com  a  Igreja  Romana,  senSlo  ter  aiuda  de  Portugueses  contra  os 
Turcos  e  huns  gentios  que  chamao   Gallas,  que  molestavao  muito 


LIRO  II,  CAPITULO   VII.  415 

seu  imperic,  como  o  testemunhSo  agora  os  Portugfueses  velhos  que 
conheci2io  muito  bemsua  natureza  e  entendiSo  suas  preteuQOes. 

A  este  Emperador  socedeo  hum  seu  filho  bastardo  chamado 
Jacobo,  menino  de  7  annos,  pello  que  govenarao  o  imperio  a  em- 
peratrix  Mariam  Sina  e  Athanateus  seu  genrro  perto  de  7  annos. 
En  este  tempo  nSo  tratarSo  de  se  unir  com  a  Igreja  Romana,  an- 
tes  a  huma  carta  que  Ihes  veio  da  costa  de  Melinde  por  terra  dos 
padres  de  s.  Agostinho,  em  que  os  exortavao  a  que  se  unissem 
com  el  Rei  de  Portugual,  responderao  que  nao  tinhao  necessidade 
mais  que  de  alguns  officiaes  de  diversos  officios,  e  todos  os  grandes 
forao  de  parecer  que  de  nenhuma  maneira  admittissem  Portugueses. 

O  anno  de  1603  em  majo  entrei  eu  em  Ethiopia,  e  avia  pouco      6.  Za  Deng6l  vero 

T        ,  ,  ^       ,  j  •      ct  lacob  quia  volue- 

que  come<;:ara  a  govemar  Jacobo,  e  logo  em  setembro  o  deposerao  ^^^  Ecclesiae  Ro- 
f.i8i,y.  *e  mandarao  preso  aos  confins  do  imperio  a  hum  reino  que  chamao  «»"»««€»«  suttmque 

"^  *^  ^      Impenum  submitte- 

Narea,  e  elegerao  a  hum  seu  primo,  que  se  chamava  Za  Denguil,  re    imperio  pariter 

o  que  sentirao  muito  os  Portugueses,  porque,  segundo  me  affirmavao,  ^  ^**  ^"^    *^^ 

era  mui  contrario  as  cousas  de  nossa  santa  fe,  mas  depois  que  as 

entendeo   por  meio  das  disputas,  que  por  muitos  dias  tive   diante 

delle  com  seus  letrados,  de  que  tenho  falado  muitas  vezes,  logo  se 

determinou  de  dar  a  obediencia  a  santa  Igreja  Romana  e  soieitarlhe 

todo  seu  imperio ;  mas  nao  teve  isto  eflfeito,  porque,  entendendoo  os 

seus  vassalos,  se  levantarao  os  principaes  contra  elle  e  Ihe  derao 

batalha  campal  aos  13  de   outubro  de  604  e  o  matarao,   como  di- 

remos  no  livro  4**,  depois  trouxerao  a  Jacob.  E  iuntandome  muitas 

vezes  com  elle,  Ihe  dei  a  entender  tiossas  cousas  e  deseiava  tam- 

bem  unirse  com  a  Igreja  Romana,  mas  sem  o  poder  fazer,  o  ma- 

tarao  em  batalha  a  10  de  mar<;o  de  607,  E  entrou  no  imperio  hum 

seu  primo,  que  se  chamava  Susnios  e  agora  se  chama  Seltan  (^agned, 

Com  este  tambem  fui  continuando  muito  tempo :  mosti  andolhe  bem 

a  verdade  de  nossa  santa  fe,  se  determinou  de  a  seguir  e  defender 

ate  morrer  por  isso,  e  dali  por  diante  ate  oie  buscou  com  grande 

fervor  e  diligencia  todos  os  meios   possiveis  pera  fazer  que  seus 

vassalos  aceitassem  esta  santa  fe  e  obedecessem  a  Ig^eja  Romana, 

e  nunca  o  pode  acabar  com  elles,  antes  por  esta  causa  o  quiserao 

matar  muitas  vezes,  principalmente  em  majo  de  617,  como  dissemos 

no  cap.  5  deste  2®  livro. 

Por  onde  nao  ha  duvida  nenhuma  senao  que  os  Ethiopes  vas- 
salos  do  Preste  Joao,  de  muitos  tempos  a  esta  parte,  forao  e  sao  oie 
scismaticos  desobedientes  a  santa  Igreja  Romana. 


i^ 


4l6  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

7«Bzdicti8ezplo-  *Do  que  temos  dito  se  ve  bem  claro  quam  pouca  informaQao  f.  182. 

mentum  quod  Eccle-  ^i°ha  das  cousas  de  Ethiopia  frei  Luis  de  Urreta,  pois  no  cap.  5 
sia  Aethiopica  sem-  jo  2^  livro  de  sua  Historla  e  no  primeiro  do  3®  livro  pretende  pro- 

per  Pontifici  Roma-  ^  ^  ^j  r-  r- 

no  obsequens  fuit  et  var  que  os  Ethiopes  em  nenhum  tempo  forao  scismaticos  nem  ne- 
noschumatiaddicta'  S^^^  '^  obediencia  ao  Pontifice  romano,  e  em  confirma^ao   disto, 

falando  do  tempo  em  que  Francisco  Alvares  e  o  embaixador  dom 
Rodrigo  de  Lima  entrarao  em  Ethiopia,  que  foi  o  anno  de  1520, 
dis  assim  pag.  449 :  «  Desde  entonces  acodieran  a  Roma,  y  el  pa^oa 
«  Clemente  7**  mando  por  breve  particular  que  el  Ar^obispo  mas 
€  antigno  fuesse  Abuna  e  Nuncio  apostolico,  que  en  todo  tuviesse 
«  las  vezes  del  Papa  y,  muerto  aquel,  sucedesse  el  mas  antiguo  y 
€  viejo  de  edad,  Confirmaron  este  cargo  Paulo  3^^,  Pio  5°,  Gregorio  13«*, 
«  Systo  5®  y  mandaran  estos  summos  Pontifices  que  se  se  ofFerecia  al- 
«  gun  negocio  de  importancia  en  el  qual  el  Nuncio  no  se  pudiesse 
«  determinar,  entonces  acodiessen  a  Roma  polla  declaracion  y  si  no 
«  a  Lixboa  al  Nuncio  Apostolico,  y  no  podiendo  tanpoco  acodir 
«  a  Lixboa,  fuessen  a  Goa,  cuio  prelado  com  los  theologos  de  aquella 
«  ciudad  resolviesse  el  Cciso  y  diesse  la  repuesta,  dandolhe  para 
«  ello  todas  sus  vezes;  y  desta  suerte  se  goviernan  agora  en  la 
«  Ethiopia  ». 

Ate  qui  sam  palavras  do  Autor;  mas  em  Ethiopia  nem  ha  Ar- 
cebispos,  nem  Bispos,  e  o  Abuna  he  sempre  egypcio  e  o  manda  o 
Patriarca  de  Alexandria,  que  reside  no  Cairo ;  e  depois  que  eu  aqui 
estou,  conheci  dous  enviados  por  elle ;  por  onde,  ainda  que  o  papa 
Clemente  7**  passasse  aquelle  breve  (se  o  passou)  e  o  confirmassem 
os  demais  sumos  Pontifices  que  elle  dis,  o  que  saberao  em  Roma 
S3  he  certo,  nSo  teve  effeito  o  que  nelle  se  mandava,  nem  o  podia 
ter,  pois  nSo  avia  tais  Arcebispos. 

Semelhante  a  isto  he  o  que  diz  pag.  616  que  o  emperador  Mena 
(que  nao  se  chama  senSo  *Minas),  que  escreveo  ao  papa  Pio  5^  e  f.i82,v. 
fes  que  todos  os  do  gram  Conselho  tambem  Ihe  escrevessem  com 
muita  sumissao  e  lagrimas,  com  grande  christandade  e  religiao  con- 
fessandose  todos  por  catholicos  christaos  filhos  da  Igreja  Romana,  e 
iuntamente  dandolhe  de  novo  a  obediencia  e  pedindolhe  mandasse 
o  concilio  tridentino.  Mal  podia  o  emperador  Minas  escrever  estas 
cousas  a  Pio  5**,  poes,  alem  de  ser  tam  cruel  perseguidor  da  Igreja 
catholica  e  enemigo  de  sua  santa  fe,  como  temos  visto  e  veremos 
compridamente  no  3°  livro,  elle  morreo  no  mes  de  fevereiro  de  563, 
e  o  papa  Pio  5°  foj  eleito  em  janeiro  de  566,  e  pello  consegninte 


LIVRO  II,   CAPITULO  VII.  417 

muito  menos  Ihe  podia  escrever  Pio  5°  a  carta  que  o  autor  poem 
pag.  578,  que  dis  foi  escrita  em  novembro  de  570.  Nem  tem  for^a 
o  que  tras  pag.  459  do  embaixador  do  Preste  JoSio  a  quem  nomea 
Zagarabo  (que  nSo  se  chamava  senSio  Zaga  Qa  Ab,  que  quer  dizer 
«  gra^a  do  Padre  »),  que  disse  ao  Rei  de  Portugual  dom  Joao  3°  que 
os  Ethiopes  dos  principios  da  primitiva  igreja  conheciao  e  confes- 
savao  ao  Pontifice  Romano  por  primeiro  bispo,  e  que  ate  aquelle 
dia  o  obedeciao  como  vigairo  de  Christo.  Nenhuma  for^a  tem  isto, 
porque,  demais  de  que  muitas  cousas  das  que  elle  disse  em  Por- 
tugual  se  acharao  depoes  muito  diflFerentes,  fecilmente  mostrao  os 
Ethiopes  que  seguem  as  mesmas  cousa^  daquelles  em  cuias  ter- 
ras  se  achao. 


C.  Bbccari.  R^r,  Aeik,  Script,  oec.  sncd»  —  II .  53 


CAPiTULO  vm. 

Bm  que  se  declara  como  os  Bthiopes  se  circuncid&o, 

guardao  sabbado 
e  outras  ceremonias  judaicas. 


Huma  das  cousas  a  que  mais  afferrados  estdo  ate  oie  os  Ethio-      >•   Aethiopes»   in 

t.  .  .  .       ^     ^  ,-  j.  circumcisione   ezee- 

pes  he  a  circumcisao,  tanto  que,  como  elles  mesmos  dizem,   se  quenda,euntten«cl8- 
entre  elles  ficassem  alfifuns  sem  se  cincuncidarem»   os  teri^lo  por  «»*-Auctor,  publi- 

^  '^        C18  et  privatia  dispu- 

f.  183.  gentios  "'e  assim  chamSio  por  grande  iniuria  colafa,   que  quer  di-  tationibus,eamChri- 
zer  incircunciso,  e  quando  comprao  escravos  gfentios,  em  quanto  os  esse  SenKMurtrat*  »S 
nao  circuncidao,  nao  comem  de  nenhuma  maneira  nos  pratos  em  P*""»  proflcit. 
que  comem  os  escravos,  nem  bebem  pellos  pucaros  que  elles  be- 
bem,  sem  primeiro  os  benzer  algum  sacerdote  ou  pello  menos  os  la- 
varem  muito  bem,  porque  Ihes  parece  que  ficao  contaminados. 

Circuncidao  aos  8  dias  os  meninos  e  algumas  vezes  as  meni- 
nas  ordinariamente  em  casa  de  seus  paes,  e  comummente  fazem  isto 
molheres,  e  quando  Ihes  perguntamos  porque  o  fazem,  pois  a  cir- 
cuncisao  he  ia  acabada,  huns  respondem:  porque  assi  o  acharao  de 
seus  pais,  outros  que  por  fermosura  e  outros  que  porque  assim  o 
manda  a  lei,  e  dizendolhes  a  estes  que  assim  se  circuncidao  porque 
o  mandava  a  lei,  nao  Ihes  aproveita  nada  Christo,  que  isto  quer 
dizer  que  ainda  nao  veio,  pois  a  circuncisao  era  sinal  de  que  avia 
de  vir,  Genes.  17,  e  assim  os  que  se  circuncidao  estao  obrigfados  a 


420  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

comprir  toda  a  lei,  como  dis  sam  Paulo  ad  Galat.  5,  respondem 
que  tambem  ali  dis  sam  Paulo  que  nem  a  circun^isao  val  nada  nem 
o  preputio  senSo  a  fe  que  obra  por  charidade,  por  onde  nSo  he 
nada  circuncidaremse.  A  esto  Ihes  acodi  com  que  se  fora  esse  o  sen- 
tido  daquelle  luguar,  em  poucas  palavras  se  contradizia  o  Apostolo 
dizendo:  «  Se  vos  circuncidais,  nSo  vos  aproveita  nada  Christo  »;  e 
logo :  «  Nao  he  nada  circuncidarvos  » ,  o  mesmo  he  que  dizer :  «  Nao 
podeis  circuncidarvos  »  e:  <  Podeisvos  circuncidar  >.  O  que  ali  pre- 
tende  sam  Paulo  he  desenganax  aos  Galatas,  que  sendo  de  casta 
gentios,  depois  de  se  converterem  e  ser  pubHcada  a  lei  de  Christo 
Nosso  Senhor,  punhao  sua  esperancpa  na  guarda  da  circuncisao  e  ce- 
remonias  da  lei,  parecendolhes  que  sem  isto  nao  bsistava  a  gra^a 
pera  a  salva^ao,  e  declaralhes  que  nem  a  circuncisao  nem  o  pre- 
pucio  val  nada  pera  esta  esperanc^a,  senao  a  fe  que  obra  por  cha- 
ridade,  porque  a  esperanga  da  salva^ao  nao  vem  da  circuncisSo  nem 
do  prepucio,  senao  da  fe  com  obras,  que  sem  estas  tambem  ella 
he  morta,  como  diz  s.  Thiago  c.  2. 

*Ouvindo  estas  cousas  e  vendo  que  nao  tem  que  responder,  se  f.i83,v. 
acolhem  a  que  o  fazem  por  fermosura ;  ao  que  Ihe  respondemos  que 
esta  escusa  nao  he  bastante  pera  poderem  fazer  huma  cousa,  de  que 
tanto  se  escandalizao  os  mais  christaos  e  tam  seriamente  prohibe 
sam  Paulo  em  tantas  partes  e  prohibirao  os  Apostolos  naquele 
celebre  concilio  que  fizerao  em  Jenisalem  que  se  refere  nos  Actos 
dos  Apostolos  cap.  15.  Com  estas  e  outras  cousas  que  Ihes  trazemos 
em  disputas  gerais  e  praticas  particulares,  vierao  muitos  a  confessar 
que  era  certo  nao  se  poderem  circuncidar,  e  alguns  deixao  ia  de 
circuncidar  seus  filhos  e  escravos,  que  comprao  gentios,  e  entre  elles 
o  Emperador,  que,  nascendolhe  hum  filho  e  tres  ou  4  netos,  depois 
que  ouvio  nossa  doutrina,  mandou  que  os  nao  circuncidassem  e  as- 
sim  os  deixarao.  Msts  os  outros  estao  tam  duros  que  de  nenhuma 
maneira  podemos  acabar  com  elles  que  deixem  a  circuncisao. 
fl.  Sabbatum  intcr  Guardao  tambem  os  Ethiopes  comummente  o  sabbado,  e  muitos 

festoB  dies  habent  et     «        ,.      .  ^  ^        n 

aliascaeremoniasle-  "^^  frades  com  tam  grande  observancia  e  ngor  que  parece  que  an- 
gis  xudaicae  passim  tes  se  deixarao  matar  que  quebrallo.  Comecao  a  guarda  delle  6*  feira 

observant  maxime 

monachi.  Za  Deng6l  a  tarde  como  os  Judeos  e  alguns  em  todo  aquelle  dia  nao  saiem 
t^^^^^ir^t  ^^  ^^^^s  casinhas  muito  pequenas,  que  tem  dentro  da  varanda  que 
nint.  ordinariamente  facem  a  roda  da  igreja,  nem  falao  com  ninguem  de 

nenhuma  maneira  ate  a  tarde  que  vao  a  comer ;  e  particularmente 
em  hum  mosteiro    de  muitos  frades,  que   se   chama   Bisan  e   esta 


LIVRO  II,  CA.PITULO   VIII.  42 1 

como  hum  dia  e  meo  de  caminho  do  porto  de  Ma^ua,  comem  came 
6*  feira  a  tarde,  porque  dizem  que  ia  entrou  a  festa  do  sabbado, 
e  a  sua  imita^Slo  a  comem  tambem  (segundo  dizem)  os  moradores 
da  provincia  de  Amacem  e  os  das  demais  terras  que  estSo  perto 
do  Mar  Roxo.  E  quando  eu  entrei  em  Ethiopia,  nas  primeiras  di- 
sputas  que  tive  com  os  letrados  diante  do  Emperador  Za  Denguil, 
a  primeira  cousa  que  me  perguntarao  foj,  porque  nao  guardavamos 
sabbado.  Respondi  que  por  que  o  sabbado  era  principal  ceremo- 
nia  judaica  e  a  principal  figura  do  Testamento  Velho,  como  de- 
f.  184.  clarou  s.  Paulo  ad  Colossen.  *cap,  2°,  e  como  com  a  vinda  e 
morte  de  Christo  N.  S.°'  se  acabarao  as  ceremonias  e  figuras  do 
Testamento  Velho,  nfto  se  podia  g^ardar  o  sabbado,  e  por  esta 
causa  reprendia  s.  Paulo  severamente  aos  Colocenses  e  aos  Ga- 
latas  nas  epistolas  que  Ihes  escreve,  porque  guardavao  o  sab- 
bado:  e  referindolhes  estes  luguares  e  os  mais  do  sagrado  Evan- 
gelho,  com  que  se  mostra  que  tudo  isto  he  acabado,  e  declarandolhes 
as  rezOes  porque  a  santa  Igreia  gnarda  o  domingo  em  lug^ar  do 
sabbado,  vierao  alguns  delles  a  confessar  que  era  certo  nao  se 
poder  gnardar,  e  o  emperador  Za  Dang^il,  que  era  de  grande 
entendimento,  mandou  lan^ar  pregao  que  ninguem  guardasse  sab- 
bado  dali  por  diante,  e  ia  o  comegavao  a  quebrar  particularmente 
na  corte;  mas  como  pouco  depois  o  matarao,  tomarao  logo  a  seu 
antigo  custume,  ate  que  entrou  o  Emperador  que  oie  vive,  que,  en- 
tendendo  nossas  cousas,  lanijou  tambem  pregao  que  ninguem  o  gnar- 
dasse,  e  muitos  trabalhao  ia  nelle,  e  se  nao  fora  poUo  mao  exemplo 
e  doutrina  dos  frades,  ia  se  ouvera  de  tirar  de  todo  a  guarda  do 
sabbado,  porque  estes  metem  em  cabe^a  a  gente  do  povo,  que  tem 
obrigagao  de  o  guardar,  tanto  que  por  esta  causa  ouve  ha  pouco 
tempo  hum  grande  alevantamento  contra  o  Emperador,  como  di- 
remos  no  fim  do  livro  4*^. 

Nao  somente  se  circuncidao  os  Ethiopes  e  guardao  sabbado, 
como  temos  dito,  mas  deixao  de  comer  algumas  cousas  que  prohibia 
a  lei,  como  lebre,  coelho,  e  mostrao  grande  adversao  aos  Portugue- 
ses,  porque  ouvirao  dizer  que  comiao,  e  ainda  que  alguns  comem 
porco  do  mato  e  peixe  que  nao  tem  escama,  estes  sao  poucos ;  os 
demais,  principalmente  frades,  por  nenhum  caso  o  comem. 

Tem  por  immundas  as  molheres  paridas  ate  40  dias,  pariendo 

filho,  e  80,  sendo  filha,  e  nesse  tempo  nao  podem  entrar  na  igreja 

f.i84,v.  nem  as  *menstmas  nem  ainda  os  casadosque  se  iuntarao  de  nojte 


422  mSTORIA  D£  £THIOFIA 


podem  entrar  o  oiitro  dia  na  igreja.  £  se  acerca  de  morrer  algfam 

delles  pouco  depoes  e  ootro  o  discobre,  ii2U>  o  enterrao  na  igreia 

senao  no  adro;  e  mnrmurao  moito  dos  Portugneses  pera  qne  nao 

gnardao  estas  consas. 

3.  fUne  ■equttnr  Daqui  se  ve  qnam  falsa  foi  a  informa^ao  que  tev^e  finei  Luis 

f«eAeffaiopcstiidal»  ^^  Urreta,  pois,  querendo  defender  aos  Ethiopes  do  que  delles  temos 

cae   tnpetwtMeoemt  refendo,  por  fim  de  muitas  rezOes  que  se  puderao  bem  escusar,  dis 

ooftftln  Roiiimmiiii 

Pffintiflmin,    dete-  pag.  473.  c  £n  el  puento  que  los  Summos  Pontifices  les  han  man- 

«  dado  qne  no  hiziessen  semeiantes  ceremonias,  al  instante  baxaron 

«  sus  cabe^as  e  obedeceron  los  mandados  apostolicos,  de  suerte 

€  que  no  se  circuncidaran  mas,  ni  guardaran  el  sabado  >.  £  pouco 

mais  adiante  falando  da  came  de  porco  diz  assim:    «  Hanse  con- 

«  formado  en  todo  con  la  Iglesia  Romana  y  agora  la  comen  y  les 

<  ha  entrado  en  tan  buen  provecho  que  lo  tienen  por  la  mas 
€  sabrosa  comida  y  de  maior  codicia,  y  es  de  suerte  qne  la  dan 
«  tambien  a  los  enfirmos  y  no  pnrgan  nig^no  que  no  sea  dandole  la 

<  comida  de  puerco ;  y  es  la  razon  por  que  como  es  came  humida 
«  es  mas  acomodada  al  tiemple  seco  de  aquella  tierra,  y  tambien 
«  porque  sustentan  este  ganado  de  serda  con  datiles,  porque  alla  no 
«  hai  bellotas  ». 

Isto  diz  o  Autor,  mas  tudo  he  muito  contrario  a  verdade  do 
que  qua  passa,  porque  nem  ha  datiles,  nem  a  came  de  porco  ddo 
aos  doentes,  nem  ainda  os  s2los  a  podem  ver  de  seus  olhos,  senfto 
alguns  que  somente  comem  a  que  he  do  mato.  Nem  sobre  deixar 
a  circuncisSio  e  guarda  do  sabbado  obedecerSlo  nunca  os  manda- 
mentos  apostolicos,  porque  sempre  se  circuncidar^o  e  ate  oie  guardao 
o  sabbado,  como  temos  dito. 

^Deixo  que  tambem  nSio  se  pode  admittir  a  doutrina  que  tras  f.  185. 
pag.  467,  onde  pera  escusar  esta  circuncis2lo  dos  Ethiopes,  dis  que 
se  podem  circuncidar  por  deva^ao  e  por  se  assemelharem  a  Christo, 
como  nSo  aia  respeito  a  lei  de  Moyses  nem  escandalo.  Isto  nSlo  se 
pode  admittir  por  alem  que  elles  sabem  muito  bem  que  os  Portu- 
gueses  se  escandalisSo,  e  com  tudo  isso  nSlo  deixSLo  de  se  circun- 
cidar.  Ninguem  pode  por  deva^ao  fazer  o  que  esta  prohibido  por 
alguma  lei  divina,  porque  entao  nSo  sao  obras  de  deva^ao,  senao 
peccados  e  oflFensas  de  Deos,  que  se  nao  muitas  vezes  nos  fora  li- 
cito  quebrar  a  lei  dizendo  que  o  fazemos  com  certa  devagao  a  Deos, 
o  que  nao  pode  ser ;  e  assim  quando  Saul  se  escusou  que  offerecera 
sacrificio,  nao  s6  por  devacjao,  mas  for<?ado  da  necessidade,  o   re- 


LIVRO  II,  CAPITULO  VIII.  423 

prehendeo  gravemente  o  profcta  Samuel  i^  Reg.  13,  e  disse  que 
porque  nSio  guardara  os  mandamentos  de  Deos,  passaria  seu  reino 
a  outro.  E  outra  ves  que  por  deva^ao  guardou  os  melhores  animais 
dos  Amalechitas  pera  os  sacriiicar  a  Deos,  Ihe  disse  Samuel,  cap.  15: 
Por  ventura  quer  o  Senhor  holocaustos  e  victimas  ?  e  nSo  antes  que 
se  obede^a  a  vos  do  Senhor[?].  Milhor  he  a  obediencia  que  as  vi- 
ctimas.  De  maneira  que  por  nenhuma  deva<;ao  se  podem  quebrar  os 
preceitos  de  'Deos,  e  assim  nao  se  pode  dizer  que  Ihe  he  licito  aos 
Ethiopes  circuncidaremse  por  deva^ao. 

Ja  que  falamos  sobre  esta  materia,  me  pareceo  dar  aqui  tam-  4*  Auctor  digredi- 
bem  noticia  de  huma  nova  seita  que  se  levantou  em  Ethiopia,  cuios  3^  historiam  cuiua- 
seffuidores  se  circuncidavao  e  ^ardavao  sabbado  a  honrra  do  Padre  *^°*,  naonachi  Za 

^  ^  Chri8t68,  qui  ae  alte- 

e  domingo  a  honrra  do  Filho  e  2*  feira  a  honrra  do  Espirito  Santo,  rum  Messiam  esse 
todos  tres  dias  con  gfrande  solemnidade,  e  usavao  de  outras  muitas  ctam"Si^d?u*  ^ 
ceremonias  judaicas,  que  Ihes  ensinou  hum  frade  que  se  chamava  l>cng*lf  cum  noUet 

.__,.,  ,.  ,     ^,    .  ,        .      ,.  reaipiscere,     illum 

f.i85,v.  *Za  Chnstos,  que  quer  dizer  «de  Chnsto^;  mas  depois  disserao  seus  capite  damnavit. 

dicipolos  que  nao  se  chamava  senao  Ze  Christos  que  quer  dizer  o 

mesmo  Christo.  E  no  anno  de  1 602  sahio  dizendo  que  elle  era  Chri- 

sto  verdadeiro  Messias,  prometido  na  lei  e  aiuntou  doze  companhei- 

ros  a  que  chamava  Apostolos  e  pos  os  mesmos  nomes  dos  de  Chri- 

sto  N.  S.°',  e  disse  que  avia  de  morrer  crucifigado  e  resucitar  ao 

terceiro  dia  coni  outras  muitas  cousas.  Sabendo  isto   o  emperador 

Za  Denguil,  o  mandou  prender  e  nao  querendo  desistir  de  tam  per- 

verso  engano,  Ihe  fes  cortar  a  cabe<;a  no  principio  de  604,  pera  que 

vissem  que  nao  morria  crucificado,  e  mandou  que  guardassem  o  corpo 

7  dias  sem  o  enterrarem,  porque  nao  dissessem  que  resucitara  ao 

3°  dia  como  tinha  prometido,  e  queria  que  matassem  tam  bem  seus 

dicipolos,  mas  os  grandes  Ihe  pedirao  que  os  deixasse,  que  aquelle 

os  enganara,  e  que  ia  conheciao  seu  erro  e  estavao   arrependidos, 

pello  que  Ihes  perdoou;  mas  ainda  que  dissimularao  por  algum  tempo, 

depois   se  forao   a  hum  reino  que  chamao  Amhara  e  a  provincia 

de  Olaca,  e  perveiterao  muitos  dizendo  que  aquelle  era  Christo  e 

.  que  resucitara  e  Ihes  aparecera  muitas  veses  e  mandara  que  guar- 

dassem  sabbado,  domingo  e  2^  feira,  como  dissemos.  E  as  fazendas 

dos  que  se  aiuntavao  com  elles  erao  commuas  como  no  tempo  da 

primitiva  igpreia.  Isto  me  contou  o  emperador  Seltan  Sagued  e  dis- 

selhe  que  era  necessario  por  logo  remedio  e  que  fora  bem  mandalos 

trazer  a  todos  e  repartilos  pellos  mosteiros,  pera  que  Ihes  mostras- 

sem  quam  errados  hiao  e  os  ensinassem ;  mas  elle  nao  o  pode  fazer 


424  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

por  andar  muito  ocupado  com  os  que  se  levantarao  contra  elle, 
porque  defendia  nossa  santa  fe,  como  assima  dissemos  cap.  405; 
*e  vierao  aquelle  a  proposito  estas  revoltas,  porque  como  nSo  acharao  f.  186. 
quem  os  contradissesse,  ensinarao  publlcamente  seus  erros  e  na  pro- 
vincia  di  Olaca  dedicarao  a  seu  mestre  tiuma  igreia  de  hum  mo- 
steiro  grande,  onde  se  iuntarao  muitos  frades  e  freiras  de  diversas 
partes  (que  ellas  andao  qua  por  onde  querem).  Tambem  forao  mui- 
tos  casados  com  suas  molheres  e  filhos  e  diziao  que  hiao  a  serem 
santos  e  como  chegavao  se  punhao  os  homens  iuntos  em  huma 
parte  e  as  molheres  na  outra. 
5.   Bius   asseclae  Sabendo  o  que  passava  Eraz  Sela  Christos  irmao  do  Empera- 

eum  ad  vitam  rediis-     ,  ^       1.  •      •     j     ^i      »  -n»^ 

se  asserentes  multos  "^^'  ^^®  governava  tambem  a  provincia  de  Olaca,  escreveo  ao  Em- 
eplebeadsuaspartes  perador  como  dquilo  hia  em  grande  crecimento,  e   respondeo  que 

traxerunt.  Auctor  et 

Abba  FecAr  Eg«i  in-  mandasse  logo  pessoa  que  os  pudesse  convencer  de  seu  erro  com 
cassum  laborant  ut  ^^  Escrituras,  e  se  ultimamente  nao  se  quisessem  reduzir,  os  casti- 

eos  a  8UI8  erroribus  '  ^  ' 

revocent.  Tunc  Im-  gasse  com  rigor.  Emviou  elle  entao  hum  homem  muito  nobre  de 
submittere  iubet.  Ex  grande  entendimento  e  bem  visto  nas  Escrituras,  que  se  chama  Fe- 
his  ahquot,  vesano  ^,^.3^  Efifzi,  e  ha   muito  tempo  que  se  reduzio  a  nossa  santa  fe,  e 

aestu  perciti,  ez  al-  °  ir       -x 

tissima    rupe    cum  prendeo  muitos,  mandou  dous  daquelles  frades  a  Eras  Sela  Christos 

uzoribus     et     filiis  ^-  ^         •  x*   •     j  i.  « 

praecipites  se  dede-  P^^a  que  tivesse  mais  noticia  de  suas  cousas,  e  como  chegarao,  nie 

runt;  reliqui  nume-  mandou  chamar  a  sua  casa,  que  assertei  de  estar   la  sobre  alguns 

rupe  a  militibua  de-  negocios,  e  disseme  diante  de  muitos  frades  e  senhores  grandes,  que 

*'  pera  ouvir  tam  grande  novidade  se  tinao  iuntos;  que  Ihes  declarasse 

quam  cegos  e  errados  andavao.  Pello  que  Ihes  comecei  logo  a  provar 
poUas  Escrituras  como  Christo  N.  S.**'  era  verdedeiro  Messias,  e 
nelle  se  cumprirao  todas  as  cousas  que  do  Messias  estavao  profe- 
tisadas.  Responderao  elles  que  nao  negavao  ser  Christo  N.  S.°^  ver- 
dadeiro  Messias,  mas  que  elle  mesmo  tornara  outra  ves  a  tomar 
carne  iuntandoa  a  primeira  e  morrera  por  nos.  Pergunteilhes  em 
que  luguar  da  Escritura  acharao  que  Christo  avia  de  tomar  duas 
vezes  carne  e  morrer  duas  vezes,  e  como  estavao  iuntas  aquell^s 
duas  carnes.  *Responderao  que  elle  mesmo  o  dissera  a  seus  doze  f.i86,v. 
dicipolos  (que  estes  dous  nao  erao  daquelles,  senao  dos  que  se  Ihe 
iuntarao  depois)  e  que  a  Deos  nao  avia  cousa  impossivel ;  que  ainda 
nos  vestimos  duas  vestiduras  quando  queremos.  Disselhes  que  como 
em  cousa  de  tanta  importancia  davao  daquella  maneira  credito  as 
palavras  de  hum  homem,  de  que  nenhuma  escritura  falava,  nem 
fazia  obras  por  onde  se  Ihe  pudesse  dar  credito ;  que  ainda  Christo 
N.  S.^^  com  fazer  obras  tam  maravilhosas,  dizia  que  considerassem 


LIVRO  II,  CAPITULO  VIII.  425 

as  Escrituras,  que  ellas  davao  testemunho  delle ;  e  que  me  dissessem 
se  a  doutrina  que  nos  ensinara  era  verdadeira.  Responderao  que 
nemhuma  cousa  podia  faltar,  porque  era  filho  de  Deos.  «  Poes  elle 
mesmo  (disse  eu),  porque  sabia  que  avi^o  de  soceder  estas  cousas 
semelhantes,  nos  preveo  no  sagrado  Evangelho,  Math.  24,  dizendo 
que  olhassemos  nao  nos  enganasse  ningnem,  porque  muitos  aviao 
de  vir  em  seu  nome  dizendo :  '  Eu  sou  Christo ',  e  enganariao  mui- 
tos,  e  que  se  algnem  nos  dissesse:  *  Aqui  ou  ali  esta  Christo',  nao 
o  cressemos  ». 

Com  estas  e  outras  cousas  que  Ihes  trouxe,  e  deixo  por  nao 
ser  comprido,  vierao  a  confessar  seu  engano  e  affirmarao  que  ainda 
pdmeiro  tinhao  alguma  duvida  naquellas  cousas,  e  que  ia  que  Deos 
N.  S.**'  os  alumiara,  estavao  aparelhados  pera  toda  a  penitencia  que 
Ihes  quisessem  d«ur.  Respondi,  que,  se  diziao  aquilo  com  verdadeiro 
arrependimento,  tinhao  certo  o  perdao,  porque  Deos  nao  quer  a 
morte  do  peccador,  senao  que  se  converta  e  viva  e  em  qualquer  hora 
que  tiver  dor  de  seus  peccados  nao  se  lembrara  mais  delles.  E  como  se 
afastarao,  adverti  a  Eraz  Sela  Christos,  que  nao  estivessem  iuntos,  se- 
nao  en  differentes  mosteiros,  e  que  os  nao  deixassem  falar  com  gente 
de  fora  ate  os  terem  bem  instruidos  e  ver  se  estavao  firmes  no  que 
diziao. 
f.  187.  *Poucos  dias  depois  disto  veo   Fecura  Egzi   e   me   disse  que 

aquelles  doze  dicipolos  do  que  se  fazia  Christo  meterao  em  cabe^a 
a  muitos  que  verdadeiramente  o  era,  e  que  esta  2*  ves  tomara  came 
do  povo  gentilico  pera  o  unir  com  o  judaico,  e  que  resucitara  e 
falara  muitas  vezes  com  elles,  mas  que  huns  diziao  que  a  primeira 
carne  que  tomara  do  povo  judaico  nao  tornara  a  morrer  agora,  ou- 
tros  que  tambem  morrera  com  a  2*;  e  que  trabalhara  muitos  dias 
com  elles  pera  os  reduzir,  mostrandolhes  as  Escrituras  e  dandolhes 
muitas  rezOes,  e  nao  tendo  que  responder,  se  fechavao  em  que  o 
que  aquelle  Ihes  ensinara  era  a  verdade,  que  nao  aviao  de  admittir 
outra  cousa  de  nenhuma  maneira ;  pello  que  ultimamante  Ihes  disse 
que,  se  nao  deixassem  tam  parvo  e  grosseiro  erro,  os  avia  de  mandar 
botar  por  huma  rocha  abaixo,  que  esta  perto  daquelle  mosteiro,  e 
nenhum  caso  fizerao  disso,  e  pera  ver  se  chegando  la  tinhao  medo, 
mandou  que  os  levassem.a  todos,  e  muitos  delles  se  puserao  no 
mais  alto  e  disserao :  Se  nos  quereis  deixar  estar  em  nossa  fe,  fica- 
remos  nella,  e  se  nao,  botamos  hemos  daqui  abaixo.  Respondeo 
elle,  que  se  determinassem  em  aceitar   a  verdade  que   Ihes  tinha 

C.  BsccAAi.  Rtr.  Agih,  Scrt^i,  stud,  oec,  —  II.  54 


426  mSTORIA  DE  ETHIOPIA 

mostrado,  se  nSlo  que  sem  falta  os  avia  de  fazer  botar.  Ouvindo 
elles  isto,  tomarSo  alguns  meninos  iilhos  seus,  que  estavSio  perto, 
e  antes  que  Ihes  pudessem  valer,  os  langarSio  poUa  rocha  abaixo  e 
se  botarao  logo  a  pos  elles,  fazendose  todos  em  peda<;os. 

Vendo  elle  hum  desatino  tam  grande,  se  chegou  aos  outros  com 
muita  pressa  e  lan^andose  a  seus  pes  com  grande  sentimento,  Ihes 
pedio  muito  que  nSio  porfiassem  naquilo,  que  perderiao  suas  vidas  e 
almas,  que  era  grande  engano  do  demonio ;  mas  [por]  nenhuma  cousa 
se  moverao,  nem  depois  aproveitarao  seus  rogos,  nem  os  de  muitos 
frades,  que  pera  isso  fes  vir  *de  outras  partes;  pello  que  mandou  f.i87,v. 
que  os  langassem  poUa  rocha  e  forao  por  todos  488  os  que  morre- 
rao  entre  homens  e  molheres,  e  huma  dos  que  por  sua  vontade  se 
botarao,  acertou  a  cair  por  parte  menos  alta,  e  assim  nao  morreo, 
ainda  que  ficou  quasi  pera  isso,  e  trazendoa  assima  Ihe  disserao 
como  nao  tinha  medo  de  se  botar  por  aquella  rocha  tam  alta  pera 
fazer  em  peda<;os  o  corpo  e  perder  a  alma[?];  a  que  respondeo  que 
ella  nao  via  rochas  senao  camas  muito  fermosas  pera  se  deitar,  e 
assim  a  deixarao  pera  ver  se,  com  o  que  tinha  exprimentado  tanto 
a  sua  custa  que  aquellas  nao  erao  camas,  senao  duras  pedras,  aca- 
bava  de  entender  como  tudo  era  engano  do  demonio  e  se  reduzir. 
E  dizem  que  ainda  ficao  outros  muitos  incubertos  e  que  com  muita 
dificuldade  se  ha  de  acabar  de  apagar  este  fogo. 


r 


CAPITULO  IX. 

Em  que  se  trata  dos  erros  que  os  Ethiopes 
tem  no  sacramento  santo  do  Baptismo. 


Pois  temos  ia  vistos  os  erros  que   os  Ethiopes  tem  nos  ar-      i.  Plerique  inter 

^.  j.r#»i_  r«  4-  ^        Aethiope»     iiivalide 

tigos  da  santa  fe,  sera  bem  referir  agora  os  que  tem  nos  santos  baptisantur,  quia  sa- 
Sacramentos,  comecando  poUo  do  santo  Baptismo,  pois  he   o   pri-  cerdotcsinbaptisma- 

^         tc  non  utuntur  sem- 

meiro  de  todos  e  principalmente  foj  instituido  pera  que  nos  fosse  per  verbia  a  Chrlato 
perdoada  a  primeira  culpa  do  peccado  original  e  consegfuintemente  S^^^res*'  nonnUii 
nos  he  porta  pera  entrar  na  igreia  de  Christo  e  participar  dos  de-  po«  40  et  faeminae 

po8t  80   dies  bapti- 

mais  sacramentos.  Neste  guardflo  alguns  dos  Ethiopes  quando  bau-  santur,  etsi  viu  pe- 
tizao  a  verdadeira  forma  mas  os  mais,  e  ainda  frades,  bautizam  sem  riditenmr.  Apostatia 

conversis  iteratur  ba- 

a  saber ;  porque  perguntando  a  caso,  pouco  tempo  ha,  a  huns  frades,  ptisma. 
que  estSlo  como  mea  legoa  da  corte,  que  por  esta  causa  parece 
aviSlo  de  saber  melhor  ainda  cousas  mais  difficultosas,  que  palavras 
diziao  quando  bautizavam,  responderSo  que  estas:  #Eu  te  bautizo  no 
f.  188.  Spirito  Santo»  ;  *e  dizendolhe  como  faziao  huma  cousa  tam  grave 
como  esta,  porque  nao  diziao  as  palavras  que  Christo  N.  S.®'  man- 
dou  no  Evangelho,  responderao,  que  porque  ningnem  Ihes  ensinara. 
E  perguntando  mais  de  proposito  estas  cousas,  me  affirmarao  que 
ordinariamente  usam  desta  e  outras  formas  nam  verdadeiras,  e  par- 
ticularmente  nas  terras  que  governa  Bahar  Nag^x  avia  muitos  que 
bautizavao  sem  dizer  enteiramente  as  palavras.  Nem  me  maravilho 


428  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

muito  disto,  porque  ainda  na  corte  do  Emperador,  pouco  tcmpo  ha, 
em  huma  de  suas  principais  igrejas  bautizando  hum  frade  a  hum 
mocjo  gentio  disse :  <  Eu  te  bautizo  no  nome  do  Padre  e  do  Spirito 
Santo»,  e  dizendolhe  o  padrinho,  porque  nao  nomeava  tambem  o 
Filho,  respondeo  rindo,  que  aquilo  era  de  Portugueses,  que  o  nao 
avia  de  nomear. 

Bautizao  os  meninos  aos  40  dias  e  as  meninas  aos  80  e  sempre 
o  fazem  sacerdotes  e,  tirando  algiins  frades  letrados  e  outros  secu- 
lares,  que,  poUa  comunica^ao  que  tiverao  com  os  Portugueses  anti- 
gos  e  o  que  de  nos  tem  ouvido,  bautizao  as  criangas  em  qualquer 
tempo  que  estao  em  perigo  de  morte,  os  demais  de  nenhuma  ma- 
neira  os  bautizao  antes  daquelle  tempo,  ainda  que  morrao ;  e  ordi- 
nariamente  nao  poem  oleos  santos,  senao  hum  liquor  que  tirao  do 
pao  do  zambugeiro,  que  cortao  muito  meudo  e  metendoo  em  huma 
panella  com  buracos  no  fundo  Ihe  poem  fogo  em  sima  e  recolhem 
em  baixo  o  que  se  vaj  instilando  por  aquelles  buracos  e  a  isto  cha- 
mao  Zeite,  e  com  elle  ungem  os  meninos  que  bautizao.  Tambem 
se  algum  se  fizer  mouro  ou  idolatrar  com  os  gentios,  nao  hao  de 
tornar  a  o  admitir  na  ig^eja,  sem  primeiro  o  bautizarem  e  ainda 
os  christaos  que  cativao  os  gentios,  porque  comerao  e  beberao  com 
elles,  quando  tornao,  os  bautizao. 
2.    Quotaxmis   in  *Todos  os  annos  se  rebautizao   dia   da   Epifania   em   memoria  f.i88,v. 

nes^^in^Muis  flumi-  V^^  aquelle  dia  se  bautizou  Christo  N.  S.**"^  no  Jordao  e,  segtmdo  me 
num   a   prcsbytcris  affirmarao,  dizem  a  forma  do  sacramento  e   o   tem  por  verdadeiro 

iterum    baptizantur.  ,_.,..  , 

Ritus  qui  in  hac  re  bautismo,  e  assim  bautizao  ali  luntamente  algumas  vezes   aos   me- 
passim    uaurpantur.  j^jj^^g  q^^  nunca  se  bautizarao,  quando  naquelle  dia  se  Ihes  acaba 

o  tempo  em  que  custumao  de  os  bautizar.  Nem  me  contentei  com 
pergnntar  a  muitos  como  faziao  esta  festa  e  as  ceremonias  que  nella 
usavao,  senao  que  escrevi  como  me  foj  dizendo  o  Abbade  de  hum 
mosteiro  meu  amigo  que  fas  este  officio  cada  anno  desta  maneira. 
Os  que  nao  estao  perto  de  alguma  lagoa,  fazem  tapar  as  ribeiras, 
de  modo  que  fique  a  agoa  represada  quanto  basta  pera  chegar  aos 
peitos  a  gente,  que  se  ha  de  bautizar ;  e  a  vespora  da  festa,  como 
duas  ou  tres  horas  antes  de  se  por  o  sol,  vaj  la  o  Abbade  com 
seus  frades  e  clerigos,  levao  crus  e  pedra  dara  e  os  livros  por  onde 
custumao  a  fazer  seus  officios  na  igreja,  e  como  chegao,  poem  a 
pedra  dara  em  hum  altar  de  madeira  que  tem  aparelhado  dentro 
de  alguma  tenda  ou  ramada  que  fazem  perto  da  agoa,  e  revestin- 
dose  alguns  frades  com  os  mais  ricos  omamentos  que  tem  na  igreja, 


IIVRO  II,  CAPITULO  IX.  429 

toma  hum  diacono  a  crus  em  huma  vara  comprida  e  cantando  e 
encensando  plantflo  o  pSo  em  que  esta  a  crus  dentro  da  agoa  pera 
a  parte  onde  entra  na  preza  e  logo  cantSio  os  psalmos  e  outras  cou- 
sas  e  lem  enteiramente  os  Actos  dos  Apostolos  e  Evangelho  de 
s.  Matheus  ou  de  s.  Marcos ;  e  ainda  me  disserSlo  que  em  algumas 
pcirtes  liao  todos  4,  come^ando  o  primeiro  com  o  rosto  pera  o 
oriente,  e  o  2^  pera  o  occidente,  o  terceiro  pera  o  norte,  e  o  4**  pera 
o  sul.  E  nisto  gastdo  a  tarde  ate  a  nojte  e  tirando  a  crus  a  poem 
rio  altar  e  se  recolhem  em  alguma  tenda  ou  ramada  onde  ceSo  a 
seu  modo  splendidamente. 

Passada  meia  nojte.  se  alevantao  e  acendendo  candeas  cantao 
seus  officios  como  acustumSo  na  igreja  em  as  festas  grandes,  e  dizem 
missa  seca  com  musicas  a  seu  modo  e  entretanto  so  confess^o  os 
f.  189.  que  a  tarde  *dantes  nEo  se  poderSo  confessar  dos  que  sSo  mais 
devotos,  que  os  outros  nao  fazem  conta  disso.  E  come^ando  a  sair 
c  sol,  se  chegao  todos  os  frades  e  clerigos  a  borda  dagoa  e  o  Ab- 
bade,  ou  frade,  que  em  seu  luguar  fas  o  officio  poem  oleo  na  crus 
e  logo  tocando  com  ella  na  agoa  fas  crus  dizendo :  «  No  nome  do  Pa- 
dre,  do  Filho  e  do  Espirito  Santo  hum  Deos  > ;  e  tomando  a  fazer 
crus  dis  : «  Hum  Padre  santo,  hum  Filho  Santo,  hum  Spirito  Santo  » . 
Feito  isto,  entrega  a  crus  a  outro  e  elle  se  despe  de  todos  seus  ve- 
stidos,  tendo  diante  hum  pano  a  modo  de  cortina  em  quanto  entra 
dentro  da  agoa  e  seguenno  dous  sacerdotes  ate  chegar  onde  Ihes 
da  agoa  pellos  peitos  e  pondoo  no  meio  estende  cada  hum  huma 
mao  sobre  sua  cabe^a,  sem  Ihe  tocarem  nella  e  dizem:«Eute  bau- 
tizo  no  nome  do  Padr e,  do  Filho  e  do  Spirito  Santo »  e  elle  mete 
a  cabe^a  tres  veses  dentro  dagoa,  e  depois  bautiza  elle  aquelles 
dous  dizendo  as  palavras.  Entretanto  estao  todos  os  outros  sacer- 
dotes  dentro  da  agoa  cantando  e  dando  com  huma  mao  na  ou- 
tra  em  sinal  de  festa,  e  logo  hum  bautiza  o  outro  repetindo  a  forma. 
Outros  dizem  que  aos  sacerdotes  nao  dizem  a  forma,  senao  que 
s6  se  mergulhao  na  agoa,  mas  aos  diaconos  e  seculares,  homens  e 
molheres,  Ihes  poem  o  sacerdote  a  mao  na  cabe^a  e  os  fcis  mer- 
gulhar  tres  vezes  dizendo  a  forma  do  bautismo. 

Quando  nestes  bautismos  gerais  se  bautizao  os  Emperadores 
(que  nunca  o  deixarao  de  fazer  senao  he  este  des  do  anno  de  1609, 
depois  que  Ihe  mostrei  como  se  nao  podia  rebautizar),  punhao  huma 
tenda  na  borda  dagoa  e  o  Patriarca  os  bautizava  dentro  do  tanque, 
entrando  com  hum  pequeno  pano  cingido   polla   cinta,  e  todos   os 


430  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

demais  entrao  nus«  Francisco  Alvares  dis  fol.  121  que  vio  isto  e 
que  se  comega  o  bautismo  a  meia  nojte,  mas  parece  quo  o  fizerAo 
por  Ihe  mostrar  mais  aparato,  ou  porque  ouvesse  tempo  pera  po- 
derem  bautizar  toda  a  gente,  que  devia  de  ser  muita.  Mas  agora  nflo 
comeQ&o  senSlo  em  saindo  o  sol  e,  se  he  tanta  a  gente  que  n2Lo  po- 
dem  bautizar  a  todos  por  ser  tarde,  dizem  aos  que  ficao :  c  Damovos 
licen^a  porque  vos  bautizeis.  Entrej :  chegevos  o  Bautismo  » ;  e  logo 
todos  iuntos  entrao  na  agoa  *e  se  dao  por  bautizados.  E  se  por  f-i89,v. 
alguma  causa  ficarao  algxins  sem  se  bautizar  naquelle  dia,  se  bau- 
tizao  dali  a  10,  em  que  tambem  fazem  grande  festa,  porque  dizem 
que  naquelle  dia  morreo  Nossa  Senhora  e  que  aos  19  de  agosto 
subio  ao  ceo.  E  porque  a  todos  aquelles  des  dias  de  pois  do  bautismo 
chamao  Astareo,  que  quer  dizer  caparecimento»,  porque  apareceo  o 
Spirito  Santo  em  figura  de  pomba  sobre  Christo  N.  S.***^ ,  quando  se 
bautizou,  por  isto  ao  glorioso  transito  da  Virgem  chamSo  tambem 
Astareo  Mariam.  Nem  se  contentao  com  se  bautizarem  neste  dia  ou 
no  da  Epifania,  senao  que  muitos,  que  se  querem  mostrar  mais  de- 
votos,  se  bautizao  tambem  na  igreja  dia  da  Resurrei^ao  de  Christo 
N.  S.^' ;  e  a  agoa  com  que  os  han  de  bautizar  tem  posta  dentro  na 
igreja  toda  a  somana  santa. 
3.  Auctor  publice  Sobre  esta  materia  falei  muitas  veses  com  os  letrados  de  Ethio- 

ct  privatim  demon-      .  -  j-^j  joi^ojii. 

strat  ex  N.  T.  Sacra-  P^^L  e  algumas  diante  do  emperador  Seltan  Sagued  e  Ihes  provei 
mentum  Baptismatia  compridamente  com  s.  Paulo,  com  os  Concilios  e  com  rezOes  fun- 

non  posse  iterari,  sed 

pauci  persuadentur.  dadas  na  Escritura  como  se  nao  podem  bautizar   mais   que  huma 

s6  ves,  principalmente  com  aquelle  luguar  ad  Hebraeos  6®:  «Non 
rursus  ia^entes  fundamentum  etc.  > ;  onde  diz  claramente  o  Apostolo 
que  ao  que  pecou  depois  do  bautismo,  nao  Ihe  \sic\  licito  tomarse  a 
bautizar,  nem  ao  que  pecou  depois  da  confirma^ao  tornarse  a  confir- 
mar,  porque  estes  sao  fundamentos  que  nao  se  podem  lan^ar  mais 
que  huma  so  ves.  Tambem  Ihes  perguntei  se  este  bautismo  geral,  de- 
que  usao  cada  anno,  era  verdadeiramente  bautismo  como  o  que  re- 
cebe  legitimamente  o  que  nunca  se  bautizou.  Responderao  que  sim. 
«  Pois  dahi,  disse  eu,  se  coUige  que  fora  falso  o  que  Christo  N.  Se- 
nhor  affirmou  por  sam  Matheus  c.  18  e  por  sam  Joao  20:  *  Amen 
dico  vobis,  quaecumque  alligaveritis  super  terram  ecc.',  porque  se 
hum  peccador  se  for  confessar  hum  pouco  antes  daquelle  bautismo, 
por  mais  que  o  confesor  Ihe  negne  a  absolvigao,  nao  aproveita 
nada,  porque  ira  logo  a  se  bautizar  e  ficara  perdoado  de  tudo  e 
do  melhor   condigao  do  que  se  o  absolvera,  porque  fica  novo;  o  que 


LIVRO  II,   CAPITULO  IX.  43 1 

se  nSlo  pode  alquan<;ar  pella  penitencia  como   dis   sam   Paulo   ad 
f.  190.  Heb.  6,  dizendo:    *  *  Impossibile  enim  est  etc.   renovari  ad  poeni- 
tentiam',  idest  novum  fieri,  como  explica  sam  Chrysostomo  » . 

Ouvindo  estas  cousas,  responderSo  algnns  que  o  faziSlo  pera 
lembranga  que  erao  bautizados.  «  Desta  maneira,  disse  eu,  tambem 
os  sacerdotes  se  podem  ordenar  cada  anno  pera  se  nao  esquecerem 
que  sSo  ordenados.  Os  judeos  nao  se  esquecem  de  que  sao  judeos, 
nem  os  mouros  de  que  o  sao,  e  os  christaos  se  hao  de  esquecer 
de  que  estao  bautizado?  Quando  alguns  forao  tam  faltos  de  me- 
moria,  bastavalhes  pera  se  lembrarem  disso  verem  bautizar  tantos 
meninos  e  elles  confessar  e  comungar  tantas  veses  profesando  que 
sao  christaos.  Nao  he  boa  escusa  essa  pera  defender  cousa  tam 
grave,  como  he  rebautizarse,  pois,  falando  sam  Paulo  contra  alguns 
que  o  queriao  fazer,  dis  que  he  como  tornar  a  crucificar  a  Christo, 
porque  em  quanto  he  de  sua  parte  o  tomao  a  crucificar,  *  rursus  cru- 
cifigentes  etc. '  > ,  ^  Hebr,  6*^. 

Com  estas  praticas  e  as  que  muitas  veses  tiverao  com  elles  os      4.  Urreta  proinde 
Padres   meus  companheiros  sobre   a   mesma  materia,  deixarao  ia  «^lnem 'eaptiamn 
muitos  de  se  rebautizar,  mas  outros  o  fazem,  como  temos  dito.  Do  ^^  *P^<*  Aethiopes. 
que  se  ve  quam  sem  rezao  dis  frei  Luis  de  Urreta  pag.  486   que 
Ihes  impunhao  aos  Ethiopes  que  se  rebautizavao  cada  anno  dia  da 
Epifania,  e  que  Francisco  Alvares,  que  affirma  que  vio  o  bautismo 
e  que  diziao  a  forma  deste  sacramento,  que  se   enganou,  por   nao 
entender  a  lingoagem,  que  nao  diziao  senao  certas  ben^Oes  e  ora- 
90es  com  que  benziao  a  agoa  da   alagoa.  Mas  a  verdade   he   que 
demais  dessas  ben^Oes  dizem  a  forma  do  sacramento  do  bautismo, 
quando  ali  bautizao. 


CAPITULO   X. 

Do  santo  sacramento  da  Confirma^ao  e  Extrema  Un^ao 

e  do  da  Penitencia. 


Juntei  neste  capitulo  todos  estes  santos  sacramentos,  porque  i.  Aethiopes  non 
dos  dous  primeiros  tenho  pouco  que  dizer,  por  nSo  usarem  delles  confirmationt™*'^  et 
os  Ethiopes  de  nenhuma  maneira,  nem  do  da  ConfirmaQao   pude  E«remae  Uncttonis, 

neque  horum  ullibi 

achar  quem  me  dissesse  se  em  algum  tempo  tiverao  noticia  delle,  in  libris  sacris  Ae- 
f.i9o,v.  porque  dizem  quc  nem  em  seus  livros  se  trata  *disso,  nem  elles  *op**«  ^*  mentio. 
sabem  que  cousa  he.  Nem  me  maravilho  muito  desta  ignorancia, 
porque,  ainda  que  Christo  N.  S.°'  instituio  este  santo  sacramento 
como  consta  de  s.  JoSo  cap.  i6  e  20,  onde  aos  Apostolos  Ihe  pro- 
meteo  e  deo  o  Spirito  Santo  e  os  Apostolos  usarSlo  delle,  ainda 
que  no  principio  da  Igreja,  por  especial  comissao  ou  despensas- 
sao  somente  pondo  as  maos  sobre  os  bautizados,  com  isso  rece- 
biao  o  Espirito  Santo  como  se  dis  AcL  18  e  19,  porque  entao 
era  assim  necessario  pera  afFei^oar  a  f e  e  confirmala,  e  depois  da 
Igreja  ia  fundada  sufficientemente  que  cessou  aquelle  modo  extra- 
ordinario  de  vir  o  Spirito  Santo,  usarao  ungir  com  chrysma,  como 
ordinario  modo  instituido  por  Christo  pera  confirmar  os  fieis,  com 
tudo  isso  penetrao  os  Ethiopes  tam  pouco  as  Escrituras  que  ainda 
outras  cousas  muito  mais  claras,  que  nellas  ha,  nao  as  entendem,  e 
os  mais  delles  sao  tam  pouco  studiosos  que,  com  serem  os  seus  li- 
vros  muito  poucos,  nao  sabem  o  que  esta  nelles;  e  assim  muitas 
veses  porfiao  contra  alg^mas  cousas  nossas,  que  tambem  seus  mes- 

C.  Bbccari.  R*r,  Atth,  Seripi,  occ,  ined,  —  II.  55 


434  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

mos  livros  ensinSo:  niais  he  de  maravilhar  que  nao  usSo  do  sacra- 
mento  da  extrema  un^So,  maadando  sam  Thiago  em  sua  epistola 
c.  5  que  se  de,  por  estas  palavras  que  muitos  delles  sabem  de  cor: 
« Infirmatur  quis  in  vobis  ecc. »  Onde  mostra  bem  o  Apostolo  ser  este 
sacramento  instituido  por  Christo  como  os  demais,  pois  tam  reso- 
lutamente  affirma  que  Ihes  serSo  perdoados  ao  doente  seus  pecca- 
dos.  Tambem  me  certificou  hum  frade  que  em  hum  de  seus  sinodos 
sc  mandava  ungir  aos  enfermos,  ainda  que  nSo  se  usava,  nem  sabia 
so  se  usara  nunca. 
De  PoeaitcDtiae  Vindo  ao  sacramento  da  Penitencia,  crem  os  Ethiopes  que  o 

i.  que  depois  do  bautismo  pecou  mortalmente  esta  obrigado  a  a  fazer 


Sacrameato 


tuTraro.Peccauple-  e  reconciliarse  com  Deos  por  meio  da  confissao,  e  assim  alfnms  se 

nque  conBtenmr  ge- 

nerice,  vei  per  aum-  contessao  a  meude,  amda  que  outros  o  fazem  muito  tarde  e  alguns 

?'".j£.j^'..'^!^^JL^  nunca,  e  se  estuvierem  muitos  annos  sem  se  confessarem,  nSo  Ihes 

•acerdottbua  laterro- 

ganiur.  Fornicatio-  perguntao  seus  vigairos  porque  o  deixao  de  fazer,  Quando  se  chegao 
habent  ut  peccata.      a  confessar,  nao  come^So  pella  confissao:  «Eu  peccador  etc»,  nem 
dizem  outra  cousa  nenhuma  mais  que:   <  Padre,  pequei,  solteme*. 
que  he  o  mesmo  que   <  absolvame  > . 

Alguns  confessores  perguntao  ao  penitente  *de  que  o  ha  de  f.  i 
absolver,  e  elle  dis  dous  ou  tres  peccados  como  menti,  quebrei  a 
festa ;  e  elle  o  absolve,  ainda  que  Ihe  fiquem  outros  muitos,  nem  de- 
clara  ordinariamente  quantas  veses  cometeo  o  pecado  que  confessa, 
nem  Ihe  perguntao  por  isso ;  e  alguns  absolvem  sem  declarar  nada 
mais  que  dizer :  Pequei,  pequei.  Tambem  dizem  que  algumas  veses 
vem  muitos  iuntos  e,  chegando  ao  sacerdote  pedem,  absolvi^ao  e  di- 
zendo  todos :  Pequei.  pequei,  Ihes  manda  rezar  alguma  cousa  e  dis  a 
todos  iuntos  a  forma  da  absolvipao,  a  qual  nam  he  verdadeira  forma. 
A  fomicaijao  simples  nao  confessao  os  mais  delles,  porque  nao  a  tem 
por  pecado,  tanto  que  muitas  veses  se  consertao  os  que  nao  sao 
casados  pera  estarem  por  algum  tempo  iuntos,  e  vao  a  algum  frade; 
dis  o  mancebo:  *  Eu  estou  consertado  pera  estar  com  esta  molher 
este  verSo;  escomungaja  que  nao  se  afaste  de  mim,  e  eu  tambem 
me  escomungarei  pera  me  nao  afastar  della  >.  Elle  Ihes  poem  esco- 
munhao,  que  nao  deixe  hum  a  outro  em  todo  aquelle  tempo. 

Muitas  veses  sabe  o  confessor  que  o  penitente  esta  actualmente 
amancebado  e  que  nao  ha  de  deixar  a  manceba;  com  tudo  isso  o 
bsolve.  E  nao  somente  fazem  isto  os  frades  idiotas,  mas  alguns 
os  Abunas  sao  tam  ignorantes  que  nao  s6  os  absolvem  estando 
mancebados,  senao  que  Ihes  dizem  que  nao   botem  fora  as   man- 


LIVRO  II,  CAPITULO  X.  435 

cebas,  como  me  affirmou  hum  grego,  que  avia  annos  estava  em 
Ethiopia  e  reduzindose  a  nossa  santa  fe  o  de  604,  me  disse,  antes 
de  se  confessar,  que  tinha  tres  molheres  e  que  com  nenhuma  dellas 
era  casado  e  confessandose  com  o  Abuna  Petr6s  que  entSo  era,  Ihe 
disse  como  as  tinha,  e  que  Ihe  respondeo  que  as  nSlo  botasse  fora, 
que  se  perderi^lo,  senao  que  as  tivesse,  mas  que  as  fizesse  iguais, 
e  que  o  absolvera,  Depois  disse  ao  emperador  Zadengfuil  por  gra^a 
estando  presente  eu :  <  Senhor,  este  Padre  he  muito  esca^o ;  fuime 
confeMar  com  elle;  e  porque  Ihe  disse  que  tinha  tres  molheres,  nflo 
me  quis  confessar:  mandame  que  case  com  huma  e  lan^e  as  outras 
fora.  Mais  liberal  he  nosso  Abuna,  que,  dizendolhe  na  confissao  como 
f.i9i,v.  *as  tinha,  me  deu  licen^a  pera  as  ter  com  condiQSlo que  as  fizesse  iguais 
e  me  absolveo  » .  O  Emperador,  que  ia  naquelle  tempo  tinha  determi- 
nado  dar  obediencia  a  santa  Igreja  Romana,  Ihe  disse :  c  Que  chri- 
standade  he  a  vossa,  se  tendes  tres  molheres  [?] :  fazei  o  que  vos  manda 
o  Padre».  E  o  abunaSimSio,  que  matarSo  a  1 1  de  majo  de  617,  como 
dissemos  no  cap.  5,  obrigou  na  confissSlo  a  hum  senhor  grande,  que 
tinha  feito  queimar  ocultamente  duas  casas  de  outro  senhor,  que 
Ihe  dissesse  que  elle  as  queimara,  que  Ihe  perdoasse  e  assim  o  fes. 
O  que  me  contou  depoes  o  dono  dizendo  que  Ihas  mandara  queimar 
pera  o  matar  a  elle  dentro,  e  que  quis  Deos  que  nao  estivesse  ali 

I 

aquella  nojte  e  mostrava  terlhe  muito  g^ande  adversao. 

Ainda  que  entre  os  confessores  e  penitentes  se  ache   comum- 

mente  a  ignorancia  que  temos  dito,   alguns  ha,   segundo  me  affir-  i 

marao,  que,  quando  se  confessao,  declarao  o  numero  dos  peccados,  * 

nao  s6  dos  que  cometerao  por  obra,  mas  por  palavra  e  pensamento,  j 

e  as  veses  o  confessor  tambem  o  pergunta.  Mas  raramente  ou  nunca  ^ 

obrigao  os  penitentes  que  pag^em  o  dano  que  fizerao,   nem  resti-  1 

tuao  o  fato  alheo  que  tomarao,  somente  dizem :  Nao  o  fa^ais  mais.  * 

Da  usura  nao  fazem  conta,  por  ser  comua  entre  elles.  E  per-  I 

guntando  eu  se  os  confessores  tinhao  alguma  summa  de  casos  por  ' 

onde  se  govemassem,   me   disserao  que  nenhum   livro   tinhao  que  < 
tratasse  disso;  que  hiao  poUa  doutrina  e  por  seus  sinodos. 

As  penitencias  que  dao,  humas  vezes  sao  muito  levesporpec-      a.Confesaariipoc- 

j  ^         .  _..        •  '    '^     1  TT  nassatisfactoriasim- 

cados  graves,  e  outras  mcomportaveis  por  cousas  muito  leves.  Hum  ponunt  saepisaime 
homem  de  credito  me  affirmou  que  porque  rira  dentro  da  icfreja,  Ihe  ^«^'  P^°  grayiori- 

°  bns,     graves,  immo 

dera  hum  frade  de  penitencia,  que  das  duas  horas  da  tarde  ate  a  gravissimas  pro  le- 
nojte  fizesse  mil  veses  reverencia  inchinandose  cada  ves  ate  chegar  ^tQ^exemplal 
com  a  cabei^a  ao  chao,  e  refusando  elle  esta  penitencia  pollo  tempo  Formuiae  absolutio- 

nis  qtias  usurpant. 


43^  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

ser  pouco,  Ihe  mandou  com  excomunhSlo  que  a  comprisse,  o  que 
fez  temendo  a  excomunhSo,  e  ^disseme  que  ficara  tam  cansado  que  f.  192. 
nem  o  outro  dia  se  podia  bolir.  Estas  inclina^Oes  s^o  as  [que]  mais 
ordinariamente  dSio  em  penitencia;  tambem  mandSlo  rezar  cada  dia 
50  psalmos  e  alg^ns  todos  os  150  por  espa^o  de  hum  anno;  e  as 
veses  que  ieiuem  todos  os  dias  por  espa^o  de  tres  ou  4  annos,  e 
ordinariamente  nao  comungao  ate  a  terem  comprido, 

Quando  se  confessSo  estSo  em  pe  o  confessor  e  penitente,  se 
as  cousas  que  tem  n2lo  s&o  compridas,  que  sendo,  ambos  iuntos  se 
assentSio;  e  acabada  a  confissSo,  se  alevantSLo  e  o  absolve  em  pe. 
A  forma  da  absolvi^Slo  de  que  usao  me  derao  por  escrito  huns  fra- 
des  dos  mais  letrados  que  tem,  e  he  esta:  «Foao,  servo  de  Deos, 
deixete  e  perdoete  teu  pecado  Jesu  Christo  poUa  boca  de  Pedro  e 
Paulo,  e  fa^ate  solto  da  prizao  do  pecado».  Outro  frade  me  disse 
desta  maneira:  <  Servo  de  Deos  foao,  o  Paracleto  perdoador  de  culpa 
e  pecado  te  perdoe  todos  teus  pecados  » .  E  outro  disse :  <  Seiate 
solto  poUa  boca  de  N.  S/"^  Jesu  Christo,  poUa  boca  de  Pedro  e 
Paulo,  poUa  boca  dos  318  verdadeiros  da  fe  ». 
4.Confe88iopubli-  Os  que  deixao  de  confessar  enteiramente  seus  pecados  he  por 

ca  coram  Abuna  est   .«  m  r     ji  . 

usitatissima.  Rei  sic  ^^^^  parecer  que  com  aquilo  cumprem,  porque  os  frades  nao  os  en- 
confessi  poenia  cor-  sinao  nem  sabem  os  mais  delles  pera  o  poderem  fazer ;  que  se  os 

poralibus  publice  af- 

ficiuntur.  ensinarao,  nao  somente  ouverao  de  confessar  todos  os  pecados,  mas 

as  circunstancias  por  leves  que  fossem,  como  se  ve  em  muitos  que 
mostrao  terem  grande  escrupolo  de  cousas  muito  pequenas  e  tanto 
deseio  de  sua  salva^ao,  que  ainda  pecados  muito  graves  confessao 
em  alta  vos  a  seu  Abuna  diante  de  quantos  ali  se  querem  iuntar, 
que  ordinariamente  sao  muitos,  porque  as  veses  sahe  de  propo- 
sito  em  publico  pera  isto,  e  sentandose  em  sua  cadeira  se  poem 
de  huma  e  outra  parte  muita  gente  e  os  que  se  querem  confessar 
vem  hum  e  hum  pello  meio  e,  chegando  perto,  dizem  em  alta  voz : 
«  Senhor,  eu  fis  tal  e  tal  cousa  »  ;  que  de  ordinario  sao  os  mores  pe- 
cados  que  cometeo  em  sua  vida ;  e  logo  abaixa  a  cabe^a  esperando 
pella  penitencia;  e  o  Abuna  levanta  *seu  baculo  com  ambas  as  maos  f.i92,v 
e  dalhe  tres  ou  quatro  muito  boas  nas  costas,  dizendo :  «  Vos  fizestes 
isto?  Nao  tendes  medo  de  Deos?  Dailhe  ali  trinta  acoutes  >.  Afa- 
stasse  elle  entao  e  vayos  receber  de  mao  de  dous  homens,  que  sem- 
pre  andao  diante  do  Abuna  com  humas  correas  compridas  amar- 
radas  em  huns  paos  e  como  Ihe  dao  6  ou  8,  rogao  por  elle  os  pre- 
sentes  e  o  Abuna  dis  logo  que  basta  e  o  absolve.   Depois  chega 


LIVRO  II,  CAPITULO  X.  437 

outro  e  a  elle  e  a  todos   os   demais  que  se  querem  confessar  vaj 
despachando  como  o  primeiro. 

O  que  tenho  dito  me  contarSo  nSo  somente  alguns  Portugueses 
que  o  virao,  mas  os  da  terra,  que  por  veses  se  acharSlo  presentes, 
e  me  aflirmarao  que,  chegandose  ali  hum  a  confessar,  pedio  ao  Abuna 
Ihe  quisesse  ouvir  em  segredo,  porque  o  que  tinha  que  dizer  nao 
opodia  descobrir  em  publico;  e  que  Ihe  respondera:  c  Nao  aveis  de 
dizer  depois  diante  dos  anjos,  porque  o  nao  direis  agora  diante  dos 
homens  [?]  > .  Disse  elle  entao  que  furtara  certo  numero  de  vacas ;  o 
que  ouvindo  seu  dono,  que  ali  estava  e  nao  podia  saber  quem  Ihas 
levara,  o  acusou  diante  de  hum  juis  por  ladrao  e  nao  somente  tor- 
nou  as  vacas  que  tinha  tomado,  mas  pagou  em  pena  muito  fato. 
Por  onde  nao  ha  duvida  nenhuma  senao  que,  pois  confessao  em  pu- 
blico  e  com  tanto  risco  pecados  tam  graves,  que  milhor  o  ouverao 
de  confessar  em  secreto  todos  os  menores  com  suas  circunstancias, 
se  tiverao  quem  Ihes  declarara,  que  pera  ser  valiosa  a  confissao 
Ihes  era  necessario. 

Frei  Luis  de  Urreta  no  cap.  8  do  2  livro  pretende  defender  5.  Ex  dictis  sequi- 
aos  Ethiopes  dizendo  que,  ainda  que  nao  tiverao  por  muito  tempo  l^^Sro^aHeniTsint 
conhecimento  dos  sacramentos  da  Confirmacao  e  Extrema  Uncao,  V^^  Urreu  namvit 

.  .  de  recto  usu  et  fre- 

depois  toda  via  que  a  Igfreja  Romana  Ihes  ensmou  a  doutrina  de-  quenti  buius  sacra- 
stes  sacramentos,  a  receberao  com  grande  alegria  e  dali  por  diante  ^^^^  ^^^^  Aethio- 

pes* 

usarao  delles  ate  oje,  com  a  pontualidade  que  o  mandou  o  Concilo 
Florentino  e  Tridentino  e  que  ussu^ao  e  usao  oie  do  sacramento  da 
f.  193-  confissao  *com  tanta  inteireza  como  a  propoem  a  santa  Igreja,  e  se 
confessao  de  todos  os  pecados,  sem  deixar  nenhum,  e  com  todas 
suas  circunstancias  e  condiQOes,  e  que,  se  hum  acerta  de  cair  em 
pecado,  logo  se  vaj  a  confessar,  porque  se  nao  se  escandalizao  os  que 
o  vem,  e  que  nao  ha  nenhum,  por  destraido  que  seia,  que  nao  se 
confesse  pello  menos  duas  veses  cada  somana;  que  os  mais  devo- 
tos  e  recolhidos  he  ordinario  confessaremse  cada  dia  e  que  seus 
confessores  se  govemao  oie  poUa  summa  de  Sylvestre  e  outras  que 
Ihes  mandou  da  Roma  o  padre  frei  Xerafino  da  ordem  dos  Pre- 
gadores,  sendo  geral  de  sua  sagrada  religiao,  e  que  a  confissao  que 
os  penitentes  dizem  ao  sacerdote  he  a  mesma  que  tem  a  Igreja  Ro- 
mana,  mas  comegao  pollo  Psa/mo  78:«Salvum  me  fac  Deus  ecc. »; 
e  logo  dizem:  «  Eu  pecador  me  confesso  a  Deos  etc.  »,  estando  de 
joelhos,  e  o  confessor  assentado  como  juis.  Mas  quam  contrario  seia 
ao  que  na  verdade  qua  passa,  temos  ia  mostrado  assima. 


CAPITULO   XI. 

Em  que  se  trata  do  santissimo  Sacramento  da  Eucha- 
ristia  e  das  ceremonias  que  os  sacerdotes  Ethiopes 
us&o  na  Missa. 


Ao  ineffavel  sacramento  da  Eucharistia  tem  os  Ethiopes  muito      i  AethiopesinSa- 

-      j  .  j«^  11  j   X      cramento     Buchari- 

grande  deva^ao  e  reverencia,  porque  crem  que  ditas  pello  sacerdote  ^^i^^      praescntiam 
as  palavras  da  consegpra^ao  (que,  segfundo  me  referirao  alg^uns  frades,  ««!««»  Chrieti   aub 

speciebus     pronten- 

sao  quasi  as  mesmas  que  dis  a  Igreia  catholica)  deixa  o  pao  de  ser  tur.    Pane    utuntur 
pao  e  o  vinho  de  ser  vinho  e  debaixo  de  seus  accidentes  esta  real  e  ver-  „!!iTIo!l!^*l7!i«?«* 

*^  UV18  passiB,  at  aquae 

dadeiramente  o  corpo  e  sangue  de  Christo  N.  Senhor  unido  hipostati-  nimiae     permiztis, 

.  .  quare  invalida  con- 

camente  a  pesoa  do  Verbo  divmo;  luntamente  com  isto  e  com  conies-  sacratio  calicis. 
sarem  que  ainda  que  a  natureza  humana  se  unio  a  divina,  nao  se 
trocou  nem  misturou,  afi&rmao  muitos  que  em  Christo  nao  ha  mais 
que  huma  s6  natureza,  como  dissemos  no  cap.  3^4. 

Consagrfto  em  pAo  frementado,  e  pera  o  fazer  tem  huma  ca- 
f.i93*v-  sinha  fora  da  igreja  pera  o  oriente  perto  das  costas  da  capella,  *e 
se  alguma  ves  o  sitio  ndo  da  luguar,  o  afastao  hum  pouco  pera  a 
banda  do  norte.  Nesta  casa  nao  ha  outra  cousa  mais  que  o  neces- 
sario  pera  fazer  o  pao  e  vinho  de  que  usao ;  e  nella  moe  a  farinha 
hum  frade  com  nao  pouco  trabalho  quando  he  muita,  porque  nao 
tem  atafona.  Algumas  vezes  tambem  a  dao  a  moer  a  alguma  mo- 
Iher  viuva  ou  casada  honrrada,  que  mora  perto  da  Igreja ;  e  como 


440  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

sSo  horas  de  fazer  o  pSlo  (que  sempre  he  pouco  antes  da  missa  e 
estranhSlo  muito  o  nSlo  fazeremos  nos  as  hostias  cada  dia),  ent^o  vai 
hum  sacerdote  e  ama^a  com  fermento  e  se  he  pouca  a  gente,  que 
custuma  comungar,  fas  hum  pSlo  tam  grande  como  hum^.  patena  e 
pouco  mais  de  hum  dedo  de  grosso,  e  quando  he  muita,  o  fas  de 
dous  dedos  e  tam  grande  que  baste,  porque  pera  consegrar  nao  fa- 
zem  mais  que  hum  so  pSlo,  excepto  certas  festas  grandes,  em  que 
fazem  tres.  Neste  pflo  sinalflo  sinco  cruzes  pequenas  com  hum  si- 
nete  de  pao  a  modo  de  crus,  e  logo  fas  outros  paes  pequenos, 
que  dao  a  todos  como  pao  bento,  Depois  os  coze  em  huma  tigela 
grande  de  barro  e  cosidos  poem  em  huma  bacia  pequena  de  co- 
bre  o  que  se  ha  de  conseg^ar  e  os  outros  em  hum  sestinho  que 
pera  isso  tem. 

O  vinho  fazem  de  passas  e  na  mesma  casinha,  hum  pouco  an- 
tes  da  missa,  d'esta  maneira.  Tomao  as  passas  secas,  que  guardao 
todo  o  anno,  e  lavadas  botao  em  huma  bacia  as  que  Ihes  parece 
que  bastao  e  com  a  mao  as  desfazem  em  outra  agoa  e  depois  coao 
aquillo  com  hum  pano  limpo,  e  em  algumas  igreias,  que  nao  tem 
tantas  passas,  botao  tanta  agoa  (segundo  me  disserao  os  frades)  que 
nao  fica  mais  que  mal  tinta,  com  serem  as  passas  sempre  pretas ; 
e  ainda  me  afiirmarao  elles  mesmos  que  muitas  vezes  a  4  ou  6  pas- 
sas  botao  tanta  agoa  que  basta  pera  dizer  missa  e  comungnar  a 
muitos,  que  qua  o  fazem  in  utraque  specie. 

Do  que  se  ve  claro  que  nao  consagrao,  poes  nao  he  vinho  se- 

nao  agoa,  e  com  todo  isso,  como  dizem  as  palavras   da  consegra- 

^ao,  a  adorao. 

a.  Sacnim  faciunt  *Como  chega  a  hora  de  dizer  missa,  (que  nos  dias  que  nao  sao   f.  19+, 

iuniisub  vesperas.  d^  jeium   dizem  polla   menhaa,  e  quarta  e  6*  feira  que  ieiuao,  a 

Quibusvestibustam-  tarde,  como  duas  horas  antes  de  se  por  o  sol  e  na  quaresma  quando 

quam  sacns  utantur.  ir  -j.  -1. 

Preces  et  ritus  qui  se  poem)  dis  o  sacerdote  certas  ora^oes  sobre  os  vestimentos,  que 

praecedunt     Sacrifi-      „      ■■  •  j,  1     •    1.  j 

^iy^ja^  sao  huma  roupa  comprida  com  mangas  e  sem  colannho  ao  modo 

turquesco  e  muitas  vezes  sao  as  mesmas  cabaias  que  os  senhores 
comprao  dos  Turcos  e  as  off^erecem  as  igrejas;  e  esta  vestem  pri- 
meiro  e  sobre  ella  outra,  a  que  chamao  Motaat  tambem  comprida 
ate  os  pes  por  diante  e  pellas  costas  arrastando  como  hum  covado 
e  o  corte  he  a  modo  de  capa  dasperges,  nao  tam  fraldada  e  s6  de- 
stas  duas  usao,  que  amicto,  stolla,  manipolo  e  cordao  nao  tem.  Bem 
sei  que  Francisco  Alvares  dis  em  sua  Historia  Ethiopica  que  a  ve- 
stimenta  nao  tem  mais  que  a  largura  da  pe<;a  de  que  he  feita  com 


LIVRO  II,  CAPITULO  XI.  441 

hum  buraco  no  meio  por  onde  metem  a  cabe^a  sem  nenhuma  outra 
arte.  Mas  agora  he  da  maneira  que  disse. 

Acabadas  aquellas  ora^Oes  que  o  sacerdote  reza  sobre  as  ve- 
stimentas  todas  as  vezes  que  dis  missa,  se  reveste ;  e  o  diacono  da 
mesma  maneira,  e  outro  sacerdote,  que  ainda  veste  s6  a  primeira, 
que  serve  como  de  alva,  e  o  subdiacono  outra  (digo  subdiacono, 
porque  Ihe  dao  este  nome  ao  que  aiuda,  ainda  que  affirmao  muitos 
que  o  nao  tem,  como  adiante  diremos),  Alg^mas  vezes  dizem  a  missa 
o  sacerdote,  diacono  e  subdiacono  sem  outro  sacerdote,  e  sem  estes 
tres  nao  a  dizem  de  nenhuma  maneira  e  estranhao  muito  que 
entre  nos  o  sacerdote  diga  missa  com  s6  acolitos,  sem  diacono  e 
subdiacono. 

Em  quanto  se  revestem,  vao  hum  diacono  e  subdiacono  a  ca- 
sinha  onde  esta  o  pao  e  vinho,  e  o  diacono  toma  com  a  mam  di- 
reita  o  pucaro  do  vinho  cuberto  com  hum  pano,  e  na  esquerda  hum 
iarro  de  agoa  pera  lavar  as  maos,  e  o  subdiacono  toma  com  a  mao 
direita  hum  sestinho  em  que  esta  o  pao  que  se  ha  de  consegrar 
emvolto  em  hum  pano  de  algodao  e  os  mais  que  se  dao  ao  povo 
como  pao  bento,  e  com  a  esquerda  huma  campainha,  e  acabandose 
de  revestir  os  que  ficarao  na  capella,  comeQa  o  sacerdote  em  alta 
voz:  AUelluia  e  dis  huma  orapao  comprida;  e  como  ouvem  isto  os 
que  estao  aparelhados  pera  trazer  o  pao  e  vinho,  vem  tangendo  com 
a  campainha  e  todos  os  que  estao  na  igreja,  quando  a  ouvem,  baixao 
f.  194.  *as  cabe^as  dizendo:  «  Santo,  Santo,  Santo  Deos  dos  Deoses,  que 

«  esta  e  ha  de  estar   sempre  no  ceo  e  na  terra  ».  E  como  chegao       3-   Sacerdos,   co- 

-  ,        1       ,.  .  mitantibus     semper 

ao  altar  toma  o  pao  o  sacerdote  que  ha  de  dizer  a  missa  e  o  cobre  diacono  et  subdiaco- 

com  hum  pano  de  algodao  que  serve  de  corporal  e  sempre  he  preto  ^^l  «ccedit  ad  alta- 

ou  vermelho  pera  que,  se  cair  nelle  alguma  reliquia,  se  veia  melhor,  ante  lectionem  Epi- 

e  logo  toma  o  vinho  o  diacono  que  aiuda  a  missaeo  subdiacono,      °     '  ^'    °''*^^°* 

que  tem  huma  candea  na  mao  ezquerda  e  hum  turibulo  na  direita, 

comcQa  a  dar   volta  a  roda  do  altar,  que  sempre  esta  no  meio  da 

capella,  seguindoo  os  demais,  e  o  sacerdote  vaj  dizendo  esta  ora^ao 

em  vos  alta:   «  Deos  N.  S.*»^  que   recebestes  o  sacrificio  de   Abel 

«  no  deserto  e  de   Abraham   no  alto  do  monte  e  o   de   Elias   no 

«  Carmelo  e  a  moeda  da  viuva  no  templo,  da  mesma  maneira  re- 

«  cebei  o  sacrificio  de  vosso  servo  foao  » .  E  o  diacono,  que  leva  o 

calis  com  o  vinho,  dis  o  psalmo  22  :  Dominus  regit  me  etc.  E  como 

acabao  de  dar  volta,  poem  o  sacerdote  o  pao  na  patena,  que  esta 

dentro  de  huma   bacia   grande  de  cobre   que  poem   sobre  a  pedra 


C.  BsccARi.  Rer.  Afih.  Sjr/^i.K 


56 


442  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

dara,  a  que  chamao  Tabot ;  e  o  diacono  bota  o  vinho  no  calis,  que 
nas  igrejas  principaes  he  de  prata  e  nas  outras  de  cobre. 
4'Ab8olutoP8.  aa,  Feito  isto  dis  o  sacerdote:   «  Christo  Nosso  Deos,  que  quando 

infunditur  vinuxn  in  ,  ^  t         t     /^      f     j*      r^    ■*»■% 

calicemetc.;a."et3."   *  vos  chamarSio  lostes  as  vodas  de  Cana  de  uahjea  e  os  benzestes 
oratio  supcr  calicem;    ^  ^  jj^gg  fizestes  de  ajToa  vinho,  da  mesma  maneira  fazei  a  esto  vinho, 

4.*    oratio;     Kyne-  ° 

eleison;   5.°   oratio    <  que  esta  diante  de  vos:  benzeio  para  que  seia  alegria  e  conten- 
super  pop   um.  ^  tamento  e  vida  de  nossa  alma  e  corpo,  e  morai  sempre  com  no- 

«  sco.  Padre,  Filho  e  Espirito  Santo,  nao  ha  outro  Deos  senao  vos  ». 
E  prosigue  sobre  o  calis:  <  Deos  nosso  Deos  Jesu  Christo,  de  ver- 
«  dade  Deos  e  homem,  que  nao  se  afastou  sua  divindade  de  sua  hu- 
«  manidade,  que  derramou  seu  sangue  com  seu  querer  por  sua  fei- 
«  tura,  ponde,  Senhor,  vossa  santa  mao  sobre  este  calis;  faseio  limpo 
«  e  saiitificaio,  fapasse  vosso  sangue  honrrado,  seia  isto  pera  vida 
«  e  salva^ao  e  reden<;ao  do  pecado  de  vosso  povo.  Amen.  Ben- 
«  dito  Deos  Padre  todo  poderoso  e  bendito  o  Filho  unigenito,  que 
«  naceo  de  santa  Maria  pera  nossa  salvacjao,  e  bendito  o  Espirito 
«  Santo  paracleto  nossa  esperanpa.  Gloria  ao  Padre,  ao  Filho  e  ao 
«  Spirito,  agora  e  pera  sempre.  Amen.  Hum  Padre  Santo,  hum 
«  Filho  Santo,  hum  he  o  Espirito  Santo.  Louvais  ao  Senhor  todas 
«  as  gentes,  louvajo  todos  os  povos,  porque  se  confirmou  sobre  nos 
«  sua  misericordia  e  sua  *verdade  permanece  pera  sempre.  Gloria  f.  195. 
«  ao  Padre  e  ao  Filho  e  ao  Spirito  Santo  pera  sempre  dos  sem- 
«  pres.  Amen  ». 

Acabado  isto,  dis  o  diacono  em  vos  alta:  «  Levantajvos  a  ora- 
9^0  »  E  logo  o  sacerdote :  «  Pax  a  todos  vos  outros.  Louvemos  ao 
«  feitor  de  todos  nossos  bens  Deos  misericordioso,  paj  de  nosso 
«  Senhor  Deos  e  salvador  Jesu  Christo,  porque  nos  acodio,  recebeo 
«  e  fes  fortes,  e  nos  fes  chegar  ate  esta  hora.  Roguemoslhe  que  nos 
«  guarde  em  este  dia  santo  e  daqui  por  diante  todos  os  tempos  de 
«  nossa  vida  com  toda  a  pas.  Todo  poderoso  Deos  nosso  Deos  1. 
O  diacono  dis:  «  Buscaj  e  rogaj  vos  outros  que  nos  perdoe  Deos 
«  e  reciba  a  ora^ao  e  peti^ao  de  seus  santos  per  amor  de  nos.  Fa- 
«  zeinos  dignos,  Senhor,  que  partecipemos  do  bendito  misterio  e 
4:  perdoaj  nossos  peccados  ».  E  logo  todos  os  que  estao  na  capella 
(onde  nao  podem  entrar  senao  os  que  tem  ordens)  dizem  huma  vos : 
«  Kyrielleyson  >  e  o  sacerdote  dis :  «  O  Senhor  Deos  todo  poderoso 
«  benzemos  vos  sobre  todas  as  obras,  por  amor  de  todas  as  obras 
«  e  em  todas  a^  obras,  porque  nos  livrastes  e  nos  acodistes  e  guar- 
«  dastes  e  nos   fizestes   chegar  a  vos,  e   nos   recebestes  e  fizestes 


LIVRO  II,  CAPITULO   XI.  443 

€  fortes  e  chegar  ate  esta  hora ;  poUo  que  vos  rogamos  e  pedimos 
«  de  vossos  bens.  O  amador  das  gentes,  dajnos  que  cumpramos 
«  este  dia  santo  e  todo  o  tempo  de  nossa  vida  em  toda  a  pas  com 
«  vosso  temor  de  toda  a  enveia  e  toda  a  tenta^ao  e  de  todas  as 
«  obras  do  diabo  e  conselho  de  gente  ma  e  do  alevantamento  do 
«  inimigo  secreto  e  publico  nos  livraj,  afastai  tudo  Senhor  de  mim 
«  e  de  todo  vosso  povo  e  deste  vosso  santo  luguar.  Dajnos  todos 
«  os  bens,  vos  que  nos  destes  poder  pera  pizar  aspides  e  basilisco 
«  e  sobre  toda  a  for^a  do  inimigo.  Nao  nos  metais  em  tentaQSo, 
«  mas  livrainos  do  mal  com  g^a^a  e  pas  e  amor  da  gente  e  de 
«  vosso  Filho  unigenito  Nosso  S.°^  Jesu  Christo,  no  qual  temdes 
«  honrra  e  poder  e  com  o  Spirito  Santo  vivificador,  que  he  igual 
«  com  vosco  pera  sempre  dos  sempres.  Amen  ». 

Prosegue  logo  sobre  o  pao  e  o  calis.  «  O  cabe^a  Jesu  Christo  5.  6°  oratio  supcr 
« participante  do  principio,  vos  sois  Verbo  do  Padre  limpo,  pao  ^do^dum^drca  ai- 
«  de   vida,  que  decestes  dos  ceos  e  vos  adiantastes  a  ser  cordeiro  ^^  *^"®  inccnditur. 

Ritus    qui    scrvatur 

«  sem    macula  polla  vida  do    mundo,  buscamos   de  vos  e  pedimos  dumadiaconoetsub- 
fi95»v-   «  vossos   bens.   O   amador   dos  filhos   *dos  homens   mostraj    vosso  tur*^*popuk)™Epi8to^ 
«  rosto  sobre  este  pao  e  sobre  este   calis,   que  estao   postos   sobre  *««•  8."  oratio. 
«  esta  mesa  pera  este   combite   sacerdotal;   benzejos  e  santificajos, 
«  e  convertei  este  pao  em  vossa  carne  limpa  e  santa,  que  se  iuntou 
«  com   este   calis  e  que   vosso   sangue   hourrado  seia   participa^ao 
«  igual  pera  todos   nos,   mezinha  e  salva^ao   pera  nossas  alm?s  e 
«  corpos.  Porque  vos  sois  Rei  de  todos  nos  Christo  nosso  Deos,  a 
«  vos  damos  altissimos  louvores,  a  vos  convem  gloria,  adorapao  e 
«  poder,  e  a  vosso  Paj  manso  e  bom,  e  ao  Spirito  Santo  vivificador 
«  agora  e  sempre  e  per  todos  os  siglos.  Amen  ». 

Como  acaba  estas  ora^Oes,  dis  o  diacono:  «  Levantajvos  pera 
«  a  ora^ao  »  (nao  porque  se  assentem  e  alevantem,  porque  sempre 
estao  em  pe);  e  o  sacerdote  dis:  «  Pas  a  todos  vosoutros  »,  e  logo 
bota  incenso  no  turibolo  e  vaj  a  roda  do  altar  incensando  e  di- 
zendo:  «  Gloria  e  honrra  a  Sanctissima  Trindade,  Padre  e  Filho 
«  e  Spirito  Santo  todas  as  vezes  agora  e  pera  todos  os  sempres 
«  dos  sempres.  Amen.  O  Deos  eterno,  que  nao  tendes  principio  nem 
«  fim,  que  sois  grande  em  vosso  saber,  poderoso  em  vossas  obras 
«  e  sabio  em  vosso  conselho,  que  estajs  em  toda  a  parte,  pedimos, 
«  Senhor,  e  rogamos  que  esteiais  com  nosco  nesta  hora;  mostraj 
«  vosso  rosto  sobre  nos  e  limpaj  nossos  cora^Oes  e  santificaj  nos- 
«  sas  almas,  perdoaj  os  peccados  que  temos  feito  voluntaria  e  in- 


444  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

€  voluntariamente,  e  fazei  que  vos  oflFere^amos  sacrificio  limpo,  sa- 
«  crificio  vivo  e  o  encenso  spiritual  entre  na  casa  de  vossa  santa 
«  gloria  ».  Diz  o  diacono:  «  Levantajvos  pera  a  orapao  >  e  osacer- 
dote :  «  Pas  a  todos  vos  outros  »  e  vai  com  o  turibolo  levando  diante 
ao  subdiacono  com  huma  candea,  e  o  diacono  detras  com  sam  Paulo 
na  mao,  e  saindo  fora  da  porta  da  capella  le  huma  das  Epistolas 
de  sa6  Paulo,  em  quanto  o  sacerdote  da  huma  volta  encensando  a 
roda  da  capella  por  hum  alpendre  a  modo  de  crasta,  que  esta  da 
banda  de  fora,  onde  entrao  os  seculares,  que  na  capella  nao  podem, 
e  vai  dizendo :  «  Santo,  Santo,  Santo  Deos  de  Sabaot,  perfeito,  cheia 
«  esta  a  terra  de  santifi[ca]9oes  de  vossa  gloria  » ,  e  logo  torna  a  re- 
pitir  o  mesmo  que  assima :  «  O  Deos  eterno,  que  nao  tendes  prin- 
«  cipio  nem  fim  etc.  >,  E  como  entra  na  capella,  deixa  o  diacono 
de  ler  e  vaj  *detras  delle,  e  chegando  ao  altar  sahie  o  subdiacono  f.  196. 
e  le  no  mesmo  luguar  hum  peda^o  de  huma  das  Epistolas  canonicas ; 
e  entretanto  o  sacerdote  no  altar  repete  outra  ves :  «  O  Deos  eterno, 
«  que  nao  tendes  principio  nem  fim  etc.  >  e  acrescenta :  «  Vos  sois 
«  nosso  Senhor  e  nosso  Deos ;  a  vossos  Apostolos  santos  declara- 
«  stes  a  gloria  do  Evangelho  de  vosso  Messias  e  Ihe  destes  does 
«  sem  conto  de  vossa  gra^a  e  os  mandastes  pregar  em  todo  o  uni- 
«  verso ;  a  riquesa  de  vossa  gra^a  e  misericordia  nao  se  sabe.  Dai- 
«  nos,  Senhor,  gra^a  que  andemos  por  seus  caminhos  e  seguimos 
«  suas  pisadas  e  seiamos  dignos  de  participar  suas  herangas,  em  todo 
«  o  tempo  nos  pare^amos  com  elles  e  fiquemos  fortes  em  seu  amor,  e 
«  guardaj  vossa  Igreia  santa  que  edificastes  por  elles,  e  lan^aj  ben^ao 
«  sobre  as  ovelhas  de  vosso  gado.  Acresentaj  a  cerqua  de  vossa 
«  vinha,  que  plantastes  com  vossa  santa  mao  direita  em  Jesu  Christo 
«  nosso  Senhor  com  o  Espirito  Santo  pera  sempre  dos  sempres  ». 
6.  Sacerdos  assi-  Quando   sae  o  subdiacono  a  ler  sua  li^ao,  vai   detras   delle  o 

stens  celebranti  reci-  -^  .,  .  ,-  /-ini^«i 

tatexactisApostolo-  sacerdote,  que  amda  a  missa,  com  so  alva,  e  fica  da  banda  de  den- 
rum,  dum  celebrans  ^j-q^  q  como  o  subdiacono  acaba  de  ler,  Ihe  entrecfa  o  livro  e  se  vaj 

breves  fundit  preces, 

et  populo  signo  cru-  pera  o  altar,  e  elle  fica  lendo  dos  Actos  dos  Apostolos ;  e  entre 
legitur^Viquid  *^ex  ^^"^^  ^^?  ^  sacerdote  que  esta  no  altar:  «  O  Senhor  Jesu  Christo 
eo  Evangelio  quod   «  Deos  nosso,   que   dizestes  a  vossos   santos   dicipolos  e  apostolos 

iUo  anno  legendum  r  ^  •      -.        j        •      « 

cst.  Oratio  9.*  pro  «  limpos :  muitos  protetas  e  mstos  deseiarao  ver  o  que  vos  outros 
Ecclesiae  pace.  ^  vedes,  e  n^o  virao,  e  ouvir  o  que  ouvis  e  nao  ouvierao ;  e  bema- 

*  venturados  os  olhos  que  vem  o  que  vos  vedes.  Assim  como  a  elles 
«  nos  fazei  dignos  que  ou^amos  e  cumpramos  a  palavra  de  vosso 
«  santo  Evangelho  com  a  ora^ao  dos  Santos  >. 


k. 


LIVRO  II,   CAPITULO  XI.  445 

Depois  dis  o  diacono:  c  Fazei  ora^So  »  e  o  sacerdote:  c  Lem- 
€  brajvos  outra  ves,  Senhor,  dos  que  nos  pedirSo  que  os  lembrasse- 
€  mos  em  o  tempo  de  nossas  oragoes  e  peti^oes  que  vos  fazemos. 
«  O  Deos  Nosso  Senhor,  daj  descanso  aos  que  morrerSo  antes  de 
«  nos  e  daj  saude  aos  doentes,  porque  vos  sois  vida  e  esperan^a 
«  nossa  e  livrador  nosso  e  resurrei^ao  de  todos  nos,  a  vos  damos 
«  altissimos  louvores,  gloria  ao  Altissimo  nos  siglos  dos  siglos  » . 
Logo  estando  a  mSo  direita  pera  o  oriente  e  virandoa  pera  o  oc- 
f.i96,v.  cidente,  pera  o  norte  e  pera  o  sul,  fas  huma  crus  *dicendo: 
«  Deos  altissimo  lance  sua  ben<jao  sobre  todos  nos  e  nos  santifi- 
«  que  com  a  ben^ao  spiritual  e  fa^a  nossa  entrada  a  santa  ig^eja 
«  com  os  diligentes  anios  que  o  servem  e  louvao  pera  sempre  dos 
«  sempres  ».  E  nisto  chega  o  sacerdote,  que  estava  fora  lendo  dos 
Actos  dos  Apostolos,  e  pondo  o  livro  em  seu  luguar,  toma  o  do 
Evangelho  de  huma  estante  que  esta  perto  do  altar  (que  nelle  nao 
ha  livro  nenhum,  porque  tudo  quanto  dizem  no  altar  he  de  cor), 
e  abrindo  na  parte  que  se  ha  de  ler,  o  da  ao  sacerdote  que  dis  a 
missa  e  elle  o  toma  com  ambas  as  maos  e  o  poem  sobre  o  ombro 
esquerdo  e  vaj  ao  lug^ar  onde  lerao  os  outros  dizendo :  «  Evan- 
«  gelho  santo  que  deu  novas,  Foao  (nomeando  o  Evangelista  de 
«  quem  ha  de  ler),  palavra  do  filho  de  Deos  >  e  saindo  fora  da 
porta,  le  o  Evangelho  daquelle  dia,  mas  nao  misturao  os  Evange- 
listas,  senao  hum  anno  inteiro  lem  de  hum  Evangelista  e  outro  anno 
de  outro,  e  assim  em  4  annos  os  acabao  de  ler. 

Em  lendo  a  li^ao  daquelle  dia,  toma  ao  altar  dizendo:  «  Tam- 
«  bem  pedimos  ao  todo  poderoso  Deos  Padre,  ao  Senhor  e  redem- 
«  ptor  nosso  Jesu  Christo.  pedimos  e  buscamos  de  vossos  bens,  6 
«  amador  das  gentes,  lembrajvos  6  Senhor  da  pas  da  Igreja  santa, 
«  congrega^ao  dos  Apostolos,  a  qual  ha  de  estar  ate  o  fim  do  mundo; 
«  benzei  a  todo  o  povo  e  a  todo  o  gado  com  a  pas  que  esta  nos 
«  ceos  e  meteia  em  nossos  coraQoes  e  dajnos  nella  a  pas  de  nossa 
«  vida.  Dai  vossa  pas  a  nosso  Rei  N.  e  a  seu  exercito  e  a  seus 
«  principes  e  grandes.  O  Rei  de  pas,  dainos  p<is,  porque  todas  as 
«  cousas  nos  destes  e  a  nenhum  outro  conhecemos  fora  de  vos,  a 
«  vosso  santo  nome  nomeamos  e  chamamos,  porque  viva  em  nossa 
«  alma  no  Espirito  Santo  e  nao  acometa  a  morte  do  pecado  a  nos 
«  vossos  ser\'os  e  a  todo  vosso  povo  ». 

Acabado  isto,  dis  o  diacono,  «  Levantajvos  a  ora^ao  »  e  o  sa-      ?•  Populua  reciut 
cerdote :   «  Pas  a  todos   vos  outros  »  e  os  que   estao  na  capella  e  „^  absoivitur  prior 


446  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

p«ra   Miwae,    qiiae  fora  della  dizem  o  Credo ;  e  entretanto  o  sacerdote :   t  Alevjntaivos, 
'     »  o  meu  senhor  Deos,  e  espalhense  vossos  inimigos  e  fujam  diante 

*  de  vosso   rosto  os  que   aborecem   vosso   santo  e  bemaventurado 

<  nome,  e  vossos  povos  seiSo  bentos  com  a  ben^ao  dos  milhares 
t  de  milhares  que  fazem  vossa  vontade  com  gra^a  e  pas  de  *amor 

*  da  gente  de  vosso  Filho  unigenito  nosso  Senhor  e  nosso  Deos  e 

*  salvador  Jesu  Christo,  com  o  qual  vos  convem  gloria  e  honrra  e 
t  poder,  e  com  o  Spirito  Santo  vivificador,  que  he  igual  com  vosco 
t  agora  e  pera  sempre  dos  sempres.  Deos  grande  e  eterno,  que  fi- 
t  zestes  a  gente  sem  currupijao,  mingoastes  a  morte,  que  entrou  pri- 

*  meiro  no  mundo  polla  enveia  do  diabo,  na  vinda  de  vosso  filho 
«  nosso  Deos  e  Senhor  e  Salvador  Jesus  Christo,  e  enchestes  toda 

*  a  terra  de  pas  dos  ceos,  com  a  qual  vos  louvao  os  choros  dos 
«  anios  dizendo:  Gioria  a  Deos  nas  alturas  e  na  terra  pas  aosho- 
«  mens  de  boa  vontade.  O  Senhor  enchei  com  vosso  querer  nossos 
«  corapoes  de  vossa  paz  e  limpainos  de  toda  a  nodoa  e  de  toda  a 

*  enveia  e  de  toda  a  obra  ma  e  da  Iembran<;a  do  mal  que  causa 
«  morte  e  fazeinos  dignos  de  que  nos  beicc-mos  huns  aos  autros  com 
«  beijo  santo  e  que  recebamos  sem  pena  vosso  santo  pao  celestial, 

<  que  he  sem  morte,  em  Jesu  Christo  nosso  Senhor  com  o  Spirito 
t  Santo  pera  sempre  dos  sempres.  Amen  >. 

Em  acabando  esta  orai;ao  comeija  huma  de  doze  missas  que 
tem  differentes  pera  as  festas  e  dias  feriais.  A  que  aqui  porei,  que  he 
das  mais  breves,  dizem  elles  que  fizerao  os  Apostolos,  mas  acre- 
scentao  algumas  palavras  rogando  por  seus  Patriarcas  e  por  outros. 

MISSA  DOS  APOSTOLOS. 

s.  AlteraparsMis-  Pondose  o  sacerdote  que  dis  a  Missa  com  o  rosto  pera  os  que 

dnorum  corrcapsn-  ^stao  na   capella,   Ihes  lan^a   beni;ao   com  a  mSo   direita   dizendo: 

det,  pcr  stiigula  fe-  (  Deos  com  vos  outros  »   e  tornandose  a  virar  pera  o  altar  dando 

sta    mulanir.    E    la  ^ 

misaisquaehabentur  ben^ao  dis :   t  Benzei  a  nosso   Deos  ».  E  logo   prosegue:   t  Benze- 

p^c^^cwrre"*'^  *  mosvos,  o  Senhor,  em  vosso  filho  amado  N.  S."  Jesu,  a  quem  nos 
quae  »b  Apaatolis  t  mandastes  no  derradeiro  tempo,  vosso  filho,  salvador  e  rederaptor, 
ratio,  in  qua  conti-    *  anio  de  vosso   consclho  e  santa   vossa   palavra,   na  qual  fizestes 


netur  consecratio  ^  todas  as  cousas  com  vossa  vontade  ».  Dis  o  diacono:   «  Por  amor 

utnusque    apeciei. 

Verbaconaecrationis  t  do  bemaventurado  e  santo  papa  Marcos  (aqui  nomea  o  Patriarca 

verborum     OidBd*  *  ^^  Alexandria  que  entao  vive)  e  o  bem  aventurado  papa  N.  (aqui 

jdeo  invaiida  conse-  ,  oomea  o  seu  Abuna)  ».  Dis  o  sacerdole:  «  A  elles  e  as  obras  de 


LIVRO   II,   CAPITULO   XI.  447 

«  todos  dai  descanso  e  tende  misericordia  dellas.  Vosso  filho  man- 
«  dastes  do  ceo  nas  entranhas  da  Virgem  e  se  fes  carne  e  esteve 

f.i97,v.  «  no  ventre,  *Vosso  filho  se  soube  poUo  Spirito  Santo.  A  Vos  e 
«  aos  que  estao  em  pe  diante  de  vos  milhares  de  milhares  de  santos 
<  anios  ^  archanjos  e  vossos  animais  honrrados,  que  tem  seis  azas, 
«  serafins  e  cherubins  com  suas  duas  eizas  cobrem  vosso  rosto  e  com 
«  duas  os  pes  e  com  duas  avoao  do  principio  ate  o  fim  do  mundo, 
«  todos  pera  vos  santificar  e  louvar  sempre  com  os  que  vos  san- 
«  tificao  e  louvao.  Tambem  recebei  nossa  missa  dos  que  vos  dize- 
«  mos :  Santo,  Santo,  Santo,  Deos  Sabaot  perfeito,  cheio  esta  o  ceo 
«  e  a  terra  da  santifica^ao  de  vossa  gloria.  Vosso  Santo  Filho  veo 
«  e  nasceo  da  Virgem  pera  comprir  vossa  vontade  e  pera  vos  san- 
«  ctificar  o  povo  estendeo  suas  maos  pera  padecer  dor  e  pera  de- 
«  samarrar  aos  doentes  e  aos  que  confiarao  em  vos ;  o  qual  se  en- 
«  tregou  por  sua  vontade  a  padecer  pera  tirar  o  poder  da  morte 
«  e  quebrar  as  cadeas  do  demonio  e  pizar  o  inferno,  pera  guiar  aos 
«  santos  e  plantar  a  ordem  e  declarar  sua  resurreicjao.  E  naquella 
«  nojte  que  o  entregavao,  tomou  pao  com  suas  santas  e  bemaven- 
«  turadas  maos  sem  nodoa,  e  alevantou  os  olhos  ao  ceo  e  a  vos  a 
«  seu  paj,  e  o  benzeo  e  partio  e  deu  a  seus  dicipolos  dizendo:  To- 
«  maj,  comei:  este  pao  he  meu  corpo,  que  por  vos  outros  se  parte 
«  pera  perdao  dos  peccados.  Da  mesma  maneira  e  ao  calis  benzido  e 
«  santificado  Ihes  deu  a  seus  dicipolos,  dizendo:  Tomej,  bebei;  este 
«  calis  he  meu  sangue  que  por  vos  outros  se  derramara  em  remissao  dos 
«  pecados.  Tambem  agora,  o  Senhor,  lembrandovos  de  vossa  morte 
«  e  de  vossa  ressurrei^ao,  confiamos  de  vos  e  vos  damos  este  pao  e 
«  este  calis,  benzendovos,  o  qual  nos  fizestes  pera  deleite,  pera  que 
«  estivessemos  em  pe  diante  de  vos,  a  vos  servimos,  pedimosvos,  o 
«  Senhor,  e  vos  rogamos  que  mandeis  o  Santo  Spirito  de  virtude  sobre 
«  este  pao  e  sobre  este  calis  e  o  fagais  sua  casa  e  sangue  de  Nosso  Se- 
«  nhor  Jesu  Christo  pera  sempre  dos  sempres.  Juntamente  Ihes  deis  a 
«  todos  os  que  tomao  delle,  que  Ihes  seia  pera  santifica^ao  e  redem^ao 
«  do  pecado  pera  sempre  des  sempres  » .  Dizendo  estas  palavras, 
molha  a  ponta  do  dedo  polegar  e  fas  com  elle  huma  cruz  no  pao 
de  huma  a  outra  banda  e  dis:  «  Dainos  que  nos  unamos  em  vosso 
«  Spirito  Santo  e  sarainos  neste  pao  pera  que  viviamos  em  vos  pera 

f.  198.  «  sempre.  Bemdito  o  nome  de  Deos  e  bendito  o  que  vem  *no  nome 
«  de  Deos  » .  E  todos  repetem  as  mesmas  palavras  come^ando  de 
«  Dainos  que  nos  unamos  etc.  ». 


448  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

9.  OTadoDeB  quae  O   diacono   diz :  >  Levantejvos   pera  a  ora^ao  >   e  logo    o   sa- 

aa^^M^m  s^^lim  cerdote :   c  Pas  a  todos  vos  outros ;  dando  grai;as,  benzeoo  e  partio  » . 

Bumecdam.    Precea  /A.qui   parte  o  pao,  tomando   hum   pouco  da  parte   dassima,   onde 
fonduntur   pro    Pa-   ^     ^        '^  *^  "^  "^ 

tiiarchaAlcxandrlno  esta  a  primeira   crus,  e  logo  da   banda  debaixo,   depois   da   parte 
et  pro  A  una.  ^^  ^^^  direita,  e  logo  da  esquerda :  depois  tira  com  o  dedo  a  codea 

do  pao,  onde  esta  sinalada  a  crus  do  meio  e  enteira  a  bota  dentro 
do  calis)  e  dis  esta  oraQao :   *  Tambem  rogamos  ao  todo  poderoso 

*  Deos  Padre,  ao  Senhor  e  salvador  nosso  Jesu  Cristo  que  nos  de 
t  tomemos  com  beoQao  do  santo  misterio,  e  que  nos  fortifique,  e 
€  nenhum  de  nos  se  suje,  senao  que  faija  seia  deleite  pera  todos 

*  os  que  recebem  o  santo  misterio  do  corpo  e  sangue  de  Christo  todo- 
«  poderoso  Deos  Nosso  Deos  ».  Dis  o  diacono:  *  Fazei  ora^ao  »  e 
logo  o  Sacerdote :  <  Deos,  que  sois  todopoderoso,  dainos  fortaleza 
«  em  receber  de  vosso  santo  raisterio  e  nao  permitais  que  se  suje 

<  nenhum  de  nos,  mas  benzei  a  todos  sempre  e  pera  sempre  dos 
«  sempres  »  Dis  o  diacono :  «  Em  pondovos  em  pe  levantaj  vossa 
t  cabepa  »  e  logo  o  sacerdote :  *  Deos  eterno  sabedor  do  secreto 
«  e  do  manifesto,  abaixe  diante  de  vos  a  cabe^a  vosso  povo ;  a  vos 

—  t  reverenciamos  e  abrimos  o  alto  de  vosso  coraijao  e  came;  olhai 

«  da  morada  que  vos  convem  e  benzeios,  inclinaj  vossa  orelha  e 
t  ouvi  suas  oratjoes,  fazeios  firmes  com  a  virtude  de  vossa  mao  di- 
€  reita,  acodi  e  cobri  a  doentja  ma,  sedelhes  guarda  pera  o  corpo 
«  e  alma,  acrescentej  a  elles  e  a  nos  vossa  fe  e  o  temor  de  vosso 
«  nome  em  hum  vosso  Filho  pera  sempre  ». 

Dis  o  diacono :  *  Adoraj  a  Deos  com  temor  »  e  logo  o  sacer- 
dote :  «  O  Senhor  todo  poderoso,  vos  sois  o  que  sarais  nossa  alma 
«  e  corpo,  porque  vos  o  dizeis  por  boca  de  vosso  Filho  unigenito 
«  N.  S."'  e  nosso  Deos  e  nosso  Salvador  Jesu  Christo,  que  disse  a 
«  nosso  paj  Pedro:  Vos  pedra,  e  sobre  esta  pedra  edificarei  minha 
«  igreja,  e  as  portas  do  inferno  nao  prevalescerSo  contra  ella;  e 
«  dartehei  as  chaves  do  reino  dos  ceos ;  o  que  amarrardes  na  terra 
«  sera  amarrado  nos  ceos  e  o  que  soltardes  na  terra  sera  solto  nos 
«  ceos.  Seiao  'soltos  e  livres  vossos  servos,  meus  pajs  e  meus  ir-  ■ 
«  maos,  na  boca  do  Espirito  Santo  e  tambem  em  minha  boca  vosso 
«  servo  pecador  e  culpado.  Deos  nosso  Deos,  que  tirais  os  peccados 

<  do  mundo,  recebei  a  penitencia   destes  vossos   servos  e  servas  e 

<  ailumiai  nelles  a  lus  da  vida  eterna  e  perdoailhes  seus  pecados, 

<  porquevos  sois  misericordiosoeamador  dos  homens.  VossoisDeos 
«  nosso  Deos,  misericordioso  e  de  pas,  longe  da  ira  e  muito  miseri- 


LIVRO  II,  CAPITULO  XI.  449 

«  cordioso  e  de  verdade  iusto.  Se  pecarmos  contra  vos,  o  Senhor,  com 
«  nossa  palavra  ou  com  nosso  cora<;Slo  ou  com  nossas  obras,  perdoai 
«  e  edificai,  porque  vos  sois  bom  e  amador  das  gentes ;  porque  vos 
«  sois  Deos  nosso  Deos,  soltej  a  nos  e  a  todo  vosso  povo.  Lembraj- 
«  vos,  o  Senhor,  do  Padre  honrrado  e  santo  nosso  papa  Abba  N.  (aqui 
nomeSlo  o  Patriarca  de  Alexandria  que  actualmente  vive)  e  do  bem 
«  aventurado  e  santo  nosso  papa  N.  (aqui  nomeao  o  Patriarca  de 
Etiopia).  Nosso  Deos,  guardajos  pera  nos  pera  muitos  annos  e 
«  tempos  compridos  com  lustificaQao  e  pas.  Lembrajvos,  Senhor,  de 
«  nosso  rei  N.  e  soltaj  da  prizao  dos  pecados  que  fes  sabendo  e 
«  por  ignorancia,  soieitai  seus  imigos  e  botajos  logo  debaixo  de 
«  seus  pes.  Lembrajvos,  Senhor,  de  todos  os  Papas  e  Bispos  e  cle- 
«  rigos  e  diaconos  e  subdiaconos,  exorcistas  e  cantores,  homens  e 
«  molheres,  meninos,  velhos  e  mancebos  e  de  todo  o  povo  christao, 
«  fortificaios  com  a  fe  de  Christo ;  lembrajvos,  o  Senhor,  e  soltaj 
«  aos  que  dormirao  e  descansarao  na  fe  verdadeira,  iuntai  suas  al- 
«  mas  no  seo  de  Abrahaam,  Isac  e  Jacob ;  e  livrajnos  de  toda  a  culpa 
«  e  maldi^ao  e  de  toda  a  nega<;ao  e  de  toda  a  excomunhao  e  de 
«  todo  o  iuramento  falso  e  de  toda  a  uniao  com  rebeis  e  dos  gen- 
«  tios.  Dainos  gra<;a,  o  Senhor,  cora^ao,  siso  e  entendimento  pera 
«  que  nos  afastemos  e  fujamos  daqui  pordiante  pera  sempre  de  toda 
«  a  obra  ma  que  tenta.  Dainos  que  fagamos  vossa  determinac^ao  em 
«  toda  a  hora,  e  escrevei  nossos  nomes  no  livro  da  vida,  no  reino 
4  dos  ceos  com  todos  os  santos  e  martires  em  Jesu  Christo  N.  S.°S 
«  com  o  qual  e  com  o  Espirito  Santo  tendes  gloria  e  poder  agora 
«  e  pera  sempre  dos  sempres  >. 
f.  199.  *Dis  o  diacono:   «  Necer,  olhaj  >  e  o  sacerdote:  «  Senhor,  per-      xo.      Praecinente 

«  doainos,  Christo  »  e  logo  todos  homens  e  molheres  dizem  o  me-  veniam  pec^torum 
smo  cantando,  e  o  sacerdote  o  repete   otras   duas  vczes,  e  a  cada  ?"*i**^^-    P^fewio 

ndei  circa  praesen- 

ves  tambem  os  outros.  Depois  dis  o  sacerdote :   «  De  verdade  carne  tiam  realem. 

«  santa  de  nosso  senhor   Deos  e  salvador  Jesu  Christo,   que  se  da 

«  pera  vida  e  salvagao  e  redem^ao  do  pecado  aos  que  tomao  della 

«  com  crer.  De  verdade  sangue  honrrado  de  nosso  Senhor  e  Deos 

«  e  redemptor  Jesu  Christo,  que  se  da  pera  vida,  salva^ao  e  redem- 

«  <jao    do    pecado  aos  que  tomao  della  com   crer.  Porque   esta  he 

«  sua  came  e  seu  sangue  do  Emanuel  nosso  Deos,  de  verdade  creio 

«  e  confesso  ate  o  derradeiro   bafeio,   que  esta  he  carne  e  sangue 

«  de  vosso  unigenito  filho  nosso  Senhor  e  nosso  Deos  e  nosso  sal- 

«  vador  Jesu  Christo,  que  tomou  da  Senhora  de  todos  nos  santa  e 

C.  BicCARi.  Rer,  Aeik,  Seript,  occ,  ined»  —  II.  57 


45*>  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  bemaventurada  Maria,  e  a  fes  hum  com  sua  divindade  sem  se  mi- 
€  sturar>  sem  se  afastar  nem  trocar,  e  foj  testemunha  com  testemunho 

<  bom  em  tempo  de  Ponsio  Pilato  e  o  entregou  com  sua  vontade 
«  sobre   a   santa  crus   pera  vida  de  todos   nos.  Creio   que   nao   se 

<  afastou  sua  divindade  de  sua  humanidade,  nenhuma  hora,  nenhum 
«  abrir  e  fechar  dc  olho,  e  a  entregou  por  nos  pera  vida  e  salva* 
«  ^ao  e  redem^ao   do  pecado   pera    sempre.  Creio  e  confesso   que 

<  esta  he  sua  carne  e  sangue  de  nosso  Senhor  e  salvador  Jesu  Chri- 
«  sto,  a  quem  convem  honrra  e  gloria  e  adora^ao,  com  seu  Paj  bom, 
«  misericordioso  e  o  Spirito  Santo  vivificador  todas  as  vezes,  agora 

<  e  pera  sempre  dos  sempres.  Amen  ». 

zz.  Describitur  ri-  Como  chega  aqui,  toma  huma  pequena  parte  do  paodizendo: 

dlacono  adhmis^di-   *  Santa  carne  de  En^nuel  nosso   Deos  de  verdade  que  tomou  da 
stribuit  popuio  sa-  ^  senhora  de  todos  nos  »  e  consume ;  e  logo  o  diacono  Ihe  da  com 

cram  Synazim    sub 

utraque  apecie.  huma  colher  de  prata  ou  de  cobre  hum  pouco  do  sangue,  dizendo : 

«  Este  he  seu  sangue  de  Christo  >  e  logo  da  a  comunhao  ao  sacer- 
dote  que  aiuda  a  missa,  e  este  toma  com  sua  matO  a  colher  e  bebe 
do  sangue;  e  logo  da  a  comunhao  ao  diacono,  e  o  sacerdote  que 
aiuda  a  missa  Ihe  da  o  sangue ;  e  depois  ao  subdiacono  e  aos  que 
estao  na  capella,  que  sSo  os  que  tem  ordens,  e  logo  entrega  o  calis 
ao  diacono  o  qual  fica  a  mao  direita  do  que  dis  "^a  missa,  e  o  sa-  f-i99,T. 
cerdote  que  aiuda  a  esquerda,  e  toma  por  huma  parte  a  bacia  em 
que  vaj  a  patena  com  o  sacramento  cuberto  com  pano  de  algodao 
preto  ou  vermelho,  e  da  outra  banda  toma  qualquer  sacerdote  dos 
que  ali  se  achao  sem  estar  revestido ;  e  o  que  dis  a  missa  estende 
as  maos  e  as  poem  sobre  o  pano  com  que  esta  cuberto  o  sacra- 
mento,  e  o  subdiacono  vaj  diante  com  huma  ta^a,  que  quando  o 
diacono  da  o  sangue  poem  diante  do  calis,  porque  nao  caia  alguma 
gota  no  chao.  E  chegando  a  porta  da  capella  ou,  por  melhor  dizer, 
da  igreja,  da  o  sacerdote  o  sacramento  do  corpo  aos  seculares  ho- 
mens  e  molheres  dizendo :  «  Santa  carne  de  Emanuel  nosso  Deos 
«  de  verdade  que  tomou  da  senhora  de  todos  nos  ».  E  o  que  co- 
munga  dis:  «  Amen,  Amen  »;  e  logo  o  diacono  da  o  sangue  com 
a  colher  dizendo :  «  Este  he  seu  sangue  de  Jesu  Christo  pera  vida 
«  da  carne  e  alma  e  pera  vida  etema  »  e  o  subdiacono  bota  na 
pahna  da  mao  do  que  comungou  huma  pouca  de  agoa,  com  que 
elle  lava  a  boca  e  a  bebe,  e  algumais  vezes  Ihe  da  a  agoa  na 
boca  com  o  iarro  que  he  de  bico ;  e  todos  quando  comungao 
estao  em  pe. 


LIVRO  II,    CAPITULO   XI,  45 1 

Como  acabao  de  dar  a  comunhao  a  todos   (porque   ordinaria-      la.  Sacerdos  ma- 

.    j  ,  nusabluity  thureper- 

mente  todos  os  que  ali  estao  comungao,   amda  que  se  nao  tennao  f^^^^  ^^  deosculan- 
confessado),  tornao  pera  o  altar,  e  se  fica  alguma  [parte  do]  sacra-  das  praebct  «^»"» »»- 
mento  a  consume  o  que  dis  a  missa,  e  logo  lava  os  dedos  com  agoa  nis,  atquc  ita  Sacri- 
dentro  do  calis  e  a  bebe ;  lava  a  patena  e  calis  e  da  a  beber  aquella  ^^^^  abaoivitur. 
agoa  ao  sacerdote  que  aiuda  a  missa,  e  tornando  a  lavar  o  calis,  a 
da  ao  diacono,  e  logo  lava  as  maos  sobre  a  patena  e  a  da  a  beber 
ao  subdiacono.  Feito  isto  esfrega  as  palmas  das  maos  com  incenso, 
e  postas  em  crus  as  da  a  beijar  a  todos  os  sacerdotes  que  ali  se 
achao,  dizendo :  «  O  poder  da  mao  de  Pedro  »  e  o  que  beija  responde: 
*  Assim  como  o  primeiro  sacrificio  de  Abel  receba  »   e  aos  diaco- 
nos  e  subdiaconos  poem  as  palmas  sobre  a  testa  e  logo  Ihes  da  a 
beijar  dizendo:  c  A  ben^ao  de  Paolo  >.  E  preguntandolhes   porque 
diziao  de  huma  maneira  a  sam  Pedro  e  doutra  a  sam  Paulo,  me  re- 
sponderao  que  porque  sam  Pedro  era  sacerdote  e  sam  Paulo  diacono. 
f.  200.  Tudo  isto  tirei  de  hum  livro  que  me  derao  *em  hum  mosteiro       13.  Superiug  dicta 

grande  e  disseraome  os  frades  que  todas  as  ora<;oes  e  ceremonias,  115^  lithurgico  cu- 
que  aqui  se  referem,  desde  que  trazem  o  pao  e  vinho  daquella  ca-  i^^dam   monasterii. 

Quam    absona    sint 

sinha  onde  se  fas  ate  chegar,  onde  se  poem  o  titulo    c  Missa  dos  quae  acripsit  Urreta 
Apostolos  »  se  dizem  e  fazem  em  todas  as  outras  missas  e  que  al-  ^f^il^^^^^^iil^I 
gumas  tem  mais  ceremonias  que  esta  e  que  fazem  nelas  comemo-  ^^  ostenditur. 
ra^ao  de  Dioscoro. 

Nao  dizem  em  cada  igreja  mais  que  huma  s6  missa,  ainda  que 
aia  nella  muitos  sacerdotes,  e  estranhao  muito  que  em  nossas  igrejas 
se  digao  em  hum  dia  muitas  missas  e  publicamente  a  vista  do  povo 
sem  cortina.  Dizem  (segundo  me  affirmarao  os  frades)  missa  pollos 
defuntos  e,  como  nesta  temos  visto,  rogao  por  elles,  e  com  tudo  isso 
negao  o  Purgatorio,  como  adiante  veremos. 

A  missa  chamao  Cadace  e  ao  Santissimo  Sacramento  Corban, 
que  quer  dizer  holocausto. 

Frei  Luis  de  Urreta,  no  cap.  9  do  2^  livro  de  sua  Historia 
Ethiopica,  poem  huma  missa  e  refere  as  ceremonias  que  os  Ethio- 
pes  usao  nella;  mas  em  muitas  das  cousas  que  ali  dis  se  cnganou 
como  que  do  principio  de  sua  christandade  consagrao  em  azimo 
scilicet  em  pao  sem  fromento  e  que  ia  usao  de  hostias  como  nos, 
pera  os  sacerdotes  grandes,  e  pequenas  pera  comungar  o  povo. 
Que  antigamente  faziao  vinho  de  passas  pera  dizer  missa,  pon- 
doas  de  molho  10  dias  e  depois  as  enxugavao  e  exprimiao  com 
hum  parafuso,   mas  que  agora  ia  se  nao  usa,   porque  tem  grande 


452  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

abundancia  de  vinho  de  uvas ;  que  ainda  que  antigamente  os  oma- 
mentos,  com  que  os  sacerdotes  diziflo  missa,  erSio  s6  huma  alva 
muito  iusta  e  a  casula  era  como  hum  escapulario  estreito  com  sua 
abertura  por  donde  metiam  a  cabe^a;  ia  agora  usSo  de  todos  os 
ornamentos  com  que  celebra  a  Igreja  Romana.  Que  a  certo  passo 
da  Missa  dis  o  povo  a  vozes  o  Credo  que  canta  a  Igreja  Romana 
sem  descrepar  palavra.  Que  roga  o  sacerdote  pello  successor  de 
sam  Pedro  que  vive  a  Roma ;  e  que  da  a  bacia  com  o  sacramento 
ao  diacono  cuberto  com  huma  pala  e  o  calis  com  o  sangue  ao  sub- 
diacono,  e  elles  dSo  a  comunhSo  aos  sacerdotes  que  estSo  perto  do 
altar  e  logo  aos  ordenados  maiores  e  menores,  e  depois  na  porta 
da  igreja  aos  seculares  homens  e  molheres,  e  que,  ainda  que  estes 
comungavSlo  antigamente  sub  utraque  specie,  ia  nSio  se  usa  des  do 
Summo  Pontifice  Paulo  3*,  *que  Ihes  mandou  por  seus  breves  que  f.2oo,T. 
comungassem  s6  com  as  species  de  pSLo,  como  o  fas  a  Igreja  Ro- 
mana,  e  logo  ao  ponto  obedecerSo.  Que  antigamente  nSo  guar- 
davflo  o  Santissimo  Sacramento  nas  ig^eias,  nem  o  levavao  aos 
doentes,  porque  como  comungavao  os  mais  dos  dias,  se  adoeciao, 
a  ultima  comunhSo  Ihes  servia  de  viatico,  segundo  elles  diziao ;  mas 
que  agora  ia  reservao  o  santissimo  Sacramento  nas  igrejas,  e  que 
o  levao  aos  doentes  seguindo  em  tudo  o  estillo  da  Igreja  Romana. 

Estas  e  outras  cousas  (que,  por  serem  de  menos  porte,  deixo) 
dis  o  Autor  naquelle  capitulo,  mas  todas  sao  muito  differentes  do 
que  na  verdade  qua  passa,  porque,  como  temos  visto  assima,  sempre 
ate  oie  consagrao  com  pao  frementado,  e  se  hao  de  dizer  missa  pella 
menhaa,  fazem  a  massa  a  noite,  botandolhe  fremento  e  quando 
ieiuam,  que  dizem  missa  a  tarde,  amassao  pella  menhaa  com  fre- 
mento,  nem  usao  de  hostias  como  nos,  nem  tiverao  nunca  ferros; 
pello  que  o  emperador  Seltan  Cegued  deseiou  ver  os  nossos  e  man- 
dou  fazer  hostias  diante  delle  e  aus  louvou  muito.  O  mesmo  fizerao 
alguns  senhores  que  estavao  presentes,  e  hum  disse:  Esta  he  cousa 
muito  boa,  que  se  pode  consumir  sem  mastigar;  de  nosso  sacra- 
mento  sempre  nos  ficao  reliquias  entre  os  dentes.  E  huma  senhora 
disse :  Isto  he  cousa  do  ceo :  nossos  frades  parece  que  amassao  com 
os  pes  o  pao  que  fazem  pera  o  sacramento. 

As  passas  nao  as  botao  de  molho  nem  as  espremem  com  pa- 
rafuso,  senao  hum  pouco  antes  da  missa  as  lavao  e  botando  aquella 
agoa  fora,  as  desfazem  em  outra  com  a  mao  e  coao  com  hum  pano, 
como  dissemos.  Nem  usarao  nunca  (segundo  elles  dizem)  nem  usao 


LIVRO  II,   CAPITULO   XI.  453 

cie  de  vinho  de  uvas  pera  dizer  missa.  Nem  os  omamentos  sam 
como  os  da  Igreja  Romana,  sen^o  como  os  que  assima  dissemos. 
Nfem  cantSLo  nella  o  Credo  como  o  tem  a  Igreja  Romana,  antes  co- 
mummente  negSo  com  pertinacia  que  o  Spirito  Santo  procede  do 
Filho,  como  dissemos  no  capitulo  2^  deste  livro.  Nem  o  sacerdote 
roga  na  missa  pello  successor  de  s,  Pedro  que  vive  em  Roma,  senao 
pello  Patriarca  de  Alexandria.  Nem  o  diacono  da  a  comunhao  do 
f.  201.  corpo  *aos  ecclesiasticos,  nem  seculares,  senao  o  sangue,  e  o  sa- 
cerdote  que  dis  missa  o  corpo;  que  ate  oie  comungao  todos  sub 
utraque  specie.  Por  onde,  se  o  summo  pontifice  Paulo  3°  Ihes  man- 
dou  que  comungassem  s6  com  as  especies  de  pao,  como  dis  o  Autor, 
nao  obedecerao.  Nem  guardao  o  estilo  da  Igreja  Romana  em  re- 
servar  nas  igrejas  o  sanctissimo  Sacramento  e  levalo  aos  doentes ; 
porque  nem  huma  cousa  nem  outra  fazem.  E  muito  fraca  escusa 
era  dizet  que  nao  o  levavao,  porque,  como  comungavao  os  mais  dos 
dias,  se  adoeciao,  a  ultima  comunhao  Ihe  servia  de  viatico ;  pois  po- 
diao  estar  hum  anno  e  dous  doentes  de  maneira  que  nao  chegassem 
a  igreja  e  o  que  peior  he,  que  nao  somente  nao  comungao  em  quanto 
estao  doentes,  por  comprida  que  seia  a  doen<;a,  mas  poucos  se  con- 
fessao,  porque  Ihes  dizem  seus  frades,  como  eu  mesmo  Ihes  ouvi, 
que  ia  que  nao  podem  fazer  penitencia  por  causa  da  doenija,  nao 
Ihes  aproveita  a  confissao,  e  assim  morrem  sem  ella. 

Aos  que  a  iusti^a  condenava  a  morte  de  nenhuma  maneira  con-  i4.Probaturexem- 
fessavao.  Mas  pouco  tempo  ha  que  adverti  ao  emperador  Seltan  fJforantia^^edcrc 
Sagued  quam  g^ande  mal  era  este  e  Ihe  persuadi  ordenasse  a  seus  *<^  sacram  Ssmaxim 

absque     conditioni- 

luizes  que  os  que  condemnassem  a  morte,  os  nzessem  confessar  an-  bus  rcquisitis. 

tes  de  padecer,   Tambem  tem  tam  grande   descuido  os  vigairos  e 

todos  os  frades  em  ensinar  ao  povo  o  aparelho  que  se  requere  pera 

receber  o  sanctissimo  Sacramento  que,  segundo  me  affirmarao,  ha 

homens  csisados  que  comungao  a  meude  sem  se  terem  confessado 

em  toda  sua  vida ;  e  entre  os  que  se  reduziao  a  nossa  santa  fe  achei 

alguns  de  mais  de  vinte  annos,  que  me  disserao  que   comungavao 

cada  8  dias,  e  que  em  toda  sua  vida  se  nao  tinhao  confessado,  por 

nao   saberem  que   era  necessario   confessar  os   peccados   antes  de 

comungar. 


CAPiTULO  xn. 

Em  que  so  refere  o  que  rezao  os  sacerdotes 
em  luguar  de  nossas  horas  canonicas. 


Pois  temos   visto  as  ceremonias,   de  que  usSo   os  sacerdotes      i.  Ez  ipsis  mona- 

.  .1..  *  r     '  «      9k  chorum  libris  refert 

f.2oi,v.   ethiopes  em  suas  missas,  scra  bem  refenr  agora  o  que  rezao  *em  Auctor prcccs omnes 
luguar  de  nossas  horas  canonicas,  pera  que,  se  algimi  quise  saber  q«*e  «  Sacerdotibus 
meudamente  estas  cousas,  as  possa  ver  aqui  tiradas  de  seus  mesmos  tur  locohorarum  ca- 
livros  e  em  quanto  for  possivel  me  acomodarei  a  propriedade  de  ap„d*i^no,**g,;^t 
suas  palavras,  ainda  que  no  que  mostrarSo  da  escritura  algumas  in  u«u. 
n^o  seiSlo  tam  conformes  a  nossa  versSlo.  E  come<;ando  pollas  ma* 
terias  que   elles   cantSio  de  ordinario   como  duas  horas  ou  hora  e 
mea   antes  de  amanhecer,   nao  dizem   primeiro  como  nos  c  Pater 
<  Noster,  Avemaria,  Credo,  Domine  labia  mea  aperies  etc.  »  senao 
cantando  a  seu  modo  repetem  tre  vezes  «  AUeluia  *  e  logo :  «  Benso 
«  e  alevanto  em  nome  do  Padre  e  do  Filho  e  do  Spirito  Santo ;  to- 
«  mando  por  baculo  tres  nomes,  ainda  que  caia  me  alevante,  ainda 
«  que  ande  nas  trevoas,  Deos  me  alumiara.  Nelle  confio.  Benzemos 
«  vos,  Senhor,  e  glorificamos.  Benzemos  vos,  Senhor,  e  confiamos 
«  em  vos,  soieitamonos   a  vos,  Senhor,  e  servimos  a  vosso   Santo 
«  nome ;  adoramos  a  vos,  a  quem  todo  joelho  fas  reverencia,  e  toda  a 
«  lingoa  se  soieita.  Vos  sois  Deos  dos  Deoses  e  senhor  dos  Senho- 
«  res,  Deos  de  toda  a  carne  e  de  toda  a  alma;  a  Vos  chamamos  como 


45^  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  nos  ensinou  Vosso  Filho  dizendo:  Quando  oraxdes  dizei  assim :  Pa- 
«  ter  noster  qui  es  in  coelis  etc.  »  e  dizemno  enteiramente,  e  logo : 

<  Seia  bento  Deos  Deos  de  Isrrael,  que  so  fas  grandes  maravilhas  e 

<  seia  bento  o  nome  de  sua  santa  gloria  e  encha  sua  gloria  toda  a 
«  terra  *  Seia,  Seia  *  » . 

«  Santo,  Santo,  Santo  Deos  de  Sabaot  perfeito ;  cheos  est2Lo 
«  os  ceos  e  a  terra  da  santificaQao  de  vossa  gloria,  Deos,  que  era 
«  antes  do  segre  e  ha  de  ser  pera  sempre.  Santo  Deos,  que  he 
«  glorificado  dos  diligentes  a  santificado  dos  santos.  Santo  Deos, 
«  a  quem  temem  os  Cherubins,  e  de  cuia  magestade  tremem  os  Se- 
«  rafins.  Santo  Deos,  que  vira  o  corisco  e  fas  forte  o  trovao.  Santo 
«  Deos,  que  lan^a  a  escuridao  a  tarde  e  a  lus  pella  menhaa ;  Santo 
«  Deos  que  fas  prosedir  ao  sol  de  dia  pera  que  nos  alumiasse  do 
«  ceo;  Santo  Deos  que  fas  que  a  liia  e  estrellas  comprissem  de 
«  nojte  o  que  Ihes  tinha  ordenado.  Santo  Deos,  que  fas  a  seus  anios 
«  spiritos  e  a  seus  ministros  fogo  abrazador.  Santo  Deos  que  esten- 
«  deo  o  ceo  como  tenda  e  fortaleceo  a  terra  sobre  as  agoas.  Santo 
«  Deos  que  fes  a  Adao  a  sua  imagem  e  semelhan^a;  Santo  Deos,  que 
«  ordenou  a  Abrcihao  e  iurou  a  Isac  e  guardou  a  promessa  *a  Jacob,  f.  202. 
«  Santos  Deos  que  foj  vendido  como  Joseph  pera  medir  o  comer 
«  ao  povo ;  Santo  Deos  que  deu  lei  a  Moyses.  Santo  Deos,  que  san- 
«  tificou  o  sacerdocio  de  Aron ;  Santo  Deos,  que  ungio  a  David 
«  com  ungao  do  reino  e  sacerdocio.  Santo  Deos,  que  bafeiou  nos 
«  profetas,  pera  fazer  ouvir  sua  santa  palavra.  Santo  Deos  a  quem 
«  glorificao  os  anios  e  louvao  os  poderes  ».  Logo  dizem  alguns 
versos  do  Psalmo  104  e  117  a  modo  de  responsorios  desta  ma- 
neira :  «  Confitemini  Domino  e  invocate  nomen  eius  Alleluia  ecc.  » . 
E  depois  dizem:  «  Gloria  ao  Padre  e  ao  Filho  e  ao  Spirito  Santo. 
«  AUeluia,  em  todo  o  tempo  e  em  toda  a  hora.  Gloria  ao  Padre 
«  ao  Filho  e  ao  Spirito  Santo,  Alleluia  em  todos  os  tempos  e  mo- 
«  mentos.  Gloria  ao  Padre,  a  FilHo  e  ao  Spirito  Santo,  Alleluia  em 
«  todos  os  tempos  e  annos.  Gloria  ao  Padre  e  ao  Filho  e  ao  Spirito 
«  Santo,  Alleluia,  a  santa  Igreja  pera  sempre  dos  sempres  Alleluia. 
«  A  elle  convem  gloria  de  gera^ao  em  gera^ao  ». 

«  Louvo  vos,  o  Virgem  cheia  de  louvor,  quanto  minha  boca 
«  pode  louvar  vossa  grandeza ;  a  lingoa  do  Cherubim  nao  pode  acabar 
«  de  vos  louvar,  e  a  boca  do  Serafim  nao  acabara  de  declarar  vossa 
«  grandeza.  E  estreiteza  de  vossas  entranhas  ficou  mais  larga  que 
«  o  ceo  e  vosso  resplandor  foj  mais  claro  que  o  do  sol.   Vos  sois 


LIVRO  II,   CAPITULO   XII.  457 

«  ouro  limpo,  thesouro  da  natureza;  bendita  sois  vos  mais  de  Deos 
«  vos  sois  louvada  por  boca  dos  Prophetas  e  glorificada  dos  Apostolos, 
«  coroa  da  bencao  de  Jacob  e  louvor  da  casa  de  Israel ;  procedeis 
«  do  reino  da  rais  de  Jesse,  frol  limpa  do  tronco  de  David ;  por 
«  vos  cheirSo  suavemente  todos  os  Santos.  F2.zemosvos  reverencia  o 
«  Rainha  e  alevantamos  os  olhos  a  vosso  Filho  poderoso  do  segre : 
«  estendei  vossas  mSLos  e  benzei  a  cada  hum  de  vossos  servos.  Se- 
«  nhor,  perdoainos,  Christo  ».  Isto  rcpetem  doze  vezes.  «  Benzeinos, 
«  Senhor  Deos  nosso,  do  alto  do  ceo ;  recebei  nossas  ora^oes,  per- 
«  doainos,  Senhor,  e  avei  misericordia  de  nos  ».  Isto  repetem  tres 
vezes.  «  Rogamos  a  Deos  Padre  senhor  todo  poderoso  e  a  nosso 
«  salvador  Jesu  Christo  por  nossos  irmSos  doentes  que  tire  delles 
«  todas  as  infirmidades  e  espirito  de  doen^a,  e  prevalecendo  a  vida, 
«  Ihes  de  saude,  o  todo  poderoso  Deos  nosso  Deos  » . 

Dis  o  diacono  «  Oraj  >  e  logo  hum  sacerdote :  «  Deos  nosso,  Deos 
f.2o2,v.  «  todo  poderoso  *Padre  e  Senhor  e  nosso  salvador  Jesu  Christo, 
«  pedimos  vos  e  rogamos  que  deis  vida  aos  irmaos  doentes  e  que 
«  se  tire  delles  o  espirito  de  doenga.  Fazei  que  passem  delles  to- 
«  das  as  dores  e  infirmidades,  e  que  achem  logo  saude,  visitador  e 
«  satador  da  alma  e  corpo,  tirai  delles  todas  as  cousas  dos  espiritos 
«  immundos  que  atribulSLo  e  apertSLo  a  alma,  dai  pas  e  descanso, 
«  tiraj  todas  as  doen<;as  desta  casa,  e  de  nos;  daj  perfeita  saude  a 
«  todos  os  que  nomeao  vosso  santo  nome,  e  salva^ao  a  nossas  al- 
«  mas  em  vosso  unico  Filho,  com  o  qual  e  com  o  Espirito  Santo 
«  tendes  gloria  pera  sempre  dos  sempres  ». 

«  Lembrajvos,  Senhor,  da  promessa  de  vossos  servos  santos, 
«  promessa  de  Abrahao,  Isac  e  Jacob  vossos  fieis,  a  quem  destes 
«  esperanija,  esperan^a  de  iustifica^ao  e  vida  e  iurastes  por  vos 
«  mesmo.  Lembrajvos,  Senhor,  do  zelo  de  Moyses  vosso  servo,  que 
«  com  vossas  maraviJhas  se  engrandeceo  entre  os  Egypcios  e  achou 
«  gra<;a  diante  de  vosso  rosto,  e  recebeo  a  lei  de  vossas  maos.  Lem- 
«  brajvos,  Senhor,  da  iustifica^ao  de  David,  a  quem  vos  mesmo  lou- 
«  vastes  dizendo:  Achei  a  David  meu  servo  homem  fiel  segundo  meu 
«  cora^ao.  Lembraivos,  Senhor,  da  palavra  de  vossos  Profetas  santos, 
«  a  quem  destes  vosso  espirito  e  clamarao  como  trombeta  pregando 
«  vossa  nacen^a.  Lembrandovos  destes,  perdoai  a  vosso  povo  e  ben- 
«  zej  vossa  heranpa,  alevantej  vossa  for<;a  e  vinde  a  nos  livrar. 
«  Ouvi  nos,  Deos  e  salvador  nosso,  Deos  de  nossos  Padres.  Nao 
«  vimos,  nem  ouvimos,  nem  nos  disserao  nossos  paes  que  avia  outro 

C.  BBCwAxr.  Rer,  Aeth,  Script,  oce,  ined»  —  II.  58 


458  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  Deos  fora  de  vos.  Seiao  confundidos  os  que   adorSLo  os  idolos  e 

«  os  que  se  gloriSo  em  seus  deoses.  Nossa  alma  espera  em  Deos, 

«  porque  he  nosso  aiudador  e  refugio,  Vinde  pera  mim,  o  Virgem, 

<  com  vosso  amado  filho  Jesu  Christo  pera  nos  benzer ;  vinde  pera  mim 

«  o  Virgem  com  Adao,  Abel,  Set  e  Enoc,  santos  paes  dos  paes  an- 

«  tigos  nomeados.  Vinde  pera  mim  com  Noe  e  Sem,   que  acharao 

«  gra^a  diante  do  Altissimo.  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com  Abra- 

«  hao,  Isac  e  Jacob,  vossos  paes,  que  gerarao  a  gloria  de  todo  mundo, 

«  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com  Moyses,  *Aron  sacerdotes,  que   f.  203. 

«  vos  assemelharao  ao  tempo  da  lei  velha.  Vinde  pera  mim,  o  Vir- 

«  gem,  com  Josue   profeta  e  principe,   que  fes  deter  o  sol   contra 

«  Gabaon  e  repartio  a  heran<;a   aos  Hebreos.   Vinde  pera   mim,  o 

«  Virgem,   com  Samuel  que  tirou  a   David   dentre  as  ovelhas  e  o 

«  ungio  com  o  oleo  de  seu  como.  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com 

«  David  nosso  paj  cantor.  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com  Isaias 

«  e  Jeremias  altissimos  em  suas  palavras  e  pregadores  com  virtude. 

€  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com  Elias  e  Eliseu  profetas  de  Isrrael. 

«  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,  com  Ezechiel  e  Daniel  de  boas  vi- 

«  soes,  que   denunciarao  os  misterios   do  ceo.  Vinde  pera   mim,  o 

«  Virgem,  com  Ananias,  Azarias  e  Misael,  que  nao  quiserao   obe- 

«  decer  ao  mandado  del  Rei,  senao  a  Deos  do  ceo  e  fizerao  orac^ao 

«  dentro  do  fogo.  Vinde  pera  mim,  o  Virgem,   com  todos  os  Pro- 

«  fetas  de  Juda  e  Samaria  e  Babilonia,  que  clamarao  como  trom- 

«  beta  por  vosso  filho.  Louvamos  vos,  o  Virgem,  assim  como  o  anio 

«  Gabriel,  dizendo:    Bendita  es  tu,  e  bento  o  fruto  de  teu  ventre. 

«  Alegrajvos,  chea  de  gracja,  Deos  com  vosco,  bendita  sois  e  bento 

«  o  fruto  de  vosso   ventre.   Alegrajvos,   fonte  de  alegria.  Bendita 

«  sois  e  bento  o  fruto  de  vosso  ventre.  O  Senhor,  perdoainos,  Chri- 

«  sto  >.  Isto  repetem  doze  vezes. 

«  Louvamos  a  Deos,  que  he  glorificado  com  a  gloria  dos  San- 
«  tos.  A  elle  louva  a  companhia  dos  anios  alegres,  a  elle  servem 
«  as  almas  dos  justos,  a  elle  adora  a  santa  Igreja  dizendo:  Gloria 
«  a  Deos  nas  alturas  e  na  terra  pas  aos  homens  de  boa  vontade. 
«  Santo,  Santo,  Santo  Deos  que  mora  nas  alturas  e  ve  o  intimo  do 
«  abismo ;  sua  magestade  nao  podem  ver  os  Cherubins.  Santo  Deos, 
«  que  he  de  tres  rostos  e  huma  natureza,  todo  poderoso,  de  hum 
«  conselho.  Santo  Deos,  que  he  tres  em  huma  uniao,  he  glorificado 
«  dos  diligentes,  fogo  de  vida  que  nao  se  palpa  nem  se  enxerga 
«  com  o  olho,  spirito  sotil.  Adoramos  a   sua  Trindade   com  huma 


LIVRO  II,  CAPITULO  XII.  459 

f.203,v.  «  ^adora^ao  e  Ihe  damos  gloria.  Santo  Deos,  que  as  paredes  de  sua 
«  casa  sao  chamas  e  o  chao  neve :  a  elle  convem  adora^ao.  Santo 
«  Deos,  que  os  sacerdotes  do  ceo  estao  em  pe  a  roda  delle  e  Ihe 
«  dao  gloria,  adorandoo  e  tremendo  diante  de  seu  trono.  Santo  Deos, 
«  cuia  casa  he  relampago  de  sua  gloria ;  diante  delle  corre  o  rio  de 
«  fogo ;  Santo  Deos,  que  nao  dorme,  diligente,  glorificado  entre  os 
«  santos ;  os  Serafins  o  serquao  como  aneo  do  ceo ;  a  elle  s6  con- 
«  vem  gloria.  Soieitamonos  a  vos,  o  filha  de  David,  honrra  de  todo 
«  mundo,  segunda  nas  alturas,  sendo  Virgem  Maj.  Soieitamonos  a 
«  vos,  o  filha  de  David,  segunda  no  ceo,  de  quem  nasceo  o  sol,  pa- 
«  ristes  a  Deos.  Soieitamonos  a  vos  filha  de  David,  casa  de  santi- 
€  dade  do  Filho,  trono  de  ouro.  Soieitamonos  a  vos,  o  filha  de  Da- 
«  vid,  com  vestido  de  ouro  e  claridade.  Soieitamonos  a  vos,  a  filha 
«  de  David,  cristal  limpo,  caixa  de  cheiro  com  que  se  ungem  os 
«  sacerdotes.  Soieitamonos  a  vos,  o  filha  de  David,  horto  fechado, 
«  fonte  selada,  filha  dos  Profetas.  Soieitamonos  a  vos,  o  filha  de 
«  David,  novo  ceo,  arca  misteriosa,  vaso  de  ouro  e  prata.  Soieitamo- 
«  nos  a  vos:  rogaj  por  nos,  o  Maria  nossa  maj  e  maj  de  nosso 
«  Senhor.  Vos  sois  nossa  honrra  e  gloria. 

«  Rogaj  rogaj  por  nos,  Profetas  cheos  de  espirito,  trombeta 
«  da  Trindade;  rogaj  por  nos,  Apostolos,  canos  de  ouro,  chaves 
«  da  iustifica^ao  e  da  cerca  da  vinha;  rogaj  por  nos,  Martires  fortes 
«  na  batalha,  estrellas  claras,  tocas  da  Igreja;  rogaj  por  nos,  justos 
«  filhos  de  Sion,  rogaj  por  nos,  companhia  das  Virgens  e  religio- 
«  sas;  rogai  por  nos,  companhia  dos  anios  alegres,  que  nao  dor- 
«  mis  e  sem  sessar  o  glorificais;  rogaj  por  nos,  Papas,  sacerdotes 
«  e  diaconos,  que  sois  de  boa  fe ;  rogaj  por  nos,  homens  e  molhe- 
«  res,  meninos  e  velhos ;  rogaj  por  nos,  Abrahao,  Isac  e  Jacob 
«  paes   do   povo,   senhores   dos  fieis;   rogaj  por   nos,  Joao   virgem 

f.  204.  «  *pregador  do  Evangelho;  rogai  por  nos,  Estevao  bemaventurado 
«  coluna  da  fe,  que  vistes  claramente  o  misterio  da  Trindade  dos 
«  ceos;  rogaj  por  nos,  Jorge  virtuoso,  peleiador,  obrador  de  mila- 
«  gres,  estrella  de  honrra  entie  o  ceo  e  a  terra;  rogaj  por  nos,  Ta- 
«  quela  Haimanot,  nosso  paj,  arvore  do  Libano,  trabalhador  no  espi- 
«  rito,  seguidor  das  pisadcis  de  Antonio ;  rogaj  por  nos,  Phelipe 
«  nosso  padre,  piadoso  de  coragao,  singelo  como  pomba,  que  cre- 
« sceo  com  o  espirito  de  sabedoria ;  rogaj  por  nos,  nosso  padre 
«  Estateus  segnidor  do  sol ;  rogaj  por  nos  com  a  ora^ao  de  Miguel 
«  nosso  padre  virgem  e  martir,  mestre  da  ordem  e  regra,  lingoa  de 


460  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  cheiro,  seguidor  dos  Apostolos;  rogaj  por  nos,  Jared  sacerdote, 
€  cantor  de  versos  e  viola  da  Igreia ;  rogaj  por  nos,  santa  Igreja 
«  spiritual,  thesouro  de  trigo  sem  zizania  ». 

«  Jesu  Christo  doce  de  nome,  que  chamastes  a  s.  Paulo,  chamaj 
«  a  vossa  boca ;  Jesu  Christo  doce  de  nome,  sal  do  sacerdocio  de 
«  Paulo,  tirajnos  nossas  nodoas  com  vossa  divindade ;  Jesu  Christo 
«  doce  de  nome,  claridade  do  ensino  de  Paulo,  alumiaj  com  vossa 
«  fermosura  as  trevoas  de  nossos  cora^oes.  A  vos  convem  honrra  e 
«  gloria,  e  adora^ao  dos  homens  e  dos  anios.  O  Pedro,  a  quem  foj 
«  dado  ser  pedra  da  fe,  abrinos  pera  que  entremos  na  casa  das 
«  bodas  de  Christo.  O  Pedro,  cabe<;a  dos  doutores,  a  quem  foj  dado 
«  poder  nos  ceos  e  na  terra,  benzei  nossa  companhia  vos,  a  quem 
«  foj  dada  coroa  de  sacerdocio  e  reino  sobre  todos,  benzei  nossa 
«  companhia.  O  cabe^a  dos  pastores,  benzei  nossa  heran^a,  cabe^a 
«  de  todos  os  Apostolos;  porque  a  vos  disse:  Apacentaj  minhas 
«  ovelha[s].  Vos,  Senhor,  sois  glorificado  e  o  nome  de  vossa  gloria 
«  maravilhoso;  vos  fizestes  tremer  o  alicesse  da  casa  da  prizao;  vos 
«  soltastes  as  cadeas  de  s.  Paulo;  soltainos,  o  Senhor,  das  priz5es 
«  do  enemigo.  De  nojte  alevantaj  nossas  mSos  no  templo  diante  do 
«  Evangelho  ».  Se  for  sabbado,  le  aqui  hum  dos  sacerdotes  presen- 
tes  huma  li^ao  do  Evangelho  de  s.  Matheus  c.  25,  come^ando: 
«  Tunc  simile  est  regnum  coelorum  decem  Virginibus  etc.  >,  ate 
onde  dis :  «  Quia  *nescitis  diem  neque  horam  » .  E  se  nSo  for  sab-  ^-20^^- 
bado  deixao  este  Evangelho  e  continuao  o  que  se  segue: 

«  Porque  elle  deu  lei  a  Moyses  e  seus  domingos  fes  pera  honrra 
«  e  santifica^ao  da  Trindade  divina,  a  elle  convem  louvor,  porque 
«  elle  inspirou  nos  profetas  e  santificou  seus  domingos  pera  que 
«  nos  fossem  perto,  e  renovou  o  que  era  velho ;  mais  alto  que  os 
«  altos,  Santo  entre  os  Santos,  a  vos  se  oflFerece  o  cheiro  do  incenso 
«  dos  Apostolos  diligentes ;  os  que  forao  santificados  com  vossa  or- 
«  dena^ao  vos  glorificao  :^.  Aqui  dis  hum  diacono:  «  Levantajvos  a 
«  ora^ao  »  e  logo  hum  sacerdote :  «  Pas  a  todos  nos  outros  »  e  le 
huma  li^ao  do  Evangelho  de  s.  Marcos  c.  13,  come^ando  daquellas 
palavras :  «  De  die  illo  et  hora  nemo  scit  etc.  »  ate:  «  Omnibus  dico: 
«  vigilate  ». 

«  Fazeinos  dignos  de  entrar  no  domingo  de  vossos  domingos 
«  e  que  seiamos  chamados  pera  vossa  festa  com  todos  vossos  San- 
«  tos ;  que  louvemos  vosso  Evangelho  carregando  vossa  crus.  Tam- 
«  bem  rogamos  ao  todo  poderoso  Deos  Padre  e  Senhor  e  a  nosso 


LIVRO  II,  CAPITULO  XII.  46 1 

«  salvador  Jesu  Christo  poUos  frutos  da  terra,  que  os  fa^a  crescer 
«  com  ben^ao  e  de  rique^a  com  abundancia,  Deos  nosso  Deos  ». 
Dis  hum  diacono:  «  Oraj  >  e  logo  hum  sacerdote:  «  Deos  nosso 
<  Deos,  que  sois  todo  poderoso,  a  vos  pedimos  e  rogamos  que  fa- 
«  Qais  crecer  com  ben^ao  os  frutos  da  terra :  apresaivos  a  fazer  que 
«  se  recolhao  pera  vossos  povos  pobres  e  pera  todos  os  que  nomeao 
«  vosso  santo  e  bendito  nome,  em  vosso  unico  Filho  com  o  qual  e 
«  com  o  Spirito  Santo  tendes  gloria  pera  sempre  dos  sempres  >. 
«  Os  que  tendes  medo  de  Deos,  nao  desprezeis,  porque  s6  seu 
«  nome  se  alevantou;  a  meia  nojte  fazei  ora^ao,  porque  as  estrellas 
«  do  ceo  e  claridade  do  sol  e  da  lua,  os  relampagos  e  nuves,  os 
«  anios  e  archanios  e  todos  os  choros,  as  profundezas,  o  mar,  rios, 
«  fontes,  fogo  e  agoa,  chuva  e  vento  e  todas  as  armas  dos  iustos 
«  glorificao  a  Deos,  e  os  que  orao  sempre  se  contao  no  coracjao  de 
«  Deos.  Pois  fazendo  isto  vos  outros  fieis  emmendai  huns  a  outros, 
f.  205.  «  e  oraj  e  pedi  a  nosso  Senhor,  porque  mandou  isto  *com  a  pro- 
«  messa  de  sua  palavra  » . 

«  Doce  de  lingoa,  cheiroso  como  incenso  Paulo  gniou  os  ce- 
«  gos,  mestre  verdadeiro,  que  na  finbria  de  vossa  roupa  saravao  os 
«  doentes,  estendei  vossa  mao  direita  e  benzeinos  aos  que  estamos 
«  iuntos.  Assim,  como  a  arvore  que  nace  ao  longo  da  corrente  dagoa 
«  reverdeceo  Joao  e  se  alevantou,  o  proceder  de  sua  palavra  seia 
«  como  cacho  de  uvas,  o  Evangelho  da  gra^a  nos  de  parte.  As  fon- 
«  tes  da  lei  do  rio  do  Evangelho,  os  ramos  da  oliveira,  e  os  ramos 
«  da  parreira  procedem  de  hum  tronco ;  os  Apostolos  do  filho  nos 
«  benzao  no  dia  de  domingo  estendendo  as  maos  >.  Dis  hum  dia- 
cono :  «  Alevantaivos  a  ora<;ao  »  e  logo  hum  sacerdote :  «  Pas  a 
«  todos  vos  outros  »  e  le  huma  licjao  do  Evangelho  de  s.  Joao  cap.  3 : 
"  «  Erat  autem  homo  ex  phariseis   Nicodemus  etc.  »,   ate   onde  dis: 

«  quia  in  Deo  sunt  facta  ».  Este  Evangelho  se  le  s6  no  domingo  e  nos 
^  demais  dias  o  deixao  e  continuao  o  que  se  segue :  «  AUeluia,  Alle- 

^  «  luia,  AUeluia.  Vos  chamamos  estrella  que  vos  fes  crescer  o  sol  de 

'  ^  «  iusti^a,  que  vos  fas  dormir  em  seu  peito.  Vos  chamamos  estrella, 

«  que  vos  bejou  com  sua  boca  e  vos  fes  cingir  com  seu  cinto ;  vos 
«  chamamos  estrella,  que  vos  mostrou  seus   segredos  e  vos  deu  o 
«  evangelho  de  sua  gra^a;  vos  chamamos  estrella,  Joao;  quem  como 
DJ^  «  vos  [?]  pedimosvos  que  rogueis  por  nos  ». 

)5^'  «  Porque  se  alevantou  o  nome  delle  s6,  e  nesta  hora  calao  hum 

J^  t  pouco  todas  as  criaturas;  pera  que  o  louvem  as  estrellas  e  agosis 


ijii^ 


462  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

<  se  detem  huma  hora  e  todos  os  choros  dos  anjos  servem  a  Deos, 
«  nesta  hora  com  as  almas  dos  iustos  glorificSlo  a  Deos.  AUeluia. 
«  Todos  os  choros  dos  anios  spirituais,  que  se  assemelhSlo  ao  ardor 

<  do  fogo  e  sao  cercados  com  chama  de  virtude,  os  Cherubins  glo- 
«  rificao  e  Serafins  santificao  e  os  Archanios  cantao  e  a  companhia 

<  dos  Anios  serve  a  sua  gloria  e  dizem  todos  a  huma  vos:  Santo,  Santo, 

<  Santo  Deos  de  Sabaot,  perfeito,  cheios  estao  os  ceos  e  terra  da 

<  santifica^ao  de  vossa  gloria.  Esta  Igreja  tem  a  ordem  dos  Anios 

<  a  semelhan^a  dos  ceos ;  a  Ig^eja  se  assemelha  a  casa  do  Alto  e  a 

<  Virgem  santa  com  a  roda  do  fogo  que   levao  os   Cherubins   em 

<  luguar  dos  4  lados  do  trono  4  elementos  de  quem  *foi   criado  f.205,T. 

<  Adao,   terra,   agoa,  ar  e  fogo.   Em  luguar  dos  Cherubins   temos 

<  4  evangelistas  que  falao  da  divindade  e  tirao  poUo  cano  da  gloria 

<  da  fonte  da  boca  do  Filho  de  Deos   vivo,  do  homem   Matheus, 

<  porque  contou  o  nacimento  de  nosso  Redemptor  da  semente  de 

<  David  rei  de  Belem  [sic]  de  Juda.  De  leao  Marcos,  porque  grita 

<  como  leao  em  as  terras  de  Egypto  pregando  o  Evangelho  ate  fazer 

<  deixar  os  idolos.  De  bezerro  Lucas,  porque  falou  do  sacrificar  o 

<  bezerro  limpo.  De  aguia  Joao,  que  voa  alto  e  prega  cousas  altas 
«  e  entra  as  portas  do  ceo  e  fala  os  segredos  da  divindade,  canta 
«  com  os  anios  e  ve  o  misterio  dos  diligentes. 

«  Em  lug^ar  dos  Serafins  temos  sacerdotes,   ministros  do  mi- 

<  sterio,  que  dao  comunhao  viva  e  encenso  aceitavel  de  bom  cheiro. 

<  Em  lugnar  dos  Archanjos  temos  virgens  que  folgarao  com  limpeza 

<  e  engeitarao  o  deleite  deste  mundo  ». 

<  Tambem  agora  pecamos  ao  amador  dos  homens  dizendo:  Per- 

<  doainos,  Senhor,  por  amor  de  todos  nossos  Santos,  por  amor  dos 

<  Cherubins  vossos  cavalos  e  Serafins  ministros  de  vossa  ca^,  por 
€  amor  de  Miguel   vosso  fiel  e  Gabriel   denunciador  de  vossa  hu- 

<  manidade,  por  amor  do  anyo  Rafael  guardador  de  vosso  manda- 

<  mento  e  por  amor  de  toda  a  companhia  dos  Anjos  que  servem 
«  a  vossa  divindade ;  por  amor  dos  Profetas  bemaventurados  e  por 
«  amor  dos  Apostolos   pregadores,   por  amor  dos  Martires   vence- 

<  dores,  por   amor  dos  virgens   limpos  e   por  amor  dos   religiosos 

<  perfeitos,  por  amor  dos  sacerdotes  doces  de  lingoa,  e  por  amor 
«  de  toda  a  perfeigao  da  companhia  de  huma  s6  santa  que  he  sobre 
«  todas  as  Igrejas,  e  principalmente  por  amor  de  Maria  vossa  maj, 
«  que  he  gloria  de  nossos  paes ;  por  amor  de  seu  ventre  que  vos 
«  teve  e  por  amor  de  sua  virgindade  que  nao  perdeo   parindovos; 


LIVRO  II,  CAPITULO  XII.  463 

«  por  amor  de  seus  joelhos  em  que  vos  reclinou,  por  amor  de  seus 
f.  206.  «  peitos  que  vos  fizerao  crescer,  e  por  amor  *de  suas  mSos  que 
€  vos  tocarao ;  por  amor  de  seus  pes  que  andarao  com  vosco  e  por 
«  amor  de  seus  claros  olhos  e  ouvidos,  que  ouvirao  as  boas  novas 
«  de  Gabriel  anjo;  por  amor  da  alma  e  carne  que  tomastes  della 
«  e  unistes  a  vossa  divindade,  sem  se  trocar  nem  afastar,  nem  mi- 
«  sturar,  como  ensinarao  nossos  paes.  Gloria  a  vos,  adoracao  a  vosso 
«  paj,  g^andeza  a  vosso  spirito  e  misericordia  a  vosso  povo  pera 
«  sempre  dos  sempres.  Amen  ». 

«  Nossa  honrra  e  gloria  e  fortaleza  de  nossa  salva^ao  he  Jesu 
«  Christo,  o  ensino  de  nossa  pas,  em  que  confiamos,  a  fortaleza  de 
«  nossa  salva^ao,  na  qual  descansamos,  pedra  de  vida  posta  no  an- 
«  golo  he  Jesu  Christo ;  iugo  bom  e  pezo  leve  he  Jesu  Christo,  ca- 
«  mino  pera  seu  Paj,  porta  pera  seu  gerador  he  Jesu  Christo,  nossa 
«  nao  a  quem  nao  chegao  ondas,  nosso  thesouro,  que  nao  acha 
«  o  ladrao  nem  o  perde  a  tra^a,  he  Jesu  Christo;  semente  limpa, 
«  que  frutifica  na  carne  dos  limpos  he  Jesu  Christo;  Pontifice,  que 
«  esta  em  pe  pera  os  Santos,  he  Jesu  Christo ;  estrella  da  menhaa, 
«  sol  de  iusti^a  he  Jesu  Christo ;  a  os  que  cremos  nelle  e  confessamos 
«  nos  ache  a  pas  de  seu  Paj.  Senhor,  pordoainos,  Christo  ».  Isto  repe- 
tem  doze  vezes. 

Ora^ao  por  el  rei. 

«  Tambem  rogamos  ao  todo  poderoso  Deos  padre  e  senhor  e  a 
«  nosso  salvador  Jesu  Christo  poUo  amador  de  Deos  nosso  Rei  N., 
«  que  guarde  a  elle  e  a  seu  reino  sem  doenga,  com  pas  e  iustificagao, 
«  o  todo  poderoso  nosso  Deos  ».  Dis  o  diacono:  «  Oraj  »  e  logo 
o  sacerdote ;  «  Deos  nosso  Deos,  que  sois  todo  poderoso,  a  vos  pe- 
«  dimos  e  rogamos  que  Ihe  seiais  bom  a  el  Rei  desta  terra,  ama- 
«  dor  de  Deos ;  dailhe  gra^a  e  soieitaj  seus  imigos  gentios  contra- 
«  rios  de  seu  descan^o  e  inspiraj  em  seu  cora^ao  o  bem  de  vossa 
«  santa  Igreia  e  que  nos  ache  logo  nossa  saude.  O  Senhor,  dailhe 
«  cora^ao  que  vos  tenha  a  vos  s6  por  Deos,  sem  erro  da  fe  em 
«  vosso  unico  Filho,  com  o  qual  e  com  o  Spirito  Santo  tendes  gloria 
«  pera  sempre  dos  sempres. 
f.2o6,v.  *  *Miguel,  rogai  e  orai  por  nos.  Sam  Gabriel,  fazei  subir  nossa 

«  ora^ao ;  os  4  animais  spirituais  glorificadores  e  cantores,  rogai  por 
«  nos.  Anios  celestiais,  rogai  por  nos;  Profetas,  Apostolos,  iustos, 
«  martires,  rogai  por  nos.  Os  24  sacerdotes  e  tambem  o  ceo,  rogai 
«  por  nos;  companhia  dos  santos  e  martires,  rogai  por  nos,   pera 


464  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  que  nos  de  parte  e  heranga  a  todos  nos.  Maria  nossa  Senhora, 
«  que  paristes  a  Deos,  porque  achastes  gra^a  diante  delle,  achastes 
*  g^a^a  e  vhtude  do  Espirito  Santo,  rogai  por  nos  vosso  filho  nos 
<  parta  de  sua  pas,  fa^a  que  esteiamos  com  os  santos  no  parajso 
€  aberto  e  descanso  ornado  ». 

«  Alevantaj  vossas  mSios  de  noite  no  templo  e  benzej  a  Deos 
«  e  glorificai  em  Sion  a  Jesus  ao  Santo  de  Israel.  Santo,  santo,  santo 
«  Deos  de  Sabaot  nosso  Deos :  he  glorificado  dos  Cherubins  e  san- 
«  tificado  dos  Serafins  e  louvado  dos  Archanjos;  seu  reino  he  limpo 
«  de  immundicia.  Santo  Deos  de  Sabaot  nosso  Deos,  que  sobe  em 
«  cavalos  de  fogo  e  piza  o  alto  das  nuves;  suas  tendas  sSlo  chamas 
«  e  suas  rodcts  tremor.  Santo  Deos  de  Sabaot  nosso  Deos,  que  nas 
«  faiscas  he  maravilhoso  e  nos  coriscos  se  louva  e  fala  no  fogo,  o 
«  som  de  seu  trovSio  em  rodas.  Santo  Deos  Sabaot  nosso  Deos;  sua 
«  gloria  he  delle  mesmo  e  seu  louvor  delle  mesmo  todo  poderoso 
«  elle  mesmo,  e  a  espada  da  vingan^a  em  sua  mSo,  a  iusti^a  dos 
«  que  padecem  forga  saie  de  sua  casa.  Santo  Deos  Sabaot,  nosso 
«  Deos,  que  ordenou  a  dar  volta  a  claridade  e  sabe  donde  nace; 
«  Santo  Deos  Sabaot  nosso  Deos,  que  espalhou  cts  nuves  ;  Santo 
«  Deos  Sabaot  nosso  Deos,  que  despreza  ao  soberbo  e  alevanta  ao 
«  pobre,  que  molha  a  terra  e  fas  secar  o  mar,  fas  o  que  quer  e 
«  como  deseia  o  cumpre,  sem  aver  quem  Ihe  possa  resistir ;  nSo  ha 
«  quem  Ihe  diga :  isto  fizestes  mal  e  isto  bem.  Louvemos  a  Deos 
«  glorificado,  que  se  glorificou.  Alleluia,  Alleluia,  AUeluia.  A  agoa 
«  Ihes  ficou  como  muro  de  huma  e  outra  banda.  Alleluia  ao  Padre, 
«  alleluia  ao  Filho,  alleluia  ao  Spirito  Santo.  Seia  *bendito  Deos;  f.  207. 
«  elle  he  maravilhoso:  o  cavalo  e  o  cavaleiro  botou  no  mar.  Ro- 
«  gai  por  nos,  Maria,  candea  do  mundo,  glorificada  nas  alturas ; 
«  rogai  por  nos,  Maria,  coroa  dos  limpos,  claridade  dos  santos  ; 
«  rogai  por  nos,  Maria  caixa  de  cheiro  do  sacerdocio  e  reino ;  rogai 
«  por  nos,  Maria,  po^o  de  honrra,  vaso  de  misterio;  rogai  por  nos, 
«  Maria,  rego  de  alegria,  vaso  de  profecia,  cada  dia  vos  louvarei 
«  7  vezes,  porque  vosso  amor  frechou  meu  cora^ao.  A  pas  do  anio 
«  Gabriel,  minha  senhora  Maria  (aqui  dizem  a  Ave  Maria).  Alleluia, 
«  Alleluia,  AUeluia,  porque  vio  a  humildade  de  sua  serva,  e  fes 
«  poder  com  seu  bra^o,  porque  escolheo  Deos  a  Siao  e  a  fes  correr 
«  pera  que  fosse  sua  morada  ;  este  he  meu  descanso  pera  sempre  :> . 

«  Louvao  os  Anios  a  Maria  dentro  das  cortinas  e  Ihe  dizem : 
«  Pas   com  vosco,  Maria;  como  morou  na  casa  pobre,  como  pobre 


1 

i 


LIVRO  II,   CAPITULO  XII.  465 

«  desceo  dos  ceos  a  elle  folgando  com  sua  fermosura  e  nasceo  della. 
«  Aos  6  meses  foi  mandado  de  Deos  o  anio  Gabriel  »  (aqui  dis 
hum  sacerdote  o  Evangelho :  «  Missus  est  etc.  »  ate :  «  fiat  mihi  etc.  >). 
E  logo  continuao  todos :  «  Disselhe  o  Anio :  pas  com  vosco ;  disselhe 
«  Gabriel:  pas  com  vosco,  Maria  virgem,  pgis  com  vosco,  que  paristes 
«  a  Deos ;  pas  com  vosco  Maria  santa,  pas  com  vosco  Maria  benta, 
«  pas  com  vosco,  Maria  limpa,  pas  com  vosco,  morada  divina,  pas 
«  com  vosco,  tabernacolo  perfeito,  irmSa  dos  anios ;  pas  com  vosco, 
«  mai  de  todo  o  povo;  pas  com  vosco  Nossa  Senhora  Maria;  pas 
«  com  vosco,  pacifica;  pas  com  vosco,  vestida  com  vestido  dourado 
«  de  differentes  cores ;  pas  com  vosco,  penas  de  pomba  prateadas ; 
«  pas  com  vosco,  porta  oriental  e  maj  de  claridade ;  pas  com  vosco, 
«  mais  clara  que  o  sol  e  mais  alta  que  os  montes ;  pas  com  vosco, 
«  Maria  escolhida  e  honrrada ;  pas  com  vosco.  Rogaj  por  nos  a 
«  Vosso  Filho  e  nosso  redemptor  Jesu  Christo,  que  nos  livre  quando 
«  vier  com  a  gloria  de  seu  Paj,  com  seus  santos  anios,  quando 
«  fara  estar  em  pe  as  ovelhas  a  mSlo  direita,  e  as  cabras  a  esquerda, 
«  nos  fa^a  estar  em  pe  a  sua  mao  direita  com  Estevao  martir  e 
«  Joao  Baptista  e  com  todos  os  santos  e  martires  pera  sempre 
f.207,v.  «  dos  sempres  ».  Aqui  le  hum  sacerdote  *o  Evangelho  de  s.  Joao 
«  c.  19.  Stabat  autem  iuxta  crucem  etc.  ».  E  logo  dizem  o  que 
«  se  segue: 

«  Pas  com  vosco,  arca  de  Noe ;  pas  com  vosco,  baculo  de  Arao ; 
«  pas  com  vosco,  viola  dos  psalmos  de  David;  pas  com  vosco,  honrra 
«  de  Salamao ;  tendo  esperanpa  de  vossa  ben^ao,  com  ofiFerta  vos 
«  fazemos  reverencia :  Deos  vos  salve,  Maria  nossa  maj  e  nossa 
«  senhora;  vos  sois  gloria  de  vossos  pais,  peleiai  contra  os  imigos 
«  de  nossas  almas  com  espada  de  perdi^ao ;  vinde,  passai  entre  nos 
«  vestida  de  claridade  com  o  menino  nos  bra^os.  A  pas  de  vosso 
4  filho  esteia  oie  com  nosco,  com  reverencia ;  pas  a  toda  vossa  fer- 
«  mosura  pera  lembran^a  de  vosso  nome  mais  doce  que  o  favo. 
«  Vos  sois  Maria  filha  de  Adao;  que  enchei  a  largura  do  mundo ; 
«  com  reverencia  pas  a  vossa  fermosura  que  fas  maravilhar.  Com 
«  reverencia  pas  etc.  >.  Nesta  forma  vao  louvando  cada  membro 
da  Virgem  e  seu  nacimento  e  presenta^ao  com  as  demais  festas, 
em  que  se  detem  grande  espago  e  logo  dizem: 

«  A  oratjao  e  rogo  de  Maria  nos  livre  da  ira  de  seu  Filho. 
«  Senhor,  perdoainos,  Christo  ».  Isto  dizem  doze  veses,  e  logo  o 
Credo  e  no  fim :  «  Alleluia :  Vos  louvamos,  Senhor,  e  glorificamos ; 

C.  BsccARi.  Rtr.  Aetk.  Scripi,  oce.  ined.  —  II.  59 


466  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  vos  benzemos  e  glorificamos ;  vosso  nome  manifesta  vossa  palavra; 
<f  nao  se  acaba  vosso  reino,  o  Senhor,  rei  pera  sempre.  Vos  louvamos, 
€  Senhor,  e  glorificamos,  rei  pera  sempre.  Vos  benzemos,  glorifi- 
«  cado  vosso  nome,  rei  pera  sempre.  Nao  falta  vossa  palavra,  nem 
«  se  acaba  vosso  reino,  o  Senhor,  rei  pera  sempre,  que  iulgais  recta- 
«  mente  sem  excep^ao  de  pessoas;  a  misericordia  em  vossa  mao. 
«  Rogamos  vos,  o  Senhor,  que  nos  ou^ais.  AUeluia;  perdoainos, 
«  senhor,  e  tende  misericordia  de  nos.  O  Senhor,  por  vosso  santo 
«  nome,  que  foj  nomeado  sobre  nos,  por  vosso  santo  nome  perdoainos, 
«  Senhor,  e  tende  misericordia  de  nos,  AUeluia.  Defendeinos  oSenhor, 
«  com  vosso  escudo,  pera  que  seiamos  diligentes  e  peleiemos  contra 
«  vosso  imigo  ;  cubreinos  com  a  sombra  de  vossas  azas;  defendeinos 
«  com  o  pao  de  vossa  crus  e  nao  nos  envergonheis,  o  Senhor,  diante 
«  vos.  Benzao  a  Deos  todas  sucts  obras;  vos  sois  glorificado  e 
c  altissimo  pera  sempre.  Benzamos  ao  Padre  e  ao  Filho  e  ao  *Spi-  f.  20S. 
«  rito  Santo.  Alleluia  ao  Padre,  alleluia  ao  Filho,  alleluia  ao  Spi- 
«  rito  Santo.  O  que  livrou  do  fogo  a  Ananias,  Azarias  e  Missael, 
«  da  mesma  maneira  nos  livre  de  todos  nosso[s]  contrarios  1, 

«  O  principio  da  gra^a  Jesu  Christo,  virtude  e  sabedoria  do 
«  Padre,  vos  sois  cordeiro  de  Deos  que  carregais  os  peccados  do 
«  mundo ;  avei  misericordici  de  nos ;  porque  desestes  do  ceo  com  a 
«  medida  da  sabedoria  de  vosso  Paj,  pera  livrar  vosso  vaso  de  barro, 
«  e  vos  fizestes  mortal  e  corruptivel,  e  vaj  com  azas  de  vento  que 
«  fas  a  seus  anios  spiritos  e  a  seus  ministros  fogo  abrazador,  que 
«  olha  a  terra  e  a  fas  tremer,  que  toca  aos  montes  e  fumegao ;  com 
«  o  espirito  de  vossa  gra^a  contentai  a  vosso  povo,  vos  todo  p>ode- 
«  roso  Deos  nosso  Deos,  sim,  Senhor  nosso  Deos,  com  o  espirito 
«  de  vossa  gra<ja  alegrai  vosso  povo;  porque  vos  sois  o  aiudador 
«  do  attribulado,  fazei  facis  as  cousas  mais  difficultosas.  Ornamento 
«  dos  Apostolos,  riqueza  dos  pobres,  esperan^a  dos  desesperados, 
«  resocitador  dos  mortos,  virtude  e  sabedoria  de  vosso  Paj,  a  vos 
«  benzemos  agora  e  pera  sempre  dos  sempres  ». 

«  Pella  ora^ao  e  peti^ao  de  nossa  senhora  Maria  tende  mise- 
«  ricordia  de  nos,  o  Senhor;  polla  virgindade  e  pureza  do  corpo 
«  de  nossa  senhora  Maria  tende  misericordia  de  nos;  poUos  rogos 
«  de  nossa  senhora  Maria  tende  misericordia  de  nos;  poUos  rogos 
«  da  Igreia,  em  que  se  reparte  a  came  e  sangue  do  Salvador,  tende 
«  misericordia  de  nos;  pollos  rogos  e  poder  de  Pedro  e  Paulo 
«  lumieiras   do   mundo   e   o    sangue   que  derramarao,   tende   mise- 


LIVRO  II,    CAPITULO   XII.  467 

«  ricordia  de  nos;  poUa  virgindade  e  pureza  de  loao  vosso  amado, 
«  tende  misericordia  de  nos ;  poUa  virgindade  e  tormentos  de  Thomas 
«  apostolo  e  martir,  tende  misericordia  de  nos ;  poUos  acoutes  e 
«  prizOes  de  Mathias  vosso  dicipolo,  tende  misericordia  de  nos ; 
«  poUas  ora^Oes  e  rogos  e  martirio  de  Bartolameu  vosso  apostolo, 
«  tende  misericordia  de  nos ;  poUas  ora^ois  e  rogos  e  morte  de  crus 
«  de  Andreas  e  Philipe  vos[sos]  heredeiros,  tende  misericordia  de 
«  nos;  poUas  oragOes  e  morte  de  Matheus  evangelista  e  Jacob  filho  de 
f.2o8,v.  «  Zebedeu,  tende  misericordia  de  nos ;  poUa  morte  de  Jacob  *vosso  ir- 
«  mao,  tende  misericordia  de  nos ;  polla  morte  de  Natanael  e  rogos 
-r  de  Tadeu  pregador  do  E vangelho,  tende  misericordia  de  nos ;  poUo 
«  martirio  de  Marcos  e  Lucas  evangelistas,  cuio  cheiro  foj  como 
«  incenso,  tende  misericordia  de  nos;  pollo  sangue  dos  martires 
«  vencedores  e  milagres  dos  iustos  bemaventurados,  tende  miseri- 
«  cordia  de  nos;  poUos  rogos  dos  Anios  diligentes,  que  nao  dormem, 
«  e  gloria  dos  Cherubins  e  Serafins,  tende  misericordia  de  nos.  Per- 
«  doainos,  Senhor,  tende  misericordiau  de  nos,  Senhor  » . 

«  Daj  pas  a  vosso  povo,  a  Santa  Igreja;  Senhor,  perdoainos, 
«  Christo.  Nunc  dimittis  servum  tuum.  Alleluia,  alleluia,  alleluia. 
«  Livrainos  com  vossa  mao  direita  em  pas,  Senhor  AUeluia,  alle- 
«  luia.  Livrainos  com  vossa  mao  direita,  quia  viderunt  oculi  mei 
«  salutare  tuum.  Alleluia,  alleluia,  alleluia  ».  E  assim  dizem  todos 
os  versos  acrescentandos  tres  alleluias.  E  no  fim  acrescentao :  «  De- 
fendeinos  com  o  lenho  de  vossa  crus  ». 

Em  todos  os  dias  da  somana,  excepto  sabbado  e  domingo,  se 
dis  tambem  o  que  se  segue: 

«  O  fonte  de  sabedoria,  lingoa  de  cheiro,  Paulo,  rogai  por  nos, 
«  alleluia,  alleluia,  alleluia,  que  siguamos  o  rasto  de  vossa  doutrina 
«  e  tenhamos  parte  em  vossa  heranc^a.  O  Pedro,  cabe<;a  de  todos 
«  os  santos,  lumieira  do  mundo,  senhor  dos  christaos,  alleluia,  alle- 
«  luia.  Benzei  nossa  companhia  com  o  poder  de  vossa  mao,  alleluia, 
«  alleluia.  Apostolos  mestres,  estrellas  resplandecentes,  rogai  polla 
«  remissao  dos  pecadores,  fazei  que  vossa  misericordia  se  vea  pella 
«  menhaa  >.  Dis  hum  diacono  «  Levantajvos  a  ora^ao  »  e  hum  sacer- 
dote:  «  Pas  a  todos  vos  outros  »  e  logo  le  hum  peda^o  do  Evan- 
gelho. 

E  no  sabbado  somente  se  acrescenta  o  que  se  segue: 

«  Depois  que  Deos  acabou  de  falar  com  Moyses,  Ihe  deu  as 
«  tabosis  da  promessa,  cuia  escriptura  e  feitura   era  do  Senhor,   e 


468  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  esculpida  a  guarda  dos  domingos,  cercai  a  Sion  e  abragaia  e  falai 
«  dentro  della.  AUeluia,  alleluia,  alleluia.  Os  profetas  sao  sua  forga 
<  e  os  apostolos  sua  candea  e  os  santos  e  martires  o  acompanhSio. 
«  Alleluia,  alleluia,  alleluia.  Estes  sao  ramos  de  vides  e  o  rio  do 
€  Evangelho  do  reino.  Alleluia,  alleluia,  alleluia.  Trabalhaj  poes, 
«  meus  irmaos,  porque  nao  sabeis  a  hora  em  que  ha  de  vir  o  novo 
«  senhor  da  Ccisa.  *Trabalhai  poes,  meus  irmaos,  porque  vos  nao  ache  f.  209. 
«  dormindo  de  nojte,  ou  amanhecendo;  trabalhaj  poes,  meus  irmaos, 
«  tende  cingidos  vossos  lombos  e  acesas  vossas  candeas ;  trabalhai 
«  poes,  meus  irmaos;  a  graga  e  pas  se  vos  multiplique  em  Jesu 
«  Christo;  trabalhai  poes,  meus  irmaos,  alevantando  a  virtude  do 
«  Evangelho  e  gloriandovos  com  a  graga  da  crus;  trabalhai  poes, 
«  meus  irmaos,  confiai  em  Deos  e  encostaivos  nelle ;  assim  corao  o 
«  Profeta  de  polla  menhaa  ate  a  nojte  confiou  Israel  em  Deos. 
«  Senhor,  perdoainos  Christo  >.  Isto  dizem  doze  veses. 

No  domingo  somente  se  acrescenta  o  que  se  segue: 

€  Abiiciamus  opera  tenebrarum  e  induamur  arma  lucis,  como 
«  disse  sao  Paulo ;  se  esperamos  em  sua  morte,  seiamos  semelhantes 
«  a  sua  vida.  Apressemonos  a  entrar  em  seu  descanso.  Joao  virgem 
«  figurado  nos  diligentes,  Joao  virgem  gloria  dos  Santos,  Joao  or- 
«  nado  com  claridade,  trombeta  que  soa  em  Epheso,  rogue  por  nos 
«  e  pella  remissao  dos  peccadores,  alleluia,  alleluia.  Os  apostolos 
«  de  pas,  lumeiras  do  mundo,  participantes  dos  tormentos  lancem 
«  de  la  sima  canos  cheios  de  misericordia  »,  Aqui  dis  hum  diacono: 
«  Levantajvos  a  oragao  »  e  logo  hum  sacerdote :  «  Pas  a  todos  vos 
outros  »  e  lee  o  Evangelho  de  sam  Joao:  «  In  principio  erat  Ver- 
bum  etc.  »  e  logo:  «  Pas  com  vosco,  domingo  de  claridade  e  resplan- 
«  dor,  domingo  de  misterio,  cabega  dos  tempos,  alleluia,  alleluia, 
«  alleluia,  assim  como  testemunhou  Joao  que  fostes  chamado  lem- 
«  bran^a  da  resurrei^ao  de  Emanuel.  Senhor,  perdoainos.  Christo  >. 
Isto  repetem  doze  vezes. 

O  que  se  segue  dizem  todos  os  dias : 

«  Benzeinos,  o  Senhor  nosso  Deos ;  louvamos  vos  »  (aqui  dizem 
o  Credo),  e  logo:  «  Pas  com  vosco,  nossa  gloria  e  honrra;  pas  com 
«  vosco,  Maria  coroa  de  nossa  gloria ;  pas  com  vosco,  fortaleza  de 
«  nossa  salva^ao;  pas  com  vosco,  jardim  de  rosas  ».  Desta  maneira 
vao  saudando  muitas  vezes  a  Virgem  nossa  Senhora  e  depois 
alguns  anios,  e  ultimamente  dizem  huns  versos,  que  tratao  da 
humildade    de    Christo  N.  S.**'  e  da  prizao  no  horto,  e  o  que  pa- 


LIVRO  II,   CAPITQLO   XII.  469 

deceo  em  casa  de   Caifas,    e    com    isto  acabSlo    o    que    cantao  em 
luguar  de  nossas  matinas. 
f  209,v.  *Quando  amanhece  cantSlo  o  que  segue  : 

«  Santo  Deos,  santo  poderoso,  santo  vivo  immortal,  que  naceo 
«  de  santa  Maria  Virgem,  aveis  misericordia  de  nos,  Senhor  Santo 
«  Deos,  santo  poderoso,  santo  vivo  e  immortal,  que  se  bautizou  no 
«  Jordao  e  foj  crucificado  no  madeiro  da  crus,  avei  misericordia  de 
«  nos,  Senhor.  Santo  Deos,  santo  poderoso,  santo  vivo  immortal, 
«  que  resocitou  dos  mortos  ao  terceiro  dia  e  sobio  com  gloria  aos 
«  ceos,  e  esta  a  mao  direita  de  seu  Padre,  e  outra  ves  ha  de  vir 
«  com  gloria  iulgar  os  vivos  e  mortos,  avei  misericordia  de  nos. 
«  Gloria  ao  Padre,  gloria  ao  Filho,  gloria  ao  Spirito  Santo  agora  e 
«  sempre  e  pera  sempre  dos  sempres.  Amen,  Amen,  seia,  seia. 
«  Santa  Trindade,  Deos  vivo,  avei  misericordia  de  nos.  A  Deos  ver- 
«  dadeiro  convem  gloria,  a  vos  Senhor  feitor  de  todas  as  cousas 
«  invisiveis,  Deos,  abri  nossas  almas,  damosvos  gloria  da  menhaa, 
«  Senhor ;  a  sabedoria  do  todo  poderoso  e  misericordioso  Deos,  edi- 
«  ficador  dalma  damos  a  gloria  do  que  naceo  antes  dos  segres,  pa- 
«  lavra  do  Padre,  o  qual  descansa  em  seus  Santos,  e  vos  ficais 
«  glorificado  com  a  gloria  que  sem  cessar  vos  dao  os  choros  dos 
«  anios ;  a  vos,  que  nao  fostes  feito  com  mao,  criador  do  escondido,  in- 
«  visivel,  limpo  e  santo,  que  nos  disse  a  sabedoria  escondida  e  santa, 
«  e  nos  destes  esperan^a  da  claridade  que  nao  se  perde,  gloria 
«  e  louvor  vos  damos  e  santidade  limpa  dizemos  nos  vossos  servos 
«  e  o  povo  vos  glorifica  ». 

«  Deos  da  claridade,  dador  da  vida,  cabe^a  do  entendimento, 
«  dador  da  gra^a  perfeita,  feitor  da  alma,  proveitoso  dador  do  Espi- 
«  rito  Santo,  thesouro  da  sabedoria,  aiudador  mestre  dos  santos  e 
«  alicesse  do  mundo,  que  recebe  a  ora^ao  dos  limpos,  a  vos  damos 
«  gloria,  Filho  unico  primogenito,  palavra  do  Padre.  As  gra^as  que 
«  destes  aos  que  vos  chamamos  sao  vossas,  Padre  limpo  sem  nodoa; 
«  as  almas  que  confiao  em  vos  Ihes  dais  gosto  com  a  visita  dos 
«  anios,  claridade  que  foj  antes  do  mundo,  nosso  guardador,  the- 
«  souro  que  nao  se  perde,  alumiastes  nos  as  trevoas  que  tinhamos 
f.  210.  «  com  a  determinacjao  de  vosso  Padre,  tirastenos  do  profundo  *a 
«  claridade,  e  de  morte  nos  destes  vida  e  nos  livrastes  da  servidao. 
«  Com  vossa  crus  nos  fizestes  chegar  a  vosso  Padre  sobre  os  ceos, 
«  com  vosso  Evangelho  nos  guiastes  e  com  os  Profetas  nos  conso- 
«  lastes;  a  vos  nosso  Deos  nos  fizestes  chegar;   mas   dainos  clari- 


470  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

*  dade,  Senhor.  A  vos  nosso  Deos  damos  louvor  sem  cessar  dizendo : 

*  nos  somos  vossos   servos,   e   o  povo   vos   louva:   tres  veses   vos 

*  damos  este  louvor  de  nossa  boca  com  vosso  reino  psra  sempre. 
t  Jesu  filho  de  Deos,  que  he  sobre  todos,  com  o  Padre,  toda  a 

*  creatura  vos  louva  com  terror  e  tremor,  todas  as  almas  dos  iustos 

<  estao  en.costadas  a  vos,  que  nos  quietastes  as  ondas  dos  furiosos 
«  rios,  que  da  perdii;ao  nos  fizestes  porto  de  vida,  descango  no  fim 
«  da  carreira  e  esperanija  da  vida  etema.  Livrastes  aos  que  atribula 

<  o  mar  e  aos  do  deserto  sarais  com  gra<;a ;  acompanhais  aos  que 
«  estao  em  dura  prizao,  soltastes  nos  das  cadeas  da  morte,  con- 
«  solais  aos  pobres  e  tristes  e  aos  que  trabalhao  livrais  com  vossa 
1  crus  e  afastais  vossa  ira  dos  que  confiamos  em  vos,   a  quem   os 

*  profetas  e   apostolos   louvarao  escondidamente,    A  vos,   Senhor, 

<  louvamos  e  glorificamos :  dainos  que  cumpramos  vossos  manda- 
«  mentos,  fazendo  vossa  vontade,  pera  que  descansemos  em  vos  na 
«  morada  de  vida.  Senhor,  visitai  com  vossa  misericordia  a  todos 
«  os  grandes  e  pequenos,  principes  e  povo,  ao  pastor  com  seu  gado, 
«  porque  vosso  he  o  reino,  bendito  Senhor  nosso  Deos.  Gloria  ao 
t  Padre,  ao  Filho  e  ao  Spirito  Santo  des  dantes  dos  segres  agora 

<  e  pera  sempre  e  pera  sempre  dos  sempres  e  pera  geraijao  de  ge- 

t  ra^ao,  que  nSo  se  acaba,  e  pera  os  segres  dos  segres.  Amen  ». 

a.  PreccB  auptadi-  Isto  he  o  que  cantSo  pella  menhaa,  mas  o  que  dizem  nas  de- 

ctaBmoDachi  recltant  .      ,  ,  ■,  ■,  ,  < 

mane,  sedAuctorsu-  1"^'^  horas  e  a  tarde  em  luguar  de  vesporas  nao  pude  achar  com 

sptcatur  eiiam  JQter-  fazer  nao  pouca  diUirencia,  porque,  como  dizem   todo  de   cor,  nao 

diu  et  sub  vesperaa  =>  i        i 

aliaa  ab  ipsiB  preceB  se  acha   facilmente    o   livro   em   que   esta,   e   de   palavra   nao    mo 

tranacripsi^^ei^^^quci^  quiserao  dizer.  E  ainda  o  que  assima  tenho  referido  tirei  de  hum 

d«m  libro,  quem  ae-  livro  que  escondidamente  e  em  muito   segredo  me  deu  hum  frade 

creto  illi  detulit  qui~  ■  ,r 

dam  monachua  eiua  meu   amigo.   Mas   em    hum    sinodo,   que   elles   chamao   dos   Apo- 

■™  '^^'  stolos,  no  mandamento  5'  se  Ihes  ordena  que  digao  officio  asslma 

e  tambem  ora<;ao  de  ter<;a  a  honrra  dos  acoutes  de  Christo ;  de  6°, 
por  ser  naquella  hora  crucificado;  ora^ao  de  noa,  por  spirar  en- 
tao  na  crus  e  tremer  a  terra ;  e  ora^ao  da  tarde,  por  Ihes  dar  o 
Senhor  a  noite  pera  descansar  do  trabalho  do  dia;  e  orai;ao  da  nojte, 
pera  que  Deos  os  Hvre  dos  filhos  das  trevoas.  Donde  se  ve  que 
parece  que  tem  todas  as  horas  como  nos. 


f2io,v.  CAPITULO   XIII. 

Do  sacramento  da  Ordem  e  das  ceremonias  de  que  usa 

o  Abuna  quando  ordena. 


Em  todas  quantas  terras  senhorea  o  Preste  Joao  nao  ha  quem  i.Ordinibussacris 
de  ordens  mais  que  hum  s6  Bispo,  a  quem  os  Ethiopes  chamao  |!^^rat  ^^^*una* 
Abuna,  que  he  palavra  arabia  e  quer  dizer  c  Padre  nosso  > .  Este  Ihes  q«i  «  Patdarca  Alc- 

xandrino  inBtituitur» 

vem  sempre  de  Egypto  mandado   pello   Patriarca  de  Alexandria,  ct  seligitur  intcr  mo- 
que  de  ordinario  reside  na  cidade  do  Cajro,  por  causa  dos  muitos  ^*^°«    antonianos 

^  ^  J      '  ^  aegyptios,    non   ae- 

negocios  que  tem  com  o  Baxa  dos  Turcos,  de  quem  depende  quasi  thiopcs,    qui    sunt 
em  todas  suas  cousas;  e  quando  de   Ethiopia   Ihe   pedem   Abuna,  scdpsit^UKcta. 
manda  elle  iuntar  os  frades  egypcios  da  ordem  de   s.  Antao,  que 
se  achao  no  Cajro  e  elles  Ihe  presentao  hum  ou  dous  frades  de  sua 
ordem  que  Ihes  parecem  mais  suflBcientes,  e  elle  escolhe  e  confirma 
o  que  dos  dous  acha  mais  idoneo. 

Bem  sei  que  frei  Luis  de  Urreta  dis  p.  439  que  os  monges 
de  s.  Antao  ethiopes,  que  moram  em  Jerusalem,  sao  os  que  presentao 
o  que  ha  de  vir  a  Ethiopia  por  Abuna;  mas  enganouse,  se  avemos 
de  dar  credito  aos  mesmos  Egypcios,  que  dela  vem  com  o  mesmo 
Abuna,  que  me  affirmarao  que  em  sua  elei^ao  nao  entravao  frades 
ethiopes  de  nenhuma  maneira,  senao  egypcios.  Tambem  me  affirmou 
o  abuna  Simao,  que  aqui  matarao  em  majo  de  617,  como  ia  dis- 
semos,  que  nem  elle  era  Patriarca,  nem  nenhum  de  seus  antecessores 


472  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

o  fora,  senao  somente  Bispo.  Este  procura  sair  dentre  os  Turcos 
com  todo  seg^edo,  porque,  se  o  sabem,  nao  o  deixSo  vir  sem  pagar 
muito  dineiro,  e  ainda  depois  que  partio,  se  chega  a  sua  noticia, 
obrigao  (segundo  dizem)  ao  Patriarca  de  la  a  que  pague ;  e  por  estes 
inconvenientes  manda  de  qua  algumas  veses  o  Emperador  ouro  pera 
que  de  aos  Turcos  e  alquance  delle  licen^a,  mas  ainda  que  Iha  dem, 
quasi  nunca  vem  por  mar,  por  ser  o  caminho  comprido,  e  porque 
o  Baxa  de  Suaquem  Ihe  nao  empida  a  passagem  pera  Ihe  tomar 
algum  fato ;  que  pera  isto  nunca  Ihes  falta  achaques  aos  Turcos,  e 
assim  vem  por  terra  com  grande  trabalho  e  peligro  de  doenga,  por 
causa  dos  desertos  e  calmas  *do  caminho,  em  que  dizem  que  de  f.  211. 
ordinario  gasta  40  dias. 
a.  Abuna,  qui  iti-  Como  chega  a  Ethiopia,  o  recebem  com  muita  festa  e  honrra 

restti^^^ob^TQTMm^  ^  ^  Emperador  Iha  fas  sempre  grande,  porque  todas  as  veses  que 
mctum  in    Aethio-  entra  onde  elle  esta,  se  alevanta   em   pe   e   chegando  Ihe  toca  na 

piam  se  conf  ert,  ma- 

gnis  honoribus  ma-  testa  com  huma  crus  pequena  de  prata,  que  sempre  trazem  na  mao 
xime  ab  Impcratore  ^  jj^j^  ^^  ^  beijar;  e  logo  se  assentao  ordinariamente  no  chao  sobre 

cumulatur.  Ad  eius  -'      '  ^ 

sustentationemaddi-  alcatifas,  mas  o  Emperador  se  encosta  sempre  a  coxins  de  borcado 
cx  opimis  totius  re-  ^u  veludo.  As  terras  que  Ihe  dao  sao  muito  grandes  e  fermosas  e 
gnipraedii8;adhaec  sempre  humas,  porque  estao  sinaladas  pera  isso  de  tempos  antigos 

omnes,     qui     sacris  ^  »   x-      ^  x-  jt  o 

ordinibus  inaufi^u-  e  das  igrejas  tem  muitos  proveitos.  Tambem  toma  de  cada  hum 
ndaersairs^uLmam  V^^  ordena  huma  pedra  e  mea  de  sal  e  algnmas  veses  duas,  que 
solvere   tenentur.  gao  de  dous  dedos  e  meo  de  largo  e  ojto   de   comprido   e  correm 

Abusus  in  hac  re  ab  ....... 

Auctore  notantur.      por  moeda,  e  aqui  em  Dambia  dam  de  ordinario  tnnta  por  certo 

pezo  de  ouro  que  sera  hum  cruzado.  E  isto  vem  a  montar  muito 
poUa  multidao  grande  dos  que  sempre  se  ordenao,  principalmente 
de  ordens  menores,  porque  as  veses  as  da  ate  aos  meninos  de  mama, 
e  muitas  depois  de  chegar  o  tempo  que  tem  publicado  pera  dar  as 
ordens  e  estarem  muitos  iuntos  de  diversas  partes,  Ihas  dilata  por 
muitos  dias,  e  os  fas  trabalhar  em  Ihe  trazer  Ihena  e  outras  cousas 
que  tem  necessidade,  com  o  que  padecem  os  que  sao  de  longe, 
porque  se  Ihes  acaba  a  matalotagem  que  traziao ;  e  huma  ves  estando 
eu  com  o  Emperador,  Ihe  fizerao  queixume  do  abuna  Simao,  que 
avia  muitos  dias  que  detinha  os  que  se  vierao  a  ordenar  e  os  fazia 
trabalhar  em  Ihe  trazer  lenha  e  aiudar  a  huma  casa  que  edificava, 
e  que,  por  estarem  ia  cansados  e  Ihes  faltar  o  gasto,  se  iuntavao 
todos  a  tarde  e  cantavao  as  ladainhas  onde  elle  ouvisse,  rogando 
a  Deos  que  Ihe  movesse  o  cora^ao  pera  que  os  despachasse.  Enfa- 
douse  o  Emperador   e   disse:   Nao   sei   como  nao   o   movem   estas 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIII.  473 

coussis.  Respondeo  hum  dos  grandes:  Por  g^a^a,  Senhor,  nfto  he 
®8fypc^^  P]  *  po^s  que  muito  que  nSo  se  mova  per  rogos  e  oragois , 
pois  seus  antepassados  nSlo  se  moviao  com  quantas  pragas  Ihes  dava 
f.2ii,v.  Deos  em  tempo  de  Moyses  [?].  *Mandoulhe  entao  dizer  o  Emperador 
que  nSio  fizesse  esperar  mais  aquella  gente,  senSlo  que  Ihes  desse 
ordens,  porque  se  queixavao  muito;  e  por  isso  Ihas  deu  antes  do 
que  as  ouvera  de  dar. 

Quando  ha  de  dar  ordens,  manda  armar  no  campo  huma  tenda      3.  Sacrisordixiibus 

«  •        •  «      1.  j*j    j  j  tum  minoribus,  tum 

grande,  porque  nas  igrejas  nSo  ha  comodidade  pera  por  em  ordem  niaioribus  sacerdo- 
tanta  gente,  como  comummente  se  ordena,  ainda  que  algiima  ves,  **®  cxcepto,  plurimi 

X  o  initlantur  aimul  uni- 

quando  nS.o  sSio  muitos,  fas  isto  em  alguma  igreja  que  tenha  diante  co  ritu.  Verba,  quae 
bom  terreiro,  onde  os  mandSlo  assentar  em  tres  fieiras  ordinariamente  £©«  arabiro^niKme 
e  os  contao  pera  ver  quantais  pedras  de  sal  se  Ihes  ha  de  arecadar,  Auctor    numquam 

,,  ,  .  ,  -.     .  -  potuitrcacire.  Nomi- 

e  Ihes  poem  hum  smete  com  tmta  no  bra^o  direito  perto  da  mao.   naaethiopicaseptem 

Depois  se  assenta  o  Abuna  em   sua  cadeira  na  porta  da  igreia  ou  o'***^'*°*- 

tenda,  quando  nella  da  as  ordens,  e  le  hum  pouco  em  hum   livro 

em  lingoa  arabia,  e  logo  vao  chegando  hum  e  hum  os  que  se  hao 

de  ordenar  e  Ihes  corta  algtins  cabellos  da  cabe^a,  que  parece  he 

a  primeira  tonsura  e,  se  acerta  de  vir  rapado  (como  muitos  vem), 

tocalhes  com  a  tesoura  na  cabe^a  e  vao  saindo  poUa  outra  banda 

da  tenda  que  tambem  esta  aberta,  e  como   passao   todos,  le  outra 

ves  no  livro,  e  elles  tornao  outra  ves   a  passar  por   ordem   como 

primeiro ;  e  vaj  fazendo  certas  ceremonias  e  dizendo  algumas  pala- 

vras  que  nunca  pude  saber,  porque  o  [que]  tem  o  livro  de  nenhuma 

maneira  mo  quis  mostrar  nem  as  dizer. 

Desta  maneira  da  todas  eis  ordens  iuntas,  excepto  o  sacerdocio, 
que  o  da  outra  vez  e  pera  estas  primeiras  nao  precede  exame 
nenhum,  porque,  ainda  que  nao  saibao  ler,  Ihsis  da.  Hum  frade  me 
deu  por  escrito  os  nomes  dellas,  que  sao  estes :  Ostiario  c  Aceita 
havaheu  > ;  Exorcista  c  Mecemeran  » ;  Leitor  c  Anagunstiz  » ;  Aco- 
lito  «  Caoare  mahetot  »;  Subdiacono  c  Nefque  diacon  »,  que  quer 
dizer  meo  diacono.  Ao  Diacono  chamao  «  Diacon  » ;  ao  sacerdote 
«  Cassis  » ;  mas  he  palavra  arabia,  e  ao  sacerdocio  «  Quesna  ». 

Isto  referi  porque  frei   Luis  de   Urreta   pag.  520   da  a  todas 
estas  ordens   nomens   tam  inauditos    nestas   terras  que  dixendoos 
f.  2  <  2.  eu  a  alguns,  pera  ver  se  tinhao  noticia  delles,  os   feste*iarao   com 
muito  riso,  como  cousa  que  se  enventara  pera  isso. 

Aos  que  ha  de  ordenar  de  missa  manda  examinar  primeiro  por      4«  l>«  ridiculo  exa- 

.....  ,  mine  cui  subiiciun- 

alguns  mmistros  egypcios  que  tem,  e  aos  que  aprovao  poem  no  bracjo 

C.  BiccARi.  Her.  A»tk,  Seript.  oce.  ined,  —  II.  60 


474  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

tur,  qui   Mcerdotio  direito  hum  sinal  de  tinta  preta  com  hum  sinete;  mas  o  cxame  he 
QiK^dam^documeit-  **"*  fraco,  que  a  poucos  ou  a  nenhum  reprovao,  ainda  que  saibSo 
mm  supioae    igno-  muito  mal  ler,  porque  procurSo  de  aprender  ler  aquillo  em  que  os 
raodae     sacerdotum 
Aethioplae.  hao  de  examlnar,  que  sao  luguares  certos:  o  pnncipio  do  evangelho 

de  sam  JoSo,  o  principio  do  z  capitulo  dos  Actos  dos  Apostolos  e 

o  principio  do  capitulo  23  dos  mesmos  Actos.  Xestas  tres  partes  os 

fazem  ler  hum  pouco,  porque  nellas  estao  certas  letras  diSicukosas 

de  pronunciar  aos  que  nSo  sabem  bem  ler.  Tambem  usSo  de  outro 

engano  os  que  se  vem  a  ordenar,  que  he  iuntaremse  todos  03  de  huma 

terra  e  porem  diante  alguns  que  sabem  bem  ler,  e  o  examinador, 

como  acha  aquelles  que  lem  bem,  aprova  a  todos  os  daquella  terra, 

por  nao  cansar  tanto,  E  daqui  vem  que  muitos  dos  que  dizem  missa 

nao  sabem  quasi  ler,  como  eu  vi  entrando  em  hum  mosteiro  grande 

pera  ver  as  ceremonias  de  sua  missa,  e  o  que  a  dizia  foj  cantando 

algumas  cousas  de  cor,  e  chegando  a  ler  o  Evangelho  pollo  livro, 

marchava   de  maneira  que  foi  necessario  chegar  outro  frade  pera 

Ihe  ir  dizendo,  mas  este  sc  embara<;ava  pouco  menos  delle  e  assim 

acodio  outro,  emmendandoo  no  que  errava  ate  que  acabou.  Pei^ntei 

a  hum  frade  dos  maiores    letrados  que  elles  tem,  se  aos  que  exa- 

minavHo  Ihes  faziao  declarar  alguns  luguares  da  Escritura  ou   les 

perguntavao  alguma  questao  de  theologia :  respondeome  rindo :  Netn 

os  que  examinao,  nem  o  mesmo  Abuna  sabem  isso;  como  Ihes  hto 

deperguntar?  Somente  examinao  em  ler. 

5.  Ritua  ialtiatio-  Acabado  o  exame,  se  assentao  no  chSo  em  fieira  os  que  se  hio 

baformaenequitAu-  ^e  ofdenar   e   o  Abuna  em   sua  cadeira  e  le  hum  pouco  no  livro 

ctor  referre,  qula  li-  arabio,  e  logo  vao  checrando  hum  e  hum  por  ordem  e  poem  o  rosto 

bruro  quo  ritu»  con-  00  r  r 

tlnentur.etiaminter-  sobre  suas  maos  e  passao  polla  outra  porta  da  tenda ;  depois  tornao  a 

Ras"  Cela"chri8«B*  ^"t''^'^  ^  asopralhe  no  rosto  e  desta  maneira  Ihes  vai  fazendo  *outras   f.s; 

babere  prae  manibua  ceremonias,  como  benzelos  com  huma  crus  que  tem  na  mao,  fazer 

numquam  potuit.  Sa-  ■ 

cerdotea  non  roodo  que  toquem  na  pedra  dara  e  ungilos  com  oleo,  e  ultimamente  Ihes 

^^""•«['"^^''ad  ^^^  huma  pratica,  dizendolhes  que  nao  sirvao  a  seculares,  que  nao 

secundaa  nuptiaa,  si  tragao  armas,  que  nao  andem  desmandados  com  molheres  alheas  ecc. 

libet,  convolant  «n-  t~    t        •      j,-  «,_  .j.-^j 

nuente  Abuna.  -^  depois   dis  o  Abuna   missa  e  comungao   todos.  Ordena  a  COXOS, 

mancos  e  cegos,  e  destes  conhe(;o  eu  alguns,  e  perguntando  pera  que 
ordenavao  de  missa  a  cegos,  pois  a  nao  podiao  dizer,  respondeome 
hum  frade  que  para  que  pudessem  escomungar,  aiudar  e  confessar 
e  cantar  na  igreja, 

Todos  os  clerigos  sao  casados,  mas  casao  antes  de  se  ordenarem 
de  missa  e  com  molher  virgem  e  de  pois,  se  Ihes  morre  esta,  nao 


UVRO  II,   CAPITULO   XIII.  475 

podem  casar  com  outra  e  quando  o  fazem  (que  he  muitas  veses),  os 
suspende  dos  ordens  o  Abuna,  mas  ficao  com  a  molher  em  casa,  e 
ainda  me  affirmarao  por  cousa  muito  certa  e  sabida  de  todos,  que 
como  peitavao,  o  Abuna  Ihes  tornava  a  dar  licen^a  que  dissessem 
missa  e  tivessem  aquella  molher.  E  de  hum  clerigo  me  contarao 
que,  morrendolhe  a  primeira  molher  e  casando  com  outra,  se  foj  ao 
Abuna  e  Ihe  disse:  Senhor,  eu  nao  pude  deixar  de  casar  a  2*  ves: 
tomai  la  o  sacerdocio  que  me  destes.  Respondeo  elle :  Vos  sois  bom 
homem :  nao  tenhais  paixao,  dizei  missa  e  estai  com  essa  molher ; 
que  eu  vos  dou  licen^a.  Disse  o  clerigo:  Nem  quero  dizer  missa, 
nem  estar  com  esta  molher.  Mandoulhe  entao  o  Abuna,  soppena  de 
excomunhao  que  dissesse  missa  e  que  nao  deixasse  a  molher.  Nem 
me  maravilho  muito  que  os  Abunas  se  aiao  desta  maneira  com  os 
clerigos,  pello  muito  pouco  que  sabem  e  roim  exemplo  que  ordina- 
riamente  dao  na  mesma  materia. 

Muitos  tem  grande  escrupolo  sobre  eis  ordens  que  o  Abuna  da      6.Devaliditateor- 

£c       «  *     j'         j         i-j'  •    j  TT^u*  j.  dinum  multi  in  ipsa 

e  amrmao  que  nao  da  as  de  subdiacono,  ainda  que  em  Ethiopia  tem  Aethiopia  dubitimt. 
o  nome,  que  he  Nefque  diacon.  E  profiando  eu  com  alguns  frades  R«tio  dubitandi :  o- 

pinio  patriarchae 

que  falavao  nisso,  e  com  Eraz  Sela  Christos  irmao  do  Emperador  oviedo  et  P.  loannis 
que  nao  podia  ser  senao  que  se  enganavao,  porque  como  da  todas  i^^pfatola^adTAu- 
f.  213.  as  ordens  iuntas  *ate  diacono  e  fala  em  outra  lingoa,  nao  entenderiao  ctorem  data. 
suas  palavras  nem  advirtiriao  bem  se  dava  de  subdiacono  ou  nao ; 
nias  com  tudo  me  contradisserao  affirmandose  no  que  diziao.  Tambem 
estando  eu  huma  ves  so  com  o  emperador  Seltan  Sagued,  me  disse, 
que  tinha  muita  duvida  no  sacerdocio  dos  de  sua  terra,  mas  nao  me 
declarou  em  que  se  fundava.  E  o  padre  patriarca  dom  Andre  de 
Oviedo  a  tinha  mui  grande  e  ainda  dizia,  que  nas  formas  sacramen- 
tais,  de  que  usavao  os  Abunas  na  administra^ao  das  ordens,  avia 
altera^ao  substancial,  como  me  escreveo  de  Roma,  a  29  de  dezembro 
de  1605,  o  padre  Joao  Alvares  de  nossa  Companhia,  sendo  assistente 
de  Portugual  por  estas  palavras,  tratando  de  hum  frade  por  nome 
Taquela  Mariam,  que  daqui  foi  a  Roma  por  via  do  Cajro:  «  Porque 
«  o  padre  Patriarca  tinha  la  e  qua  dada  huma  advertencia  que  nas 
«  formas  dos  sacramentos  nessa  Ethiopia  avia  altera^ao  substancial, 
«  ou  que  maliciosamente  as  corrompessem  ou  que  com  o  tempo  se 
«  alterarao,  pareceo  aqui  bem,  avisando  della  os  Padres,  ordenalo 
«  sub  condicione,  e  tratando  o  caso  com  o  cardeal  Santa  Severina 
«  de  boa  memoria,  protector  dessas  na^oes,  mo  fes  muito  difficil; 
«  mas  como  era  muito  zeloso  do  bem  universal  da  Igreja,  se  rendeo 


476  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

«  e  me  ordenon  que  eu  tentasse  ao  dito  Taquela  MzLriam,  porque 

<  tinha  que  nao  veria  nisso.  Felo  eu,  e  tambem  o  achei  difficilimo; 

«  com  tudo,  declarandolhe  o  segredo  com  que  se  avia  de  fazer  e  a 

«  probabilidade  que  avia  de  nfto  ser  ordenado,  se  rendeo  e  se  pedio 

«  licenQa  a  S.  Santitade,  que  a  deu  de  boa  vontade  ao  Cardeal,  e 

«  em  sua  capella  hum  Bispo,  que  tinha  em  casa,  grande  zelador  destas 

«  cousas,  com  gram  segredo  o  ordenou  sub  condicione;  com  que  este 

«  bom  homem  ficou  outro :  o  mais  alegre,  contente  e  consolado  que 

«  V,  Rev.**  pcde  cuidar,  sinal  quanto  a  mim  de  elle  nSLo  ser  bem 

«  ordenado  e  primeira  ves.  A  causa  que  pedia  tanto   secreto,  era 

«  pera  que  la  nao  se  soubesse  que  elle  tinha  os  sacramentos  de  la 

«  por  invalidos  e  por  isso  se  ordenava  qua  *valide,  que  seria  causa   f.2i3,v. 

«  de   o  tratarem  mal.  Era  prudente   e   muito   modesto :   foi   perda 

«  morrer  >.  Ate  aqui  sSo  palavras  do  padre  JoSo  Alvarez,  e  pouco 

antes  dellas  dis :  este  frade  tomava  pera  Ethiopia  por  via  de  Por- 

tugual  e  que  morreo  no  caminho. 

O  livro  per  onde  se  dao  as  ordens,  como  ia  disse  assima,  nunca 
o  pude  aver  as  maos,  metendo  pera  isso  ate  Eraz  Sela  Christos; 
mas  o  padre  Patriarca  dom  Andre  de  Oviedo  nfto  avia  escrever  a 
Roma,  que  avia  altera^ao  substancial  nas  formas  dos  sacramentos 
se  nao  o  soubera  muito  bem ;  nem  parece  que  sem  fundamento  ouve- 
rao  de  duvidar  nisso,  como  duvidao,  muitos  frades  e  seculares  de 
Ethiopia.  Huma  cousa  he  muito  certa  e  sabida  de  todo,  que  o  abuna 
Petros,  que  morreo  o  anno  de  1607,  estando  huma  ves  dando  ordens, 
ia  cansado  por  ter  dado  a  muitos,  e  ficandolhe  ainda  grande  numero 
por  ordenar,  mandou  dar  pregao  que  todos  os  que  ali  se  tinhao 
iuntado  pera  tomar  ordens,  quaisquer  que.  fossem,  ficassem  ordena- 
dos,  que  elle  Ihas  concedia,  e  arrecadarao  as  pedras  de  sal  que 
custumao  pagar,  e  elles  se  forao  tendo  per  certo  que  hiao  ordenados. 
Nao  faltou  quem  se  escandalizasse  muito  disto  e  o  fosse  dizer  ao 
Emperador  que  entao  era  Malac  Sagued ;  e  elle  o  mandou  chamar 
e  estranhou  muito  o  caso,  e  disse  que  fizesse  iuntar  a  todos  os  que 
ali  primeiro  estavao,  a  quem  nao  tinha  dado  ordens  e  os  ordenasse ; 
e  ia  pode  ser  que  alguns  fossem  de  terras  muito  distantes  e  nao 
ouvissem  que  os  mandavao  tornar,  e  ficassem  dizendo  missa  e  ouvindo 
as  confissoes  sem  serem  ordenados.  E  antes  deste  abuna  Petr6s, 
dizem  que  fes  o  mesmo  outro  chamado  Marcos.  Por  onde  sendo  o 
Abuna  tam  idiota  como  isto,  nao  me  maravilharia  muito  que  dei- 
xasse  sem  advertir  cousas  essenciais  nas  formas  dos   sacramentos. 


LIVRO  II,   CAPITULO   XIII.  477 

Do  que  temos  dito  neste  capitulo,  se  ve  quam  pouca  informa<;ao  7-  Quam  absona 
teve  frei  Luis  de  Urreta  sobre  estas  cousas,  pois  em  muitas  dellas  urreta  dTciericis^t 
affirma  o   contrario   no   cap.  ii  do  2*^  livro  de  sua  historia;  onde  Mccrdotibua  Aethio- 

piae  singillatim  de- 

f.  214.  depois  de  referir  *as  ceremonias,  com  que  elle  dis  que  da  as  ordens  monstratur. 
o  Abuna,  poe  estas  palavras: 

«  Bien  avera  notado  el  leitor  em  este  modo  de  dar  las  ordenes 
«  quan  certos  son  en  ceremonias,  y  tambien  algunas  cosas  contra- 
€  rias  a  todo  buen  consierto,  como  es  ordenar  a  los  ninOs  de  Evan- 
«  gelio  y  de  las  otras  ordenes  menores.  Tambien  ordenavan  de 
«  las  4  menores  a  coxos,  mancos,  ciegos  y  com  otros  defectos  cor- 
«  porales.  Pero  por  estos  y  otros  abusos  no  los  avemos  de  condenar 
«  luego  por  hereges,  como  hazen  algunos  rigurosos  calificadores, 
«  porque  lo  hazian  con  ignorancia,  y  en  mandandoles  la  Iglesia  lo 
«  contrario,  han  obedecido  como  buenos  hijos,  y  ordenan  agora  al 
«  uso  de  la  Iglesia  Ronuina,  con  los  mismos  ritos  y  ceremonias, 
«  dando  las  ordenes  los  Obispos  y  Arcebispos  a  sus  feligreses  em 
«  sus  dioceses ;  porque  es  ofRcio  proprio  de  ellos  el  consegrar  assim 
«  a  los  hombres  como  a  los  tiemplos,  vasos  y  vestido,  aunque 
«  las  4  ordenes  menores  en  este  tiempo  las  dan  los  Abbades  spi- 
«  rituales  y  los  Vicarios  o  Curas,  por  particular  comission  de  los 
«  Sumos  Pontifices.  Quanto  a  lo  que  es  ordenar  a  los  ninOs  de  todas 
«  las  ordenes  hasta  el  diaconato,  hazian  mal;  y  por  esso  lo  han 
«  dexado;  pero  quedavan  verdadeiramente  ordenados.  A  los  coxos, 
«  ciegos  y  mancos  que  ordenevan,  lo   han   dexado,  y  no  se  usa  », 

Isto  dis  o  Autor ;  mas  enganouse  muito,  porque  ate  oie  ordenao 
os  meninos  das  4  ordens  menores  e  de  Evangelho,  e  aos  coxos, 
mancos  e  cegos  de  missa.  Por  onde,  se  a  Igreja  Romana  Ihes  mandou 
em  algum  tempo  que  o  nSo  fizessem,  nSo  obedecerao  a  seu  man- 
dado;  nem  ha  em  Ethiopia  quem  de  ordens  nenhumas  mais  que 
o  Abuna,  que  s6  elle  he  bispo,  e  os  Abbades  e  Vigairos  nSo  tem 
licen^a  pera  dar  as  4  menores,  como  logo  diremos. 

Pouco  mais  adiante  dis  que  ha  em  Ethiopia  clerigos  virgens 
e  outros  casados,  e  trata  difusamente  delles  e  dis  que  em  cada  paro- 
chia,  de  4  que  poem  em  cada  cidade,  ha  1 3  sacerdotes  virgens,  scilicet 
f.2i4,v.  que  nao  sao  casados,  nem  *o  forao  nunca  e  que  se  hao  como  cle- 
rigos  regulares.  Os  1 2  sao  subditos  e  outro  superior  e  de  ordinario 
[0]  que  he  vigairo ;  e  todos  estes  pera  serem  admittidos  a  esta  digni- 
dade  hao  de  ser  nobres  e  de  idade  de  50  annos  e  ham  de  dar  mostra 
de  homens  mortificados,  compostos  e  religiosos,  e  assim,  antes  que 


478  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

os  recebao,  os  fazem  estar  tres  annos  dentro  do  claustro  (porque  as 
parcchias  estao  a  maneira  de  mosteiros  com  seu  claustro),  e  se 
exercitao  em  obras  humildes  e  de  mortificagao ;  e  no  fim  deste  tempo 
o  poem  em  capitulo  e  sendo  admittido  o  mandao  ao  Bispo  com 
testemunhos  dos  sacerdotes  e  fregueses  da  parochia,  que  tambem 
estes  dao  seu  voto.  Vaj  sobre  hum  elefante,  sentado  dentro  de  hum 
como  andor  mui  rico  ao  modo  que  costuma  a  caminhar  o  Preste 
Joao  e  os  prelados  de  Ethiopia ;  acompanhaono  seus  parentes  e 
amigos,  e  desta  maneira  se  presenta  ao  Bispo  e  elle  o  recebe  com 
muita  honrra  e  vendo  se  suas  dimissorias  sao  bastantes,  o  ordena 
4^  feira  de  Epistola,  6*  feira  de  Evangelho  e  sabado  de  Missa.  Depois 
torna  pera  sua  igreja  com  o  mesmo  acompanhamento,  e  todos  os 
sacerdotes  o  saiem  a  receber  vestidos  com  os  omamentos  com  que 
dizem  missa  e  o  superior  delles  abrindo  hum  livro  dos  Evangelhos, 
Ihe  fas  iurar  perpetua  obediencia  a  Igrej^  Romana  e  a  observancia 
da  primitiva  Igreja  Antiochena.  Acabado  isto  dis  missa  nova  com 
grande  solennidade  e  depois  Ihe  fazem  muitas  ceremonias,  cubrin- 
dolhe  ultimamente  o  rosto  com  hum  veo  preto  que  Ihe  chega  ate 
o  peito  (costume  dos  sacerdotes  virgens  levar  sempre  o  rosto  cu- 
berto  com  hum  veo),  e  como  morto  ao  mundo  le  dizem :  Requiescat 
in  pace.  A  estes  sacerdotes  da  o  Preste  Joao  em  cada  cidade  mais 
de  mea  legoa  de  terra,  onde  edificao  casa^  e  luguares,  prantao  e 
semeao  e  tem  ortas  e  iardins,  onde  vivem  *com  gente  de  servipo,  f.  215 
tirando  molheres  que  nao  podem  entrar. 

Dos  sacerdotes  casados  dis  que  podem  ser  trinta  dous  em  cada 
cidade  do  imperio  e  que  Ihes  concederao  isto  em  hum  dos  Concilios 
antiochenos  a  peti^ao  de  hum  Emperador,  que  os  Ethiopes  chamao 
Joao  o  santo ;  onde  iuntamente  Ihes  derao  licen^a  que  pudessem  ser 
casados  com  condi^ao  que  fizessem  voto  de  castidade  coniugal,  quando 
se  ordenassem  in  sacris,  e  que  nao  ouvessem  tido  mais  que  huma 
molher  e  que  ella  nao  ouvesse  sido  viuva;  e  que  ella  morta  nao 
pudessem  casar  outra  ves.  E  no  fim  do  cap.  dis  que  o  Summo  Pon- 
tifice  Gregorio  1 3,  em  huns  breves  apostolicos  que  despachou  pera 
Ethiopia  e  trouxe  Joao  Balthesar,  niandou  aos  sacerdotes  virgens 
que  vestissem  a  romana,  que  fizessem  coroa  de  clerigos,  porque 
antes  rapavao  toda  a  cabe^a  e  traziao  a  barba  comprida,  ao  con- 
trario  dos  seculares  que  rapao  a  barba  deixando  os  bigodes  e  o 
cabello  da  cabe^a  comprido.  Mandoulhes  que  usassem  de  barrete 
de  4  cantos,  porque  antes  os  traziao  redondos,  e  que  vistissem  loba 


LIVRO  II,   CAPITULO   XIII  479 

e  manteo  a  romana,  que  antes  traziao  roupas  compridas  pouco  dif- 
ferentes  das  dos  seculares,  e  que  trouxessem  roxetes,  e  declarou 
que  nao  era  seu  intento  que  os  sacerdotes  casados  gozassem  destes 
privilegios. 

Estas  e  outras  muitats  cousas  dis  ali  o  autor;  mas  todas  sSio 
huma  mera  fic^So  inventada  de  quem  o  informou,  porque  nSo  ha 
nem  ouve  nunca  em  Ethiopia  (segundo  todos  dizem)  tais  clerigos 
virgens,  nem  se  vio  qua  nunca  elefante  mango,  nem  andor,  e  ainda 
que  ouvera  semelhantes  clerigos,  nSo  Ihes  ouverao  de  fazer  iurar 
perpetua  obediencia  a  Igreja  Romana;  pois  estao  afastados  della 
e  tem  sua  doutrina  por  falsa,  como  vimos  nos  primeiros  capitulos 
deste  2°  livro.  Por  onde,  se  o  Summo  Pontifice  Gregorio  13°  de- 
spachou  alguns  breves  pera  Ethiopia,  como  dis  o  autor,  seria  por 
f.2i5,v.  falsa  informa^ao  de  Joao  Balthesar,  *nem  qua  tem  noticia  de  tais 
breves,  nem  de  barrete  de  4  cantos,  nem  ha  quem  vista  a  romana, 
antes  muitos  delles  quasi  a  turquesca,  principalmente  o  Abuna. 
Todos  os  clerigos  sao  casados  e  se  se  contentarao  com  suas  mo- 
Iheres  fora  grande  bem;  porem  casao  antes  que  se  ordenem  de 
missa  e  com  molher  donzella,  como  assim[a]  dissemos ;  rapao  toda 
a  cabe^a  e  deixao  crescer  a  barba,  como  tambem  o  fazem  muitos 
seculares,  e  geralmente  nenhum  rapa  a  barba ;  nao  se  deferen^ao 
delles  no  vestido:  quem  pode  veste  huma  cabaja  branca  de  algodao 
com  cabe^ao  alto  e  iusto,  e  sobre  esta  outra  de  pano  de  nosscis 
terras  ou  de  alguma  seda  que  Ihes  vem  por  via  dos  Turcos ;  e  na 
cabega  barrete  redondo  ou  comprido  de  qualquer  cor  que  achao, 
e  algumas  vezes  sobre  elle  touca  como  as  dos  mouros.  Trazem  cal- 
9oes  estreitos  e  compridos  ate  os  ^apatos.  Os  que  sao  pobres  nao 
trazem  mais  que  hum  pano  branco  de  algodao,  com  que  se  cobrem 
e  hum  cal^ao  ate  meia  perna,  a  cabe^a  descuberta  e  pes  descalsos; 
mas  trazem  todos  na  mao  huma  crus  de  ferro  delgada  ou  de  pao 
preto  como  de  hum  palmo,  que  he  proprio  dos  clerigos,  ainda  que 
tambem  a  trazem  as  freiras.  Deseiei  saber  em  que  tempo  tiverao 
principio  estes  sacerdotes  casados;  mas  nao  achei  quem  me  sou- 
besse  dar  rezao,  que  quanto  o  que  frei  Luis  de  Urreta  tras,  pag.  526, 
que  o  Preste  Joao,  que  os  Ethiopes  chamao  Joao  o  Santo,  alquangou 
licen^a  pera  que  os  clerigos  pudessem  ser  casados,  he  falso,  porque 
nunca  ouve  em  Ethiopia  tal  Preste  Joao,  como  diremos  no  fim 
deste  livro. 

Ao  que  aqui  refirimos  do  Autor,  que  os  Bispos  e  Arcebispos 


480  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

dao  as  ordens  a  seus  fregneses,  me  pareceo  acrescentar  o  que  dis 
pouco  mais  adiante  cap.  12,  onde  dis,  que  os  Arcebispos  deste  im- 
perio  sSo  12  e  os  Bispos  72,  e  que  do  principio  da  christandade 
desta  terra  nunca  ouve  mais  nem  menos,  ainda  que  he  terra  tam 
larga  que  pudera  aver  muitos  mais,  porque  com  isto  conservao  a 
memoria  *dos  doze  Apostolos  e  72  Dicipolos;  e  que  o  Arcebispo  f.216. 
mais  antigo  tem  as  vezes  do  Summo  Pontifice  e  he  nuncio  aposto- 
lico  em  toda  Ethiopia  por  breves  particulares  de  Clemente  7*^  e 
Paulo  3°  e  outros  Pontifices  Romanos ;  e  que  afora  estes  prelados, 
que  govemao  o  espiritual  da  christandade  de  Ethiopia,  ha  hmis 
Patriarcas,  Arcebispos,  Bispos  titulares,  que  sSo  consegrrados,  mas 
nao  tem  igrejas,  nem  ovelhas,  e  estes  assistem  no  Gram  Conselho, 
e  os  elege  o  Preste  JoSo  por  breves  que  pera  isso  tem  dos  Ponti- 
fices  nomeados. 

Ate  aqui  sSo  palavras  do  Autor,  mas  nem  ellas  nem  em  quasi 
todo  quanto  dis  naquelle  capitulo  ha  nenhuma  que  diga  com  a  ver- 
dade  do  que  qua  passa ;  porque  nem  ha,  nem  ouve  nunca  taes  Arce- 
bispos,  ou  Bispos,  a  fora  do  Abuna,  nem  Nuncio  Apostolico,  nem 
tais  Patriarcas,  que  assistao  no  gram  conselho,  nem  ainda  sacer- 
dote,  porque  todos  sSo  seculares.  Por  onde,  se  os  Pontifices  Ro- 
manos  passarao  tais  breves,  seria  por  falsa  informaQao  dos  que  os 
pedirao,  pretendendo  acreditaremse  la  assy  e  a  sua  terra  com  mo- 
strar  que  avia  nella  tal  modo  de  governo  e  que  erao  obedientes  a 
Igreja  Romana.  Nem  ha  Abbade  nenhum,  que  desse  algiim  dia 
ordens  menores,  nem  as  possa  dar.  S6  avia  duvida  do  Geral  dos 
frades  de  Abba  Taquela  Haimanot,  a  quem  chamao  Ichegue,  que 
he  nome  de  officio;  mas  vindo  este  dizendo  no  anno  de  16 15  que 
tinha  poder  pera  as  dar,  Ihe  resistio  o  Abuna  que  entao  era  e  fa- 
zendo  demanda  sobre  isto,  iulgarao  que  so  o  Abuna  tinha  poder 
pera  dar  Ordens,  e  assim  ficou  excluido  o  Ichegue. 


CAPITULO  XIV. 

Em  que  se  trata  dos  erros  que  os  Ethiopes  tem  acerca 
do  sacramento  s.^  do  Matrimonio  e  das  ceremonias 
que  nelle  usao. 


f.2i6,v.  *Com  ensinar  Christo  Nosso  Senhor  tam  claramente  no  sagrado       i.  ApudAethiopes 

evangelho  quam  insoluvel  seia  depois  do  bautismo   o   Matrimonio  Jl^^^nec    semTCr 
consumado,  dizendo  que  o  marido  e  a  molher  nao  sao  dous  senao   gravescausasexecn- 

,  tentia  iudicis  civilis 

huma  came,  que  o  que  Deos  aiuntou   o   homem    nao  afaste,  Ma-  vei  ecclesiastici ;  im- 

theos,  19,  e  que  o  que  deixar  sua  molher  e  casar  com  outra  comete  iJ^"^^*^****^!!* ^ 

adulterio,  e  se  a  molher  deixar  o  marido   e   casar   com  outro   fas  uxore  aliae  nubit  et 

adulterio,  Marcos  10,  Lucas  16;  com  tudo  isso  he  cousa  muito  ordi-  viro. 

naria  entre  os  Ethiopes  deixar  o   marido   a  molher   e  catsar  com 

outra,  e  ella  com  outro;  e  pera  isso  nao   he   necessario  mais   que 

irem  diante  dos  juizes  do  Emperador  e  dizer  o  marido :  c  Nao  posso 

estar  com  esta  molher:  he  muito  brava,  falame  como  quer  e  des- 

mancha  minha  casa  »,  ou  outras  cousas  semelhantes;  ou  a  molher: 

«  Nao  posso  sofrer  este  homem,  porque  me  da  muito  ma  vida,  par- 

ticularmente  me  deshonrra  e  ainda  me  espanca  >.  E  costando  destas 

cousas,  logo  iulgao  que  se  afastao  e  casem   com  quem  quiserem ; 

e  se  ambos  pidem  que  Ihes  dem  licen<;a  pera  se  afastarem,  partem 

o  fato  que  tem  e  cada  hum  leva  sua  ametade ;  mas  se  s6  hum  dis 

que  se  quer  afastar,  este  nao  leva  fato  nenhum:  todo  fica  pera   o 

C.  BcccARi.  Her,  Amik,  Scripi^  oee,  sned,  —  II.  6x 


482  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

outro.  Tambem  se  o  marido  se  ausenta  por  tempo  de  dous  ou  tres 

annos,  e  a  molher   vaj    aos  juizes  e  dis  que  seu  marido   ha   tanto 

tempo  que  esta  ausente  e  nSo  tem  que  comer,  que  nao  pode  esperar 

mais,  que  quer  casar  com  outro,  Ihe  dao  licen^a  pera  que  o  fa^a. 

Isto  mesmo  juJga  o  Abuna,  quando  Ihe  vao  com  estas  demandas, 

e  dizem  os  Egypcios  que  assim  o  fas  o  Patriarca  de   Alexandria, 

porque  quando  a  molher  se  desaveu  com  seu  marido  de    maneira 

que  nao  quer  estar  com  elle,  se  nao  Ihe  derao  licen^a  pera   casar 

com  outro,  deixara   a   fe   e   se  fara   moura.   Muitos  tambem,  sem 

f  azerem  estas  demandas,  deixao  suas  molheras  e  casao  com  outras 

e  ellas  muitas  veses  contra  vontade  de  seus  maridos  se  vao  e  casao 

com  outros,  sem  que  aia  quem  as  obrigxie  *a  tornar  a  elles,  o  que    f.  217 

eu  tenho  visto  por  veses. 

a.  si  adulterium  Se  algum  homem  acha  que  sua  molher  adulterou,  a  pode  deixar 

S^^iSto":  e  casar  com  outra  sem  demanda,  nem  nota  alguma.  porque  he  comum 

tium   opinantur   ez   doutrina  entre  seus  doutores  que  Christo  Nosso  Senhor  deu  licen^a 

prava   interpretatio- 

neverborumChristi,  pera  isso,  quando  disse,  Matheos  5:  «  Todo  aquelle  que  deixar  sua 
^Snds^et^pr^atia  "^^^^^^»  tirando  por  causa  da  fornica^ao  etc.  »;  posto  que  ia  muitos 
disputationibus  non   entendcm  o  contrario,  depois  que  Ihes  mostramos  em  disputas  pu- 

licere  ex  lege  Christi    ,  , .  _ 

divortium  docuit,  blicas  e  praticas  quam  grande  erro  seia  este  porque  nao  querem 
nec  sine  fructu.         dizer  estas  palavras  que  por  causfi  da  fomica^ao  se  solta  o  vincolo 

de  matrimonio,  senao  que  o  que  por  causa  da  fornicagao  se  afastar 
de  sua  molher,  nao  peca,  que  de  outra  maneira  melhor  fora  a  sorte 
da  adultera  que  a  da  inocente,  porque  a  adultera  ficava  solta  da  lei 
do  matrimonio  e  podia  licitamente  casar  com  outro  e  a  inocente 
casta,  a  quem  Ihe  provarao  falsamente  que  era  adultera,  nao  podia 
casar  com  outro,  pois  verdadeiramente  nao  estava  solta  da  lei;  nem 
estar  com  seu  marido,  pois  elle  casava  com  outra;  e  muitas  veses 
os  maridos  forao  de  proposito  adulteros  pera  se  verem  livres  de 
suas  molheres  e  poderem  casar  com  outras;  e  ellas,  quando  se 
enfadarao  de  seus  maridos,  fariao  o  mesmo.  Mas  a  sanctissima  e 
purissima  lei  de  Christo  N.  S.*''^  nao  da  caminhos  pera  pecados ; 
pollo  que  de  nenhuma  maneira  se  pode  dizer  que  por  causa  de 
fornica^ao  se  solta  o  vincolo  do  matrimonio. 

Mas  que  necessidade  temos  de  trazer  pera  isto  rezOes,  estando 
tam  clara  a  doutrina  de  s.  Paulo  ad  Romanos  7  e  Corinthios  i* 
cap.  7,  que  a  molheresta  a  toda  a  lei  em  quanto  vive  seu  marido, 
de  maneira  que  se  for  com  outro  sera  adultera  e  que  nao  [he]  elle 
o  que  o  manda  aos  casados,  senao  o  Senhor,  que  a  molher  nao  se 


LIVRO   II,   CAPITULO  XIV.  483 

afaste  do  marido,  mas  que  se  se  afastar,  fique  sem  casar,  ou  que 
torne  a  reconciliarse  com  seu  marido,  e  que  o  marido  nao  deixe 
f.2i7,v  a  molher.  Aqui  fala  *s.  Paulo  da  molher  que  se  afasta  de  seu 
marido  por  alguma  iusta  causa  de  divorcio  como  por  causa  de  for- 
nica^ao  ou  heregia,  e  desta  dis  que  nao  pode  casar  com  outro, 
senao  que  esteia  assim  ou  que  se  reconcilie  com  seu  marido.  Por 
onde  nunca  o  vincolo  do  matrimonio  se  solta  ate  a  morte,  nem  por 
causa  de  fornicaQao  nem  por  outra  causa  nenhuma.  E  que  aqui  fale 
s.  Paulo  da  molher  que  se  afasta  de  seu  marido  por  causa  iusta  e 
nao  da  que  se  afasta  sem  tal  causa,  esta  claro,  porque  desta  nao 
dissera :  «  Esteia  assim  ou  se  torne  a  reconsiliarse  com  seu  marido  » 
senao :  «  Esteia  assim  ate  que  se  torne  a  reconciliar  com  seu  ma- 
rido  e  de  toda  a  maneira  tome  a  seu  marido  ».  Porque  nao  podia 
sam  Paulo  dar  licenija  pera  iniusto  divorcio  contra  o  espresso  preceito 
de  Christo  Nosso  Senhor.  E  se  elle  no  mesmo  capitulo  nao  per- 
mite  aos  casados  que  se  abstenhao  do  comercio  que  devem  hum  ao 
outro,  senao  por  algum  tempo  e  de  consentimento  de  ambos  pera  se 
darem  a  ora^ao  e  que  tomem  logo  como  antes,  como  avia  de  per- 
mitir  que  a  molher  contra  vontade  de  seu  marido,  ficasse  sem- 
pre  afastada  delle,  sem  causa  nenhuma  iusta[?].  PoUo  que  nao  ha 
duvida  nenhuma  senao  que  fala  da  molher  que  se  afastou  de  seu 
marido  por  iusta  causa,  e  que  desta  dis  que  nao  pode  casar  com 
outro,  senao  que  ha  de  estar  assim,  ou  tornar  a  fazer  amizade  com 
seu  marido.  Com  estas  e  outras  cousas  que  trazemos  a  estes  Ethiopes, 
vierao  muitos  em  conhecimento  desta  verdade  e  estao  firmes  nella ; 
porem  muitos  mais  sem  nenhuma  compara^ao  dizem  o  contrario  e 
o  tem  por  cousa  muito  certa. 

As  ceremonias  de  [que]  usao  em  seus  casamentos  perguntei  a      s.Describunturri- 

r     1  1  t  1  •  -i        1  tu8  nuptialea  tam  sa- 

muitos  frades   e   homens   seculares,  e  disserao  que,  quando  algnm   criquwn  dviles  qui 

mancebo  quer  casar  com  huma  donzella,  manda  homens  honrrados  ot>t»n«ttt  quando  vir 

e8t  diaconus. 
que  falem  a  seus  paes  e  presentalhes  fato  conforme  a  sua  possibi- 

f.  218.  lidade,  e  como  ^alquanga  o  beneplacito  delles  e  della,  da  fiador  de 

Ihe  nao  quebrar  olho,  bra^o,   nem   pes.   nem   Ihe  fazer  outro   mal 

notavel,  e  pera  Ihe  nao   faltar  nas  cousas  necessarias   de  vestir   e 

comer  e  quando  falta  em  alguma  destas  demandao  ao  fiador.  Mas 

quando  os  paes  entregao  a  filha,  scmpre  Ihe  dao  muito   mais  fato 

do  que  receberao  do  mancebo,  e  depois  da  morte   delles   herda  a 

fazenda  de  seus  pais,  se  ficou  ella  s6,   e   avendo   outros  irmaos,  a 

parte    que    Ihe   cabe,   conforme    as    ordena<;oes    do    reino,    porque 


484  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

sempre  o  mais  velho  leva  dobrado  que  cada  hum  dos  outros  seus 
irmSlos. 

Alguns  dias  antes  que  cazem,  fazem  festa  em  casa  do  mancebo 
e  na  da  [sic]  dos  paes  da  donzella,  tangendo  e  cantando  de  noite  e  de 
dia;  e  se  o  noivo  for  diacono,  a  molher  ha  de  ser  virgem  e  ambos 
v£io  a  ig^eja  acompanhados  de  seus  parentes  e  amigos,  e  iicando 
ella  ao  luguar  das  molheres  (que  he  na  crststa  ou  alpendre,  se  o 
tem  a  igreja,  e  se  nao,  antes  de  chegar  a  primeira  cortina,  donde 
nao  podem  passar  os  seculares,  como  adiante  diremos),  entra  elle 
dentro  e  la  Ihe  dao  os  omamentos  de  [que]  usa  o  diacono,  pera  aiudar 
a  missa  e  elle  os  leva  nos  bra^os  ao  sacerdote  que  esta  aparelhado 
pera  dizer  a  missa,  o  qual  Ihe  da  ben^ao  dizendo:  <  Bendito  Deos 
«  Padre  todo  poderoso,  e  bendito  o  Filho  unigenito  Jesu  Christo, 
«  que  naceo  de  S.'*  Maria  Virgem,  e  bendito  o  Espirito  Santo  pa- 
«  racleto.  Gloria  e  honrra  a  santissima  Trindade  Padre,  Filho  e 
«  Espirito  Santo  pera  sempre  dos  sempres  » .  E  logo  fas  reverencia 
ao  altar  e  se  reveste  e  aiuda  a  missa,  e  depois  que  comunga,  levao 
a  comunhao  a  ella  a  porta  da  igreja  e  elle  Ihe  da  o  sangne,  e 
como  acabao  a  missa,  o  alevantao  a  elle  do  chao  nos  bra^os  dos 
sacerdotes,  e  outros  dous  a  ella  e  os  tem  assim  em  quanto  cantao 
algumas  cantig£is,  e  depois  os  levao  desta  maneira  ate  os  afastarem 
hum  pouco  da  igreja  e  deixandoos  os  sacerdotes,  tomao  *a  elle  f.2i8,v. 
dous  mancebos  seculares  nos  hombros  e  a  ella  o  que  esta  em  luguar 
de  padrinho  as  costas  e  os  levao  a  sua  casa,  se  he  perto,  e  se  longe 
em  mulas  com  o  acompanhamento  que  primeiro  trouxerao. 
4.  Quo  ritu  ccle-  Se  o  nojvo  for  secular,  nem  elle,  nem  sua  espoza  vao  a  igfreja; 

cor^Qct^^pracscrtfm   ™^^  ^^  ®^^®  ^^^^  ben^ao,  que  muitas  veses  nao  buscao,  vai  a  casa 
consanguincorum  do  Vigairo  e  ali  Iha  da  brevemente  e  se  toma.  Algumas  veses  tam- 

bem  vai  o  Vigairo  a  casa  dos  nojvos  a  Ihes  dar  bengao,  mas  poucas; 
e  se  a  nojva  esta  em  outra  terra,  a  vaj  buscar  o  nojvo  em  mula 
acompanhado  de  gente  de  mula  ou  de  cavalo  conforme  a  pessoa  e 
muitos  de  pe  com  armas  e  tangeres,  e  nao  dormem  la  de  ordinario 
mais  que  huma  noyte,  e  polla  menhaa  a  trazem  em  huma  mula  bem 
omada,  e  se  he  senhora  grande,  a  garni<;ao  do  freo  he  de  prata 
dourada,  asentada  sobre  veludo  carmesim  e  toda  a  mula  cuberta  de 
borcado  ou  outra  seda  de  maneira  que  nao  se  Ihe  ve  mais  que  o 
que  o  freoo  le  deixa  descuberto  da  cabecja  e  da  metade  das  pemas 
pera  baixo.  A  nojva  sempre  vem  vestida  conforme  sua  qualidade, 
e  ainda  que  nao  seia  de  muita,  tras  bons  vestidos,  porque  quando 


LIVRO  II,   CAPITULO  XIV.  485 

os  nao  tem,  Ihos  emprestao,  e  poem  a  touca  de  maneira  que  nao  se 
Ihes  descobrem  mais  que  os  olhos,  e  chapeo  de  seda  na  cabe^a  de 
copa  alta  com  hum  veo  ordinariamente  vermelho,  com  as  pontas  tam 
comprida[s]  que  Ihe  decem  pellas  costas  ate  o  cinto :  modo  ordinario 
dtits  senhoras  quando  caminhao.  Mas  algumas  veses  leva  albornos 
com  o  capello  posto  na  cabe^a,  e  entao  escuza  chapeo.  Vaj  iunto  com 
ella  hum  homem  de  cada  banda,  que  tenhao  mam  nella,  se  fbr  neces- 
sario,  e  le  govemem  a  mula,  porque  ella  nao  tenha  a  redea  na  mao. 
f.  219.  *Como  chega  a  casa  do  nojvo,  fazem  grande  festa,  e  os  nojvos 

nao  saiem  della  pello  menos  10  dias  e  alguns  30;  e  todo  este  tempo 
os  acompanhao  dous  homens,  a  quem  elles  chamao  Mi^os,  que  sao 
como  padrinhos.  E  quando  os  nojvos  hao  de  sair  fora,  ora  seia  aos 
10  dies,  ora  aos  30,  vaj  la  hum  frade  e  botalhes  agoa  benta.  E 
perguntando  eu  a  hum  frade  porque  faziao  aquella  ceremonia,  re- 
spondeo  que  por  rezao  do  pecado  que  cometerao  quando  consumarao 
o  matrimonio,  por  ser  ella  donzella.  Declarailhe  entao  como  no 
veneravel  sacramento  do  matrimonio  nao  ha  pecado;  que  he  insti- 
tuido  por  Christo  N.  Senhor  e  da  gra^a  com  que  se  perfeiQoa  o  na- 
tural  amor  dos  casados  e  os  santifica  e  coniirma  a  insoluvel  uni^ao, 
que  ate  a  morte  estao  obrigados  a  ter. 

Se  a  nojva  ou  nojvo  he  parente  do  Emperador  e  estao  na  corte, 
o  dia  que  ha  de  levar  pera  casa,  vao  ambos  ao  pa^o,  elle  acom- 
panhado  de  fidalgos  e  ella  de  senhoras,  e  o  Emperador  Ihes  da  a 
ambos  muito  ricos  vestidos,  e  logo  vao  pera  casa  do  nojvo  com 
grande  acompanhamento  levando  diante  os  atabales  e  charamelas 
do  Emperador,  e  por  alguns  dias  fazem  grande  festa  e  dao  de  comer 
e  beber  a  quantos  chegao. 

Quando  morre  o  marido,  se  tem  irmao  mancebo,  muitas  veses      5.  Defuncto  viro, 

1«  .  .  ^  .  i^  uxor  vidua.  ez  prava 

casa  com  a  molher ;  isso  comummente  entre  gente  menos  nobre ;  e  consuetudinc,  potest 
se  he  casado,  tambem  algumas  veses  a  leva  pera  casa  e  a  tem  como  nubere    leviro   suo 

quin  de  hoc  a  sacer- 

molher,  porque  dis  que  elle  he  o  que  ha  de  herdar  a  molher  de  dotibus  reprehen- 
seu  irmao.  E  indo  eu  a  huma  provincia  do  reino  de  Tigre,  que  se  ^^' 
chama  Hamacem,  me  agazolhou  dous  dias  o  governador  della,  e 
sabendo  como  iuntamente  com  sua  molher  tinha  tambem  como  tal 
a  de  hum  seu  irmao  defunto,  o  tomei  a  parte  e  Ihe  disse  quam  gfrave 
cousa  era  aquella ;  ao  que  me  respondeo,  que  o  fizera,  por  ser  assim 
f.2i9.v.  custume  na  terra  *e  Ihe  parecer  que  nao  era  mal,  mas  que  a  man- 
daria  pera  sua  casa,  nem  teria  mais  comunica^ao  com  ella,  como 
fes  logo ;  de  que  ella  ficou  bem  enfadada.  E  assim  ha  outros  que 


486  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

as  tem,  sem  achar  por  isso  castigo  nenhum.  So   hum   frade  achei 

no  reino  de  Gojam  que  negava  a  hum  casado  os  sacramentos,  porque 

tinha  tambem  a  molher  de  hum  seu  irmSlo  defunto. 

6.  Ritus  nuptiales  Bem   sei   que   Francisco  Alvares,  em  sua   Historia   Ethiopica 

descripti   numquam  ^^^  25,  dis  que,  ainda  que  poUa  iusti^a  do  Emperador   a  ningiiem 

obtinuerunt  in  Ae-  ^e  defendido  ter  muitas  molheres  e  que  de  facto  as  tem  alcruns,  aos 

thiopia.  ^  ° 

tais  nao  Ihes  dao  o  sacramento,  nem  os  deixao  entrar  na  igreia ;  mas 
parece  que  entao  corriao  nesta  materia  com  mais  rigor  que  agora ; 
por  que  mandando  Eras  Sela  Christos  no  reino  de  Gojam,  onde 
elle  he  Viso  Rei,  que  os  que  tivessem  deixado  suas  legitimas  mo- 
Iheres  e  casado  com  outras  largassem  estas  e  tornassem  as  pri- 
meiras  e  que  nao  dessem  os  sacramentos  a  quem  tivesse  mais  que 
huma  molher,  se  Ihes  fes  muito  dura  e  nao  pode  acabar  de  sair 
com  isso,  antes,  como  depois  me  affirmou  hum  frade,  nao  deixao 
ainda  de  confessar  e  dar  a  comunham  aos  que  tem  muitas  molheres 
iuntas  publicamente. 

Tambem  dis  Francisco  Alvares  no  mesmo  luguar,  que  vio  casar 
duas  veses  e  que  puserao  em  hum  prado  huma  cama  com  cortinas 
e  assentandose  nella  os  nojvos,  vierao  tres  clerigos  e  derao  tres 
voltas  aroda,  cantando  a  modo  de  versos  com  alleluia,  e  logo  cor- 
tarao  ao  nojvo  alguns  cabellos  da  cabe^a  e  outros  a  nojva  e  mo- 
Ihandoos  em  vinho  de  mel,  puserao  os  do  nojvo  no  lugnar  onde 
cortarao  a  nojva,  e  os  della  no  luguar  onde  Ihe  cortarao  os  seus 
e  botaralhes  agoa  benta  e  de  pois  come^arao  a^  festas  das  boda^. 
O  mesmo  dis  que  veio  fazer  outra  ves  ao  abuna  Marcos,  mas  a 
porta  da  igreja  e  que  levava  huma  crus  na  mao  e  encensou  aroda 
da  cama  e  depois  Ihes  pos  as  maos  sobre  a  cabe^a,  dizendo  que 
guardesem  *o  que  Deos  manda  no  Evangelho  e  que  olhassem  que  f.  220. 
dali  pordiante  nao  erao  dous  afastados,  senao  dous  em  huma  carne, 
e  que  assim  aviao  de  ser  seus  cora^oes  e  vontades. 

Ate  aqui  sao  palavras  de  Francisco  Alvares,  ma^  parece  que 
como  a  estrangeiro  e  de  terras  tam  remotas  Ihe  quiserao  mostrar 
este  aparato  em  seus  casamentos,  como  de  proposito  Ihe  mostrarao 
muito  extraordinario  em  outras  cousas  que  elle  conta  no  mesmo 
livro.  Ou  ia  pode  ser  que  entao  se  usasse  isso ;  mas  agora  nao  ha 
tal  cousa;  nem  achei  quem  me  soubesse  dar  rezao  de  tal  custume 
com  perguntar  a  muitos. 
r.Quaeautemscri-  Quem  totalmente  contradis  ao  que  temos  dito  he  frei  Louis  de 

et  "abuH^  scatent!"*  Urreta,  que  no  cap.   10  do  2°  livro  dis  que  nem  tem  os  Ethiopes 


LIVRO   II,  CAPITULO    XVI.  487 

muitas  molheres,  nem  tiverao  nunca  mais  que  huma,  nem  ia  largSo 
as  legitimas,  e  que  nao  ha  na^ao  que  mais  rigurosamente  castigue 
o  adulterio,  quando  entre  elles  se  acha  algum.  Mas  foj  falta  de 
informapao,  como  quasi  em  todas  as  mais  materias  a  teve,  porque 
sempre  ouve  em  Ethiopia  quem  tivesse  publicamente  muitas  mo- 
Iheres,  e  oie  os  ha,  e  outros  que  deixao  as  legitimas  e  casao  com 
outras  da  maneira  que  assima  dissemos.  Nem  a  adultera  tem  mais 
outro  castigo  que  rapar  a  cabe^a  e  deixar  seu  fato,  e  com  isto  fica 
livre  pera  casar  com  outro  ou  fazer  o  que  quizer;  nem  ao  adultero 
Ihe  dao  outra  pena  mais  que  de  que  pague  fato,  como  dissemos  no 
cap.  16  do  primeiro  livro. 


CAPITULO  XV. 

Em  que  se  trata  da  fabrica  dos  templos  que  ouve  anti- 
guamente  e  ha  oie  em  Ethiopia  e  da  reverencia  que 
Ihes  tem. 


Vimos  no   capitulo  precedente   como  se  hao  os  Ethiopes   no      i.  Ex  libris  «xu- 

1  j.      ^       -Kjr  j^'  •  •       •£  •«  miticis,     ex     verbis 

veneravel  sacramento   do   Matrimonio,  que  signmca  a  uniao  e  co-  prancisci  Alvarez  et 
niuncao  insoluvel  de   Christo  com   a  Igreia.  Agora  sera  bem  ver  ^   ruderibus    quae 

/  o  o  nunc  extant,  descri- 

f«22o,v.  como  se  hSo  na  fabrica  de  seus  templos,  *a  reverencia  e  venera^ao  bit  Auctor  tcmplum 
que  Ihes  tem  e  quanto  os  antigos  erao  mais  sumptuosos  que  os  pVope*Axum* 
dagora,  como  o  mostrao  bem  as  ruinas  de  alguns  e  outros  que  ainda 
estao  em  pe.  E  come^ando  pellos  que  tenho  visto  de  grande  mage- 
stade  e  fermosa  architectura,  foj  a  igreia  de  Santa  Maria  de  Siao, 
que  antignamente  edificou,  segundo  dizem,  a  rainha  Candace,  em 
hum  luguar  que  chamao  Ag<;um  do  reino  de  Tigre,  como  o  mani- 
festao  suas  ruinas  e  o  testificao  os  livros  antigos,  que  se  gnardao 
naquelle  mosteiro,  em  que  se  refere  meudamente  toda  sua  fabrica, 
ainda  que  nao  apontei  mais  que  suas  medidas  e  dizem  que  tinha 
cento  e  oitenta  e  quatro  palmos  de  largo  e  duzentos  e  sincoenta 
de  comprido,  e  de  alto  sessenta  e  quatro;  a  largura  das  paredes 
quatorze,  ea  porta  principal  tinha  de  alto  outros  14.  ComeQousse 
a  edificar  aos  49  annos  de  pois  do  nacimento  de  Christo  N.  Senhor 
e  acabouse  aos  91. 

C.  BiccAai.  R^r.  Atik,  Seripi»  oce,  ined.  •  II.  6a 


490  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Francisco  Alvares  dis  em  sua  Historia  fol.  44,  que  a  vio  e  que 
tinha  sinco  naves  fechadas  com  abobada  e  pintadas  e  sece  capellas 
com  seus  altares  pera  o  oriente  bem  consertados,  e  que  tinha  choro 
como  os  nossos,  posto  que  tam  baixo  que  quasi  se  chegava  com  a 
cabe^a  a  sua  abobada,  e  sobrechoro,  ainda  que  nSo  se  serviao  delle. 
Mas  ia  tudo  isto  caio,  sem  ficar  mais  que  as  paredes  de  fora  de 
altura  de  dous  covados  e  no  meio  fizerao  outra  igreia  muito  mais 
pequena,  posto  que  de  tres  naves  com  pilares  quadrados  e  muito 
gTossos,  e  fica  escura  por  serem  as  ianellas  roins  e  estar  cuberta 
de  palha.  Sobesse  a  ella  poUos  mesmos  degraos  da  antigua  que 
sao  10  de  pedras  muito  fermosas  e  compridas.  O  demais,  que  aqui 
se  pudera  notar  que  afermoseava  a  antigua,  puzemos  no  cap.  22  do 
primeiro  livro  tratando  das  cidades.  Huma  cousa  he  digna  de  se  ad- 
vertir,  que  conforme  a  esta  conta  *se  come<;ou  a  edificar  a  igreia  f.  221. 
em  honrra  da  Virgem,  vivendo  ainda  a  Senhora  como  a  capella 
del  Pilar  em  (^arago^a  de  Espanha. 
a.AliquiddeTem-  Como  6  ou  8  legoas  desta  igreia  ao   poente   na  provincia  de 

batur^in  momisterio  ^orat  esta  hum  mosteiro  que  chamao  de  AUeluia  em  hum  monte 
de  AUeluta.  alto;  cuia   igreia   antigua    tambem   era  dedicada  a  nossa  Senhora. 

Esta   agora  caida,  mas   ainda  ficao  as  paredes  de  fora  como  tres 

covados  alevantadas,  e  medindo  eu  o  vao  dentre   ellas,  achei  que 

tinha  132  palmos  de  comprido  e  105   de  largo;   parece  que   tinha 

muitas  naves  e  dizem  que  era  muito  fermosa.  A  que  agora  tem  he 

redonda  pequena  e  escura. 

3.  Auctor  demon-  Mas  deixando  as  que  ia  estao   caidas,   falaremos   de  algumas 

mium  eztollm^tem-  ^^'^^^  ^^  P^  ^^  provincia  que  chamao  Oror  e  celebrao  os  de  Ethiopia 

pla  aethiopica,  quae  por  cousa  de  grande  maravilha,  e  muito   mais   Francisco  Alvares 

adhuchodievisuntur  ,/-.,..  j 

in  provincia  Oror  in  fol.  66  dizerdo  que  sao  tantos  os  edeficios  de  igreias  cavados  em 
rupibus  sazos»  ex-  ^j^^^  rocha  que  nao  he  possivel  que  no  mundo  se  achem  outros  tais 

cisa;    templa    enim  ^  tr  ^ 

quae  simili  structura  nem  tantos.  Se  tivera  visto  os  templos  ou,  pera  milhor  dizer,  as  casas 
orientalibus  longe  et  ^o  demonio,  que  na  India  Oriental  tem  os  gentios  dedicados  a  di- 

magnitudine  et  ele-  yersos  idolos,  humas  feitas  ao  picao  em  rocha  viva,  outras  de  can- 
gantia  superant  ae-  '^ 

thiopica.  taxia,  longe  estivera  de  por  tal  encarecimento.  De  huma  dedicada 

a  hum  bugio,  que  cuido  esta  em  Choromandel,  affirmao  os  que  a 
virao  que  somente  a  crasta,  que  serve  de  recolher  o  gado  que  se 
ha  de  sacrificar,  tem  700  columnas  de  marmore  lavrado,  maiores  e 
muito  mais  grossas  que  quantas  se  vem  oie  em  Hespanha ;  porque, 
segundo  dizem,  na  roda  e  comprimento  sao  iguais  as  que  Agripa 
em  Roma  pos  em  seu  Pantheon,  o  que  agora  chamao  a  Rotunda. 


LIVRO  II,  CAPITULO  XV.  49 1 

f.22i,v.  Com  tudo,  posto  que  perguntando  *aos  naturais  da  terra,  que  tem 
visto  estes  edeficios  de  Oror,  nao  os  pintem  da  grandeza  que  Fran- 
cisco  Alvares,  refirirei  o  que  elle  escreve,  a  que  se  deve  dar  mais 
credito,  pois  com  curiosidade  notou  as  medidas  e  tudo  o  demais  e 
nSo  falou  oculto  como  aquelles  a  quem  eu  perguntei,  que  nenhum 
me  soube  declarar  essas  cousas. 

Diz  pois  Francisco  Alvares  que  as  igreias  sSo  Sam  Emanuel, 
Sam  Salvador,  S.**  Maria,  S.**  Cruz,  Sam  Jorge,  Golgota,  Bethlem, 
Mercorids,  os  Martires  e  Lalibela.  A  esta  ultima  puserao  nome  de 
hum  Emperador  que  as  mandou  fazer  e  esta  enterrado  na  igreja 
Golgota,  que  he  a  que  tem  menos  obra. 

Esta  igreia  Golgota  he  feita  ao  picao  na  rocha,  e  tera  de  cum-  4.  Ex  Pr.  Alvarec 
prido  120  palmos  e  de  largo  72;  a  abobada  ou  o  alto  da  igreia  se  ^1^001^14!*  ®*®™" 
sustenta  sobre  sinco  pilares,  dous  de  cada  banda  e  hum  no  meio. 
O  tecto  da  igreia  he  tam  chao  como  o  chSio  della ;  as  paredes  tem 
muit£is  janellas  e  tantos  lavores  de  macenaria  como  pode  fazer  hum 
orives  em  prata.  A  mao  esquerda  como  entrSo  poUa  porta  principal, 
antes  da  capella  mor,  esta  huma  sepultura  feita  na  mesma  pedra, 
que  dizem  he  a  semelhan^a  do  sepulcro  de  Christo  N.  S.®*  e  assim 
a  tem  em  grande  veneragao.  Da  outra  banda  estao  duas  imagens 
de  vulto  de  tal  maneira  lavradas  que  ficSlo  quasi  afastadas  da  pa- 
rede:  huma  he  de  Sao  Pedro,  outra  de  Sao  Joao.  Tem  mais  esta 
igreia  huma  capella  por  si  quasi  como  igreia,  que  he  de  naves  com 
seis  pilares  tres  por  banda,  e  esta  muito  bem  lavrada,  e  a  nave 
do  meio  muito  alta  e  com  bons  arcos,  ianellas  e  portas,  huma  prin- 
cipal  e  outra  travesa,  afora  da  que  serve  de  ig^eia  grande.  Esta 
capella  he  quadrada  e  tera  5  2  palmos.  Tem  outra  capella  quadrada 
de  doze  palmos  por  banda,  com  muitas  ianellas  e  rematasse  no  alto 

f.  222.  como  mitra  pontifical.  Os  altares  desta  *igreia  tem  todos  seus  pi- 
lares,  com  corredores  sobre  elles ;  tem  tambem  crasta  aroda  qua- 
drada  tam  alta  como  ella,  e  entrasse  por  hum  passadillo  alto  cavado 
na  mesma  pedra  de  treze  palmos  de  largo.  E  tudo  isto  he  cavado 
em  huma  s6  pedra  numero  sem  acrecentar  outra  nenhuma,  lavrando 
nella  os  pilares,  os  altares  e  varandas  que  estao  sobra  elles  com 
tudo  o  demais. 

A  igreia  de    Sao  Salvador   esta   afastada  e  tambem   he  feita      5.  Describiturtem- 
ao  picao  dentro  na  rocha  e   sera  de   comprido    200  palmos   e   de  ^^™  "'       ^•to"»- 
largo  120.  He  de  sinco  naves  e  em  cada  huma  sete   pilares   qua- 
drados  de  4  palmos  por  banda  e  as  paredes  bem  lavradas;  as  abo- 


492  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

badas  bem  altas  e  a  do  meio  mais  que  as  outras.  No  alto  avia 
muitas  curiosidades  como  espelhos,  rosas  e  flores  e  outras  cousas 
muito  bem  entalhadas.  Nas  paredes  muitas  frestas  bem  rasguadas 
por  dentro  e  fora  com  muita  lasaria  de  obra  muito  prima.  A  ca- 
pella  mor  he  muito  alta  e  assim  o  he  o  ceo  do  altar,  que  esta  sobre 
4  pilares  com  seus  corredores  aroda.  A  porta  principal  comega 
com  grossos  arcos  e  pouco  e  pouco  se  vao  estreitando;  nao  tem  a 
porta  de  alto  mais  que  9  palmos  e  4  e  meo  de  largo.  Da  mesma 
obra  sSo  as  portas  travessas,  mas  nSo  tam  largas.  Fora  da  porta 
principal  esta  hum  alpendre  de  abobada  sobre  7  pilares  afastados 
doze  palmos  da  parede  da  igreia  com  humas  luas  {sic^  nelles,  e  de 
huns  a  outros  ha  arcos  e  do  chSo  ao  alto  delles  avera  duas  lan^as. 
Em  toda  esta  pedra  em  que  se  cavou  esta  igreia  nSo  ha  differen<;a 
nenhuma^  toda  parece  hum  s6  marmore.  A  crasta  della  tambem 
esta  muito  bem  lavrada  na  pedra,  e  tera  cada  banda  de  comprido 
60  palmos  tirando  o  pano  que  esta  de  fronte  da  porta  principal  que 
tera  100.  A  *entrada  desta  igreia  he  por  debaixo  da  mesma  pedra  f.222,v. 
em  que  esta  feito  hum  passadi^o  de  oitenta  palmos  de  comprido  e 
tam  largo  que  poderao  ir  10  homens  em  fileira  hombro  por  hombro, 
e  de  alto  tera  pouco  mais  de  huma  lan^a  e  no  alto  estSo  4  espe- 
Ihos  por  onde  entra  bastante  claridade :  e  desta  entrada  ate  a  igreia 
esta  hum  campo  em  que  tem  casa  e  semeSo  sevada. 
6.    item    brevius  A  igreia  de  Nossa  Senhora,  ainda  que  nSlo  he  tam  grande  como 

templa  NoBtrae  Do-        joij  «^  01  j  -j 

minae,     Martyrum,  ^  ^^  Salvador,  porque  nSo  tem  mais  que  80  palmos   de  compndo 
8.    Crucis,    Emma-  e  64  de  largo,  he   fermosa  e  de  tres   naves,  a  do  meio  mais   alta 

nuelis  et  s.  Georgii. 

que  as  outras.  Em  cada  nave  estao  5  colunas  com  seus  arcos,  sobre 
que  se  sustentao  as  abobadas;  no  meio  do  cruzeiro  esta  outro  pilar 
mui  alto,  sobre  o  que  se  sustentao  os  corredores  tam  bem  lavrados  que 
parecem  empressos  em  cera;  e  de  fronte  de  cada  nave  esta  huma 
capella  com  seu  altar.  Fora  da  igreia  estao  seis  pilares,  os  dous  na 
parede  e  os  4  afastados  com  seus  arcos,  sobre  que  se  sustentclo 
huns  miradouros  quadiados,  e  tem  quinze  palmos  por  banda.  Tem 
crasta  fermosa  e  tam  alta  como  a  igreia :  de  fronte  da  porta  prin- 
cipal  esta  huma  casa  grande  feita  tambem  na  mesma  rocha  e  nella 
dao  de  comer  aos  pobres.  Da  banda  direita  desta  igreia  ha  outra 
tam  grande  como  ella  de  tres  naves  sobre  pilares  feita  na  mesma 
pedra  e  chamasse  a  igreia  dos  Martires;  e  da  banda  isquerda  da 
mesma  igreia  de  Nossa  Senhora  esta  outra  piquena  de  68  palmos 
de  comprido  e  de  s6  huma  nave  com  tres  pilares  que  sustentao  o 


j 


LIVRO  II,  CAPITULO  XV,  493 

alto,  e  hum  s6  altar.  Chamasse  S.**  Crus :  nSo  tem  crasta  nem  al- 
pendre,  nem  outra  cousa  mais  que  hum  petssadi^o  escuro  cavado  na 
mesma  pedra  e  vaj  sair  muito  longe. 
f.  223.  A  igreia  de  S.  Emanuel  he  pequena,   mas  *curiosamente   la- 

vrada :  tem  3  naves  e  a  do  meio  he  mais  alta.  O  alto,  que  he  chao 
como  o  chSlo,  se  sustenta  sobre  sinco  pilares ;  e  tem  42  palmos  de 
comprido  e  de  largo  20;  he  s6  de  huma  pedra.  A  igreia  de  Sao 
Jorge  esta  hum  peda^o  afastada  das  outras,  mas  tambem  lavrada 
em  rocha  como  ellas,  e  perto  desta  da  mesma  pedra  esta  hum  tanque 
de  agoa  e  dizem  que  nace  ali.  As  demais  igreias  nao  descreve  Fran- 
cisco  Alvares,  mas  dis  que  Ihe  affirmarao  que  todas  ellas  se  fizerao 
em  24   annos,  e  que   os  mestres  erao  homens  brancos. 

Ate  aqui  sao  palavras  suas. 

Os  que  virao  estas  igreias  da  gente  da  terra  me  disserao  que  7«  Quid  de  prae- 
todas  estavao  cavadas  na  pedra  em  hum  oiteiro  nao  muito  alto,  a  ri^etulerint  ipsrAc- 
que   chamao  Lalibela   do  nome  do  Emperador,  que  as  mandou  fazer  thiopes.   Peregrina- 

tiones  superstitiosae 

e  morreo  em  junho  e  se  enterrou  ali,  e  a  gente  popular  o  tem  por  a  monachis  institu- 

santo.  Em  outubro  fazem  ali  grande  festa  a  hum   Gabra  Christ6s,  ***• 

que  o  tem  por  muito  grande  santo  e  quer  dizer  €  Aleixo,  »  e  dizem 

que  foi  filho  de  Theodosio  rei  de  Constantinopla,   e   que   sua  maj 

era  filha  de  hum  Rei  de  Roma.  Parece  que  confundem  a  historia 

de  s.  Aleixo  romano.  luntasse  entao  gprande  multidao  de  gente  de 

diversas  partes,  porque  Ihes  metem   em   cabe^a  os  frades   que  ali 

estao,  que  todo  aquelle  que  la  for  huma  ves  se  ha  de  salvar,  e  se 

for  7  vezes,  nao  somente  se  salvara  elle,  mas  tambem  seus  filhos 

e  netos;  e  alguns  estendem  a  mais. 

Outras  igreias  ha  nao  em  rocha,  que  se  edificarao  ha  muito 
tempo,  que  deixo  por  nao  ser  tal  sua  architectura  que  mere^a 
discrip^ao. 

As  igreias  que  nestes  tempos  edifi^ao,  todas  sao   de   pedra  e      8.   Templa    quae 

..  ,  i^iiAi  t.'*  --1         hodie  eztant  plerum- 

barro,  que  nenhuma  cal  entra  nellas.  Algumas  ha  mais  cumpndas,  rotundar  parva 

que  largas,  mas  poucas,  porque  commnmente  sao  redondas  e  peque-  ®*  **  P«*^»  5*  ^^^ 

constructa :  singulae 

f.223,v.  nas ;  e  ainda  que  algnmas  em  baixo  *se  comecem  quadradas,  como  so-  eomm  partes  descri- 
bem  hum  peda^o  as  paredes,  poem  poUa  banda  de  dentro  paos  nos  *^'"**^' 
guantos  [su^  de  maneira  que  possao  depois  subir  com  a  parede  em  re- 
dondo  4  ou  5  covados.  Aroda  como  6  ou  8  covados  da  parede  da 
igreia  fazem  huma  como  crasta  baixa  com  muitas  portas  e  assim  esta 
como  a  igreia  se  cobre  de  palha  assentada  sobre  a  madeira  que 
chega  do  mais  alto  da  igreia  ate  passar  por  sima  das  paredes  da 


494  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

crasta:  poUo  que  todas  com  terem  tres  portas  ficao  tam  escuras 
que  nem  ao  meio  dia  se  pode  ler  dentro  sem  candea,  e  assim  sSlo 
muitos  os  morcegos  que  se  agazalhao  nellas  e  com  ser  a  madeira 
tosca,  poucas  igreias  tem  forro;  e  em  algumas  que  sSlo  compridas 
atravessdo  de  parede  a  parede  huma  cortina  afastada  hum  peda^o 
do  altar,  o  qual  sempre  esta  de  maneira  que  se  possa  andar  aroda 
delle.  Desta  cortina  pera  dentro  nao  podem  estar,  em  quanto  se 
dis  a  missa,  mais  que  sacerdotes  e  os  diaconos  que  aiudao  a  ella. 
Outra  cortina  esta  afastada  desta  e  entre  huma  e  outra  estao  os 
diaconos  que  nao  aiudao  a  missa  e  os  que  tem  ordens  menores ;  e 
desta  cortina  pera  fora  estao  os  seculares.  Nas  igreias  redondas 
nao  ha  de  ordinario  mais  que  huma  s6  cortina,  porque  os  homens 
seculares  e  molheres  ficao  na  crasta  que  esta  aioda. 

A  algumas  igreias  de  frades  nao  vao  molheres,  porque   estao 

dentro  da  serca  do  mosteiro,  onde  ellas  nao  podem  entrar,  mas  no 

luguar  que  a  igreia  dos  frades  esta  desta  maneira  tem  outra  onde 

ellas  vao,  a  que  chamao  igreia  das  molheres,  nao  porque  nao  en- 

trem  nella  homens,  senao  porque  tambem  ellats  podem  entrar,  mas 

sempre  no  luguar  que  dissemos  que  Ihes  pertence.   Alguns   dizem 

que  antiguamente  avia  igreias  em  que  s6  molheres  podiao  entrar; 

mas  agora  nao  ha  tal  custume:  em  todas  entrao  tambem  os  homens. 

g.  Tcmplonim  ca-  D21S  igreias  comummente  tem  cuidado  *frades  e  conegos   iun-    f.  224. 

que  monachi  simul  tamente,  e  dos  conegos  (que  elles  cham^o  Debteroch,  e,  se  he  hum, 

et  clerici  iUi  qui  De-  Debtera)  alguns  sao  sacerdotes,  outros  nao ;  mas  todos  casados,    e 

bter6ch  vocantur. 

Quibus  ritibus  et  qua  no  vestido  n^o  se  diferen^ao  dos  seculares.  Trazem  porem  de  ordi- 
t^°Stari^in°^*^'*"  nario  na  mao  huma  crus  pequena  de  ferro  ou  de  pao  preto,  e  quando 

de  novo  entrao  a  servir  em  alguma  igreia,  Ihes  fazem  com  navalha 
huma  letra  no  hombro  dereito  e  outra  no  esquerdo,  com  que  se 
conhece  que  he  de  tal  igreia,  como  se  he  de  S.**  Maria  no  hombro 
direito  Ihe  poem  D.  e  no  esquerdo  M.,  que  quer  dizer  «  de  Maria  >. 
E  se  algum  destes  conegos  ha  de  passar  pera  outra  igreia,  o  su- 
perior  daquella  em  que  estava  ha  de  testemunhar  como  era  seu  e 
o  daquella  em  que  entra  Ihe  fcis  novas  letras,  que  signifiquem  o 
nome  de  sua  igreia.  Mas  ha  alguns  mosteiros  em  cuias  igreieis  nao 
entrao  conegos,  so  frades  tem  cuidado  dellas ;  e  na  pedra  dara  de 
cada  igreia  escrevem  o  nome  do  Santo  a  que  esta  dedicada. 

Todas  as  veses  que  poem  nova  pedra  dara  nalguma  igreia, 
como  na  que  edificao  de  novo  ou  na  que  reedificao,  se  Ihe  querem 
mudar  o  orago  (o  que  custumao   fazer),  a  levao   com   grande  festa 


LIVRO  II,   CAPITULO  XV.  495 

e  se  he  de  algum  mosteiro  gprande,  em  que  querem  fazer  isto  com 
mais  aparato,  levao  a  pedra  onde  esta  o  Emperador  (seia  na  corte 
ou  arrayal),  depois  que  o  Abuna  a  sagrou,  que  nenhum  outro  dos 
de  Ethiopia  o  pode  fazer,  e  a  poem  nalgnna  igreia  ou  parte  decente 
e  dali  a  manda  levar  o  Emperador  com  musicas  e  festas,  acom- 
panhada  de  toda  a  nobreza  ate  o  mosteiro^  se  esta  perto,  e  se  longe, 
saiem  hum  peda^o  da  cidade  ou  do  arrayal  e  dali  se  tornSlo,  e  os 
frades  passSo  adiante  com  a  gente  que  por  sua  deva^Slo  os  quer 
acompanhar.  E  sempre  o  Emperador  da  pello  menos  alguma  pe^a 
rica  com  que  a  pedra  va  cuberta  e  levaa  algnm  sacerdote  na  ca- 
bega  e,  se  algum  diacono  Ihe  ha  de  aiudar,  elle  Iha  poem  na  ca- 
be^a  e  tira,  porque  o  diacono  nSio  chega  com  as  maos  ainda  que 
r.224,y.  a  pedra  esta  envolta  em  panos  de  seda,  so  toma  do  que  caie  '''de 
huma  banda  e  outra  do  pano  de  que  vai  cuberta.  Pouco  tempo  ha, 
estando  eu  com  o  Emperador,  entrarao  muitos  frades  de  hum  mo- 
steiro  grande  que  esta  em  huma  ilha,  que  chamao  Cana  da  alagoa 
de  Dambia  e  disserSo  que  acabarao  de  reedificar  huma  igreia,  que 
estava  caida  e  que  queriao  mudar  o  orago  que  antes  era  de  hum 
martir  por  nome  CharcSs,  e  queriao  que  agora  fosse  de  Jesu,  e  que 
quando  se  pos  naquella  igreia  a  primeira  pedra  dara,  a  mandara 
levar  com  festa  des  da  corte  o  Emperador  que  entao  era;  que  ia 
que  mudavao  agora  o  orago,  Ihe  pediao  quisesse  mandar  que  esta 
pedra  tambem  se  tirasse  da  corte  com  festa  e  que  pera  isso  a  trou- 
xerao.  E  assim  o  mandou  logo  e  deu  huma  peQa  de  borcado  com 
que  a  cobrirao,  e  sahio  toda  a  cavalaria  e  muita  gente  de  pe  com 
suas  armas  levando  diante  as  charamelas  e  atabales  do  Emperador 
e  a  acompanharao  bom  pedaQO. 

As  igreias  antiguamente  tinhao  muito  riquos  omamentos,  como      xo.  oiim  ante  in- 
affirma  Francisco  Alvares  fol.  18,  falando  da  igreia  do  mosteiro  de  c^«ione8  Mauronim 

'  ^  omamenta  Ecclesiae 

Bisan,  onde  diz  que  vio  em  huma  festa  as  crastas  armadas  de  bor-  et.vasa  aacra  yalde 

j  ij  ••«1«  rj  «^  j      pretiosiora     fuerunt 

cados  e  veludos  e  em  pricissao  levavao  os  irades  muitas  capas  do  ac  modo  sunt. 

mesmo  e  sincoenta  cruzes  de  prata  e  tinhao  hum  grande  calis  de 

ouro;  e  noutras  igreias  tambem  vio  muito  disto.  Mas  agora  quasi 

todas  sao  pobres,  porque,  como  os  Mouros  forao  senhores  da  mor 

parte  de  Ethiopia  12  ou  15  annos  em  tempo  do  mouro  Granh,  que 

matarao  os  Portugueses,  como  dissemos  no  fim  do  primeiro  livro, 

e  depois  os  Turcos  e  os  gentios   chamados   Gallas  fizerao   muitas 

entradas  e  entre  elles  mesmos  ouve  tambem  grandes  guerras,  ficarao 

as  igreias  roubadsus,  suas  rendas  desminuidas  e  os  Emperadores  e 


496  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

principes  tam  quebrados  que  as  nao  puderSlo  tornar  a  por  no  estado 
antiguo.  Em  luguar  de  sinos  tem  penduradas  humas  pedras  de  hum 
palmo  ou  menos  *de  largo,  4  dedos  de  grosso  e  cumpridas,  em  que  f-  225- 
dando  com  outras  pequenas  se  ouve  muito  longe  e  soao  de  raaneira 
que  a  quem  nSo  soubera  que  erao  pedras  Ihe  puderao  parecer  sinos ; 
e  nalguns  mosteiros  em  luguar  destas  pedras  tem  tres  taboas  en- 
fiadas,  que  dando  huma  na  outra  soao  muito. 
XI.    Aethiopes  Quanto  ao  respeito  e  reverencia  que  tem  aos  templos  he  grande 

suxnmam      reveren-  .  ■*        t       ^  ^^»».  ^  ^«.ji 

tiam  templis  adhi-  ^  assim  quando  chegao  a  porta,  tirao  os  ^apatos  e  entrao  descal^os 
bent;  omnes,  ad  Im-  ^^e  o  mesmo  Emperador  e,  em  quanto  se  dis  a  missa,  gxiardao  muito 

peratorem  usque,  di- 

scaiceati  iUuc  in^e-  silencio,  nao  rim  nem  falao  huns  com  outros  e  de  nenhuma  maneira 

^*"cti*SacrifiS^a°ri-  c^spem  nunca  dentro,  nem  deixam  chegar  caes  da  serca  pera  den- 

su,  a  locutionibus,  tro.  Se  aos  que  vao  a  cavalo  Ihes  he  necessario  passar  por  diante 

nent;  insidentes  e-  ^^  alguma  igreia,  se  apeao  ordinariamente  antes  de  chegar  a  ella, 

quotsiante^xaesias  ^  ^^^  p^  ^^^  passarem  hum  pedaco.  E  assim,  vindo  o  Emperador 

transeant,   ad  pedes  x-  x-  *-         t  mt 

descendunt.  Quaies  Seltan  Sagued  com  toda  a  corte  a  nossa  igreia  em  outubro  de  161 8, 
doncs^exirib^uerft  ^  apeou  hum  peda^o  antes  de  chegar  a  ella,  e  na  porta  mandou 
Seltftn  SagAd  ecde-  j^mn  pavem  Ihe  tirasse  os  capatos  e  beijou  a  porta,  e  entrando  de- 

siis  a  Patribus  S.  I.  ^  ^  ^  ^  J  r  » 

extructis.  scal^o  fes  ora^ao  em   pe,  mostrando  muita   devacjao,  e  elle  e   os 

fidalgos  que  conbirao  na  igreia  ouvirao  missa  e  prega^ao  com  si- 
lencio  e  tudo  louverao  muito ;  e  como  sahio  o  Emperador  vio  tambem 
nossa  casa  e  comeo  nella  e  depois  nos  deu  hum  sitio  muito  bom 
perto  das  terras,  que  quando  entrou  no  imperio  nos  tinha  dado  pera 
que  fizessemos  outra  igreia  a  nosso  modo,  que  a  que  tinhamos  era 
pequena  e  ao  modo  da  terra,  e  nos  acresentou  as  terras  que  estao 
aroda  do  sitio,  e  porque  neste  Dambia  nao  ha  madeira  que  preste 
senao  em  suas  igreias,  mandou  que  nos  cortassem  dellas  cedros  mui 
fermosos  e  deu  por  isso  boa  esmola,  e  disse  que  nao  metessemos 
na  igreia  outra  sorte  de  madeira;  e  seu  irmao  Eras  Sela  Christos 
offereceo  todo  o  gasto  pera  ella,  pedindonos  muito  que  nao  metes- 
semos  nos  de  nossa  casa  cousa  alguma  e  que  tambem  faria  os  or- 
namentos  de  borcado,  veludo  e  damasco  e  daria  muitas  terras. 
xa.  Describitur  Vendonos  o  deseio  grande  que  o  Emperador  tinha   de   ver   o   f-225,v. 

ad™ «u^  aeae^artr  "^^^^  ®  tra^a  de  nossas  igreias,  procuramos  de  fazer  huma  *a  mi- 
normam      aedifica-  Uior   que   nos    foj    possivel,  toda  de  cantaria,  ainda  que  pequena, 

tum,  quodque  Impe-  j   n         *      ^  01  j      1 

rator  praetiosis  do-  porque  o  corpo  della  nSo  tem  mais  que  28  palmos  de  largo  e  72 
nariis  et  praediis  di-  ^jg   comprido,  a  capella  24  de  largo  e  trinta  e  dous  de  comprido ; 

com   tudo  isso,  porque  ella  e  a  sacristia   sao   de  pedra  vermelha 
muito   boa,  o  arco   e   corpo  de  pedra  muito  alva   e   bem  lavrada. 


LIVRO  II,    CAPITULO  XV.  497 

a  frontaria  e  portas  travesas  omadas  com  8  colunas  acanelladas 
e  os  pedestrais,  capiteis  e  frizos  com  toda  a  demais  obra  lustrosa 
e  muito  bem  lavrada,  Ihes  contenta  tanto  a  todos  os  que  a  vem, 
que  dizem  que  nao  he  obra  da  terra  senSo  do  ceo.  Tem  seu  choro, 
degrades  [sic]  e  obra  de  macenaria ;  huma  pia  pera  bautizar  e  duas 
de  agoa  benta  muito  bem  lavradas;  muito  clara  com  ianellas  de 
huma  e  outra  parte  bem  ornadas  por  fora  com  rosas  e  molduras 
na  mesma  pedra;  he  de  terrado  e  sobre  o  parapeito  por  remates  tem 
muitas  colunas,  humas  com  o  remate  de  piramide  sobre  o  capitel, 
e  outras  com  bolas  entresachadas,  e  no  meio  das  colunas  e  remates 
da  frontaria  tem  huma  crus  muito  fermosa  com  hum  pe  lavrado  na 
mesma  pedra  com  muita  la^aria.  Tem  tambem  sua  torre  na  banda 
direita  da  frontaria  com  hum  sino  de  cobre  arresoado,  que  nos  veio 
da  India.  Acabouse  neste  mar<;o  de  1620:  logo  a  veio  ver  o  Empe- 
rador  com  toda  sua  corte  de  dous  dias  de  caminho,  onde  agora 
reside,  e  ouvio  missa  e  pregacjao  sobre  aquellas  palavras  do  Evan- 
gelista  sam  Lucas  «  Hodie  huic  domui  salus  facta  est  » ,  e  depois  a 
vio  muito  devagar,  sobindo  duas  veses  ao  terrado  e  louvandoa  muito, 
e  deseiando  de  aiuntar  aqui  todos  os  Portugueses,  pera  que  ficasse 
a  igreia  mais  acompanhada ;  e  deu  logo  pera  ella  a  melhor  alcatifa 
que  tinha,  e  100  crusados  pera  hum  ornamento  e  determinou  em 
outro  melhor  sitio  fazer  huma  g^ande  poUa  tra<;a  desta,  e  por  nos 
fazer  merce  e  honrra,  pos  a  sua  tenda  dentro  de  nossa  cerca  e  ficou 
a  dormir  aqui  aquella  no^rte. 

Em  muitos  altares  de  suas  igreias  nSo  custumSo  por  imagens,       13.    Aluria   ple- 

r  •     *j  11  •   ^-  nimque  sacris  ima- 

f.  226.  porque  sempre  os  fazem  quasi  no  meio  Ma  capella,  maspintao  nas  ginibus  carent:  pi- 
paredes  muitas  de  varias  cores,  particularmente  de  vermelho,  branco,  c*i*^8    tamen   bene 

^  ^  multia  panetea  tem- 

verde  e  amarello,  que   de  preto  usflo  pouco,  nem  folgao  com  esta  plorum  sunt  omati. 

1       ji      ji  •  ji      Ouam  absona  de  ta- 

cor,  e  assim  nunca  pmtao  rosto  preto   senao  he  do  demonio  e  de  ^^^  picturis  Urreta 

huns  gentios  que   chamao  Gallas;   o  rosto   de   seus  santos  pintao  narraverit. 

sobre  o  vermello.  Donde  se  ve  quam  ridicula  fic^ao  he  a  que  pinta 

frei  Luis  de   Urreta  p.  557  falando   das  imagens  de  Ethiopia  por 

estas  palavras :  <  Todas   las   imagines  son  de  pincel  e  todas  ellas 

c  son  negras,  de  suerte  que  a  Dios  y  a  Christo  y  a  la  Virgen.  a 

<  los  Angeles  y  a  todos  los  santos  pintan  negros.  Pintan  la  passion 

c  de  Christo  y  la  cena,  y  en  ella  Christo  y  los  Apostoles  son  ne- 

c  gros  y  los   ludios,  sajones  y  Judas  blancos ;  pintan  a  S.  Mignel 

c  negro  y  al  demonio,  que  esta  baxo  de  sus  pes,  blanco;  y  lo  que 

c  causa  risa  es  ver  pintado  hum  juizio  final,  donde  Dios  y  los  An- 

C.  BiccARi.  ^#r.  AeA/,  Scn'//,  oec.  in*d.    —  II.  63 


498  HISTORLA.  DE  ETHIOPIA 

«  geles  y  todos  los  bienaventurados  estan  negros ; 

<  condemnados  en  el  infierno  mui  blancos,  porque 

<  negros,  quierem  que  los  santos  sean  semejantei 
t  lo  tienem  por  el  mejor  color  ».  Isto  dis  o  Autor 
quem  o  informou  tinha  vontade  de  contar  patranh 
he  grande ;  nem  a  gente  desta  terra,  particularmem 
tam  pretos,  de  narizes  ama^ados  e  bei^os  tam  gro; 
os  fas,  senao  comummente  muito  bem  estreados,  d< 
delgados,  narizes  proporcionadas  e  olhos  grandes 
dissemos  no  cap.  i  do  i"  livro,  ainda  que  em  alg 
o  Emperador  senhorea,  aia  Cafres  feos,  a  quem  os 
escravos. 


f  «6.V.  CAPITULO  XVI. 

Do  estillo  e  ceremonias  que  os  Ethiopes  guardao  nos 
enterramentos  e  do  erro  que  tem  acerca  do  Purga- 
torio. 


Ja  que  temos  visto   o  respeito  e  reverencia  que   os  Ethiopes      i.Dcacribunturfu^ 

.  ,  '    i^  j.         i_  j  nebrcs  ritus  pro  vi- 

tem  aos  templos,  sera  bem  dizer  brevemente  o  modo  e  ceremonicts  t»  funcds  de  plebe: 
com  que  enterrSo  seus  defuntos.  Deixando  os  extremos  que  fazem  i«>ronicorporainEc- 

^  ^  clesiarum     daustris 

em  suas  mortes  os  homens,  deitandose  pello  chSlo,  e  as  molheres  ar-  humantur. 
rancando  seus  cabellos  e  arranhando  o  rosto,  porque  disso  e  do 
modo  com  que  chorao  falamos  no  cap.  23  do  i*^  livro,  tratando  de 
alguns  custumes  de  que  usSo;  deixando  poes  isto:  como  hum  morre, 
se  he  homem  ordinario,  tomSo  dous  paos  compridos  e  atravessSo 
no  meio  outros  curtos  a  modo  de  escada  e  ali  o  deitSlo  amortalhado 
e  cobrem  com  hum  pano  de  algodao  qualquer  que  achSlo  e  levandoo 
quatro  homens  nos  hombros  o  acompanhSlo  seus  pcirentes  e  amigos 
homens  e  molheres  chorando  a  vozes  e  dizendo:  «  Ay  de  nos  que  fu- 
gio,  ay  de  nos  que  fugio»,  e  outras  cousas  semelhantes,  Pello  que 
estando  eu  huma  ves  com  o  emperador  Seltan  Cegued  no  mais  alto 
de  seus  pa^os,  me  disse  o  mordomo :  Nao  ouve  V.  R.  o  que  dizem 
aquelles?  Levao  amarrado  o  defunto  e  elles  dizem  que  fugio.  Como 
chegao  a  igreia  ou  mosteiro,  onde  se  ha  de  enterrar,  saiem  a  porta 
os  clerigos  ou  frades  (que  a  sua  casa  de  nenhuma  maneira  vao)   e 


500  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

trazem  crus  e  turibolo,  mas  nSlo  agoa  benta,  que   nao   us2lo   della 

nos  enterramentos;  e  hum   vem  vestido  como   quando  quer  dizer 

missa  e  rez^olhe  muitas  ora<;Oes  e  logo  o  enterrSlo  na  crasta  ou  al- 

pendre  da  igreia. 

3.  Ezequiarum  Se  o  defunto  era  homem   nobre  ou  fidalgo,  *o   levSo  em   seu    f.  227. 

busl^casaacrikLhu-  mesmo  leito  ou  outro  estriato,  amarrando  de  baixo  dous  paos  com- 

matione    monacho-  pridos  e  ensima  huns  arcos  delirados,  que  cubertos  com  hum  pano 

rum :  superstitio  ali-   ^  . 

quorum  risu  digna.  se  parecem  com  nossa  tumba,  e  estes  ordinariamente  se  mandSlo 

enterrar  em  mosteiros,  e  algumas  veses  os  levSlo  hum  dia  e  dous 
de  caminho  e  os  frades  saiem  hum  peda^o  fora  do  mosteiro  ao  re- 
ceber,  indo  hum  revestido  com  crus  e  turibolo  diante  e  Ihe  rezao 
algumas  ora^oes  e  assim  o  trazem  a  igreia  onde  Ihe  cant^lo  outras 
e  o  enterrao  dentro,  como  eu  vi,  e  alguns  perto  do  altar,  como  me 
affirmarSlo  os  frades. 

Pera  os  frades  tem  officio  muito  mais  comprido,  que  pera  os 
seculares  e  enterrSonos  com  seus  mesmos  habitos,  cobrindolhes  o 
rosto  com  o  capello  e  de  poes  os  envolvem  em  couro  delgado  que 
fazem  de  pelles  de  cabra,  depois  de  consertadas  e  tingidas  de  ver- 
melho ;  e  alguns  a  quem  elles  tem  por  mais  santos,  a  que  chamSlo 
BataOis,  pedem  antes  de  moner  que,  quando  os  enterrarem,  Ihes 
ponhSlo  na  cinta  huma  faca,  e  assim  o  fazem,  porque  Ihes  tem  grande 
respeito  e  elles  o  pedem  com  muita  instancia,  porque  como  esti- 
verSo  sempre  tam  misturados  com  os  judeos  ate  o  tempo  deste  Em- 
perador,  entre  outras  muitas  fabulas,  que  Ihes  meterao  em  cabe^a 
os  Rabinos,  huma  foj  a  que  elles  fingem  sobre  aquellas  palavras  do 
psalmo  103:  «  Draco  iste,  quem  formasti  ad  illudendum  ei  »,  dizendo 
que  criou  Deos  N.  Senhor  no  principio  do  mundo  dous  peixes  de 
immensa  grandeza,  macho  e  femea:  mas  porque  vio  que  se  por 
gera^ao  se  multiplicassem,  impediriao  a  navegaijao,  matou  a  fe- 
mea  e  a  guardou  salgada  pera  com  ella  dar  hum  esplendido  con- 
vite  aos  iustos  de  poes  da  resurreic^ao;  entre  tanto  folga  com  o 
macho  *brincando  com  elle  tres  horas  cada  dia,  e  dizem  que  isto  f.227,T. 
significao  aquellas  palavras  do  psalmo ;  o  que  crem  de  maneira  al- 
guns  destes  frades  ignorantes  que  rogao  muito  os  enterrem  com 
alguma  faca,  pera  terem  com  que  cortar  daquelle  peixe,  quando 
Deos  os  convidar  depoes  da  resurrei^ao. 
3.    Fimerum   so-  Quando  morre  o  Emperador,  o  levao  tambem  em  seu  leito  con* 

lemnia  pro  Impera-  .j  jj^t_  j  i.^ 

toribua:    preces    et  sertado  a  modo  de  tumba  com  grande  acompanhamento,  porque  nao 
eieemosynae  in  pau-  §5  yao  os  principes  e  grandes,  mas  todos  os  senhores  nobres  que 


LIVRO   II,  CAPITULO  XVI.  50 1 

se  achSlo  perto,  todos  cubertos  de  doo  e  as  cabe^as  rapadas,  como  peres  die  30*,  40*, 
castumao  fazer  na  morte  dos  paes,  pera  mostrar  sua  grande  tristeza.  niodo  aimivex«ariae 
Eu  vi  levar  a  enterrar  ao  principe  filho   deste   emperador  Seltan  ««equiaeperagantur. 
(^gued,  que  se  chamava  Abeitahum   Canafra  Christos,  que  era  ia 
de  20  annos,  e  forao  donde   morreo  hum  dia  de  caminho   pera  o 
meter  em  huma  ilha  que  chamSlo  Cana  da  alagoa  de  Dambia,  onde 
.  esta  hum  grande  mosteiro.  Acompanhavaono  toda  a  cavalaria  da  corte 
e  muitas  senhoras,  todos   cubertos  de  doo  e  diante  as  bandeiras  e 
atabales  do  Emperador  tangendo  som  de  tristeza. 

Em  o  dia  do  enterramento,  nao  s6  do  Emperador,  mas  de  qual- 
quer  homem  grande,  se  dSo  muitas  esmolas  e  poUo  menos  na  igreia 
onde  se  enterra  Ihe  rez^o  cada  dia  ate  os  30  os  psalmos  de  David 
enteiramente  e  outras  oragOes  (que  missas  pellos  defuntos  nSo  as 
dizem,  segundo  me  afiirmarao  alguns  frades),  e  damlhes  suas  esmo- 
las  por  isso;  e  no  ultimo  dos  30  dias  matao  vacas  e  dao  de  comer 
aos  frades  e  a  muitos  pobres  que  sempre  ali  se  aiuntao,  e  aos  40  dias 
levao  a  igreia  muitas  candeas  e  incenso  e  matao  muitas  mais  vacas 
e  dao  grandes  esmolas.  Tambem  dao  aos  80  dias,  e  quando  se  enche 
o  anno,  mas  nao  tantas,  e  a  isto  chamao  Tascar,  que  quer  dizer  lem- 
bran^a,  e  Fetat,  qne  significa  soltura.  Esta  lembran^a  fes  muito 
solemne  por  dom  Christovao  da  Gama,  no  dia  que  se  comprio  o  anno 
de  sua  morte,  que  foi  a  28  de  agosto  de  1542,  o  emperador  Ata- 
f.  228  naf  *Qagued,  que  primeiro  se  chamava  Glaudios,  scilicet  Claudio, 
e  pera  que  fosse  com  mais  aparato  como  pedia  o  agradecimento 
que  deseiava  mostrar  a  dom  Christovao  pello  que  por  elle  tinha 
feito,  mandou  langar  pregao  poUas  terras  alguns  dias  antes,  que 
todos  os  pobres  que  ouvesse  se  iuntassem  ali  aquelle  dia,  e  iunta- 
raose  mais  de  seis  mil  (segtindo  affirmou  hum  Portugues  que  estava 
presente),  e  armaraolhes  muitas  tendas  no  campo,  onde  por  man- 
dado  do  Emperador  se  Ihes  deu  splendidamente  de  comer  e  de 
vestir.  Fes  tambem  que  viessem  seis  centos  frades  ou  mais  e  can- 
tavao  com  muita  solemnidade  os  psalmos  e  ora^Oes  que  tem  pera 
este  officio,  e  mandoulhes  dar  grossas  esmolas. 

Enterravaose  antiguamente  os  Emperadores  no  reino  de  Amhara,  4«  Priscis  tempo- 
nao  no  monte  onde  se  guardavao  seus  filhos  que  se  chama  Guigen  ratorumhumabantur 
Amba,  senao  em  huma  ijrreia  que  chamao  Mecdna  Celace,  ou  em  ^^^^^^  Eoaesia- 

'  &  n  fmQ  MecAna  Selasae 

Atione  Qamanam,  que  ambas  erao  sepulturas  dos  Emperadores,  como  et  Ationft  SamanAm 
se  dis  na  historia  do  emperador  Onag  Qagued;  mas  depois  que  o  <jJiae"^m  tempore 
mouro  Granh  queimou   estas  duas  igreias,  que  seria  pellos  annos  Qranh  diruta  et  com- 


502  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

bttsu  fulssent  nullua  de  1530  pouco  mais  ou  inenos,  nunca  mais  enterrarfto  ali  sen^o  em 
prohumationeimpe-  outras:  o  emperador  Onag  Qagued  em  hum  monte  do  reino  de  Tigre, 
ratonun:     notantur  q^^  chamao  Amba  Damo  tam  forte  que  nfto  pode  subir  assima  senao 

locaubialiquieorum  ^  ^  x- 

aepulti  fuerunt.         por  cordas,  e  la  esta  hum  mosteiro  de  frades  muito  grande;  a  seu 

filho  o  emperador  Atanaf  Qagued  enterrarao  em  huma  igreia,  que  se 
chama  Fedebaba  Mariam,  que  elle  edificara  no  reino  do  Amhara; 
e  a  seu  irmao  o  emperador  Adamas  Qagued  tambem  na  mesma 
igreia ;  ao  filho  deste  o  emperador  Malac  Qagued  em  hum  mosteiro 
que  esta  na  iiha  que  chamSo  Cana  da  alagoa  de  Dambia ;  a  seu  so- 
brinho  o  emperador  Zadenguil  enterrarao  em  huma  igreia  piquena 
de  Dambia;  e  depoes  de  10  ou  12  annos  o  emperador  Seltan  (^- 
gued  seu  primo  tresladou  seu  corpo,  que  se  achou  enteiro,  pera 
*o  mosteiro  daquella  ilha  Cana.  Ao  emperador  Jacob  enterrarao  no  f.228,v. 
reino  de  Gojam  em  huma  igreia  que  chamao  Nazareth.  Ao  empe- 
rador  nao  somente  na  igreia  em  que  se  enterra  Ihe  rezao  os  psal- 
mos  e  tudo  o  mais  que  se  custuma,  mas  tambem  em  todas  as 
ig^eias  do  imperio  Ihe  fazem  seu  officio  com  a  maior  solemnidade 
que  podem. 
5.  Aethlopea,  etsi  Com  darem  os  Ethiopes  tantas  esmolas  e  fazerem  rezar  tanto 

moBynaa  et  preces  P^r  ^eus  defuntos  e  a  este  officio  chamarem  Fetat  scilicet  soltura, 
fundant,  tamen  eos  ^^  q^g  ^^  ^  entender  que  depoes  desta  vida  podem  ser  soltos  de 

admissa  ezpiare  de-  ^  ^  xr  *  . 

bere  negant.  Proiiza  seus  pecados  poUas  esmolas  e  ora^oes,  com  tudo  isto  ha  muitos 
de^^e  coraiQ^SkitAn  ^^®  negao  o  Purgatorio,  tanto  que  em  humas  disputas  que  tive  com 
Sagftd  Auctor  habuit  qs  principaes  letrados  diante   do   emperador  Zadeng^il  em  junho 

cum  quodam  mona- 

cho.  de  1604,  dizendo   eu   a   hum  proposito  que  avia   Purgatorio,   hum 

delles,  que  se  chama  Azax  Zadenguil,  se  rio  muito  e  com  hura  modo 

como  se  eu  dissera  hum  absurdo  nunca  ouvido ;  disselhe  que  como 

estranhava  tanto  o  que  elles  mesmos   affirmavao   com  as  obras   e 

confessavao  com  palavras,  poes  por  seus  defuntos  davao  tantas  esmo- 

las  e  faziao  tantas  ora^oes  e  a  isso  chamavao  Fetat  soltura ;  que  se 

nao  podiao  ser  soltos,  nem  Ihes  aproveitavao  as  esmolas  e  ora^oes, 

peraque  £ts  faziao  e  Ihe  punhao  esse  nome  de  soltura?  Respondeo 

que  o  faziao  pera  que  o  fato  do   defunto  se  empregasse  bem.  Disse 

eu  que  bem  empregado  estava  em  sua  molher  e  filhos  que  muitas  veses 

erao  pobres  e  que  ia  que  aos  mortos  Ihes  nao  aproveitava,  milhor 

fora  offerecer  aquello  pellos  vivos  pera  que  em  quanto   qua  estao 

alquan^assem  algumas  merces  do  Senhor.  Respondeo  que  como  o 

fato  se  gastasse  bem  em  morte  e  em  vida  se  podia  fazer,  mas  que 

Ihe  declarasse  que  cousa  era  Purgatorio. 


LIVRO   II,  CAPITULO    XVI.  503 

Vendo  eu  que  nSo  queria  responder  a  proposito,  Ihe  disse  que 
f.  229.  Purgatorio  he  hum  certo  lugnar  em  que  *como  em  prizSlo  estSio  as 
almas  depoes  desta  vida  purgando  o  que  qua  deixarSlo  pera  que 
depoes  de  puras  e  limpas  entrem  na  bemaventurauQa  do  ceo,  onde 
com  nodoas  ninguem  pode  entrar.  Mostraime,  disse  elle,  de  que  lu- 
guar  da  Escriptura  tirais  isso.  Pergunteilhe  eu  entao  se  tinhao  por 
santos  os  livros  dos  Macabeos  como  aos  demais  livros  da  Sagrada 
Escritura.  Respondeo  que  sy.  «  Poes  no  2**  livro  dos  Macabeos  ca- 
pitulo  1 2  (disse  eu)  se  conta  que  Judas  Macabeo  mandou  a  Jerusa- 
lem  12000  dragmas  de  prata  pera  que  se  offerecessem  sacrificios 
polos  que  morrerSo  em  huma  guerra,  e  dis  logo  a  Escriptura: 
*  Sancta  et  salubris  est  cogitatio  pro  defunctis  exorare  ut  a  pec- 
catis  solvantur  * ;  logo  depoia  desta  vida  ha  algum  luguar  em  que 
as  almas,  que  qua  nSio  se  acabarSlo  de  purgar  e  satisfazer  por  seus 
pecados,  estSo  como  em  priz^o,  ate  que  ou  com  as  penas  que  ali 
padecem,  ou  com  os  sacrificios  e  oragoes  que  os  vivos  offerecem 
por  ellas,  acabem  de  satisfazer:  que  de  outra  maneira  debalde  se 
offerecerao  sacrificios  e  oracjOes  e  a  Escritura  erra  louvando  se- 
melhantes  oraijOes;  e  a  este  luguar  chamamos  nos  Purgatorio  ». 

Como  elle  vio  que  o  luguar  convencia,  disse :  <  Daime  esta  pa- 
lavra  Purgatorio  no  evangelho  ou  em  s.  Paulo,  que  quanto  isto  nao 
hei  de  ouvir  ».  Respondi  eu,  «  que,  poes  confessava  que  estes  livros 
erao  santos,  porque  os  nao  avia  de  ouvir  e  crer  o  que  ensinavao  [?] » 
E  porfiando  elle  que  Ihe  desse  esta  palavra  no  evangelho  ou  em 
s.  Paulo,  Ihe  disse  que  bem  sabia  elle  que  nem  tudo  o  que  Chri- 
sto  N.  Senhor  ensinou,  nem  todas  as  maravilhas  que  fes  estao  escri- 
tas  no  evangelho;  poes  dis  s.  Joao  no  fim  de  seu  evangelho  que, 
se  tudo  se  ouvera  de  escrever,  nao  couberao  os  libros  no  mundo; 
por  onde  que  por  ventura  declarasse  Christo  N.  Senhor  o  nome  de- 
ste  luguar  a  que  nos  chamamos  Purgatorio  e  que  nao  se  escre- 
vesse,  mas  como  quer  que  seia,  basta  que  se  tire  da  Sagrada  Escri- 
f.229,v.  tura  *que  ha  tal  luguar  e  pera  vos  satisfazer  no  evangelho  e  s.  Paulo, 
por  S.  Math.  cap.  1 2  dis  Christo  N.  Senhor :  que  ha  pecado  que  se 
nao  perdOa  nem  neste  mundo  nem  no  outro.  Logo  seg^esse  (falando 
em  boa  prudencia  como  em  tudo  falava  o  Senhor)  que  ha  pecados 

# 

que  se  perdoao  no  outro  mundo  poUas  ora^Oes  e  sufragios  da  Igreia 
e  pollo  conseguinte  algum  luguar  onde  estao  as  almas  em  que  pos- 
sao  ser  aiudadas  com  estes  suffragios;  o  que  ensinao  muitos  dou- 
tores  e  Santos  neste  luguar,  e  o  coUigem  tambem  do  que  o  Senhor 


504  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

disse,  Matheus  5  e  Lucas  12:  «  Amen  dico  tibi:  non  exies  inde  donec 
reddas  novissimum  quadrantem  ».  Tambem  sao  Paulo  i  Corinth.  3 
diz  que  provara  o  fogo  qual  seia  a  obra  de  cada  hum  etc.  «  Unius- 
cuiusque  opus  quale  sit  ignis  probabit;  si  cuius  opus  manserit 
quod  superaedificavit,  mercedem  accipiet,  si  cuius  opus  arserit,  de- 
trimentum  patietur,  ipse  autem  salvus  erit,  sic  tamen  quasi  per  ignem  > . 
E  no  cap.  15  dis:  «  Quid  facient  qui  baptizantur  pro  mortuis,  si 
mortui  non  resurgunt  ?  ut  quid  baptizantur  pro  illis  ?  »  Aqui  fala  o 
Apostolo  do  bautismo  das  lacrimas  e  da  penitencia  e  quer  dizer: 
Que  farao  os  que  orao,  jeiuSo,  dSlo  esmolas  e  se  affligem  poUos 
mortos,  se  elles  nao  resocitao?  No  que  claramente  mostra  sao  Paulo 
que  depois  desta  vida  ha  luguar  em  que  estas  cousas  aproveit2lo 
as  almas. 

A  tudo  isto  respondeo  rindo  que  Ihe  nao  satisfazia.  «  Pois  se  a 
Escritura,  que  esta  tam  clara  (disse  eu)  vos  nao  satisfaz,  que  cousa 
vos  ha  de  satisfazer?  Dizei  porque  vos  nao  satisfas,  ou  respondei 
me  a  isto :  Pode  hum  homem  morrer  com  peccados  veniaes,  ou  sem 
acabar  de  satisfazer  pellos  morta^s  que  confessou?  >  Nao  queria  re- 
sponder  a  isto,  ate  que  o  Emperador  Ihe  disse :  «  Porque  nao  re- 
spondeis  ?  nao  he  certo  que  pode  hum  homem  morrer  acabante  de 
confessar  muitos  peccados  mortaes?  »  Respondeo  entao  que  si,  Disse 
eu :  «  Poes  este  homem  nao  vai  ao  inferno  pollos  peccados  veniaes, 
«  que  por  causa  tao  pouca  nao  condemna  Deos  a  pena  etema,  nem 
«  *polla  penitencia  que  avia  de  fazer  pera  satisfazer  pellos  pecca-  f-  «3o- 
«  dos  mortaes  que  confessou,  que  ia  aquelles  nao  merecem  inferno, 
«  poes  o  confessor  o  absolveo  delles?  E  dis  Christo  N.  Senhor.  O 
«  que  soltardes  na  terra  sera  solto  no  ceo.  Nem  tambem  este  tal 
«  homem  pode  entrar  no  ceo,  ou  morresse  com  s6s  peccados  ve- 
«  niaes,  ou  so  com  nao  ter  satisfeito  poUos  mortaes  que  confessou, 
«  porque  com  estas  dividas  e  nodoas,  ainda  que  seiao  de  peccados 
«  muito  leves,  nao  se  pcde  entrar  no  ceo,  como  dis  sam  JoSo  no 
«  Apocalipsi  c.  2 1 :  *  Non  intrabit  in  eam  aliquid  coinquinatum  aut 
«  abominationem  faciens  et  mendacium  '.  Como  pode  ninguem  en- 
«  trar  com  os  pes  sujos,  ainda  que  nao  seia  mais  que  com  o  poo 
«  de  peccados  veniaes,  naquella  santa  cidade  Jerusalem  celestial, 
«  onde  as  pracas  sao  de  ouro  muito  puro  e  o  mais  de  pedras  pre- 
«  ciosas.  Logo  certo  he  aver  algiim  luguar  onde  depoes  desta  vida 
«  se  purgnem  e  alimpem  as  almas  pera  entrarem  no  ceo,  e  a  este  lu- 
«  guar  chamamosno  o  Purgatorio  ». 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVI.  505 

Entendendo  muito  o  Emperador  a  verdade,  disse  antes  que  o 
outro  respondesse :  «  Pera  que  gastamos  mais  tempo  nisso  ?  O  que 
<  deseio  saber  he  se  as  almas  dos  Santos  estSio  ja  no  ceo  gozando 
«  da  gloria  ou  esperao  no  paraiso  terreal  ou  em  outra  parte  ate  o 
«  dia  do  juizo,  pera  que  iuntamente  com  seus  corpos  vao  gozar 
«  della  ».  E  assim  deixamos  a  materia  do  Purgatorio  e  passamos  a 
estoutra  em  que  debatemos  hum  bom  pedacjo,  e  Ihes  mostrei  com 
luguares  da  Esrritura  e  com  rezoes  que  as  almas  dos  Santos  estao  no 
ceo  gozando  da  gloria  e  as  dos  maos  no  infemo.  E  outras  muitas 
vezes  se  ofFereceo  falar  sobre  esta  materia,  ainda  diante  do  Empe- 
rador  Seltan  Qagued,  como  dissemos  no  cap.  6. 

Bem  sei  que  frei  Luis  de  Urreta  no  cap.  15  de  suo  2^  livro  af-      6.  Demonstrantar 

n  .^  ^       .  .   ^  j.^  falaa  ct  rieu  digna 

nrma  muitas  cousas  contrarias  as  que  aqui  temos  dito,  como  que,  ^^^  acripsit  Urreta 
quando  morre  algnm,  vao  por  elle  4  sacerdotes  casados  que  servem  ^  funebri  ritu  Ae- 
na  parochia  com  crus,  agoa  benta  e  turibolo  e  rezandolhe  algumas 
f.23o,v.  oragOes  *o  levao  a  enterrar  e  chegando  a  igreia  o  poem  a  porta  e 
alj  saem  todos  os  sacedotes  virgens  e  Ihe  cantao  e  botao  agoa 
benta  e  incensao  e  logo  o  levao  ao  cemeterio,  onde  o  enterrao 
(porque  em  nenhum  tempo  se  ha  enterrado  defunto  dentro  das 
igreias,  senao  os  que  morrerao  com  opiniao  de  santos  e  os  mar- 
tyres),  e  ao  outro  dia  dizem  missa  no  mesmo  cemeterio  na  capella 
que  nelle  sempre  ha,  porque  em  as  igreias  nunca  se  dis  missa  de 
defuntos,  mas  todas  as  2"  feiras  do  anno  (se  nao  estao  ocupadas  com 
algum  santo  dos  que  elles  rezao)  todo  o  officio  divino  he  de  defun- 
tos  no  cemeterio,  porque  os  Ethiopes  entre  todas  as  na^oes  da  chri- 
standade  sao  devotissimos  das  almas  do  Purgatorio,  e  os  seculares 
nao  dao  esmola  poUas  missas  nem  pagao  enterramentos,  nem  por 
ministerio  nenhum  ha  obriga^ao  de  Ihes  dar  nada.  Sustentaose  das 
terras  que  o  Preste  Joao  Ihes  da,  que  sao  muitas  e  mui  grandes; 
s6  tem  na  porta  da  igreia  huns  cepos  e  gazophilacios,  onde  os  que 
querem  botao  esmolas,  e  estas  se  repartem  entre  os  sacerdotes.  Os 
Emperadores  tambem  se  enterrao  em  hum  cemeterio  do  monte  de 
Amhara,  onde  estao  os  filhos  dos  Emperadores,  e  ali  Ihes  dizem 
missas  e  se  Ihes  fazem  seus  officios  e  quando  os  levao  a  enterrar, 
vao  dentro  de  huma  liteira  que  leva  hum  elephante  cuberto  de  doo  e 
o  acompanhao  todos  os  sacerdotes  da  cidade  de  Saba  com  mil  homens 
de  guarda,  ate  chegar  ao  monte. 

Ate  aqui  sao  palavras  do  autor,  em  que  mostra  bem  quam 
pouca  noticia  tinha  das  cousas  de  qua,   porque  nem  os  sacerdotes 

C.  Bbccaai.  R^r.  Atih^  Script,  occ,  tnsd,  ~  II.  64 


5o6  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

v2io  a  casa  do  defiinto  a  trazer  seu  corpo,  nem  ha  tal  distin^ao  de 
sacerdotes  casados  e  virgens :  todos  s2lo  casados ;  nem  usflo  de  ag-oa 
benta  nos  enterramentos,  como  elles  mesmos  me  disserdo ;  nem  en- 
terrao  no  cemeterio  mas  que  alguns  pobres,  todos  os  demais  dentro 
da  igreia,  e  por  cada  hum  que  enterrSio  Ihes  dao  dous  panos  da 
terra,  que  algumas  vezes  valem  dous  cruzados,  outras  pouco  menos 
e  se  Ihes  nflo  derem  isto,  nSlo  os  hflo  de  enterrar,  nem  hSio  de 
rezar  os  psalmos  e  o  demais  que  custumao  se  nSio  Ihes  pagarem 
muito  bem.  Nem  tem  na  porta  da  igreia  os  gazophilacios  que  dis 
no  fim  do  capitulo;  nem  os  Emperadores  se  enterrarao  *nunca  no  f.  23*. 
monte  que  elle  dis  senSlo  nas  igreias  que  assima  nomeamos;  nem 
os  levSo  a  enterrar  em  liteira  sobre  elephante,  que  nunca  o  virao 
man^o.  como  ia  temos  dito;  nem  sabem  que  cousa  he  liteira. 

Semelhantes  a  estas  cousas  sAo  as  com  que  remata  aquelle  ca- 
pitulo  dizendo  que  em  cada  bispado  sinala  o  Bispo  e  o  cabi[l]do 
4  dos  conegos,  e  estes  se  aiuntao  tres  vezes  cada  somana  con  4 
vigairos  das  freguesias  da  cidade  onde  mora  o  Bispo,  pera  tratar 
o  que  se  oflFerece  e  parece  necessaru  ao  govemo  espiritual  do  bi- 
spado,  e  tem  officio  de  provisores  e  iulgSio  todas  as  demandas;  e 
assi  se  fas  tambem*  na  metropoli  dos  Arcebispos,  e  de  seis  em 
seis  annos  se  iunta  o  Arcebispo  com  seus  Bispos  suffraganeos  e 
celebrao  sinodos  provinciaes  e  algumas  vezes  se  iuntao  todos  os 
1 2  Arcebispos  e  os  setenta  e  dous  Bispos  de  Ethiopia  com  muitos 
Abbades  espirituaes  de  sam  Antao  na  cidade  de  Sabba,  pera  refor- 
ma^ao  universal  das  igreias  de  Ethiopia,  em  que  preside  como  leg^do 
o  Arcebispo  mais  antigo.  Isto  dis  frei  Luis.  Mas  ia  por  vezes  te- 
mos  mostrado  como  tudo  he  mera  fic^ao,  que  nem  ha  tal  modo  de 
governo,  nem  Arcebispos,  nem  Bispos  mais  que  o  que  Ihes  vem 
do  Cairo,  a  que  elles  chamao  Abuna,  e  este  manda  o  Patriarca  de 
Alexandria. 


CAPITULO  XVII. 

£m  que  se  trata  de  algumas  Religioes,  que  alguns  au- 
tores  poem  na  parte  de  Ethiopia,  que  senhorea  o 
Preste  Joao. 


Muitas  veses  temos  feito  men^ao  de  passagem   nesta  historia      i.  Monasteria  cre- 

j       r    j        j     t:»^i_'  j     1  ■  •-  <•    •«         mitanim«8.Aiigu8ti- 

dos  irades  de  £thiopia,   sem   declarar  quaes  seiflo  suas   rehgiOes,  qq^  ^  quibus  multa 

por  nao  cortar  o  fio  do  que  hiamos  dizendo.  Ai?ora  que  temos  tra-  narratUrreta,  ignota 

^  /  6  n  proraus^^inActhiopia 

f.23i,v.  tado  ""das  cousas  ecclesiasticas,  sera  bem  que  veiamos  quaes  sao.  fucrunt*ct  sunt. 
As  que  algnns  autores  affirmSo  que  ha  nesta  Ethiopia,  de  que 
nem  rasto,  nem  memoria  se  acha  (que  depoes  declararemos  quantas 
e  quais  sao  as  que  na  verdade  ha),  a  primeira  que  se  me  ofFerece 
he  a  do  glorioso  patriarcha  sam  Augustinho,  cuios  frades  dis  frei 
Luis  de  Urreta,  no  i°  livro  de  sua  Historia  pag.  213,  e  no  livro  3 
pag.  708,  que  ha  oie  em  Ethiopia,  mas  que,  quando  entrarao  nao  erao 
desta  sadrada  Religiao  se  nao  huns  hermitaes  e  anacoretas  da  The- 
baida,  que  traziao  nome  de  s.  Agostinho,  sendo  na  verdade  hereges, 
e  assi  comegarao  logo  a  ensinar  que  o  Espirito  Santo  nao  procede 
do  Filho,  que  nao  ha  Purgatorio,  e  que  os  Santos  nao  vem  a  Deos 
ate  o  dia  do  iuizo;  o  que  sabendo  o  emperador  Claudio,  os  entre- 
gou  aos  Priores  dos  conventos  da  Alleluya  e  de  Plurimanos,  os  quais 
os  convencerao  de  suas  heregias  e  trabalharao  muitopellos  reduzir, 
mas  alguns  se  ficarao   obstinados  e  destes  huns  mandou  o  Empe- 


508  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

rador  lan<;ar  aos  leOes,  a  outros  enterrar  vivos,  e  que  aos  que  se 
reduzirao  os  tivessem  naquelles  conventos  doutrinandoos.  Entre- 
tanto  escreveo  o  Emperador  ao  reverendissimo  Geral  da  Religiao 
dos  frades  Agostinhos,  que  era  o  padre  mestre  frei  Thadeo  Peru- 
gino,  que  Ihe  mandasse  as  constitui^oes  de  sua  sagrada  Religiao, 
pera  que  a  professassem  aquelles  anacoretas,  e  os  que  nao  quises- 
sem  os  botaria  de  suas  terras.  Respondeo  o  reverendissimo  Geral, 
mandandolhe  suas  constitui<;oes  que  se  traduzirao  em  lingoa  ethio- 
pica.  Os  Hermitaes  fizerao  proficao  nas  maos  dos  Priores  daquelles 
conventos  conforme  ao  estillo  das  constituiijOes  dos  padres  Ago- 
stinhos,  e  destes  ha  alguns  conventos,  posto  que  poucos  e  pobres; 
vivem  nos  desertos  e  fazem  vida  heremitica.  O  que  confirma  no  outro 
tomo  com  que  saio  o  anno  de  1 6 1 1 ,  dizendo  na  pag.  5  que  as  cro- 
nicas  desta  sagrada  Religiao  referrem  que  em  *Ethiopia  ha  muitos  f.  232 
conventos  de  sua  Ordem. 

Isto  he  o  que  dis  frei  Luis  de  Urreta;  mas  em  Ethiopia  nao 
ha  taes  frades,  nem  memoria  de  que  os  ouvesse  nunca,  segundo  me 
affirmarao  muitos  velhos,  a  quem  perguntei  com  diligencia,  por  me 
escrever  o  reverendissimo  padre  frei  Aleixo  de  Meneses,  sendo  Ar- 
cebispo  de  Goa,  no  anno  de  1605,  que  soubesse  se  o  convento  de  Al- 
leluia  era  de  frades  de  sam  Agostinho,  e  pera  ficar  mais  satisfeito 
perguntei  tambem  a  hum  frade  muito  velho,  que  era  como  Geral 
dos  frades,  que  qua  chamao  de  Taquela  Haimanot,  e  respondeo 
diante  de  muitos  frades  que  elle  avia  muitos  annos  que  era  supe- 
rior  daquella  Religiao  (que  aquelle  cargo  he  perpetuo  e  ao  que  0 
tem  chamao  Ichegue)  e  que  nunca  vira  taes  frades  nem  ouvira  dizer 
que  estivessem  em  Ethiopia.  O  mesmo  me  disse  outro  frade  que 
foj  muito  tempo  Prior  do  mosteiro  a  que  frei  Luis  chama  Pluri- 
man6s,  que  nao  se  chama  senao  Debra  Libanos,  que  quer  dizer  nio- 
steiro  do  Libano.  Por  onde  nao  ha  duvida,  senao  que  nao  ha  oie 
frades  de  sam  Augustinho  nas  terras  do  Preste  Joao,  nem  os  ouve 
nunca;  porque  nao  podia  ser  que  estes  frades  tam  velhos  nao  ti- 
vesse[m]  alguma  noticia  delles,  principalmente  se  fora,  como  dis 
frei  Luis  que  entrarao  em  tempo  do  emperador  Claudio,  que  este 
anno  de  1620  avera  61  que  morreo  e  reinou  18  annos,  E  os  mes- 
mos  Priores,  em  cuias  maos  dis  o  autor  que  aquelles  frades  fazem 
profissao,  affirmao  que  nunca  ouvirao  falar  em  taes  frades.  Quanto 
ao  que  dis  que  as  cronicas  desta  sagrada  Religiao  referem  que  em 
Ethiopia  ha  muitos  conventos  de  sua  ordem,  sera  em  outras  terras 


8unt  recensenda. 


LIVRO  II,  CAPITTJLO  XVII.  509 

de  Ethiopia,  que  as  ha  muito  largas,  mas  nSLo  nas  que  senhorea  o 
Preste  JoSo,  porque,  se  nestas  ouvera  algum,  por  forga  tiverSo  no- 
ticia  delle  seus  naturaes. 

No  mesmo  capitulo  que  falla  desta  Religiao,  que  he  o  ultimo      a.    Quae    pariter 

f232,v.  de  seu  3^  livro,  trata  difusamente  de  huma  ordem  *militar  e  mo-  ordine    militari    et 

nastica  de  cavaleiros  e  monires  do  rforioso  padre  sam  AntSo,  que  »on««tico  ab  Impe- 

^  ^  ^  ^        ratore  loanne  insti- 

dis  fundou  em  Ethiopia  o  Preste  JoSio  chamado  Joao  o  Santo  poUos  tuto,   inter   fabulas 

annos  de  370,  pera  que  peleiassem  contra  os  Arrianos  em   honrra 

da  santissima  Trindade,  e  deulhe  por  divisa  a  figura  da  crus  que 

o  glorioso  santo  Antao  deu  a  seus  dicipolos  a  modo  de  tau  T;  e 

o  emperador  Phelipe  7  deste  nome,  que  succedeo  a  Joao  o  Santo, 

deu  muitos  privilegios  e  rendas  a  esta  Ordem,  e  fes  que  se  acre- 

scentassem  na  comenda  dos  cavaleiros  humas  florezinhas  guame- 

cidas  aroda  com   hum  fio  de  ouro  a  modo  de  cairel,   pera  que  se 

deferen^assem  dos  monges.  Pos   tambem  huma  lei  que  todos  seus 

vassalos  de  qualquer  estado  e  condigao,  tirando  os    medicos,  fos- 

sem  obrigados  dali  por   diante   a  dar  a  Religiao   de  s.  Antao  de 

3   filhos  hum  pera  o  servigo   della;   o  que   se  guardou  e  g^arda 

com  tanto  rigor,  que  nem  os  Reis  estao  izentos  desta  lei,  mas  os 

filhos  destes,  como   recebem   o   habito,  vao   a  servir  os  principes 

imperiaes  que  estao  no  monte   Amhara,  os  filhos  dos   demais  na 

guerra ;  e  em  cada  cidade  tem  a  Ordem  seu  convento,  que  por  to- 

dos  sao  dous  mil  e  quinhentos.  Em  cada  abadia  nao  ha  mais  que  25. 

Porem  os  cavaleiros  militares  nao  tem  numero  certo,  e  assi  ha  aba- 

dias  de  500,  de  mil  e  dous  mil  e  mais  comendadores,  os  quaes  hao 

de  ser  for^adamente  de  casta  cavaleiros  e  nobres. 

A  estes  cavaleiros  recebem  na  abadia  de  16  e  18  annos  e  re- 
cebelos  he  for^ado  por  estarem  todos  obrigados  a  darem  de  3  filhos 
hum  a  Ordem;  e  como  os  recebem,  os  mandao  a  guerra,  onde  estao 
nove  annos  em  noviciado,  tres  nos  presidios  do  Mar  Roxo  gnzur- 
dando  as  costas  de  Ethiopia  dos  cosairos  que  saem  de  Arabia,  tres 
na  ilha  Meroe  que  olha  a  Egypto,  onde  estao  em  presidio,  porque 
se  o  Turco  pretenda  algnma  cousa,  nao  os  ache  descuidados,  e 
outros  tres  em  fronteira  do  reino  de  Bomo,  que  he  mui  poderoso 
e  inimigo  do  Preste  Joao  e  confina  com  elle.  Concluido  o  noviciado 
f-  233.  *de  nove  meses,  Ihe  d4  seu  capitao  huma  carta  pera  o  procurador 
da  abadia  onde  Ihe  derao  o  habito,  o  qual  assiste  na  corte  do  gram 
Abad  ou  mestre  da  Ordem  na  ilha  Meroe,  em  que  Ihe  dis  como 
aquelle  novi<;o  ha  acabado  nobremente  sua  prova^ao  e  assistencia 


5IO  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

na  guerra,  e  o  procurador  tira  entSo  bastante  informa^Slo  de  sua 
vida,  custumes  e  servi^os  e  da  rezao  de  tudo  ao  gram  Mestre,  o 
qual  com  seu  conselho  aprova  o  noviciado  e  escreve  ao  Abbade  da 
abbadia,  onde  Ihe  derSto  o  habito,  que  Ihe  de  a  profiss^o  e  elle, 
obedecendo  a  este  mandado,  se  veste  de  pontifical  e  chega  a  porta 
da  igreia,  onde  vem  o  cavaleiro  muito  acompanhado,  e  depoes  de 
muitas  ceremonias  se  alevanta  o  Abade  militar  e  com  4  comenda- 
dores  os  mais  antigos  o  despe  das  armas  que  tras  e  Ihe  poem  huma 
roupa  preta,  que  Ihe  chega  aos  pes  com  huma  crus  e  sobre  ella 
Ihe  veste  hucna  cogula  preta,  que  he  hum  habito  com  muitsis  pregas 
ao  pescoQo  e  mangas  compridas  da  fei^ao  dos  monges  de  sam  Bento 
e  nella  tambem  entra  crus  azul. 

Acabado  isto,  o  toma  poUa  mao  o  Abbade  espiritual  e  todos 
os  cavaleiros  em  pricissao  entrao  com  elle  na  igreia  e  aioelhado 
diante  do  santissimo  Sacramento  fas  em  presenija  de  todos  hum 
voto  solemne  de  perpetua  obediencia  e  fidelidade  a  Sede  Apo- 
stolica  romana  e  iuntamente  ao  Preste  Joao  e  Abades  de  sua 
Ordem  de  ir  a  guerra  sempre  que  Ihe  for  mandado  e  guardar  as 
constituigoes  de  sua  Religiao  e  os  canones  e  decretos  do  concilio 
florentino  de  Eugenio  4°.  Concluido  este  voto,  fas  logo  nas  maos 
do  Abade  espiritual  hum  iuramento  de  nao  ir,  nem  peleiar  em 
guerras  entre  christaos,  nem  receber  ordens  sacras,  nem  casar,  sem 
expressa  licen^a  do  Pontifice  Romano;  mas  o  Preste  Joao  e  o 
nuncio  apostolico,  por  breves  que  tem  da  Sede  Romana,  podem 
relaxar  este  iuramento  por  iustas  causas;  e  dali  por  diante  nao 
sae  do  convento  a  cidade  sem  liceiKja  do  Abade  militar,  e  vai  com 
o  habito  acompanhado  de  4  criados  e  o  Abade  espiritual  tem  a 
suo  cargo  a  dar  a  todos  os  cavaleiros  as  *cousas  necessarias  pera  f-233.v- 
sua  susteritagao ;  mas,  como  sao  muitos,  nao  comem  todos  iuntos 
como  os  monges,  senao  repartitos  por  esquadrOes. 

O  gram  Abade  he  perpetuo  ate  a  morte,  e  reside  sempre 
na  fermoza  ilha  Meroe,  que  o  Preste  Joao  Claudio  e  depoes  Ale- 
xandre  3^  em  nossos  dias  a  derao  absolutamente  a  ordem  de 
sam  Antao.  Tras  huma  crus  azul  grande  que  Ihe  cruza  todo  o  peito, 
que  nenhum  outro  pode  trazer:  servesse  com  grande  magestade, 
porque  pera  o  servigo  de  s6  sua  pessoa  tem  cem  cavaleiros  co- 
mendadores  e  outros  duzentos  servidores ;  he  senhor  absoluto  desta 
grande  ilha,  que  fas  o  rio  Nilo,  e  assim  a  elle  pertencem  todas 
suas   rendas   e   as   minas  que   ha   nella,   que   sao   muitas,  e   assim 


ife^. 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVII.  511 

cada  anno  Ihe  entrao  de  renda  perto  de  dous  milhOes  entre  os 
mineraes  e  tributcs  dos  povos;  porque  ha  nesta  ilha  tres  reinos, 
contando  tambem  os  direitos  que  pagSio  os  Mouros  e  Judeos, 
que  de  toda  AflFrica  passa  a  Meca  e  dos  que  de  Arabia  querem 
passar  a  outros  reinos  de  Africa,  porque  for^adamente  hao  de 
passar  por  esta  ilha.  Desta  renda  se  sustenta  o  Gram  Mestre  e  o  de- 
mais  se  guarda  no  thesouro  da  Ordem  pera  os  gastos  das  guerras, 
porque  o  Preste  JoSo  nao  gasta  nada  com  elles  nas  guerras  que 
se  Ihe  offerecem.  As  mais  abadias  tem  suas  rendas  separadas. 

Isto  he  em  summa  o  que  naquelle  comprido  capitolo  dis  frei 
Luis  de  Urreta  e  com  isso  da  fim  a  sua  Historia  Ethiopica ;  o  que 
Ihe  veio  muito  a  proposito,  porque  historia  de  tantas  e  tam  proten- 
tosas  patranhas,  come  ate  aqui  temos  visto  e  veremos  adiante,  nao 
se  podia  fechar  milhor,  nem  selar  com  outro  selo  que  com  huma 
fabula  tam  fabulosa,  como  he  dizer  que  aia  tal  Ordem  militar  em 
Ethiopia,  que  nem  a  ha  nem  a  ouve  nunca;  e  assim  quanto  della 
conta  he  huma  mera  fic<;ao.  Nem  referi  isto  mais  que  pera  que  veia 
o  leitor  o  credito  que  se  deve  dar  as  informa^oes  de  Joao  Balthesar, 
a  quem  dis  frei  Luis  que  segiie.  E  que  nao  aja  agora  em  Ethiopia 
f.  234.  tal  Ordem  militar  posso  eu  teste*munhar,  porque  em  1 9  annos  que 
ha  que  ando  nella  e  continuei  sempre  o  pa^o  de  tres  Emperadores, 
que  ouve  neste  tempo,  nunca  vi  monge  nem  cavaleiro  dessa  Or- 
dem ;  o  que  nao  podia  ser,  se  os  ouvera ;  poes  for^ademente  aviao 
de  chegar  muitas  veses  ao  Emperador,  principalmente  avendo  con- 
vento  na  cidade  imperial,  como  elle  dis.  Tambem  perguntei  a  muitos 
velhos  e  disserao  que  nunca  virao  taes  cavaleiros,  nem  ouvirao  dizer 
que  estivesse  nunca  tal  Order^  em  Ethiopia,  nem  o  Emperador 
tinha  presidios  nenhuns  na  costa  do  Mar  Roxo,  nem  sabiao  de  tal 
ilha  Meroe,  nem  que  o  rio  Nilo  tivesse  ilha  povoada.  Con  tudo  isso 
pera  maior  prova,  estando  eu  hum  dia  com  o  emperador  Seltan  Qa- 
gued,  que  oie  vive,  referi  algumas  destas  cousas,  a  que  elle  deu 
aplauso  e  disse :  Parece  que  esse  Joao  Balthesar  vio  em  Hespanha 
alguma  Ordem  militar  como  esta,  e  pera  autorizar  nossa  terra,  disse 
que  tambem  a  avia  nella;  mas  a  verdade  he  que  nunca  tal  cousa 
ouve,  nem  em  quanto  senhoreamos  do  rio  Nilo  ha  tal  ilha  Meroe, 
nem  outra  nenhuma  povoada,  porque  todas  as  que  fas  sao  tam  pe- 
quenas  e  doentias  que  nao  se  pode  morar  nellas. 

Demais  destas  duas  ReligiOes  que  frei  Luis  poem  em  Ethiopia,      3-  Refert  Auctor 

in  summa  Historiam 

dis  em  muitas  partes  de  sua  Historia  que  tambem  esta  a  sua  do  Ordinis  Praedicato- 


512  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

nim  in  Aethiopia  ab  giorioso  padre  sam  Domingos,  e  isto  principalmente  pretende  provar 

codem  Urreta  Qrpis 

editam muldsque ar-  em  outra,  com  que  saio  o  anno  de  i6ii,que  intitulou  Historia  de 
l^trnonm<Mlo  n^-  '^  sagToda  Ofden  de  Predicadores  em  los  remotos  reinos  de  la  Ethio^ 
luminAethiopiamo-  pia,  e  o  primeiro  argumento  he,  que.  como  elle  affirma  pae.  3,  al- 

nasterium  PP.  Prae-  -*  «=• 

dicatorum  suo  tem-  guns  Summos  Pontifices  nas  buUas,  que  passar2io  a  sua  sagprada  Re- 
pore  aderae,  b^  ligiao,  nomeando  os  reinos  em  que  pregavao  os  frades  Dominicos, 
ritasaeculaneullum  fazem  men^Eo  de  Ethiopia  e  assim  dis  que  nisto  nSio  pode  aver 
stigium  inveniri.       duvida  alguma,  que  a  dificuldade  s6  he  se  os  religfiosos  de  s.  Do- 

mingos  que  entrarao  em  Ethiopia  fundarao  conventos  e  se  per- 
severao  oie  em  dia;  porque  achou  algumas  pessoas  que  o  punhao 
em  duvida.  Ao  que  responde  *pag.  5  por  estas  palavras:  «Provare  ^.234,^. 
€  com  muitos  doctores  y  con  la  experiencia  y  con  testigos  oculares 
«  como  aquellos  santos  religiosos,  que  entrarao  en  la  Ethiopia,  fan- 
«  darao  conventos,  los  quales  perseveran  el  dia  de  oje  con  mucha 
«  religion  y  g^andeza,  y  negarlo  es  querer  negar  el  sol  al  medio 
«  dia  y  ser  de  la  secta  de  los  otros  philosophos  academicos,  que 
«  todo  lo  ponian  en  duda  ».  E  logo  refuta  a  Francisco  Alvares,  que 
andou  seis  annos  em  Ethiopia,  por  dizer  em  sua  Historia  que  nas 
terras  do  Preste  Joao  nao  avia  frades  senao  de  s.  Antao,  e  cita  al- 
guns  historiadores  que  (segundo  elle  affirma)  dizem  que  nas  terras 
do  Preste  Joao  se  achao  as  ordens  de  s.  Antao  e  s.  Domingos,  e 
outros  que  dizem  que  virao  em  Roma  religiosos  da  ordem  dos 
Pregadores,  que  vinhao  das  terras  do  Preste  Joao.  Tambem  que  no 
archivo  real  da  cidade  de  Valenga  se  guarda  hum  livro  escrito  de 
mao,  que  dis  que  no  anno  de  15 15  a  10  de  abril  chegarao  ao  con- 
vento  dos  Pregadores  daquella  cidade  8  frades  Dominicos  todos 
pretos  e  diziao  que  erao  naturaes  de  Ethiopia  e  vassalos  do  Empe- 
rador  chamado  Preste  Joao. 

Isto  mesmo  confirma  pag.  7  dizendo  que  outras  muitas  veses 
chegarao  ao  convento  dos  Pregadores  de  Valen^a  religiosos  Do- 
minicos  de  los  conventos  de  la  Ethiopia,  e  diziao  que  erao  dos 
conventos  da  AUeluia  e  Plurimanos,  e  no  capitulo  geral,  que  se 
celebrou  em  Barcelona  no  convento  de  santa  Catherina  martir  da 
Ordem  de  s.  Domingos  o  anno  de  mil  e  quinhentos  e  setenta  e 
quatro,  se  acharao  frades  de  Ethiopia  e  que  de  Floren(;a  e  Veneza 
fazem  missoes  os  frades  Dominicos  pera  a  Ethiopia  como  custumSo 
de  Hespanha  mandar  frades  as  Indias,  e  que,  quando  elle  escrevia 
o  livro  que  imprimio  o  anno  de  161 1,  *era  mestre  de  novi^os  no  f.  235, 
convento  de  AUeluia  frei  Marcos  de  Floren^a  natural  de  Floren^a 


r 


k. 


LIVRO  II,  CAPITULO   XVII.  513 

e  filho  de  habito  do  convento  de  sam  Marcos,  o  hia  assinado  nos 
origfinaes  que  traduzia  iuntamente  com  frei  Miguel  de  Monrojo  e 
frei  Matheus  Caravajal  nacidos  em  Ethiopia  de  certos  EspanhOes  que 
nella  morSlo.  E  mais  adiante  pag.  11  dis  que  no  capitulo  que  ce- 
lebrou  em  Roma  o  geral  frei  Pablo  Constable  anno  1580  se  achar^o 
frades  Dominicos  da  Ethiopia. 

Os  primeiros  Religiosos  de  sam  Domingos  que  vierSo  a  Ethio- 
pia,  dis  pag.  13,  que  erao  8,  e  que  partirSo  de  Roma  ao  primeiro  de 
majo  do  anno  13 16  com  poderes  de  Inquisidores  da  fe,  levando 
em  sua  companhia  huma  molher  de  dias,  que  deseiava  padecer  mar- 
tirio  polla  prega^ao  do  Evangelho,  e  era  tanta  sua  virtude  e  a  opi- 
niao  que  de  sua  santidade  e  vida  se  tinha,  que  Ihe  derao  licenga 
os  prelados  da  Ordem  de  s.  Domingos  pera  isso,  por  ser  religiosa 
da  3*  ordem  da  penitencia  a  que  comummente  chamao  Beatas.  E 
assim  iuntamente  forao  a  Jerusalem  e,  depoes  de  visitarem  os  lu- 
guares  santos,  tomarao  sua  derota  pera  Ethiopia,  caminhando  a  pe, 
comendo  de  esmola,  e  andando  entre  infieis  com  tanta  incomodi- 
dade,  fome  e  pobreza  e  com  tao  maos  tratamentos,  como  cada  hum 
pode  cuidar.  Mas  o  Senhor  que  os  guiava  pera  tanto  bem  das  almas 
de  Ethiopia,  os  meteo  nella  saos  e  contentes  e  em  breve  tempo 
aprenderao  a  lingoa  da  terra  e  come^arao  a  pregar  confirmando  sua 
f.335,v.  doutrina  com  muitos  milagres  e  *chegando  suas  novas  ao  Preste 
Joao,  como  bom  christao,  deu  muitas  gra^as  a  Deos  de  Ihe  aver 
trazido  aquelles  santos  varOes  pera  bem  de  seus  vassalos,  e  man- 
doulhe  dar  as  boas  vindas  e  iuntamente  licen^a  pera  que  edifi- 
cassem  conventos  por  toda  sua  terra,  prometendo  de  Ihe  guardar 
todos  os  privilegios  de  que  gozavao  na  igreia  latina,  e  admittindo 
os  poderes  que  traziao  de  Inquisidores.  Elles,  ouvindo  tam  bom  re- 
cado,  tornarao  os  agradecimentos  ao  Emperador  e  com  sua  boa  gra^a 
e  aplauso  entrarao  por  Ethiopia  mais  de  600  legoas  ate  a  lagoa 
Cafates,  que  he  onde  nace  o  rio  Nilo  e  edificarao  muitos  conventos 
no  reino  de  Gojam,  no  de  Cafates  e  o  de  Saba,  e  derao  o  habito 
da  sagrada  Religiao  a  muitos,  e  sairao  dicipolos  tam  aproveitados 
que  puderao  ser  mestres  de  virtude  e  santidade  aos  demais,  dos 
quais  muitos  forao  esclarecidos  em  milagfres ;  e  em  particular  o  glo- 
rioso  santo  Taquela  Haimanot,  a  quem  derao  o  habito  no  convento 
da  invoca<;ao  de  santo  Estevao,  que  tinhao  edificado  estes  santos 
Religiosos  em  huma  ilha  que  a  f as  a  lagoa  Cafates  chamada  Haic, 
que  quer  dizer  agoa  doce. 

C.  Bbccari.  Rer,  Asth.  Seripi,  oce.  tned.  —  II.  65 


514  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

N2I0  esteve  tambem  ociosa  a  santa  Beata,  antes  edificou  hum 
convento  de  Relig^osas  monjas  da  Ordem  de  sam  Domingos,  a  que 
chamarAo  Bedenagli,  no  qual  vivem  oie  mais  de  5000  freiras  e  agora 
se  chama  o  mosteiro  de  s.^  Clara ;  e  iuntamente  deu  o  habito  da 
3*  ordem  da  penitencia  a  muitas  molheres  de  virtude  [e]  exemplo, 
deseiosas  de  caminhar  a  perfei^ao,  das  quais  ha  oie  muitas  por  toda 
Ethiopia. 

Dos  nomes  destes  santos  religiosos  dis  o  Autor  pag.  29  que 
n2io  se  fas  men^ao  nas  cronicas  da  Ordem  de  sam  Domingos,  porque 
era  impossivel  *poder  fazer  memoria  de  tam  grande  numero  de  ^-n^ 
Pregadores,  como  cada  dia  com  ben^ao  de  seus  prelados  partiSo  a 
terras  incognitas.  Nem  na  Ethiopia  se  tem  noticia  mais  que  do  nome 
de  hum  que  se  chamava  frei  PantaleSo.  Aos  outros  sete  derao  no- 
mes  em  sua  lingoa,  que  sSo  Arghai,  Grima,  Licanos,  Sama,  Aleph, 
Assen,  Aguloa  e  a  Beata  chamarSo  Imata.  Estes  nomes  bem  se 
ve  que  nao  sao  da  Igreia  latina,  nem  sao  nomes  proprios  em  Ethio- 
pia,  senao  de  officio  e  dignidade,  porque  segundo  o  officio  que  vi- 
rao  que  tinha  cada  hum  no  convento,  que  edificarao,  esse  nome 
Ihe  derao  e  com  elle  ficarao,  e  por  elle  sao  invocados  como  santos 
gloriosos. 

Tudo  isto  tras  frei  Luis  de  Urreta  e  nos  luguares  citados  pera 
provar  seu  intento,  de  que  os  Religiosos  de  sam  Domingos  entrarao 
antigamente  nas  terras  do  Preste  Joao,  que  oie  estao  nellas  com 
muitos  conventos.  Mas,  nao  obstantes  todas  suas  provas,  a  verdade 
he  que  em  quantas  terras  de  Ethiopia  senhorea  o  Emperador,  a 
quem  comummente  chamao  o  Preste  Joao,  nao  ha  oie  convento 
nem  frades  de  s.  Domingos,  nem  ainda  memoria  de  que  entrassem 
nellas  alguma  hora.  Porque  tenho  feito  sobre  isto  extraordinarias 
diligencias,  sem  poder  achar  quem  tenha  noticia  delles,  nem  ouvisse 
dizer  que  chegassem  nunca  a  estas  terras.  E  deixando  outros  mui- 
tos  de  que  me  informei,  hum  frade  velho,  que  foi  muitos  annos 
prior  de  Debra  Libanos,  a  quem  o  autor  chama  Plurimanos,  e  pouco 
tempo  ha  que  socedeo  no  cargo  de  Ichegue,  por  morte  do  que  as- 
sima  dissemos,  e  he  Geral  dos  frades  de  Taquela  Haimanot,  me  af- 
firmou,  que  nem  em  suas  historias  achara,  *nem  ouvira  dizer  que  f*3^»'- 
frades  de  sam  Domingos  entrassem  qua  nunca ;  e  o  mesmo  disserao 
muitos  de  seus  frades  velhos,  que  estavao  presentes.  Depoes  fui  de 
proposito  ao  convento  da  Alleluia,  que  esta  no  reino  de  Tigre  e 
falando  cora  o  Prior,  me  disse  que   se  [sic]  Taoald   Madehen  (que 


r 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVII.  5 15 

quer  dizer  <  Naceo  o  salvador  »)  e  que  tinha  de  idade  131  annos  e  tinha 
sido  40  annos  prior  daquelle  mosteiro  e  que  nao  sabia  que  entras- 
sem  nunca  nestas  terras  frades  de  sam  Domingos  nem  de  s.  Au- 
gustinho,  e  que  seu  ajitecessor  se  chamava  Gabra  Maraoi  (que  quer 
dizer  «  servo  do  esposo  »)  e  que  fora  ali  prior  58  annos  e  nunca  Ihe 
ouvira  falar  em  tais  frades.  Do  que  se  mostra  bem  claro  que 
cstes  mosteiros  Debra  Libanos  e  Alleluia  nao  sao  de  sam  Do- 
mingos  nem  de  santo  Augustinho,  nem  ainda  aia  outro  algum  seu, 
que  se  o  ouvera,  nao  podiao  deixar  de  ter  noticia  delle,  porque  nao 
he  a  terra  tam  larga  que  nao  se  conhe^a  muito  bem  huns  a  outros. 
Que  o  que  dis  o  autor  que  aquelles  Religiosos  entrarfto  por  Ethiopia 
mais  da  600  legoas  depoes  de  terem  recado  do  Preste  Joao,  ainda 
que  fora  certo  que  entrarao,  se  enganou  muito  na  distancia,  porque 
por  quelquer  parte  que  entrem  ate  chegar  onde  nace  o  Nilo  nao 
sao  200  legoas. 

Quanto  ao  argumento  que  tras  de  que  alguns  summos  Ponti- 
fices  nas  bulas  que  passarao  a  sua  sagrada  Ordem,  nomeando  os 
reinos  em  que  pregavao  os  frades  de  s.  Domingos,  fazem  mengao 
de  Ethiopia,  nao  tem  for^a  nenhuma ;  porque,  como  este  nome  c  Ethio- 
pia  »  seia  tam  lato  que,  como  tocamos  no  principio  desta  Hisioria, 
'.237.  comprehende  muitas  outras  *terras  e  maiores  que  as  que  senhorea 
o  Preste  Joao,  nao  se  segue  que  por  nomearem  Ethiopia  se  entenda 
precisamente  das  terras  do  Preste  Joao.  E  se  quiser  profiar  que 
falavao  dellas  e  que  tinhao  certas  informaQOes  de  que  entrarao  qua 
aquelles  Religiosos,  que  nao  sei  como  podera  provar,  respondo  que 
sua  memoria  se  acabou  de  maneira  que  nao  ha  agora  quem  saiba 
dar  rezao  de  suas  cousas,  nem  as  tenha  ouvido.  Por  onde  aquelles 
frades  que  dis  que  se  acharao  nos  capitulos  gerais  e  estiverao  la 
nos  mosteiros  que  nomea  e  se  derao  por  de  sam  Domingos,  se  erao 
desta  terra,  falarao  como  quiserao  pera  acharem  bom  agazalhado 
e  algum  interesse,  como  fes  Joao  Balthezar  em  outras  cousas  que 
fingio  em  suas  rela^oes,  como  vimos,  e  aqui  de  novo  aparece  no 
que  affirma  pag.  8,  que  quando  partio  de  qua,  que,  segundo  dis 
frei  Louis  em  outras  partes,  foj  o  anno  de  606;  era  mestre  de  no- 
viQos  no  mosteiro  da  Alleluia  frei  Marcos  de  Floren<;a  natural  de 
Floren^a,  e  que  se  assinou  nos  originaes,  que  o  autor  traduzia,  iun- 
tamente  com  frei  Miguel  de  Monrojo  e  frei  Matheo  Caravajal  na- 
cidos  em  Ethiopia  de  certos  HespanhOes ;  sendo  assim  que  nem  no 
convento  da  Alleluia  estavao  entao  tais  frades,  nem  ha   memoria 


5l6  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

delles,  segundo  affirmSio  os  frades  do  mesmo  mosteiro  que  se  criarSlo 
ali,  e  agora  sSo  muito  velhos.  Por  onde  os  papeis  que  deu  a  frei 
Luis  de  Urreta  parece  que  os  fes  assinar  em  outras  partes  a  sua 
vontade  pera  os  autorizar  e  com  elles  ter  alg^m  proveito.  Tambem 
he  falso  o  que  dis  frei  Louis  que  de  Floren<;:a  e  Veneza  fazem  mis- 
soes  os  frades  de  sam  Domingos  a  Ethiopia,  como  custumao  de 
Hespanha  enviar  frades  as  Indias ;  porque,  deixando  as  dificuldades 
e  perigos  do  caminho,  se  assim  fora,  tiverSlo  feito  alguma  missSio 
em  19  annos  que  ha  que  eu  aqui  estou,  ou  ao  menos  se  acharSio 
alguns  dos  que  primeiro  vierao,  e  *nem  os  tenho  visto,  nem  ha  Uih^. 
memoria  de  que  qua  entrassem  nunca.  Aos  autores  que  tras  por 
sy,  que  affirmao  que  nas  t  rras  do  Preste  Joao  ha  mosteiros  de  sam 
Domingos,  respondo  que  ;e  fundarao  em  tao  falsas  informa<;oes 
como  as  que  elle  teve  de  Joao  Balthesar. 

Do  que  temos  dito  se  segue  quam  sem  rezao  refutou  o  autor 
a  Francisco  Alvares,  dizendo  pag.  7  que  saio  dos  termos  e  iurisdi^ao 
da  verdade,  por  dizer  que  nas  terras  do  Preste  Joao  nao  avia  frades 
senao  da  Ordem  de  sam  Antao,  e  que  vendo  o  Preste  Joao  David 
nas  cartas  do  governador  que  el  Rei  de  Portugual  fundara  mosteiros 
de  sam  Domingos  e  sam  Francisco  nais  terras  que  conquistara,  Ihe 
perguntou  de  proposito  quem  erao  estes  santos,  e  pediolhe  tresla- 
dasse  em  sua  lingoa  suas  vidas. 

Tambem  nao  tenho  duvida  senao  que  pera  affirmar,  que  nestas 
terras  nao  avia  frades  de  sam  Domingos,  se  teria  informado  muito 
bem,  pois  iura  no  prologo  de  sua  Historia  Ethiopicay  que  as  cousas 
que  escreveo  de  ouvida  forao  de  pessoas  que  as  sabiao  muito  bem. 
Nem  o  Preste  Joao  perguntara  tam  de  proposito  quem  era  sam  Do- 
mingos,  se  em  suas  terras  ouvera  mosteiros  e  os  frades  delles  forao 
seus  confessores  e  Inquisidores,  como  muitas  veses  affirma  o  autor 
que  o  forao  sempre,  antes  dissera:  Nos  tambem  temos  qua  mo- 
steiros  dessa  sagrada  Religiao  e  nos  guiamos  por  sua  doutrina.  Mas 
porque  nao  tinha  noticia  de  tal  Religiao,  nem  ouve  nunca  nestas  terras 
Inqui^i^ao,  nem  sabem  que  cousa  he,  por  isso  perguntou. 

Tambem  o  que  dis  o  autor  que  dos  8  Religiosos  de  s.  Domingos 
que  antiguamente  entrerao  nestas  terras,  a  hum  Ihe  ficou  seu  proprio 
*nome,  que  he  Pantaleao  e  aos  outros  na  lingoa  da  terra  chamarao  f.  «3^ 
Arghai,  Grima  (que  nao  se  ha  de  dizer  senao  Arogaoy  scilicet  <  velho  > 
e  Guerima)  e  que  derao  o  habito  a  Abba  Taquela  Haimanot,  he  de 
todo  ponto  falso,  porque  estes  frades,  que  erao  nove,  entrarao  no 


LIVRO  II,   CAPITULO   XVII.  517 

reino  de  Tigre  muitos  annos  antes  que  nacesse  o  glorioso  Patriarcha 
sam  Domingos,  como  consta  das  historias  antigas  de  Ethiopia,  que 
se  gnardao  no  mosteiro  de  Ag^um  do  reino  de  Tigre,  donde  eu 
tirei  os  catalogos  dos  Emperadores,  que  se  puserSo  no  cap.  5  do 
primeiro  livro,  e  ali  se  declara  o  tempo  em  que  vierao ;  e  o  mesmo 
achei  em  outro  livro  de  historias  antigas,  que  me  mostrou  o  em- 
perador  Seltan  Qagued,  que  oie  vive.  Ambos  estes  livros,  pondo  os 
cathalogos  dos  Emperadores,  dizem  que  no  tempo  do  emperador 
Amiamid  entrarao  em  Tigre  9  santos,  Abba  Pantaleao,  Abba  Aro- 
ga6i,  Abba  Guerima,  Abba  Alef,  Abba  Cehema,  Abba  Afce,  Abba 
Ademaata,  Abba  Oz  (a  quem  depoes  chamarao  Abba  Guba  scilicet 
€  padre  inchado  »,  porque  fez  igreia  em  hum  oiteiro  e  estava  s6),  Abba 
Licanos.  Alguns  dizem  que  vierao  outros  muitos  iuntamente  e  se 
repartirao  pello  imperio,  mas  os  livros  que  eu  vi  destes  nove  nao 
mais  fazem  men^ao.  Poes  do  emperador  Amiamid  se  achao  nos 
cathalogos  vinte  e  dous  Emperadores,  a  quem  se  nao  poe  o  tempo 
que  reinarao,  e  mais  huma  molher  que  reinou  em  Tigre  40  annos, 
e  no  tempo  do  derradeiro  destes  Emperadores,  a  que  no  primeiro 
cathalogo  nomeao  Delnadd  e  no  segundo  Arma,  se  cortou  a  linha 
dos  descendentes  de  Salamao  e  se  apoderou  do  imperio  hum  homem 
grande  por  nome  Zagoe  casado  com  huma  parenta  do  Emperador 
que  era  menino  e  os  descendentes  deste  ZagoS  tiverao  o  imperio 
f.238,v.  *34o  annos,  que  ainda  que  no  cathalogo  nao  se  ponhao  tantos,  dizem 
todos  e  me  affirmou  o  emperador  Seltan  Qagued  que  faltao  alli 
muitos  e  que  he  certo  que  esteve  nelles  o  imperio  340  annos.  De- 
poes  o  primeiro  dos  descendentes  de  Salamao,  que  tomou  a  entrar 
no  imperio,  se  chamou  Icunu  Amlac,  e  deste  ate  o  presente  anno 
de  1622  se  contao  355  annos  e  tres  meses,  a  que  acrescentando  40, 
que  reinou  aquella  molher  em  Tigre,  e  340,  que  tiverao  o  imperio 
os  da  familia  de  Zagoe,  fazem  735  annos  e  tres  meses,  afora  dos 
22  Emperadores  de  que  se  nao  sabe  quanto  tempo  tiverao  o  im- 
perio;  e  o  glorioso  Padre  sam  Domingos  ha  pouco  mais  de  400  annos 
que  passou. 

Destes  nove  Religiosos  santos  nao  se  declara  naquelles  livros 
de  que  ordem  erao  :  s6  dis  alli  que  vierao  de  Rum,  que  comum- 
mente  dizem  que  he  Roma,  e  assi,  chegando  o  Ichegue  com  muitos 
frades  ao  Emperador  no  anno  de  16 10  a  Ihe  persuadir  que  man- 
dasse  que  nao  ensinassemos  mais  que  aos  Portugueses,  Ihe  disse: 
€  Porque  perseg^is  os  Padres,  sendo  seus  discipolos  [?].  Vossa  Hi- 


5l8  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

storia  dis  que  vierao  de  Roma  nove  e  de  huin  delles  he  dicipolo 
vosso  fundador  Taquela  Haimanot  > ;  e  nao  quis  defirir  ao  que  preten- 
diEo,  antes  disse  que  ensinassemos  a  todos,  porque  nossa  doutrina 
era  a  verdadeira;  mas  contudo  nao  falta  quem  cuide  que  Rum  he 
huma  terra  do  Turco,  donde  se  chamarao  Rumes.  No  fim  da  hi- 
storia  de  Abba  Taquela  Haimandt,  que  adiante  referiremos,  tratando 
donde  procede,  dis  assi:  «  Abba  Antonio  deu  o  habito  a  Abba  Ma- 
chario,  Abba  Machario  o  deu  a  Abba  Pacomio,  Abba  Pacomio  o  deu 
a  Abba  Arogaoi,  abba  Arogaoi  vio  a  Ethiopia  e  o  deu  a  Abba  Chri- 
stos  Bezana,  este  o  deu  a  Abba  Mazcal  Moa,  este  o  deu  a  Abba 
*Joanni,  e  este  o  deu  a  Abba  Jesus  e  a  Abba  Tsujuela  Haiman6t ».  f-  239. 
E  este  Abba  Arogaoi  dizem  todos  que  he  o  mesmo  que  assima  no- 
meamos  entre  aquelles  nove  santos  de  Tigre,  e  por  isso  se  prezao 
muito  estes  frades  que  vem  delles  ainda  que  se  nomeem  de  Ta- 
quela  Haimandt,  por  ser  entre  elles  tido  por  grande  santo;  o  que 
sendo  assi  fas  duvidoso  virem  aquelles  nove  Religiosos  de  Roma ; 
do  que  tambem  se  segfue  que  aquelles  oito  frades  de  s.  Domingos, 
que  frei  Luis  de  Urreta  dis  que  vierao  de  Roma,  ainda  que  fora 
certo  que  entrarao  qua,  nao  derao  o  habito  a  Taquela  Haimanot, 
e  que  foj  muito  antes  que  nacesse  o  glorioso  Padre  s.  Domingos, 
porque  o  terceiro  Abade  depois  de  Abba  Arogaoi,  deu  o  habito  a 
Taquela  Haimanot,  e  Abba  Arogaoi  como  temos  dito,  ha  735  annos 
que  entrou  em  Ethiopia  e  mais  o  que  reinarao  2  2  Emperadores  que 
se  nao  declara  no  cathalogo. 

Sobre  tudo  o  que  temos  dito  fora  pera  mim  bastante  prova  de 
que  os  frades  que  estao  nestas  terras  do  Preste  Joao  nao  sao  da 
sagfrada  Religiao  de  s.  Domingos,  ver  que  afora  de  alguns  que 
com  nossas  disputas  publicas  e  praticas  particulares  se  reduzirao, 
todos  os  demais  sao  scismaticos  e  tem  tantas  heregias,  como  temos  * 
visto  neste  livro,  e  tao  obstinados  nellas,  que  porque  o  emperador 
Zadenguil,  depoes  das  disputas  publicas  que  tive  diante  delle  com 
seus  frades  e  letrados  sobre  as  cousas  de  nossa  santa  fe,  quis  dar 
obediencia  a  santa  Igreia  romana,  amotinarao  o  povo  e  o  matarao, 
dandolhe  batalha  em  campo  os  principaes  capitaes ;  tambem  o  em- 
perador  Seltan  Qagued,  que  oie  vive,  por  querer  fazer  que  deixas- 
sem  suas  heregias  e  recebessem  nossa  santa  fe,  o  quiserao  *matar  f.^s^.T, 
quatro  veses  e  huma  dellas  Ihe  derao  batalha  em  campo  e  mila- 
g^osamente  alquancpou  victoria,  como  dissemos  no  capitulo  5°  deste 
2°  livro;  a  o  que  se  aiunta  a  grande  devacidao  que   comummente 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVII.  519 

tem  estando  publicamente  amancebados  e  deixando  humas  molheres 
e  tomando  outras,  tanto  que  o  principal  dos  secretarios  do  Empe- 
rador  me  disse  huma  ves  diante  de  hum  frade  muito  grave :  «  Padre, 
nesta  nossa  terra  milhor  he  a  sorte  dos  frades  pera  as  cousas  da 
carne  que  a  dos  casados ;  porque  nos,  se  hemos  de  fazer  o  que  manda 
o  Evangelho,  nSlo  podemos  deixar  nossas  molheres  ate  a  morte; 
mas  elles  cada  ves  que  querem  deixSlo  huma  molher  e  tomSlo  outra  ». 
Disselhe  eu  que  pera  que  falava  daquella  maneira?  porque  ia  ha 
muito  que  se  confessa  com  nosco  e  publicamente  defende  nossa 
santa  fe.  Respondeo  elle :  «  Que  vaj  ?  pois  he  cousa  publica,  este  frade 
tem  ia  deixado  doze  > ;  e  elle  lan^ou  a  cousa  a  zombaria,  dizendo 
que  Ihe  nSo  desse  credito,  que  falava  como  queria;  mas  o  secre- 
tario  replicou  que  era  certo.  E  outra  ves  perguntando  eu  ao  em- 
perador  Seltan  Qagued  quantos  frades  averia  no  mosteiro,  que  cha- 
mao  Debra  Liban6s,  respondeo  que  primeiro  avia  muitos,  mas  que 
agora  erSlo  poucos,  acodio  hum  frade  que  ali  estava  dos  mesmos 
de  Taquela  Haimanot :  «  Tambem  agora,  se  se  aiuntarem,  nao  h«lo  de 
faltar  tres  mil  >.  Disse  o  Emperador  com  ser  homem  muito  grave  e 
modesto :  «  Se  contarem  tambem  seus  filhos,  serao ;  mas  elles  sos  nSo 
pode  s^r  ». 
f.240.  Chega  a  tanto  a  devacidSo  dos  frades,  *que   porque  da  serca 

pera  dentro  dos  mosteiros  nSo  podem  entrar  molheres,  as  tem  em 
muitas  partes  agazalhadas  perto  e  aquellas  casas  chamSo  Alengiie, 
que  quer  dizer  «  luguar  do  mundo  »,  e  la  vao  quando  querem  sem  os 
superiores  nem  Abuna  acabarem  de  tirar  isso,  porque  elle  he  peior; 
pollo  menos  os  que  eu  conheci,  tinhao  filhos,  e  quando  matarao  o 
derradeiro  acharao  que  tinha  sete  molheres,  como  no  principio  deste 
livro  dissemos.  O  emperador  Seltan  Qagiied  e  Eraz  Cela  Christos 
seu  irmao  tem  trabalhado  muito  e  trabalhao  peia  porem  algum  re- 
medio  a  isto  e  mandarao  que  aos  que  achassem  daquella  maneira 
Ihe  tomassem  fato;  e  vendo  que  nem  isso  bastava,  chegarao  a  fazer 
por  excomunhao  que  nao  dissessem  missa  os  que  assi  fossem,  e 
sobre  isto  ha  agora  muitas  murmura^oes  e  porfias.  Nosso  Senhor 
os  aiude  em  tam  santo  intento,  que  nao  parece  que  hao  de  poder 
acabar  o  que  pretendem.  Nem  he  novo  isto  agora  entre  os  frades, 
porque  o  padre  mestre  Gon(;alo  Rodriguez  de  nossa  Companhia  de 
Jesus,  que  foj  o  primeiro  della  que  no  anno  de  1555  entrou  em 
Ethiopia,  em  huma  carta  que  escreveo  o  anno  segninte  a  Portugnal 
dis,  que  indo  com  alguns  Portugueses  a  visitar  o  superior  de  Debra 


520  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Libands,  achou.que  o  mosteiro  era  muito  grande  e  perto  dos  frades 
avia  muitas  freiras  e  que  se  dizia  que  entre  elles  avia  muitos  filhos. 
Pello  que  bem  se  deixa  quam  pouco  dis  isto  com  Relig^osos  da 
sagrada  ordem  de  s.  Domingos;  e  assi  o  mesmo  Padre,  salvando 
logo  a  honrra  desta  sagrada  ReligiSo  aiuntou  estas  palavras:  €  A 
Ordem  destes  frades  nao  he  de  sam  *Francisco,  nem  menos  de  f.^^o.T. 
sam  Domingos,  mas  chamasse  de  Taquela  Haimanot,  que  foj  hum 
homem  assi  chamado,  o  qual  tem  qua  os  Abexins  que  foj  grande 
Santo  canonizado  por  elles. 


CAPITULO  XVIII, 

Em  que  se  declara  quantas  sao  as  Religioes  que  ha  em 
Ethiopia  e  quem  tem  por  fundadores,  que  modo  de 
govemo  e  vida  e  como  se  hao  com  os  novi^os. 


£m  todas  quantas  terras  de  Ethiopia  senhorea  o  Preste  JoSlo      x.     Monachonim 

<  1  -n    1'    '  1  1  lAfiArr^        duo  tantuni  ordines 

nao  ha  mais  que  duas  RehgiOes,  huma  que  chamao  de  Abba  Ta-  i^  Aethiopia,  quo- 
quela  Haimanot,  que  quer  dizer  c  planta  da  fe  »  e  outra  de  Abba  Sta-  ™™  ™"f  *^,  ^^^ 

^  -1       T  r-  TadA  Haiinan6t  no- 

teus;  e  os  frades  de  huma  e  outra  ReligiSo  se  prezSo  muito  de  men  habet,  aiter  ab 
terem  sua  origem  de  Abba  Arogaoi,  hum  daquelles  nove  Religio-  ^^^  tamen^sfb  awS 
sos  santos,  que  no  capitulo  precedente  dissemos  que  entrarflo  anti-  ArogAwi    originem 

,     _.      .  ^  ,      .  ,  ducit.  Quoad  viven- 

guamente  no  remo  de  Tigre,  o  que  amrmao  por  sem  duvida,  porque  di  normas  nihil  pro- 
as  historias  de  ambos  o  testificao.  Mas  tomaraonos  por  fundadores,  P«diff«runtinter  se; 

^  at  vero  perpetuas  li- 

por  elles  darem  o  habito  a  muitos  e  serem  tidos  entre   elles  por  tes  habent  de  hono- 

.      .  o      ^  1  -j  -1  ri8gradu,dequequo- 

msignes  Santos  e  esclarecidos  em  milagres.  rundam    agrorum 

O  modo  de  vida  de  todos  estes  frades  quasi  he  o  mesmo,  mas  poaaeseione. 
em  muitas  cousas  tem  grandes  differenpas,  como  sobre  algumas  ter- 
ras  de  que  estao  de  posse  os  de  Abba  Stateus,  que  os  de  Abba  Ta- 
quela  Haimanot  dizem  que  Ihe  pertencem,  e  principalmente  porfiao 
sobre  as  precedencias,  porque  ainda  que  os  de  Abba  Stateus  con- 
fessao  que  viviao  em  hum  tempo  e  que  Abba  Taquela  Haimanot 
morreo  primeiro,  porque  achao  em  sua  historia  que  indo  elle  pera 
f.  2^1.  Armenia,  Ihe  *revelou  Deos  nosso  S.**^  que  morrera  Abba  Taquela 

C.  Bbccari.  R^r.  Atik,  Script,  oee»  ined.  —  II.  66 


^4 
■ 

f! 
I 


522  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Haimanot,  com  tudo  isso  affirm^o  que  Abba  Stateus  come^ou  pri- 

meiro ;  o  que  negao  os  de  Abba  Taquela  Haimandt,  e  trazem  suas 

rezOes  pera  provar  que  seu  fiindador  come^ou  primeiro,  e  assi  andao 

em  porficis,  sem  se  acabar  nunca  de  resolver  a  questSo. 

a.  Cur  Auctor  tam  As  historias  destes  dous  fundadores  trabalhei  muito  por  aver» 

abbA^SuItto;  hiSis  ^^  ^^^  pude  alquan^ar  senSo  a  de  Abba  Taquela  Haimanot,  que 

coenobia  nuUuxn  8u-  g^  pora  no  capitulo   seguinte;  a  de  Abba  Stateus  nSo  pude  aver, 

periorem  generalem  ir  ir  o 

habent,  licet  Abbaa  porque,  alem  de  se  acharem  poucos  hvros  della,  nSo  os  querem 
primumhonoritgra-  ^niprestar,  por  Ihe  parecer  que  os  buscamos  pera  ver  se  se  acha  nel- 
dumobtineatinaula  les  alguma  cousa  em  que  se  Ihe  possa  por  nota,  ou  com  que  se  re- 

reg^a*   Abbates    eli-  ^ 

guntur  a  monachis,  futem  seus  erros ;  porque  tem  visto  que  os  refutamos  com  outros 
sed   ab   imperatore  g^^g  Uvros.  Mas  o  que  me   affirmarSo  sem   differenca  nenhuma  os 

confirmantur.     Qui-  ^  ^ 

bus  ritibus  flat  ele-  frades  dos  reinos  de  Gojam  e  Tigre,  onde  elles  tem  os  principaes 

ctio  et  confirmatio.  .  «^^Ar^A  «  ^** 

conventos,  he  que  Abba  Stateus  naceo  em  huma  terra  do  reino  de 
Tigre  que  se  chama  Cera,  e  depois  de  ter  edificado  muitos  mo- 
steiros  e  dado  o  habito  a  gprande  numero  de  frades,  deseioso  de 
ensinar  e  dilatar  a  santa  fe,  se  embarcou  pera  Armenia,  onde  esteve 
pregando  ate  que  morreo,  e  por  nao  deixar  ca  em  seu  lug^ar  quem 
fosse  superior  de  todos,  ou,  se  ficou,  durou  pouco  tempo,  nao  tem 
os  Priores  dos  mosteiros  dependencia  huns  dos  outros,  mas  quando 
alguma  ves  sucede  que  o  Prior  do  mosteiro  de  Bi^an,  que  esta 
perto  do  porto  de  Macjua,  vem  com  outros  visitar  o  Emperstdor  ou 
a  algum  negocio,  he  custume  entrar  elle  diante  e  ter  la  dentro  o 
primeiro  luguar. 

Ao  Prior  ou  Abbade  do  convento,  que  chamao  Memeher,  que 
quer  dizer  «  mestre  »,  e  he  perpetuo  *ate  a  morte,  ainda  que  algumas  f.a^i.v. 
veses  o  tirao  por  casos  graves,  e  elegem  outro  e  quando  he  tam 
velho  que  nao  pode  acodir  as  cousas  de  seu  officio.  A  elei^ao  vaj 
por  votcs  dos  frades  sos  daquelle  convento,  e  depoes  o  levao  ao 
Emperador  e  Ihe  dizem  como  escolherao  aquelle  por  seu  mestre  e 
Ihe  pedem  que  mande  fazer  as  ceremonias  custumadas,  que  sao  vi- 
stiremlhe  sobre  seu  habito  huma  roupa  azul  sem  colarinho,  que 
chega  ate  os  pes,  e  poremlhe  na  cabe^a  huma  coroa  de  ouro  de 
dous  dedos  de  alto,  e  assi  o  levao  acompanhado  dos  frades  ate  sair 
a  primeira  cerca  do  pa^o,  e  alli  publicao  diante  dos  que  se  achao, 
que  ordinariamente  sao  muitos,  como  a  quelle  se  deu  o  cargo  de  tal 
convento;  e  logo  toma  com  o  mesmo  acompanhamento  e  beija  a 
mao  ao  Emperador,  e  depoes  tira  a  coroa  e  despe  a  roupa  azul,  e 
se  seu  convento  he  dos  grandes,  Ihe  da  o  Emperador  alguma  pe^a 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVIII.  523 

boa  e  mula,  e  quando  torna  a  seu  mosteiro,  o  levao  a  igreia  e  na 
entrada  da  capella  se  assenta  na  cadeira  de  seu  antecessor,  com 
huma  crus  na  mao,  ficando  todos  os  frades  em  pe,  e  logo  hum  dia- 
cono  revestido  canta  em  vos  alta  aquelle  verso  de  David :  «  Etenim 
benedictionem  dabit  leg^slator,  ibunt  de  virtute  in  virtutem,  vide- 
bitur  Deus  eorum  in  Sion  > ;  e  todos  repetem  o  mesmo  cantando,  e 
isto  dizem  tres  veses,  o  diacono  e  elles  altematim.  E  depoes  o  Dia- 
cono  16  o  Evangelho  de  s.  Matheus,  comegando:  «  Vos  estis  sal 
terrae  »  ate  chegar  onde  diz :  «  Et  glorificent  Patrem  vestrum  qui 
in  coelis  est  ».  E  logo  se  alevanta  e  da  a  ben^ao  a  todos,  e  o  levSlo 
com  grande  festa  a  casa  do  Abbade  passado,  porque  os  frades  n£lo 
f.  242.  morSlo  em  celas  '''como  os  de  Europa,  senSlo  cada  hum  em  sua  ca- 
sinha  afastada,  como  adiante  diremos.  Mas  esta  ceremonia  fazem  al- 
gumas  veses  logo  como  o  elegem,  antes  de  o  levar  ao  Emperador ; 
e  se  alguma  ves  sucede  que  votem  por  dous  e  saiao  os  votos  ignaes^ 
vSio  com  a  demanda  ao  Emperador  e  comummente  toma  com  o 
cargo  o  que  na  corte  tem  mais  que  falem  por  elle  ao  Emperador, 
ou  seia  por  via  de  amizade  ou  por  peitas  (que  ca  com  os  da  corte 
podem  mais  que  outra  cousa  nenhuma);  porque  estes  informao  ao 
Emperador  como  querem  e  ordinariamente  fazem  que  escolha  a 
quem  elles  pretendem;  e  como  manda  que  se  Ihe  de  a  coroa,  que 
dissemos,  he  tudo  acabado. 

Os  frades  de  AbbS  Taquela   Haimandt  demais  dos  Abbades      a.Coenobiaomxiia 

j  ^-^i-  i_  r^        t  f_        «bbA   TacU  Haima- 

dos  mosteiros,  tem  hum  superior,  que  he  como  Geral,  a  quem  cha-  ^^^^  practer  proprio 
mao  IcheguS  e  o  elegem  por  votos,  como  ia  dissemos.  Este  visita  Abbati,  uni  Praesidi 

^enerali  subsunt,  qui 

os  conventos  de  toda  sua  Ordem,  e,  quando  nSo  pode,  os  manda  icheguftvocatur:hic 
visitar  por  algum  frade.  e  se  acha  alguma  cousa  que  mere,a  ca-  ^"^^^^^tL^ 
stigo,  o  da;  que  comummemte  he  tomar  fato;  porque  os  frades  tem  «tatuit.  Licet  dentur 

iudices  ecclosiastici, 

algum  em  particular,  como  adiante  veremos;  ainda  que  tambem  da  tamenplerumqueso- 
outras  penitencias,  quando  Ihe  parece,  mas  com  todas  suas  visitas  ^*  i^^dice*  sawularea 

^  ^  x-  '  contra  monachoscri- 

veio  pouca  reforma^ao,  porque  assi  estSo  os  frades  oie  amancebados  minia  reos  senten- 

,4.  .  tiam  dicunt. 

pubhcamente  como  estavSio  nos  tempos  passados. 

Nas  differen^as  e  demandas,  que  tem  entre  si,  pedem  iuis  a 
seu  IcheguS  e  algumas  veses  ao  Abuna,  mas  de  qualquer  delles 
que  for  o  iuis,  nSo  pode  entrar  a  fazer  seu  officio  sem  primeiro 
f.242,>.  falar  com  o  senhor  da  terra  em  que  esta  o  mosteiro,  *ou  com  quem 
elle  tem  posto  em  seu  luguar,  e  este  da  hum  homem  que  assista  ao 
tomar  das  testemunhas  e  as  demais  diligencias  que  fas  o  iuis,  e  ul- 
timamente  iulga  o  que  Ihe  parece,  e  depoes  da  sua  senten^a  o  iuis. 


5^4  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

e  por  isto  tem  certa  parte  naquillo  em  que  o  juis  condemna  a  parte 
culpada,  e  se  alguma  das  partes  agrava  da  senten^a,  vao  com  ella 
a  quem  deu  o  iuis  e  ali  se  acaba. 

Tambem  algumas  veses  nestas  demandas  e  geralmente  nas  que 
tem  com  os  seculares  vao  a  pedir  iuis  aos  tribunaes  do  Emperador 
ou  ao  Viso  Rei  daquella  parte  onde  esta  o  mosteiro,  e  este  iuis 
tambem  ha  de  falar  com  o  senhor  da  terra  pera  que  ponha 
algum  em  seu  luguar;  e  quando  levSlo  a  sentenga  aquelles  tribu- 
naes,  se  achSo  que  o  frade  merece  acoutes  ou  morte,  iulgao,  mas 
nao  se  executa  a  sentenQa  sem  a  confirmar  o  Emperador,  ou  o  Viso 
Rei  que  deu  o  iuis.  E  eu  vi  dous  frades,  aquem  o  emperador  Seltan 
^agued  mandou  acoutar  e  Ihos  derSo  muito  bons  a  hum  diante  do 
pa^o  e  a  outro  no  campo  diante  das  tendas  do  Emperador,  porque 
a  este  se  Ihe  provou  que  Ihe  machinava  a  morte.  E  hum  Viso  Rei 
de  Tigre  iulgou  que  hum  frade  fosse  morto  as  lan^adas,  porque, 
estando  hum  seu  capitao  perto  do  mosteiro  deste  frade  peleiando 
contra  hum  alevantado,  que  ainda  que  tinha  muita  gente,  nSo  podia 
fazer  dano  ao  capitao  por  ser  lug^ar  forte,  o  frade  guiou  a  gente  do 
alevantado  por  caminho  que  elles  nao  sabiao  e,  dando  de  subito 
pollas  costas,  desbaratarao  ao  capitao  e  Ihe  matarao  muita  gente 
e  roubarSo  muito  fato,  que  estava  guardado  no  mosteiro;  e  pouco 
depoes  que  se  executou  a  senten^a,  acertei  eu  de  chegar  *de  outra  f.  243 
terra  a  visitar  o  Viso  Rei  e  vi  o  frade  morto.  E  isto  de  iulgarem 
os  iuises  do  Emperador  contra  os  frades  e  clerigos,  quando  o  me- 
recem,  e  executaremse  suas  senten^as,  he  cousa  muito  ordinaria. 
^  Daqui  se  ve  quam  pouco  val  a  interpretapao  que  tras  frei  Luis 
de  Urreta  no  3°  livro  de  sua  Htstoria  pag.  708,  ao  que,  como 
elle  ali  affirma,  escreveo  Illescas  na  vida  de  Clemente  7**,  que  em 
Ethiopia  nao  ha  immunidade  ecclesiastica,  e  que  a  iusti<;a  secular  in- 
differentemente  castiga  a  seculares,  religiosos  e  clerigos ;  e  ao  que  dis 
Francisco  Alvares  em  sua  Historia  Ethiopica,  que  vio  acoutar  certos 
religiosos  diante  das  tendas  do  Preste  Joao ;  ao  que  responde  que  se 
enganarao  com  certa  sorte  de  hermitaes  que  ha  oie  em  Ethiopia 
nos  desertos,  que,  ainda  que  trazem  habito  e  fazem  grandes  peni- 
tencias,  sao  puros  seculares,  e  assi  todas  as  veses  que  querem  deixSo 
o  habito,  nem  tem  habito  certo  e  sinalado;  porque  huns  vestem 
pelles  cortidas,  outros  panos  amarelhos  de  algodao,  mas  tem  al- 
guns  conventos  onde  se  da  este  habito  aos  que  o  pedem;  e  al- 
guns  velhos,  que  sao  sacerdotes  e  ministrao  os  sacramentos:  a  estes 


UVRO  II,  CAPITULO  XVIII.  525 

hermitaes,  que  fora  daquellas  penitencias  e  modo  de  vida  sdo  se- 
culares  prende  e  castiga  a  iusti^a  secular  como  aos  outros  seculares 
e  nSio  aos  sacerdotes  e  religiosos ;  antes  nSlo  ha  na<^o  que  Ihes  tenha 
maior  respeito. 

Esta  imagina<;2io  do  Autor  nSio  basta  pera  convencer  que  os  4«  NuUus  Bremi- 
que  vio  acoutar  Francisco  Alvares  nao  erao  verdadeiramente  fra-  ^„3  j^  Acthiopiarut 
des  senao  daquelles  hermitaes  que  elle  pinta;  porque,  ainda  que  eu  «onmiavit  ^rreta; 
f  243,T.  nao  achei  as  palavras  que  allega,  por  elle  '''nao  citar  o  luguar,  nem  a  in  deserto  coenobia 
Historia  de  Francisco  Alvares  que  eu  tenho  estar  repartida  em  ca-  smtmOTiachisiipeis 
pitulos,  nem  ter  index,   por  ser  muito  antiga,  na  pag.  78  affirma  li^et.  leiunia  aliae- 

que  corporis  a£Qicta- 

que  veo  acoutar  hum   frade  na  corte  por  trazer  huma  carta  dos  tiones  eremitae  fre- 
Infantes,  que  estao  no  monte  de  Amhara,  e  mostra  claramente  que  <1'»«**^5  »«<l'»«  <=|*°^ 

^  ^        Buperis  lactant  habe- 

aquelle  frade  era  sacerdote,  porque  dis  que  Ihe  preguntavao  onde  re  commercia,  unde 

.  »         .  -mjg-  01  ..T^..  A1      apud  rudes  in  magno 

se  ordenara  de  missa.  Mas,  seia  o  que  for  do  que  dis  Francisco  Al-  suntpretio^atmores 
vares,  o  que  passa  na  verdade  he  que  as  iusticas  do  Preste  loao  naonachomm     ple- 

rumque  perditissimi. 

prendem  aos  clerigos  e  frades  e  os  castigao  conforme  suas  culpas.  Huiua  depravationis 
Nem  em  Ethiopia  ha  tal  sorte  de  Hermitaes  como  elle  dis  que  estao  ^j^^^J^y.  Auctore 
oie,  nem  os  innumeraveis  solitarios  e  anacoretas,  que  affirma  estao 
nos  desertos,  huns  de  sam  Mojses  Ethiope,  outros  de  sam  Paulo 
primeiro  hermitao,  de  sam  Hilariao,  de  sam  Panuphio,  de  sam  Ma- 
cario  e  de  sam  Onofrio,  de  nenhuns  destes  ha  tais  solitarios  nas  terras 
do  Preste  loao:  todos  quantos  andao  nos  desertos  sao  frades  das 
religiOes,  de  [que]  imos  falando,  de  Abba  Statefls  e  de  Taquela 
Haimandt ;  e  estes  trazem  o  habito,  como  elle  dis,  huns  de  pano  de 
algodao  amarelo,  outros  de  peles  como  as  camu^as  de  Hespanha, 
porem  mais  grosseiras,  outros  de  pano  de  algodao  preto  ou  branco, 
que  nisto  nao  ha  cousa  particular  entre  os  do  deserto  e  do  povoado : 
cada  hum  traz  o  habito  da  cor  e  pano  que  quer  ou  pode,  e  assim 
alguns  poem  sobre  o  habito  panos  de  seda  bem  custosos ;  porem  os 
do  deserto,  que  se  querem  mostrar  mais  penitentes,  sempre  vestem 
pelles  amarelas  como  camu^a  grossa.  Tem  la  seus  mosteiros  e  pera 
estarem  mais  livres  da  comunica<^o  e  trato  da  outra  gente,  alquan- 
f.  244-  <?arao  dos  *Emperadores  que  pera  dentro  de  certos  limites  muito 
longe  de  seus  mosteiros  ninguem  pudesse  lavrar  nem  povoar,  e  de 
ordinario  fazem  naquelles  mosteiros  grandes  penitencias,  particular- 
mente  na  quaresma  as  acrescentao,  porque  saiem  de  dous  em  dous 
ou  mais  iuntos  a  ieiunar  debaixo  de  arvores  ou  em  lapas,  e  nao  comem, 
senao  a  nojte,  algumas  hervas  ou  ligumes  e  bebem  agoa,  e  alguns 
estao  dous  dias  e  mais  sem  comcr  nem  beber,  trazem  silicios  de  ferro 


526  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 


H 


e  fazem  outras  cousas  mui  extraordinarias;  mas  que  Ihe  aproveita 
tudo  isto,  poes  sSlo  scismaticos  e  hereges  [?]  e  sem  fe  he  impossivel 
agradar  a  Deos,  como  dis  sam  Paulo :  c  Sine  fide  autem  impossibile 
est  placere  Deo  ».  Ad  Hebraeos  ii. 

Os  frades  dos  mosteiros,  que  estSlo  em  povoado,  se  vSlo  aos  ,, 

mosteiros  dos  desertos  quando  querem,  sem  que  seu  superior  Iho  1 

possa  prohibir,  e  de  poes  quando  Ihes  parece  tomao  pera  povoado. 
£  a  gente  popular  os  tem  por  santos,  e  assi  da  grande  credito  a 
tudo  o  que  dizem,  e  elles  tambem  se  querem  mostrar  taes,  metendo 
em  cabe^a  aos  ignorantes  e  ainda  a  muitos  que  parecem  discretos, 
que  tem  grandes  revela<;oes  e  que  Ihe  manifesta  nosso  Senhor  as 
cousas  que  est&o  por  vir,  e  assim  v2lo  alguns  a  elles  como  a  ora- 
culos  e  com  acharem  cada  dia  quam  falsos  e  mentirosos  s^o  seus 
sonhos,  nao  se  acabao  de  desenganar,  nem  com  verem  mmtas  veses 
que  aquelles  que  tinhSlo  por  santos,  depoes  de  suas  penitencias, 
deixSlo  *o  habito  e  casSo  publicamente ;  e  eu  conhe^o  hum  que  esteve  f.2441^. 
seis  annos  no  deserto  vestido  de  pelles  e  fazendo  grandes  peniten- 
cias,  tanto  que  demais  das  ordinariais  que  acustumSlo  os  outros,  ga- 
stava  certas  horas  do  dia  em  ora^So  com  a  cabega  no  chao  e  os 
pes  pera  sima,  e  agora  esta  casado  com  bem  de  filhos;  e  decla- 
randolhe  eu  huma  ves  quam  grande  sacrilegio  era  deixar  o  habito 
e  estar  daquella  maneira,  me  respondeo,  que  deixaxa  o  habito  por- 
que  primeiro  Iho  fizerao  tomar  contra  sua  vontade,  e  que  depoes, 
por  achar  que  nao  podia  viver  castamente,  casara.  Esta  mesma 
escusa  trazem  todos  os  que  deixao  o  habito  (que  nao  sao  poucos) 
dos  que  estao  em  mosteiros  de  povoado  e  casao,  sem  aver  quem 
de  remedio  a  isso.  E  na  verdade  a  alguns  Ihe  fazem  os  superiores 
dos  mosteiros  tomar  o  habito  por  for^a,  porque  tem  por  grande 
honrra  dar  o  habito  a  muitos,  e  pera  isto  se  os  meninos  que  ensi- 
nao  nao  querem  ser  frades  por  rogos,  a  algnns  prendem  e  dao  outras 
molestias  ate  que  vem  a  dizer  que  sj,  e  a  outros  Ihe  persuadem  que 
tomem  o  habito  que  com  isso  alquan^arao  honrra  entre  os  senhores 
e  assim  muitas  vezes  Iho  dao  sem  noviciado  nem  prova  nenhuma 
mais  que  dizer  que  o  quer,  como  me  affirmarao  algfuns  frades.  E 
entre  elles  ha  hum  abbade  velho,  que  ha  perto  de  quarenta  annos 
que  o  he  de  hum  mosteiro  dos  mais  antigos  e  maiores  que  ha  em 
Dambia,  *e  me  disse  que  toda  esta  perdi^ao  dos  frades  vinha  por  f.  245- 
Ihe  darem  o  habito  desta  maneira  sem  as  prova<;oes  que  primeiro 
tinhao,  que  sao  as  seguintes,  segundo  elles  o  affirmao. 


LIVRO   II,  CAPITULO  XVIII.  527 

Quando  antigamente  recebiSo  algum  novi^o,  o  provavao  7  annos  5.  Antiqultus  mo- 
servindo  no  mosteiro  e  fazendo  que  se  exercitasse  em  cousas  tra-  annos  wiis^^ri- 
balhosas,  andando  sempre  com  vestido  secular,  e  neste  tempo  tinha  ««ntisexercebantur. 

^  Kx    quodam    Ubro, 

elle  hberdade  pera  se  poder  ir,  se  nao  se  atrevia  com  aquelle  modo  quem  Auctor  com- 
de  vida,  e  os  frades  tam  bem  o  despediao  se  Ihe  parecia  que  nao  ^rfb^^^^mtll 
era  pera  a  religiao ;  mas,  se  determinava  de  perseverar  e  os  frades  tipliccs    initiationis 

^  monasticae.  Vestitus 

estavao  satisfeitos  delle,  o  aprovavao  e  davao  o  habito  desta  ma-  monachonim  est  tu- 
neira.  Confessasse  com  o  Abbade  do  mosteiro  e  locfo  benza  a  acfoa  ^^  talaris,  plerum- 

^  ^         que  colons  albi,  co- 

e  o  bautiza  dizendo:  «  Foao,  eu  te  bautizo  no  nome  do  Padre  e  do  rio  praecincta  et  cu- 
€  Filho  e  do  Spirito  Santo  »,  e  Ihe  poem  oleos  estando  na  igreia  tamquam  honoris 
presentes  nao  mais  que  os  frades,  porque  nenhuma  pessoa  secular  insigne,  gestant  Az- 

.  MT      -i.  r-  quemA,quaee8t8tola 

deixao  entrar;  e  levandoo  diante  do  altar,  onde  ia  esta  revestido  quaedam  pergami- 
hum  sacerdote  e  ministros,  come^ao  a  cantar  aquelle  verso  de  David:  cuTcr^ibiM*  ecoUo 
«  Illumina  oculos  meos,  ne  unquam  obdormiam  in  morte,  ne  quando  P^ndcns  et  infra  pe- 

ctu8  aenea  fibula  ad- 

dicat  mimicus  meus:  prevalui  adversus  eum».  Psal.  12;  depoes  do  atricta. 
psaltno  33:  «  Accedite  ad  eum  et  illuminamini  et  facies  vestrae  non 
confundentur  > .  E  assi  vao  tomando  alguns  versos  de  outros  muitos 
Psalmosv  E  acabado  isto,  benze  o  sacerdote  incenso,  dizendo  duas 
f.245.^-  oracjoes,  e  logo  o  diacono  dis  hama  orax^ao  rogando  pollo  Patriar*cha 
de  Alexandria  e  poUo  Abuna.  Depoes  prosigue  o  sacerdote  rogando 
pellos  que  estao  presentes  e  pello  povo. 

Acabado  isto,  toma  o  sacerdote  huma  thesoura  e  cortalhe  alguns 
cabellos  da  cabe^a  em  sinco  partes  a  modo  de  crus  dizendo  o  Pater 
noster  e  o  psal.  50;  e  logo  o  Abbade  diz  sobre  elle  esta  oragao: 
«  Deos  todo  poderoso,  que  morais  nas  alturas  e  vedes  todas  as 
«  cousas  e  sabeis  o  escondido  do  cora^ao  do  homem,  olhai  de  vossa 
«  gloria  santa  a  vosso  servo  Foao,  que  vos  veio  a  buscar  e  a  se  vos 
«  soieitar  sendo  frade;  endereitai  seu  caminho,  dailhe  enteira  paciencia 
«  e  afastai  delle  todo  o  pensamento  deste  mundo,  e  quando  fizer  ora- 
«  ^ao,  afastai  delle  toda  a  obra  ma  e  recebei  sua  ora^ao  por  vossa  mi- 
«  sericordia;  dailhe,  Senhor,  a  lus  de  vossa  graga,  porque  vos  buscou 
«  por  amor  e  de  cora^ao ;  fazei  que  fuja  dos  apetites  deste  mundo  e 
«  que  seia  idoneo  pera  vossa  vinha  espiritual  e  nao  tome  atras  nem 
«  cuide  no  amor  deste  mundo.  Dailhe  paciencia  nos  trabalhos  e  pera 
«  se  soleitar  com  limpeza  a  vosso  mandado  e  a  vossa  vontade  por  amor 
«  de  vosso  nome  que  foj  invocado  sobre  elle,  e  pera  fazer  o  que  for 
«  milhor  e  buscar  os  misterios  santos,  pera  possuir  a  alegria  que  nao 
«  se  acaba  e  pera  achar  parte  no  reino  do  ceo  com  vosso  Filho  uni- 
«  genito  nosso  Senhor  lesu  Christo  pera  sempre  dos  sempres.  Amen. 


528  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  Deos  todo  poderoso,  pai  de  nosso  Senhor  Jesu  Christo,  pedimos 
c  vos,  o  amador  dos  homens,  '"olhai  sobre  vosso  servo  Foflo,  que  f.  246. 

<  esta  humilhado  diante  de  vossa  gloria.  Benzeio  e  santificaio  e 
€  amarrajo  a  vossa  Santa  Crus,  e  aiuntaio  com  os  exercitos  cele« 
€  stiais,  e  quando  puser  Azquema  se  mostre  nu  das  cousas  deste 
€  mundo,  e  fazei  que  passe  delle  o  amor  vfto ;  dailhe  humildade  spi- 
«  ritual  e  cora^Slo  limpo  e  bom  pensamento,  amor  e  paciencia;  afastai 

<  delle  todas  as  representa^Oes  dos  demonios  e  botaios  debaixo  de 

<  seus  pes ;  dailhe  poder  por  andar  sobre  as  serpentes,  ponde  em 

<  seu  cora^ao  vosso  temor  vivo,  pera  que  se  affaste  delle  o  pensa- 

<  mento  da  came,  e  alimpai  seu  corpo  e  alma  pera  que  seia  puro 

<  sem  nenhuma  maldade ;  acendei  e  g^ardai  a  candea  de  suas  obras, 

<  pera  que  nao  se  perca ;  fazei  que  na  derradeira  hora  esteia  apa- 

<  relhado  pera  vestir  vestido  limpo  com  vosso  Filho  unigenito  nosso 

<  Senhor  e  Selvador  Jesu  Christo.  A  vos,  a  elle  e  ao  Spirito  Santo 

<  gloria  pera  sempre.  Amen  >. 

Depoes  benzem  o  cinto,  que  he  de  correa  com  ora<;Oes  muito 
compridas  e  lem  licOis  do  fim  da  epistola  ad  Ephssios,  come^ando: 

<  Induite  vos  armaturam  Dei  etc.  >  ate:  <ut  in  ipso  audiam  prout 
oportet  me  loqui  »  e  de  sam  Pedro  e  dos  Actos  dos  Apostolos ;  e  logo 
do  Evangelho  de  sam  Matheus:  <  Ecce  nos  reliquimus  omnia  etc.  », 
e  de  sam  Marcos:  <  Ecce  nos  dimisimus  omnia  etc.  »,  e  de  sam 
Joao :  <  Pater,  venit  hora,  clarifica  filium  tuum  etc.  ».  E  logo  dizem 
4  vezes  Kirie  eleyson,  e  huma  ora^ao  e  depoes  dandolhe  o  habito 
e  o  cinto  dizem  duas  ora^oes.  E  como  se  cinge  dizem  outra  em  que 
se  fas  menc^ao  de  que  seia  cingido  com  cinto  que  nao  se  solta ;  e 
logo  outra  mui  comprida,  pedindo  que  assim  como  o  Senhor  man- 
dou  *o  Espirito  Santo  sobre  seus  Apostolos,  o  mande  tambem  sobre  f.*4^T» 
aquelle  seu  servo,  e  que  ponha  sua  mao  direita  sobre  elle  e  o 
guarde  como  a  filho.  Demais  destas  ora^oes  tem  outras  acomodadas 
pera  os  que  sao  virgens  e  outras  pera  os  viuvos  a  que  dao  o  habito. 

Em  acabando  isto  benza  o  capello  dizendo  o  Credo,  e  alguns 
Psalmos  e  tres  veses  Alleluja  e  incensao  dizendo  huma  ora^ao  e 
logo  outra  mui  comprida  e  depois  toma  o  Abbade  o  capello  na  mao 
e  dis  outra  oracao,  e  como  acaba  lem  hum  grande  pedago  da  Epi- 
stola  ad  Tlebraeos,  come^ando:  <  Est  autem  fides  sperandarum  sub- 
stantia  rerum  etc.  »  e  da  prima  de  S.  Pedro :  <  Chaxissimi,  obsecro 
vos  tamquam  advenas  et  peregrinos  »  ate :  <  Beatius  est  magis  dare 
quam  accipere  \sic\  *.  E  logo  o  sacerdote  le  o  Evangelho  de  sam  Lu- 


LIVRO  II,  CAPITULO  XVIII.  529 

cas:  19  «  Homo  quidam  nobilis  abiit  in  ragionem  longinquam  etc.  »  , 
e  depoes  Ihe  poe  o  Abbade  o  capello  e  tendo  a  mao  sobre  a  ca- 
be^a  dis :  <  Eis  aqui  pus  sobre  vossa  cabe^a  este  capello  de  humil- 
«  dade,  que  convem  a  penitencia  pera  dardes  fruto  honrroso  com 
«  aiuda  de  nosso  Senhor  Jesu  Christo.  A  elle  gloria  e  ao  Padre 
«  e  ao  Spirito  Santo  agora  e  pera  sempre.  Amen  > .  E  logo  prosi- 
gue :  «  Pedimos  vos,  Senhor  todo  poderoso,  que  por  vossa  miseri- 
«  cordia  livrastes  a  vosso  servo  da  morte  deste  mundo  e  o  metestes 
«  no  caminho  da  iustificaQao,  que  o  livreis  e  salveis  das  tentapoes 
«  do  demonio ;  gnardai,  Senhor,  sua  alma  com  limpeza  pera  que 
«  seia  esposo  do  Spirito  Santo  e  fazei  que  se  lembre  sempre  de 
«  vosso  mandamento  e  o  cumpra :  dailhe  paciencia,  cora^ao,  humil- 
«  dade,  bondade,  fe,  esperan^a  e  charidade  em  vosso  unigenito  filho 
«  Nosso  Senhor  e  salvador  Jesu  Christo  pera  sempre.  Amen  *. 
f.  247.  *Como  acaba  esta  ora^ao  le  nao  sei  que  cousas  que  dis  o  livro, 

que  convem  aos  frades,  mas  nao  me  quiserao  mostrar,  e  perguntalhe 
tres  vezes  se  pode  tirar  sobre  si  aquella  carga  e  comprir  todas 
aquellas  cousas,  e  cada  hum  responde  que  sy ;  e  logo  manda  que 
se  deite  no  chao,  e  elle  se  poem  da  maneira  que  esta  o  morto  na 
sepoltura  pera  mostrar  que  morreo  aos  appetites  da  carne  e  a  todas 
as  cousas  do  mundo,  e  vive  pera  todo  o  bem,  e  dis  sobre  elle  huma 
ora^ao  e  depoes  o  sacerdote,  que  esta  revestido,  outras  muitas,  e 
como  as  acaba,  come^a  a  missa,  e  da  a  comunhao  ao  que  recebeo  o 
habito.  E  acabada  a  missa,  o  levao  com  festa  a  comer  com  o 
Abbade. 

Tudo  isto  achei  em  hum  livro,  que  me  emprestou  hum  Abbade  e 
disseme  que  alguns  nao  queriao  tomar  o  capello  iuntamente  com  o 
habito,  dando  algumas  escusas  de  humildade,  mas  que  ordinaria- 
mente  era  pera  o  ir  tomar  a  outro  mosteiro,  porque  depoes  pode 
estar  em  qualquer  dos  dous  que  elle  quizer,  e  por  for^a  hao  de 
partir  com  elle  das  terras  daquelle  mosteiro,  como  adiante  diremos. 

Demals  do  habito  e  capello  tem  outra  cousa  a  que  chamao 
Asquema,  que  he  como  huma  tranca  muito  estreita,  que  fazem  de 
tres  tiras  de  purgaminho  e  a  poem  ao  pescoso  de  maneira  que  ambas 
as  pontas  vem  por  diante  a  se  amarrarem  em  huma  argolinha  de 
cobre,  que  tem  no  cinto,  e  alguns  poem  nella  humas  crusinhas  de 
pao  muito  pequeninas.  Esta  Asquema  nao  se  pode  dar  ao  frade  ate 
que  tenha  trinta  annos  de  idade  e  antes  de  a  receber  ha  de  servir 
hum  anno  no  que  os  frades  o  quiserem  ocupar;  e  quando  Iha  dao 

C.  Bbccaki.  Rtr.  Aeih.  Scrtpi,  occ,  ined.  —  II,  67 


530  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

he  com  muitas  ceremonias  e  dizendo  dlversas  ora^Oet  e  a  estimSo 
muito  e  tem  por  cousa  de  grande  honrra. 
6.  lidem  ferme  ri-  *Tambem  esti  naquelle  livro  o  modo  com  que  hao  de  dar  o  f 

mr  monJaleB,  ildeml  habito  as  freira»  e  aponta  muitas  ora^oes  e  dis  qoe  le  cortem  ca- 
lue  imrum  nores.  bellos  da  cabei;a  em  sinquo  partes,  como  fazem  quando  dao  o  habito 
aos  frades,  e  outro  Ihe  rape  toda  a  cabe<;a  e  depoes  Ihe  dem  o  veo, 
que  he  quasi  como  o  capello  dos  frades;  e  ainda  que  nunca  qua 
estiverao  as  freiras  em  mosteiros  como  em  Enropa,  senao  cada  buma 
em  sua  casinha  afastada,  de  maneira  que  sua  estancta  era  como 
huma  povoa<;3io,  maior  ou  menor  segundo  o  numero  dellas,  com  tudo 
isso  dizem  que  estavao  encostadas  a  algum  mosteiro  de  frades  e 
que  tinhao  huma  superiora  a  quem  obedeciao.  Agora  tambem  ha 
algumas  que  estao  em  suas  casinhas  perto  de  mosteiros,  e  os  Ab- 
bades  tem  alguma  superintendencia,  mas  o  comum  he  estarenn  onde 
querem  afastadas  humas  de  outras  de  maneira  que  mais  pau^ecem 
Beatas  que  freiras,  e  o  que  pior  he  que  {segundo  dizem)  assim  as 
que  estao  tuntas  perto  dos  mosteiros,  como  as  que  estao  afasta- 
das,  comummente  tem  mais  mundo  do  que  tinhao  antes  qne  fossem 
freiras. 


CAPITULO   XIX. 

Bm  que  se  refere  a  historia  de  Abba  T&quel&  Haiman^ 
como  a  contao  os  livros  de  Ethiopia. 

Esta  historia  escreve  frei  Luis  de  Urreta  no  cap.  9  em  huma  i.  Refertur  com- 
com  que  saio  o  anno  de  161 1  dos  Santos  de  Ethiopia  e  pag,  131  5k  Haiman6t  ab  Ur- 
dis   que   Abba  Taquela   Haimanot  foi   natural  da   famosa  cidade  ^^    conacripta    et 

demonstratur    eam 

f.  248.  Sabba  cabe<;:a  de  toda  Ethiopia,  illustre  por  *ser  a  maior  de  toda  fabulis  et  erroribus 
ella,  populosa  por  aver  servido  muito  tempo  de  corte  aos  Empe-  •^**"' 
radores  e  nobilissima  por  ser  edificada  poUa  rainha  Sabba  quando 
tornou  de  visitar  o  santo  templo  de  Salam2io.  Seu  paj,  que  se 
chamava  Sacasab  foj  rei  nesta  cidade  metropoli  do  reino  Sabba 
e  casou  com  a  filha  de  hum  rey  de  Ethiopia  que  se  chamava 
Sarra  donzella  estremada  em  fermosura  e  de  grande  honestidade 
e  virtude,  e  no  estado  santo  do  matrimonio  viverao  muitos  annos 
com  o  de  virgindade  imitando  o  estado  matrimonial  da  Virgem 
Maria  e  Santo  Joseph;  mas  depoes,  estando  ella  em  ora^^o,  Ihe 
apareceo  hum  anjo  e  Ihe  disse  que  era  vontade  de  Deos  que  con* 
sumasse  o  matrimonio,  porque  Ihe  queria  dar  por  filho  huma 
pranta  fiei  e  fructifera  em  toda  Ethiopia,  e  aparecendo  tambem 
ao  rei  Sacasab  Ihe  mandou  o  mesmo  de  parte  de  Deos.  Obecerfto 
os  santos  ao  mandado  de  Deos  e  concebendo  Sarra  pario  a  seu 
tempo   hum  filho  a  quem  no  bautismo  poserOo  nome  Tacleaima* 


532  HISTORIA  DE  EXmOPIA 

not,  que  quer  dizer  c  planta  fructifera  »  e  depois  tomarao  a  conti- 
nuar  seus  bons  deseios  de  castidade  por  toda  a  vida,  ocupandose 
em  ora^oes. 

Chegando  o  santo  mancebo  aos  20  annos  de  idade,  levou 
Deos  a  seus  paes  pera  Ihe  dar  o  premio  de  suas  virtudes  e  ainda 
que  de  tam  pouca  idade,  rico  e  poderoso  e  rei  de  hum  grande 
reino,  como  nelle  *aviao  florecido  sempre  bons  deseios,  temeo  nao  ^.248,^. 
se  Ihe  mallograssem  e  com  este  temor  renunciou  o  reino  nas  maos 
do  Preste  Joao,  e  porque  nao  Ihe  obrigassem  seus  vassalos  a  tornar 
ao  reino,  se  foj  ao  Abuna  de  Ethiopia  que  se  chamava  Athanasio, 
pera  que  o  ordenasse  de  todas  as  ordens  sacras  ate  o  santo  sacer- 
docio;  o  que  o  Abuna  fes  por  ter  revela^ao  e  mandado  do  ceo 
pera  isso.  Despediose  do  Abuna  e  tomando  sua  ben^ao  se  foj 
poUos  reinos  de  Ethiopia  pregando  e  entrou  no  reino  de  Damot, 
que  naquelle  tempo  era  de  mouros  e  converteo  ao  rei  e  todos 
seus  vassalos  e  o  Preste  Joao  mandou  la  muitos  sacerdotes  e  bi- 
spos  e  ate  oje  permanece  este  reino  na  fe  de  Jesu  Christo  e  dei- 
xandolhes  encomendado  aquelle  reino  determinava  passar  a  outros 
de  infieis,  mas  apareceolhe  hum  anjo  do  Senhor  que  Ihe  disse 
que  a  vontade  de  Deos  era  que  se  fizesse  Religioso  da  ordem 
de  sam  Domingos.  Abaixou  elle  a  cabe^a  ao  mandado  divino  e 
disse  que  em  tudo  se  comprisse  a  vontade  de  Deos  e  veio  logo 
huma  fermosa  nuvem  e  levantandoo  em  alto  o  levou  a  huma  ilha 
chamada  Haic  que  esta  na  grande  lagoa  Cafates  e  o  deixou  na 
porta  da  igreia  de  sam  Estevao,  que  era  mosteiro  dos  frades  de  sam 
Domingos  e  prior  o  santo  padre  frei  Argay,  hum  dos  8  religpiosos 
que  entrarao  pregando  em  Ethiopia.  Entrou  o  Santo  e  prostrado 
aos  pes  do  Prior,  Ihe  pedio  com  muitas  lagrimas  o  santo  habito  e 
Ihe  contou  o  que  Ihe   dissera  o  Anjo  e  o  milagre   da  nuvem. 

*Receberaono  os  Religiosos  com  extraordinaria  alegria  como  f.  249. 
se  fora  anjo  vindo  do  ceo  e  deraolhe  o  santo  habito.  Elle  ven- 
dose  religioso,  come^ou  a  fazer  nova  vida,  ainda  que  a  passada 
o  fora  muito  boa,  exercitouse  em  humildade  em  jeiuns  e  em  con- 
tinua  oragao,  e  acabado  o  anno  do  noviciado  fes  profissao  em  maos 
do  Prior  o  santo  frei  Argaj,  e  como  ia  professo  foj  resplande- 
cendo  em  todas  as  virtudes.  Em  40  annos  que  viveo  na  religiao 
nunca  comeo  carne,  ainda  que  estivesse  doente.  Seu  jeium  foj  con- 
tinuo  toda  a  vida  nao  comendo  mais  que  huma  vez  no  dia  hervas 
cruas  e  bebendo  s6  agoa.  As  quaresmas,   adventos  e   os    15  dias 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  533 

antes  da  AssumpQao  de  Nossa  Senhora  nSlo  comia  sen^o  aos  do- 
mingos»  e  o  que  mais  he  que  por  espa^o  de  7  annos  continuos 
nSlo  dormio. 

Honrrouo  a  divina  Magestade  com  prodigiosos  milagres,  deulhe 
dom  de  profecia:  quando  avia  de  dizer  missa  decea  hum  Anjo  do 
ceo  e  Ihe  trazia  o  vinho  e  hostia  e  Ihe  aiudava,  muitas  veses  na 
missa  o  virao  alevantado  muito  alto  no  ar;  quando  hia  a  pregar  a 
alguma  cidade,  sai^olhe  ao  caminho  os  bravos  liois,  os  tigres  e  ursos 
e  outros  muitos  animaes,  e  como  man^os  cordeirinhos  se  deitavao 
a  seus  pes  e  o  seguiao  e  acompanhavSo  no  caminho  sem  fazer 
mal  a  elle  nem  aos  que  encontravao.  Muitas  sortes  tambem  de 
aves  o  seguiao  e  voando  aroda  de  sua  cabe^a  esperavao  sua  ben- 
^ao;  chegando  ao  lugar  pera  onde  hia  dava  ben^ao  aos  animaes 
que  o  acompanharao,  os  quais  abaixando  as  cabe^as  se  tornavao 
a  seus  bosques  sem  fazer  dano  algum.  Seus  milagres  nao  tem  nu- 
mero :  alumiou  a  cegos,  sarou  a  aleijados,  alimpou  leprosos,  livrou 
os  oprimidos  do  demonio,  resocitou  muitos  mortos. 
f.249,v.  *Fundou   o   santo   Taquela   Haimanot   o   famoso   convento   de 

Plurimanos  e  foj  prior  delle,  dando  grande  exemplo  de  virtudes; 
vestio  nelle  o  habito  de  sam  Domingos  a  muitos  nobres  e  entre 
elles  a  alguns  filhos  de  Reis,  como  forao  sam  Phelipe,  s.  Elsa  e 
S.**  Clara.  Daly  foi  huma  ves  visitar  os  christaos  do  reino  de 
Damot  e  tomando  por  seu  mosteiro  Ihe  trouxerao  ao  caminho 
huma  minina  a  quem  o  demonio  atormentava  cruelmente  e  fazendo 
sobre  ella  o  sinal  da  crus  mandou  ao  demonio  que  saisse  e  a 
deixasse  livre,  e  assi  o  fes,  e  seus  paes  a  levarao  com  grande 
alegria  a  sua  casa  e  a  deitarao  em  huma  cama  pera  que  repou- 
sasse  e  deixandoa  s6,  torna  o  demonio  a  se  apoderar  della  com 
maior  braveza  e  tirandoa  da  cama  a  botou  no  fogo,  onde  morreo 
quiemada.  E  entrando  seus  paes,  ficarao  com  tam  grande  senti- 
mento  como  o  caso  pedia  e  deixandoa  forao  com  muita  pressa 
em  busca  do  Santo,  que  ia  estava  longe,  e  chegando  se  botarao 
a  seus  pes  derramando  muitas  lagrimas  e  contandolhe  o  que  pas- 
sara,  Ihe  pedirao  tivesse  piedade  delles  e  os  remediasse.  Mo- 
vido  o  Santo  com  suas  lag^mas  tomou  e  vendo  aquelle  triste 
expectaculo,  levantou  os  olhos  ao  ceo  pedindo  favor  a  Deos,  e  to- 
mando  a  menina  pella  mao  a  alevantou  viva  e  saa  sem  sinal  nem 
rasto  de  fogo  e  a  entregou  a  seus  paes  e  mandou  logo  ao  demonio 
que  aparecesse   em  fignra  visivel   diante  de  todos  pera  receber  o 


534  HISTORIA  m  ETHJOWA 

castigo  de  seu  atrevimanto.  Obedcceo  logo  o  demofiio  e  presen»- 
toufie  em  figura  de  bomem,  e  difiselhe  o  Santo:  Que  ou«adia  dia» 
bolica  foj  a  tua  em  queimar  esta  menina  remida  pollo  saqgue  de  Jesu 
Christo?  Poes,  por  que  daqui  adiante  obedei^as  ao0  maodados  dos 
sacerdotes,  te  mando  em  nome  Ma  santis3ima  Trindnde  que  por  f.  250. 
espa^o  de  sete  annos  continuos  sirvas  em  figura  de  homem  visivel 
ao  convento  de  Plurimanos  em  todas  as  obras  bai?(.a6  que  o  Prior 
e  seus  Religiosos  te  mandarem,  e  em  particular  tanger^  os  sinos  a 
todas  as  horas  canonicas,  varrera^  a  igreia  e  consertaras  as  alam<- 
padas.  Nao  pode  o  demonio  resistir  a  virtude  divina  que  obrava 
pello  Santo  e  assim  foj  com  muita  furia  ao  convento  e  servio  nelle 
puntualissimamente  todos  os  sete  annos  em  corpo  de  homem  vi- 
sivel  feo,  de  maneira  que  o  viao  todos  e  falavSloo,  e  elle  respondia, 
E  esta  he  cousa  sabida  dos  meninos  em  Ethiopia  e  tradi^ao  certis» 
sima  e  verdadeirissima. 

Estando  este  glorioso  santo  Taquela  Haimanot  doente  da 
doenga  que  morreo,  falando  com  seu  filho  sam  Phelipe  e  outros 
muitos  Religiosos  dos  premios  que  Deos  tem  guardados  no  ceo 
pera  seus  servos,  Ihes  disse ;  Alguma  cousa  soi  eu  por  experiencia, 
porque  por  espaQo  de  vinte  annos  continuos  sete  veses  no  dia  se^ 
gundo  o  numero  das  horas  canonicas  fui  levado  nas  m^os  dos 
anjos  ao  ceo,  onde  ouvia  as  musicas  angelicas  e  gozava  daquella 
suavidade  e  deleite;  e  assi  o  digo  como  quem  o  tem  exprimen- 
tado,  que  todas  as  penitencias  e  trabalhos  sEo  nada,  se  se  consi* 
dera  o  premio  que  hao  de  ter.  E  chegandoselhe  a  ultima  hora, 
estando  os  Religiosos  a  roda  da  cama,  disse:  Dai  luguar,  filhos 
meus,  que  veio  claramente  entrar  neste  aposento  a  meu  Senhor  Jesu 
Christo  com  sua  santissima  Mai  e  nosso  glorioso  Padre  sam  Do- 
mingos  com  muitos  Santos;  e  logo,  estando  os  Religiosos  pro- 
strados  no  chao,  se  encheio  aquella  sala  de  suavissimo  cheiro;  e 
chegando  nosso  *mestre  Christo  a  sam  Phelipe  e  a  s,  Elsa,  que  ^.250,^. 
estavao  aioelhados,  Ihe  fes  huma  crus  com  seus  divinos  [f]erro» 
a  cada  hum  na  testa.  Ouviraose  doces  musicas  celestiaes  e  saindo 
aquella  ditosa  alma  do  corpo,  foj  recebida  nos  bra^os  de  seu  me- 
stre  Christo,  e  levada  ao  ceo  com  gloria  eterna  aos  40  annos  de 
habito,  aos  70  e  tantos  de  idade,  anno  do  nacimento  de  Chri- 
sto  1366;  e  no  luguar  onde  puserao  seu  corpo  naceo  logo  huma 
fonte  de  agoa  clara  e  os  doentes  que  a  bebem  sarSo  de  todas  as 
doengas. 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  535 

Aos  40  dias  depoes  de  sua  morte,  estando  satn  Phelipe  e 
s.  Elsa  na  igreia  fazendo  ora^Siov  depois  das  matinas,  Ihe  apa<» 
receo  o  santo  Taquela  Haimanot  e  Ihe  disse:  Vos,  meii  filho, 
Phelipe,  me  succedereis  no  priorado  e  no  fim  por  meio  do  mar* 
tirio  vereis  gozar  de  Deos  em  minha  companhia ;  e  vos,  filho  meu 
Elsa,  sereis  prior  e  padecereis  grandes  trabalhos  polla  execu^ao 
do  officio  santo  de  inquisidor;  e  ainda  que  nao  morrereis  como 
vosso  irmSo  Phelipe,  seguiloheis  no  caminho  da  gloria;  e  despe- 
dindose  delles  despareceo. 

Estas  e  outras  muitas  cousas  escreve  frei  Luis  de  Urreta  no 
capitulo  9  com  grande  abundancia  de  palavras  e  pareceome  que  era 
bem  resumilas  aqui,  porque,  se  o  leitor  nSo  achasse  seu  livro,  pu- 
desse  ver  quam  difFerentemente  pinta  a  historia  de  Taquela  Hai- 
man6t,  da  que  logo  refiriremos  tirada  dos  livros  de  Ethiopia,  e 
iuntamente  pera  mostrar  em  breve  quam  longe  vao  muitas  destas 
f.  251.  cousas  da  verdade  do  que  quk  passa.  Porque  primeiramente  *Abba 
Taqtiela  Haimanot  foj  natural  de  Zorer  terra  do  reino  do  Xaoa  e 
nSlo  da  famosa  cidade  de  Saba,  que  nem  ha  tal  cidade  em  Ethiopia 
nem  memoria  de  que  ouvesse  nunca,  nem  foj  filho  de  Rei,  senao 
de  hum  sacerdote,  que  se  chamava  Zaga  Za  Ab,  que  quer  dizer 
«  gra^a  do  Padre  »  e  nao  Sacasab  como  elle  dis.  Este  era  descendente 
dos  sacerdotes  que  vierao  de  Jerusalem  a  Ethiopia  com  Menilehec 
filho  de  Salamao  e  da  rainha  Sabba,  de  quem  falamos  no  principio 
do  primeiro  livro ;  e  por  isso  na  historia  de  Taquela  Haimanot  se 
dis  que  tras  sua  origem  de  Sadoc  sacerdote  filho  de  Abiatar.  Nem 
sua  maj  era  filha  de  Rei,  senao  de  hum  homem  honrrado  e  cha- 
mavase  Sara;  mas  seu  sogro  Heotbena  Ihe  pos  nome  Egziarea,  que 
quer  dizer  «  Deos  a  escolheo  ».  Nem  viverao  no  estado  de  matri- 
monio  como  de  virgindade,  antes  dis  a  historia  que  Egziarea  tinha 
grande  tristeza  p>or  ser  esteril  e  rogava  sempre  na  igreia  a  Deos  que 
Ihe  desse  filhos,  e  que  quando  pario  se  fes  g^ande  festa  em  sua 
casa,  por  parir  hum  filho  sendo  esteril,  e  quando  o  bautizarao  Ihe 
puserao  nome  Fe^a  Sion,  que  quer  dizer  «  alegria  de  Siao  »,  e  nao 
Taquela  Haimanot,  como  dis  frei  Luis,  porque  este  nome  dis  sua 
historia  que  muito  depocs  Iho  deu  hum  anjo. 

Quanto  ao  que  dis  que  morrendo  seus  pajs  renunciou  ao  reino 

e  porque   seus   vassalos  o  nao   obrigassem  a  tornar  a  elle,  foj  ao 

Abuna  Athanasio  e  ordenouse  de  missa,  mal  podia  renunciar  o  que 

f.25i,v.  nao  tinha,   nem  Ihe  dcu  as  ordens  *senao  o  abuna   Guerlos   e  foj 


536  HISTORIA  DE  ETraOPIA 


antes  que  morressem   seus  pajs;   nem  quando   entrou  a  pregar  no  > 

reino  de  Damdt  erao  ali  mouros,  sen^o  gentios,  e  seu  Rei  se  cha- 
mava  Motolome ;  nem  o  Preste  Jofto  mandou  la  sacerdotes  e  bispos; 
que  bispos  nSio  avia  em  Ethiopia,  e  os  sacerdotes  que  elle  deixou  ^ 

em  Damot,  depoes  de  se  converterem,  forSo  huns  que  o  mesmo  rei 
Motolome  sendo  gentio  levara  cativos  da  terra  Zorer  donde  elle  era 
natural.  Ja  o  que  affirma  que  Ihe  apareceo  hum  anjo  ao  Santo  e  Ihe 
disse  que  se  fizesse  religioso  da  Ordem  de  sam  Domingos,  e  que 
logo  foj  levado  a  hum  mosteiro  de  frades  de  s.  Domingos,  que 
estava  na  ilha  Haic  e  o  prior  Argay  Ihe  deu  o  habito,  e  o  que 
aponta  mais  adiante,  que  na  hora  de  sua  morte  vio  a  sam  Do- 
mingos,  que  veio  com  Christo  nosso  Senhor  a  sua  sella,  he  mera 
fic^ao,  porque,  como  vimos  assima  no  fim  do  cap.  17,  Abba  Taquela 
Haimanot  neio  foj  da  Ordem  do  glorioso  padre  sam  Domingos  (i). 
Nem  em  sua  historia  se  dis  que  Ihe  apareceo,  o  que  nSo  ouvera  de 
deixar,  se  fora  certo ;  e  o  prior  que  Ihe  deu  o  habito  na  ilha  Haic 
se  chamava  Abba  Jesus.  Nem  o  he  menos  o  que  logo  dis  que  Ihe 
trazia  hum  anjo  do  ceo  o  vinho  e  a  ostia,  quando  avia  de  dizer 
missa  e  que  quando  hia  a  pregar  a  algnma  parte  o  acompanhavSo 
no  caminho  os  animais  bravos  e  as  aves,  porque  nem  esta  em  sua 
historia,  nem  achei  quem  o  tivesse  ouvido. 

O  mosteiro  que  elle  nomea  Plurimanos,  e,  como  ia  temos  dito, 
nao  se  chama  *senao  Debra  Libanos,  se  edificou  57  annos  de-  f.252. 
poes  da  morte  de  Abba  Taquela  Haiman6t,  como  affirmao  seus 
frades  e  se  declara  no  fim  de  sua  historia,  onde  dis  que  pergun- 
tando  elle  a  Christo  Nosso  Senhor  onde  mandava  que  se  enterrasse 
seu  corpo,  respondeo  que  ali  ate  57  annos  e  depoes  deste  tempo 
cairia  aquella  casa  e  seus  filhos  edificariao  ali  perto  hum  gfrande 
mosteiro  em  seu  nome  e  tresladariao  a  elie  seu  corpo.  Pollo  que 
mal  podia  ser  prior  delle,  nem  o  diabo  servir  ali  em  seu  tempo. 
O  que  tambem  pergxintei  ao  Geral  desta  religiao  que  foj  Abbade 
naquelle  mosteiro  muitos  annos,  e  respondeo  diante  de  muitos  frades 
que  nunca  ouvira  dizer  que  o  diabo  servira  alli;  que  era  patranha. 
Nem  sua  historia  fas  men^ao  de  que  fosse  allevantado  7  veses  no  -^ 
dia  ao  ceo  a  ouvir  as  musicas  angelicas;  nem  da  fonte  que  dis  que 
naceo  no  luguar  onde  se  enterrou,  nem  que  depoes  apareceo  a  Phe- 

(i)  Hic  sequentia  verba  etsi  deleta  le^untur  «  o  que  tambem  perguntei  ao  Geral 
desta  religiao,  que  foi  Abbade  naquelle  mosieiro  muitos  annos,  e  respondeo  diante  de 
muitos  fradcs  que  nunca  ouvira  di/.er  ». 


LIVRO  II,  CAPITULO   XIX.  537 

lipe  e  a  El^a;  somente  conta  que  estando  pera  morrer,  mandou 
aiuntar  seus  discipolos  e  Ihes  disse  que  Christo  nosso  Senhor  Ihe 
aparecera  e  declarara  como  era  chegada  sua  hora  e  que  alguns  dos 
que  alli  estavSlo  aviao  de  ir  com  elle,  e  ordenou  que  El^a  iicasse 
em  seu  luguar,  e  tres  dias  depoes  de  passar  desta  vida  morreo  hum 
diacono  e  estando  pera  o  enterrar,  acabado  ia  o  officio  dos  defuntos, 
tomou  a  viver,  e  affirmou  que  fora  levado  diante  de  seu  padre 
Taquela  Haimandt,  que  estava  em  muita  gloria  e  que  mandava  dizer 
que  El<;a  fosse  pera  elle  e  Phelipe  ficasse  em  seu  luguar,  e  dito 
isto  morreo;  e  dali  a  tres  mezes  morreo  El^a  e  seus  discipolos 
puserSLo  em  seu  luguar  a  Abba  Philipos;  e  pera  que  estas  e  as 
f.252,v.  ^demais  cousas,  que  se  contao  de  Abba  Taquela  Haimandt  as  possa 
ver  o  leitor,  se  quiser,  referirei  agora  sua  historia  como  a  contSo 
os  livros  de  Ethiopia. 

Historia  de  Abba  Taquela  Haimanot  como  a  contdo  os  livros 
de  Ethiopia. 

c  Em  o  nome  de  Deos  trino  e  uno,  a  quem  se  deve  gloria  e 
«  adora^ao.  Escrevemos  os  trabalhos  de  nosso  benaventurado  e  santo 
«  padre  Taquela  Haimandt,  planta  do  Padre,  planta  do  Filho,  planta 
<  do  Espirito  Santo,  que  he  nosso  padre  Taquela  Haimanot  que  car- 
«  regou  sobre  sj  o  nome  da  Trindade,  que  vem  a  dez  de  agosto.  A 
«  virtude  de  sua  oragSLo  nos  livre  de  mal  e  tire  de  nossas  terras  a 
«  perdicao  pera  sempre  dos  sempres.  Amen. 

«  Este  santo  Taquela  Haimanot,  que  quer  dizer  «  planta  da  fe  »,  a.  Narratur  vita 
«  foi  descendente  de  Sadoc  sacerdote  filho  de  Abiatar  de  Hie-  ^^^^  codices  aethiopi- 
«  rusalem ;  porque  Salamao  mandou  a  seu  filho  Eben  Ahaqum  pera  *^-  G«tte*lofi:i«  d^- 

citur  a  Sadoc  sacer- 

«  que  reinasse  em  Ethiopia,  enviou  com  elle  a  Azarias  filho  de  Sadoc  dote  tempore  Salo- 
«  pera  ser  sacerdote  como  seu  paj,  e  saio  de  Hierusalem  com  grande  ™®^  ** 
«  festa  e  honrra,  trazendo  consigo  a  Arca  de  Syon  Deos  de  Isrrael. 
«  E  pouco  tempo  depoes  de  chegado  a  terra  de  Tigre  casou  Aza- 
«  rias  com  huma  filha  dos  honrrados  da  terra  que  se  chamao  De- 
«  camadabai,  e  gerou  hum  filho,  a  quem  chamou  Sadoc,  como  seu 
«  paj.  Sadoc  gerou  a  Levi,  e  Levi  gerou  a  Hezberaai,  Hezberaai 
«  gerou  a  Hezbeeahi.  Estes  sacerdotes  insinarao  a  lei  velha  a  gente 
«  de  Ethiopia  ate  o  tempo  que  Tiberio  era  emperador  de  Roma  e 
«  Herodes  rei  de  Galilea  e  Ba<;en  rei  de  Ethiopia  e  Aqum  sacer- 
«  dote.  Entao  nasceo  N.  S.®'  Jesu  Christo  em  Betlem  de  Juda ;  Achin 
f.  253.  «  sacerdote  gerou  a  Simao  e  *Simao  gerou  a  Embarim,  e  depoes 
«  da  ascensao  de  Christo  N.  S.°'  em  dozentos  e  sincoenta  e  seis  annos 

C.  Bbccari.  H^r.  Attk»  Scripi,  9cc,  tned.  —  II.  68 


538  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  veio  hum  mercador  de  Hierusalem  e  com  elle  dous  mininos  que  se 

<  chamavSlo  Fremenatds  e  Sydracos  e  se  agrazalharilo  em  casa  de  £m- 

<  barim  sacerdote,  e  aquella  noite  adoeceo  o  mercador  e  dali  a  pouco 
€  tempo  morreo,  e  os  mininos  servir^lo  em  casa  de  Embarim ;  e  hum 

<  dias  disse  Fremenatos  a  Embarim :  Senhor  estou  maravilhado  dos 

<  custumes  da  gente  de   Ethiopia,  porque  tem   circuncisao  e  crem 

<  em  Christo,  e  nSo  veio  bautismo  nem  sacramento  da  comunhao? 

<  Respondeo  Embcunm:  Nossos  paes  antigos  nos  trouxerSo  a  cir- 

<  cuncisao  e  o  crer  em  Christo  nos  ensinou  a  rainha  Endaque  (scili- 

<  cet  Candace) ;  pera  nos  bautizar  e  dar  a  comunhao  nSo  nos  veio 

<  Apostolo ;  mas  vos  ide  ao  Papa  de  Hierusalem,  que  vos  de  poder 

<  de  ser  nosso  Apostolo;  e  deulhe  ouro  e  prata  pera  seu  caminho. 

<  Com  isto  partio  Fremenat6s  de  Ethiopia  e  chegando  a  Hie- 

<  rusalem  referio  ao  papa  Athanasio  os  custumes  desta  terra,  com 

<  o  que  elle  se  alegrou  muito  e  ordenandoo  o  fes  Bispo  de  Ethiopia 

<  e  Ihe  pos   nome  Abba  Calama,  que   quer  dizer  Padre  pacifico, 

<  porque  avia  de  por  pas  entre  Deos  e  os  homens.  E  assim  tomou 

<  Abba  Calama,  da  terra  Agazi  e  chegou  a  Embarim  aos  315  do 

<  nacimento  de  Christo  N.  S.**'  e  o  bautizou  e  deu  ordens  de  dia- 
«  cono  e  depoes  de  sacerdote  e  mudandolhe  o  nome  o  chamou  Ha- 

<  sbe  Cadez  e  mandou  que  bautizasse  toda  a  gente  e  disse  que  Ihe 

<  dava  poderes  de  Bispo,  e  assi  foj  bautizando  *a  todos  os  de  Ti-  f.2S3.^- 
«  gre,  Amhara  e  Angot  e  ensinandolhes  a  fe  de  Christo  Nosso  Sen- 

<  hor,  e  forao  muito  bons  christSos.  Hezbe  Cadez  gerou  a  Hezbe 

<  BariS ;  este  veio  da  terra  de  Tigre  e  fes  seu  assento  na  terra  Daont, 

<  que  se  chama  Baheranqueda ;  onde  casou  e  gerou  a  Tecla  Caat; 

<  este  casou  em  Amhara  com  huma  molher  que  se  chamava  Maque- 

<  dela  e  gerou  sete  filhos  e  ate  agora  estao  ali  seus  descendentes,  e 

<  hum  daquelles  sete,  que  se  chamava  Azquelevi  bautizou  a  gente  de 

<  Olaca  e  Amhara  e  a  gente  de  Manabete  e  Mauz.  Este  Azquelevi 

<  casou  em  Harbeguixe  e  gerou  Abaila,  a  quem,  depois  que  cresceo, 
«  mandou  el  rei  Dignacm  a  terra  de  Seva  com  150  sacerdotes,  pera 
«  que  bautizasem  toda  aquella  gente,  e  chegando  la  bautizarao  em 

<  hum  dia  20000  e  edificarao  muitas  igreias;  e  Abaila  escolheo  a 

<  terra  de  Zorer,  onde  casou  e  gerou  a  Harbaguixe;  este  gerou  a 

<  Bacora  Ceon,  este  gerou  a   Hezbecades;   este  gerou   a   Berhana 

<  Mazcal.  Em  o  tempo  deste  passou  o  reino  dos  de  Isrrael  a  Za- 

<  goe.   Berhana   Mascal   gerou    a   Heot  Bena ;  este  gerou   a    Zara 

<  Joannes,  que  he  Zaga  Qa  Ab,  o  qual  he  paj  de  nosso  paj  santo ;  Zaga 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  539 

€  9a  Ab  casou  com  huma  filha  dos  honrrados  daquella  terra  que 
€  se  chamava  Sara  e  for£lo  ambos  tementes  a  Deos,  faziao  muita  ora- 
€  ^ao,  jeiuavSlo  e  davao  grandes  esmolas,  e  entre  sy  se  amavSlo  como 
€  Abraham  e  Sara  e  como  Zacharias  e  Elisabet. 
f.  254.  «  Era  Sara  mui  fermosa  e  prudente  *polo  que  seu  sogro  a  chamou      3«   Parcntea  eius 

«  Egziarea,  scilicet  «  Deos  a  escolheo  »,  e  daquelle  dia  foi  chamada  aacerdos  et  Egxiarei 
«  por  este  nome;  e  como  morreo  Heot  Bena,  ficou  Zaga  ^a  Ab  com  ^  cum  wsent  ste- 

rileBpreciDUS  et  elee- 

«  sua  molher  cheo  dos  bens  deste  mundo,  mas  Egziarea  era  esteril  e  mosynis  filium  im- 
«  por  isto  come^arSo  a  fazer  a  festa  de  S.  Mignel  Archanjo  cada  J^^^^oln  tutehun 
«  mes,  dando  sempre  naquelles  dias  de  comer  e  vistir  aos  pobres.  tradidenmt. 
«  Tinha  EgziareS.  gfrande  tristeza  em  seu  coragSo  por  ser  esteril,  e  , 
«  rogava  sempre  na  igreia  a  Deos  que  Ihe  desse  filhos  dizendo :  O 
«  Senhor  Jesu  Christo  o  senhor  de  sam  Miguel,  vos  sois  criador 
«  dos  anjos,  alegria  dos  tristes,  esperan^a  de  todo  o  mundo;  vos 
«  sois  Rei  dos  Reis  e  Senhor  dos  Senhores,  Deos  dos  Deoses.  Ou- 
«  vime,  Senhor,  e  daime  filho,  que  vos  sirva  e  cumpra  em  tudo 
«  vossa  vontade.  Zaga  ija  Ab  tambem  se  ocupava  sempre  em  ora^ao 
«  na  igreia  e  em  offerecer  sacrificios  e  levava  muitas  offertas,  e 
«  hum  dia  Ihe  disse  Egziarea:  Senhor,  tenho  huma  cousa  que  vos 
«  dizer,  e  folgaria  muito  que  ma  aceitasseis.  Respondeo  elle  que 
«  sy  Iha  aceitaria  se  fosse  boa.  Bem  vedes,  disse  ella  como  nossos 
«  pajs  morrerao  e  nos  n£lo  temos  filhos  a  quem  deixar  nosso  fato. 
«  Avei  por  bem  que  o  demos  a  igreia  e  aos  pobres  e  que  forremos 
«  nossos  escravos  e  escravas,  pera  que  Deos  nos  livre  de  nossos 
«  peccados.  Respondeo  Zaga  ga  Ab :  O  minha  irmaa,  vossa  cousa  he 
«  muito  boa ;  mas  nSo  vos  apresseis  a  dar  tudo,  porque  depoes  vos 
«  nSlo  arrependais.  Disse  Egziarea:  Senhor  milhor  he  apresarmonos 
f.254,v.  «  *a  fazer  pera  que  louvemos  ao  Senhor  no  sepulchro  tomemos  do 
«  que  folga  nossa  came  e  demos  a  nossa  alma  e  serviremos  a  nosso 
«  Deos.  Ouvindo  Zaga  ^a  Ab  estas  palavras  disse :  Molher,  grande 
«  he  a  vossa  fe ;  falastes  verdade :  eu  farei  logo  como  dizeis. 

«  Tomado  este  conselho  tam  santo,  repartio  Zaga  (ja  Ab  seu 
«  rato  com  a  igreia  e  pobres  e  chamando  seus  escravos  Ihes  disse 
«  que  fossem  onde  quizessem ;  que  dali  pordiante  erao  forros.  Ou- 
«  vindo  elles  isto,  chorarflo  muito  e  disserao:  Senhor,  que  fizemos; 
«  em  que  vos  desagradamos  (?).  Se  vos  offendemos  em  alguma  cousa, 
«  castigainos  e  emmendamos  hemos.  Disse  Zaga  <;a  Ab:  Em  nenhuma 
«  cousa  me  destes  paix^o.  Deos  vos  benza  com  a  ben^ao  de  meus 
«  pajs  sacerdotes,  que  andarSlo  diante  delle  na  verdade.  Se  quiserdes 


540  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

estar  na  minha  casa,  nflo  ha  da  ser  como  escravos,  senflo  como 
meus  parentes  e  as  escravas  chamarSlo  parentes  de  Egziarea.  Ou- 
vindo  isto  os  escravos  e  escravas  se  aleg^arao  muito  e  Ihe  bei- 
jarao  os  pes  e  m^os  e  estiverao  com  elle  muito  tempo  os  escravos 
como  senhores  da  casa  e  as  escravas  como  senhoras. 

€  £m  este  tempo  se  alevantou  hum  tirano  que  se  chamava  Ma- 
tolome  e  sua  mai  Aseldone  e  reinou  nas  terras  de  Dam6t  e  de 
Ceoa  e  Amhara  ate  hum  rio  grande  que  se  chama  Gema,  e  de- 
struio  muitas  igreicis  e  adorou  idolos  e  mandava  que  Ihe  trouxes- 
sem  pera  sy  as  donzellas  filhas  dos  mais  principaes  e  seus  *pais  f.  255. 
nao  se  atraviao  a  contradizer  pello  medo  grande  que  delle  tin- 
hao.  Este  era  muito  forte  na  guerra  e  correndo  huma  ves  a  terra 
de  Zalalgi,  cercou  a  terra  Zorere,  o  que  vendo  Zaga  ^a  Ab,  e  en- 
tendendo  que  o  vinha  matar,  fugio  por  outro  caminho,  mas  seguio 
hum  cavaleiro  dos  de  Matalome  e  chegando  perto,  Ihe  atirou  com 
a  lan<;:a,  mas  nao  Ihe  acertou,  e  atirandolhe  outra  ves,  virouse  a  lan^a 
pera  elle  e  o  ferio  no  bra^o;  nem  com  isto  deixou  de  o  seguir 
e  chegando  Zaga  ^a  Ab  a  huma  lagoa  grande,  se  meteo  dentro 
daquella  agoa  e  o  soldado  chegou  com  seu  cavalo  ate  a  borda 
dagoa  e  esperou  que  saisse  a  nada,  mas  vendo  que  nao  aparecia, 
o  deu  por  afogado  e  se  foy  buscar  alguma  presa.  Mas  Zaga  ^a 
Ab  sacerdote  limpo  nao  recebeo  nenhum  dano  debaixo  dagoa, 
antes  ella  Ihe  foj  como  huma  tenda  em  que  se  agazalhou,  porque 
sam  Miguel  o  gnardava,  posto  que  elle  o  nao  via,  e  assi  gritava 
dizendo :  O  Miguel  minha  esperan^a,  o  Mignel  minha  aiuda,  onde 
esta  vossa  for^a?  Eis  aqui  me  chegou  a  morte,  e  o  dia  do  trabalho 
em  vossa  festa,  que  sempre  me  davais  muita  alegria,  me  chegou 
tam  grande  angustia.  E  dizendo  isto  chorava  com  grande  amar- 
giira.  Entao  se  Ihe  mostrou  s.  Miguel  claramente  e  Ihe  disse :  Por 
«  que  chorais,  Zaga  ^a  Ab[?].  Eis  aqui  eu  Miguel  vos  estou  guar- 
«  dando ;  nao  tenhais  medo.  Nao  se  manifestou  muito  o  milagre  que 
«  vos  livrei  daquelle  soldado  que  vos  seguia ;  mas  agora  aparecera 
«  quando  vos  tirar  em  pas  dedentro  desta  agoa,  nao  por  amor  de 
«  vos  se  nao  por  hum  filho,  que  aveis  de  ter,  que  sera  lus  de  todo 
«  o  mundo  sera  semelhante  a  mj  e  eu  o  hei  de  guardar. 

«  Esteve  Zaga  ^a  Ab  debaixo  da  agoa  'tres  dias  e  tres  noites  e  f.ass,^. 
«  no  fim  delles  Ihe  disse  s.  Miguel :  Ja  se   acabou   a  destruiQao   e 
«  passou  a  perdi^ao :  Saj ;  e  tomandoo  polla  mao  o  tirou  e  entrando 
«  em  huma  igreia  de  Zorere  desapareceo  sam  Miguel  e  vendo  de- 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX. 


54' 


f.  256. 


poes  ZsigSi  9a  Ab  as  igreias  destruidsis,  a  terra  perdida  e  sabendo 
que  a  sua  molher  e  a  outra  muita  gente  levarSio  cativos,  chorou 
muito  mais  que  primeiro  e  se  Ihe  dobrou  a  tristeza.  Depoes  se 
Ihe  aiuntarflo  os  que  escaparSlo  escondidos  nas  lapas  e  iuntamente 
fizerao  novo  pranto.  Nao  menos  o  fazia  Egziarea,  a  quem  os  sol- 
dados  levarao  cativa,  e  vendo  sua  grande  fermosura  dizerao  que 
merecia  ser  molher  del  Rei,  e  assi  chegando  a  Matolome  Ihe  af- 
firmarao  que  Ihe  trazido  huma  molher  tam  fermosa  entre  as  que 
cativarflo ;  que  se  casasse  com  ella,  se  Ihe  soietaria  toda  a  terra. 
Alegrouse  elle  muito  com  esta  nova  e  mandoulhe  dar  mui  ricos 
vestidos  e  iojas  de  ouro  e  que  Iha  trouxessem  o  seguinte  dia;  e 
lavandolhe  os  soldados  isto  e  muitos  comeres,  ella  nSo  comeo 
nem  bebeo,  antes  chorando  muito  nSo  levantava  os  olhos  do  chao. 
Vendo  isto  os  soldados  Ihe  disserao:  O  molher,  porque  vos  in- 
tristeceis,  pois  sois  escolhida  pera  rainha  e  senhora  nossa?  Mas 
ella  nao  respondia  nada  senao  do  intimo  de  seu  coracao  falava 
com  Christo  N.  Senhor  dizendo :  O  meu  Senhor  Jesu  Chrtsto  por- 
que  olhastes  a  meus  pecados  e  nao  vos  lembrastes  da  inocencia 
de  vosso  servo  Zaga  (ja  Ab,  que  vos  servia  com  muita  pureza,  e 
me  entregastes  nas  maos  destes  vossos  inimigos,  que  estao  tam 
afastados  de  vos?  O  Senhor,  fortaleza  dos  fortes  *mostrai  oie 
vossa  for^a  sobre  estes.  O  Senhor  todo  poderoso,  mostrai  oie  vosso 
poder  sobre  estes.  Com  isto  esteve  ate  que  dormirao  aquelles  sol- 
dados  e  tirou  logo  os  vestidos  que  por  for^a  vestira  e  vestindo 
os  seus  tomou  com  grande  angustia  a  fazer  ora^ao  dizendo:  O 
Senhor  Deos  de  toda  a  creatura  e  todo  poderoso,  tudo  enche  vossa 
divindade.  Vos  livrastes  a  Sara  da  mao  de  Farao,  a  Daniel  das 
bocas  dos  leois,  a  Susana  dos  falsos  velhos,  e  aos  tres  mancebos 
do  fogo  do  forno  de  Babilonia;  mostrai  agora,  Senhor,  tambem 
vossa  for^a  sobre  mim,  dai,  Senhor,  gloria  a  vosso  nome  e  nao 
deixeis  vossa  serva  na  boca  destes  lobos.  E  vos,  s.  Miguel,  como 
calais,  vendo  vossa  serva  em  tam  grande  angnstia  e  perigo  ?  e  no 
dia  que  faziamos  vossa  festa  me  veio  este  trabalho  [?].  Aiudaime, 
cuidador  dos  pobres.  Nisto  Ihe  apareceo  s.  Miguel  e  Ihe  disse :  Nao 
veio  isto  pera  vossa  perdi^ao,  senao  pera  que  se  veia  o  muito  que 
vos  amo.  Desta  tenta^ao  aveis  de  ser  livre,  por  causa  de  hum  filho 
que  de  vos  ha  de  nascer.  Disse  ella:  Quando  ha  de  ser  isto,  Senhor? 
Respondeo  elle :  Quando  Deos  for  servido,  e  com  isto  despareceo. 
€  Esteve  Egziharea  toda  a  noite  em  ora^ao  e  antes  de  amanhecer 


542  HISTOBJA  DE  ETHIOPIA 

€  tomou  a  por  os  vestidos  que  deixara,  e  como  se  alavantarSlo  os 

<  soldados  a  levarSo  a  el  Rei,  e  como  a  vio,  se  alegrou  muito  e . 

<  determinou  em  seu  cora^flo  de  a  fazer  rainha,   e  disse  aos  sol- 

<  dados :  Na  verdade  trouxestes  fermosa  molher.  £u  filho  de  Asel- 

<  dane  vos  hai  de  dar  riqueza  que  baste  pera  vos  e  vossos  filhos. 

<  Guardai  esta  molher  bem  e  dailhe  quanto  ella  quizer  ate  que  a 

<  fa^a  rainha  sobre  todas  minhas  molheres.  LevarSlona  logo  os  sol- 

<  dados  e  ^fizerao  como  seu  senhor   les   mandou.  Depoes  mandou  f.is^^v. 

<  Matolome  criados  a  sua  terra   dizendo:  Eis  aqui:  tomei  em  pas 

<  e  com  aleg^ia:  iuntaivos  e  aparelhai  mil  vacas  e  mil  bois  com  os 

<  cornos  dourados  e  mil  com  os  comos  de  prata,  o  autros  mil  que 
«  seiao  fermosos;  tende  tambem  prestes  70000  mil  caloes  de  vinho 

<  de  uvas  e  outros  tantos  de  vinho  de  mel  e  a  servoia  seia  en  tanta 

<  abundancia  como  agoa,  e  as  igoarias  seiSo  sem  conto ;  e  dizei  a 

<  gente  de  Damdt  que  tragSlo  logo  o  tributo  de  meu  reino  ate  Mal- 

<  barede  (que  era  a  casa  de  seus  idolos)  e,  se  nSlo  fizerdes  inteira- 

<  mente  o  que  vos  mando,  vos  hai  de  cortar  as  cabe^as.  Forao  elles 

<  com  muita  pressa  e  fizerSio  aparelhar  tudo  o  que  Ihes  mandou.  Ma- 

<  tolome  tambem  apressou  seu  caminho  e  em  8  dias  entrou  em  sua 

<  terra,  onde  todos  o  receberao  com  g^ande  festa  e  alegria.  Disse- 

<  Ihes  elle  que  se  aiuntassem   todos  o  dia  seguinte  pera  sacrificar 

<  e  adorar  nossos  Deoses,  que  nos  dao  forQa  no  tempo  da  gnerra 

<  e  nos  sustentao  na  pas.  Responderao  todos  que  sy  o  fariao  e  ga- 

<  stariao  toda  a  noite  em  aparelhar  as  cousas  necessarias.  Mas  £gzia- 

<  rea  a  passou  em  ora^ao,  pedindo  a  Deos  que  a  livrasse.  E  como 
«  amanheceo,  mandou  Matolome  que  a  trouxessem  a  casa  de  seus 

<  idolos,  e  elle  foi  acompanhado  dos  grandes  aquem  seguia  todo  seu 

<  exercito,  e  chegando  se  puserao  diante  dos  idolos  pera  os  adorar 

<  e  depoes  levantar  ali  por  rainha  a  Egziarea.  Mas  nisto  deceo  S.  Mi- 

<  guel  do  ceo  como  hum  espantoso  trovao  e  tomando  a  Egziarea,  a 
«  levou  de  Damot  a  terra  Zorare  a  22  de  agosto  tres  horas  depoes 
«  de  sair  o  sol,  e  pondoa  perto  da  igreia,  despareceo. 

<  *Ouvindo  aquelles  soldados  o  estrondo  com  que  desceo  sam  Mi-  f.  «sr- 
«  guel,  foj  tam  grande  o  temor  e  espanto  que  tiverao  que  cairao 
«  mortos  mil  delles  e  trezentos  dos  feiticeiros,  que  se  tinhao  iunto 
«  pera  sacrificar,  e  Matolome  ficou  totalmente  alienado,  sem  saber 
«  o  que  fazia  nem  o  que  dizia  por  espa^o  de  25  annos,  e  assy  man- 
«  dava  que  matatssem  os  homens  e  depoes  que  Ihos  trouxessem  vivos, 
«  e  que  Ihe  fizessem  casa  no  ar  com  outros  disparates  semelhantes. 


UVRO  II,    CAPITULO   XIX.  543 

€  Estando  Egziarei  no  luguar  onde  a  deixou  sam  Mig^el,  saio 
€  Zaga  9a  Ab  da  ig^eia  onde  tinha  entrado  a  fazer  oraQdo  e  offe- 
€  recer  incenso  por  ella,  e  vendoa  s6  e  tam  ricamente  vestida,  se 
€  maravilhou  muito  e  Ihe  disse :  Como  estais,  senhora ;  donde  vie- 
€  stes  ?  Veio  vos  com  grande  honrra,  pareceis  filha  de  Rei.  Como 
c  andais  so  sem  criados  [?].  Respondeo  ella,  sem  descobrir  o  rosto : 
«  Indo  pollo  caminho  me  achou  MatolomS  e  tomou  minha  gente  e 

<  quanto  tinhamos.  A  mim  me  livrou  Deos  de  suas  mflos  e  sabendo 

<  que  cativara  a  molher  de  hum  homem  que  se  chama  Zaga  ^a  Ab, 
«  vim  pera  ser  sua  molher.  Respondeo  elle :  Pera  que  cuidais  o  que 

<  nSo  pode  ser  [?]  Nao  he  licito  ao  sacerdote  fazer  isso.  Tambem 

<  elle  he  homem  baixo  e  vos  honrrada.  Nao  vos  convem  falar  nisso 

<  e  mais  tem  iurado  poUo  santo  nome  de  Deos  que,  se  nao  Ihe  en- 

<  tregar  sua  molher,  nao  ha  de  casar  com  outra.  Disse  ella:  Como 

<  pode  sair  do  cativeiro  [?] :  eu  ouvi  que  el  Rei  queria  casar  com  ella 

<  e   fazela  rainha.   Respondeo   elle:  Nao  somente  a  pode  tirar  do 

<  cativeiro,  mas  resocitala  depoes  de  morta.  Vendo  ella  sua  fe  e 

<  constancia,  se  alevantou  e  descobrio   o   rosto  dizendo :  Eis  aqui, 

<  senhor,  vossa  molher  Egziarea.  Ouvindo  elle  isto,  ficou  mui  ma- 
f.257,v.   <  ravilhado  e  levantandose  *lhe  beijou  os  pes  e  as  maos  dizendo: 

<  O  minha  irmaa,  como  viestes  aqui?  quem  vos  livrou?  A  miseri- 

<  cordia  de  Deos,  respondeo  ella.  Depoes  que  me  afeistei  de  vos,  nao 

<  me  achou  mal  algum;  porque  o  Senhor  mandou  seu  anjo,  que  me 

<  gnardou  e  livrou.  Levantou  entao  Zaga  ^a  Ab  seus  olhos  ao  ceo 

<  dando  gra^as  a  Deos  e  dizendo:  Seia  bento   o  Senhor  Deos  de 
<'  Israel  e  seia  bento  seu  nome  que  fes  tam  gxande  maravilha. 

^<  Ouvindo  isto  a  gente  da  terra  que  escaparao  de  Matolome  e 

<  vendo  a  Egziharea  com  tam  ricos  vestidos,  Ihe  disserao:  Que  he 

<  isto,  senhora,  que  vos  trouxe  aqui  desta  maneira  com  tanta  gran- 

<  deza  [?].  EUa  Ihes  contou  tudo  o  que  Ihe  socedera  e  louvarao  a 

<  Deos  que  he  maravilhoso  em  seus  Santos,  gastando  muita  parte 

<  do  dia  em  Ihe  dar  gxa^as ;  e  depoes  entrarao  em  susls  casas  com 

<  alegria  e  Egziharea  disse  a  Zaga  Qa  Ab  que,  depoes  que  se  afastara 

<  delle,  nao  comera  nem  bebera;  do  que  se  maravilhou  muito  e  re- 

<  feriolhe  o  que  a  elle  tambem  Ihe  acontecera  e  toda  aquella  noite 

<  gastarao  em  falar  cousas   de   Deos  e  do  anjo.  Outro  dia,  23   de 

<  agosto,  acabou  Zaga  ^a  Ab  sua  somana  e  entrou  em  sua  casa,  e 

<  estando  aquella  noite  na  cama  com  sua  molher,  vio  ella  em  so- 

<  nhos  huma  columna  resplandecente  que  chegava  ate  o  ceo,  e  todos 


I 


544  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

<  os  Reis  da  terra  e  os  Bispos  aroda  della,  fazendolhe  alguns  re- 
€  verencia,  outros  acompanhandoa,  e  nella  assentados  muitos  pas- 
«  saros  de  diversas  cores.  Nisto  gritou  Zaga  ^a  Ab  e  acordando  ella, 
€  disse:  Porque  gfritastes?  Respondeu  elle:  Por  espanto  da  visao 
«  que  me  apareceo  em  sonhos;  pareciame  que  via  sair  dentre  nos 

«  o  sol  e  com  elle  estrellas  sem  *numero,  e  alumiavSio  todo  o  mundo.  f.  2^1 
€  Disse  Egziharea:  Maravilhosa  cousa  he  esta:  quem  a  pode  ouvir? 
«  Eu  tambem  vi  cousas  espantosas ;  e  referiolhe  o  que  vira ;  e  ambos 

<  maravilhados  disserao ;  Que  ha  de  vir  sobre  nos  neste  tempo  ? 
«  Depoes  disto  tornarao  a  dormir  e  apareceo  S.  Miguel  a  Egziharea 
«  e  disselhe:  Concebestes  em  vossas  entranhas  aquelle  filho  esco- 
«  Ihido,  que  vos  disse  nsisceria  de  vos,  amado  de  Deos  e  da  Virgem 
«  Maria  sua  maj  e  dos  anjos,  e  muito  honrrado.  E  dizendo  isto 
«  desapareceo  della;  e  manifestandose  a  Zaga  (ja  Ab,  Ihe  disse  o  me- 
«  smo ;  e  como  amanheceo,  perguntou  elle  a  sua  molher  se  vira  al- 
«  g^ma  cousa  a  2"  ves  que  dormio.  Respondeo  ella  que  sy,  e  con- 
«  toulhe  o  que  sam  Miguel  Ihe  dissera.  A  mim  tambem,  disse  elle, 
«  me  declarou  o  mesmo ;  do  que  se  maravilharSo  muito.  Disse  entao 
«  Egziharea:  Senhor,  quando  sam  Miguel  me  trouxe,  me  mandou  que 
«  dessemos  aos  pobres  os  vestidos  com  que  vim  e  o  ouro  e  prata, 
«  sem  que  ficasse  nada;  que  Deos  nos  proveria.  Respondeo  Zaga 
«  9a  Ab:  Assim  convem  que  o  fa^amos  logo;  e  nao  faltarao  em 
«  cousa  alguma  das  que  Ihes  mandou  o  anjo. 

«  Passados  nove  meses.  aos  30  de  dezembro,  naceo  nosso  Padre 
«  e  fesse  grande  festa  aquelle  dia  em  casa  de  Zaga  ^a  Ab,  porque, 
«  sendo   primeiro   sua   molher  esteril,  parira  filho;  e  derao  muitas 
«  esmolas  aos  pobres,  e  tres  dias  depoes  que  naceo  o  filho,  levan- 
«  tou  o  menino  sua  mao  pera  o  ceo  e  benzeo  a  Deos  em  alta  vos 
«  dizendo :  Hum  Padre  santo,  hum  Filho  santo,  hum  Espirito  Santo. 
«  Ouvindo  isto  a  maj  se  maravilhou  muito  e  disse  :  O  filho  esco- 
«  Ihido,  a  vos  nao  vos  pertencia  *esta  palavra,  senao  a  vosso  paj.  ^.258,^. 
«  Nao   vos   convinha   senao   mamar.  E   como   se   acabou   o   tempo 
«  da  purifica^ao,   que  sao   40  dias,   levarao   o   menino  ao   templo 
«  e  o  bautizarao  pondolhe  por   nome   Fe^a  Seon,   que   quer   dizer 
«  *  alegria  de  Siao ' ,  porque  fes  alegrar  a  Igreia  com  sua  doutrina 
«  e   f e   forte.   E   como   tornarao   a   sua  casa,   disse   sam  Miguel  a 
«  Zaga  9a  Ab  em  sonhos  :  Este  he  o  filho   escolhido  que  primeiro 
«  vos  dissemos.  Seu  nome  nao  he  Fe^a  Seon,  senao  outro,  que  vos 
«  esta  escondido.  Respondeo  Zaga  93  Ab :  Declaraime,  senhor,  que 


LIVRO  II,  CAPITULO   XIX. 


545 


f.  259. 


nome  he  este?  Disse  sam  Mignel:  NSio  sou  mandado  pera  isso, 
senao  pera  vos  declarar  a  visao  que  primeiro  tivestes  vos  e  vossa 
molher.  O  sol  que  vistes  que  saia  de  vossa  casa,  era  este  vosso 
filho  e  as  estrellas,  que  estavao  com  elle,  sSo  os  filhos  que  Ihe 
hao  de  nascer  no  Espirito  Santo;  e  a  columna  resplandecente, 
que  vio  vossa  molher  que  chegava  ao  ceo,  he  este  mesmo  filho 
e  o  que  vio  que  os  Reis  Ihe  faziao  reverencia,  na  verdade  o  hao 
de  reverenciar  e  o  hao  de  servir  os  povos,  e  sera  paj  de  toda  a 
terra,  e  como  se  alevanta  o  ceo  da  terra  sera  alevantado  seu  nome. 
E  dito  isto,  desapareceo. 

«  Como  Zaga  ^a  Ab  acordou  do  sono,  contou  a  sua  molher   o      4.  Narrantur  pro- 

ikr*        t  tt        f  n  •ii_    j  j*       diflria et virtutes  pue- 

que  sam  Migruel  Ihe  dissera,  com  o  que  ncou  maravilhada,  e  dis-  rf  quiprimo  vocatus 
serao  entre  sy :  Que  ha  de  ser  deste  menino,  porque  a  mao  de  «•*  ^«9*  Scon. 
Deos  he  com  elle  ?  Dali  a  hum  anno  e  tres  meses  ouve  grande 
fome  na  terra  de  Seoa  e  na  de  Zorere,  e  chegandose  a  festa  de 
sam  Miguel,  disse  Egziharea  a  Zaga  <;a  Ab :  Que  faremos,  que  nao 
temos  cousa  nenhuma  pera  celebrar  esta  festa  como  custumamos  [?] ; 
e  dizendo  isto  mostrava  muita  paixao  e  Zaga  ^a  Ab  tambem  a 
tinha  grande  por  a  ver  daquella  maneira.  Com  isto  se  forao  am- 
bos  a  igfreia  e  fizerao  oragao.  Depoes  comeQou  a  chorar  o  me- 
«  nino  sem  querer  mamar* ;  pello  que  se  foi  pera  casa  e  entrando 
«  estendeo  o  menino  a  mao  pera  hum  cesto  em  que  estava  huma 
«  medida  de  trigo  mui  piquena,  como  dizendo  que  Iho  dessem, 
«  e  chegandoo  a  elle,  pus  a  mao  sobre  o  trigo  e  logo  foi  cre- 
«  scendo  de  maneira  que  se  encherao  12  cestos  e  deceo  a  ben^ao 
«  de  Deos  naquelle  dia  sobre  a  casa  de  Zaga  Qa  Ab.  Vendo  isto  sua 
«  may,  Ihe  trouxe  hum  calao,  em  que  tinha  huma  pouca  de  man- 
«  teiga,  e  o  menino  fes  o  sinal  da  crus  e  ficou  cheo  e  botando  delle 
«  em  outros  ficarao  todos  cheos.  O  mesmo  sucedeo  no  sal,  que  tendo 
«  pouco,  se  augmentou  muito.  E  entrando  Zaga  cja  Ab,  Ihe  disse  sua 
«  molher  o  que  passava,  do  que  ficou  muito  maravilhado  e  come^ou 
«  a  louvar  a  Deos  dizendo:  Seia  bento  o  Deos  de  Israel,  que  visi- 
«  tou  e  salvou  seu  povo.  Que  vos  darei,  Senhor,  por  isto  que  me 
«  fizestes,  sendo  eu  peccador  [?] ;  e  beijou  ao  mfinino  e  Ihe  disse : 
«  O  meu  filho,  vivei  muitos  annos,  pera  que  me  deis  sempre  alegria 
«  e  consolaQao. 

«  Acabado  isto,  aparelharao  da  bentjao  que  o  Senhor  Ihes  dera 
«  pera  fazer  a  festa  de  sam  Miguel  aos  1 3  de  mar^o  e  convidarao 
«  seus  parentes,  a  gente  da  terra  e  muitos  pobres  e  a  todos  derao 


C.  Beccaki.  Rtr,  Aeki»  Script»  occ,  ined.    —  II, 


69 


54^ 


HISTORIA  DE  ETHIOPIA 


5.  Pateradmonitus 
in  somnisa  Michaele 
archangelo,  ducit  Fe- 
^a  Seon,  15  annos 
natum,  ad  Abunam 
Guerl68  ut  diaconus 
initiaretur.  Portenta 
subsecuta. 


€  de  comer  com  muita  abundancia;  do  que  elles  ficarSo  espantados» 
€  por  nao  saberem  donde  Ihes  viera  em  tempo  de  tanta  fome,  e 
€  diziao :  Depoes  que  Ihes  nasceo  seu  filho,  acharSlo  isto.  Mas  n^o 
c  s6  Ihes  bastou  pera  a  festa  abundantemente,  senSlo  que  Ihes  so- 
€  beiou  pera  sustentar  os  pobres  em  quanto  durou  a  fome.  Outros 
€  muitos  milagres  fes  este  menino  dando  ben^ao  com  sua  mao,  e  de- 
c  poes'  que  cresceo,  aprendeo  com  tanta  facilidade  os  psalmos  e  os 
«  livros  da  igreia,  que  parecia  que  ia  os  sabia,  porque  tinha  a  Christo 
«  em  seu  cora^ao  e  o  Espirito  Santo  Ihe  dava  a  sabedoria,  e  assi 
c  temia  sempre  a  Deos  e  obedecia  a  seu  mandado ;  e  nao  somente 
c  os  que  o  viao  o  amavao,  mas  ainda  os  que  ouviao  novas  suas. 
c  Seu  jeium  era  muito  continuo,  com  o  qual,  iuntamente  com  a  pa- 
c  ciencia  que  tinha  em  todas  as  cousas,  se  armava  contra  os  demo- 
c  nios.  E  como  chegou  a  idade  de  15  annos,  o  levou  seu  paj  ao 
Patriarcha  Abba  Guerlos,  que  estava  *em  Amhara  sendo  Papa  f.259,v. 
(entende  de  Alexandria)  Abba  Benjamin;  mas  antes  que  chegassem, 
apereceo  sam  Miguel  em  sonhos  a  Abba  Guerlos  e  Ihe  disse :  A 
menhaa  ha  de  vir  hum  homem  branco,  que  tras  comsigo  hum  filho 
escolhido  pera  o  reino  do  ceo;  dailhe  ordens  de  diacono  edespachajo 
logo.  E  com  isto  desapareceo;  e  acordando  Abba  Guerlos,  ficou  ma- 
ravilhado  do  sonho,  e  como  amanheceo,  saio  fora  e  vio  a  Zaga  ^a  Ab 
que  entao  chegava  e  de  longe  Ihe  fazia  reverencia,  e  mandou  que  o 
chamassem,  perguntandolhe  onde  estava  seu  filho,  que  era  ungido  do 
Espirito  Santo  e  por  elle  se  daria  victoria  aos  Reis,  iustiga  aos 
principes,  pas  aos  sacerdotes  e  fortaleza  na  fe  aos  fieis.  O  que 
ouvindo  Zaga  ^a  Ab  de  Abba  Guerl6s,  ficou  espantado ;  disselhe  o 
Patriarcha:  De  que  vos  espantais?  Trazei  vosso  filho  pera  o  benzer 
como  me  mandou  meu  Deos.  Tornou  logo  Zaga  ga  Ab  onde  ficara 
seu  filho  e  o  trouxe  com  muita  pressa. 

c  Vendo  o  Patriarcha  Guerl6s  a  Fe^a  Seon,  levantouse  de  sua 
cadeira  e  abra^ouo  e  beijouo ;  de  que  todos  se  maravilharao  muito 
dizendo:  Que  vistes,  senhor,  neste  menino  pera  vos  alevantardes 
de  vossa  cadeira?  Respondeu  elle:  Este  menino  he  honrrado  de 
Jesu  Christo  e  da  Virgem  Maria  sua  maj,  e  sam  Miguel  o  g^arda 
com  espada  de  fogo ;  e  mandou  agazalhar  muito  bem  a  Zaga  pa  Ab 
e  a  seu  filho,  e  a  outro  dia  em  amanhecendo  disse  missa  e  or- 
denou  a  Feija  Seon  de  diacono,  e  depoes  o  levou  pera  sua  casa, 
onde  o  teve  sete  dicts  sem  o  afastar  de  sy,  e  no  cabo  dandolhe 
sua  ben^ao  o  mandou  pera  sua  terra,  e  caminhando  chegarao  a 


LIVRO  n,  CAPITULO  XIX.  547 

c  huma  casa  onde  estava  iunta  alguma  gente ;  e  disse  Feija  Seon : 
c  Pas  seia  nesta  casa,  se  nella  ha  filho  de  pas  descanse  sobre  elle, 

f.  260.  c  e  se  nao,  tome  a  nos.  Ouvindo  elles  isto,  se  enfadarSlo  *muito,  e 
c  alevantandose  hum  Ihe  deu  algumas  pancadas.  Disse  o  Santo ; 
c  Porque  fazeis  isto?  Em  luguar  de  pas  me  dais  pancadas?  E  disse 
c  a  sam  Miguel :  Nao  vedes  o  que  fas  este  homem  ?  E  nSo  tinha 
c  acabado  estas  palavras,  quando  aquelle  homem  foj  levantado  no 
c  ar,  onde  o  acoutarao  com  grande  for^a,  sem  elle  ver  quem  Ihe 
c  dava,  e  gritando  dizia:  Perdoaime,  menino,  que  ainda  que  sois 
c  pequeno  no  corpo,  vossa  obra  se  levanta  ate  o  ceo.  Eu,  por  nSo 
c  saber,  vos  agpravei.  Perdoaime,  que  daqui  por  diante  vos  servirei. 
c  Disse  Fe<;a  Seon :  Conhecestes  a  iusti^a  de  Deos,  que  paga  logo 
c  aos  que  fazem  mal?  Respondeo :  Sy,  senhor.  Disse  o  Santo :  O 
c  que  vos  alevantou  pera  esse  tormento  vos  fara  decer ;  e  logo  ces- 
c  sarao  os  acoutes  e  foj  posto  na  terra  e  mostrou  os  sinais  delles 
c  como  queimadura  de  fogo,  e  rogou  muito  que  se  agazalhassem 
c  em  sua  casa,  mas  cuidava  em  seu  coragflo  que  erSo  feiticeiros,  e 
c  conhecendo  Fe<;a  Seon  sua  maldade,  disse :  Nao  somos  como  vos 
c  cuidais,  senao  servos  de  Deos.  Pedio  elle  que  Ihe  perdoassem  e 
c  levandoos  a  sua  casa,  Ihes  deu  todo  o  necessario  com  grande  abun- 
c  dancia  e  mui  alegre  Ihes  dizia :  Deos  vos  trouxe  pera  meu  bem. 
c  O  dia  seguinte  veio  ter  com  elles  toda  aquella  gente  e  Ihes 
c  pedio  humilmente  que  Ihes  perdoassem  por  amor  de  Deos  o  agravo 
c  que  Ihes  fizerao.  Responderao  elles  :  Deos  vos  perdoe :  daqui  por 
c  diante  nao  fa^ais  assim ;  tende  amor  huns  com  outros  e  com  os 
c  peregprinos,  porque  o  amor  cobre  a  multidao  dos  pecados.  Se  nao 
c  o  fizerdes  assy,  que  respondereis  no  dia  do  juizo,  quando  Chri- 
c  sto  N.  S.°'  vos  disser :  Tive  fome  e  nao  me  destes  de  comer,  sede 
c  e  nao  me  destes  de  beber,  era  hospede  e  nao  me  agazalhastes  ? 

f.26o,v.  c  *Responderao  elles :  Vosso  Deos  esteia  nos  nossos  cora^Oes  pera 
c  comprirmos  tudo  o  que  nos  dissestes;  e  despediraonos  acompa- 
c  nhandoos  24  pessoas,  e  anoitecendolhes  no  caminho  sem  poder 
c  chegar  a  povoado,  se  meterao  em  huma  lapa,  mas  nao  acharao 
c  agoa ;  e  estando  todos  com  grande  sede,  se  afastou  hum  pouco 
c  Fe^a  Seon  e  fazendo  ora^ao  disse  :  Senhor  Deos,  que  me  ouvistes 
c  hontem  por  aquelle  homem,  ouvime  tambem  oie  na  necessidade 
c  que  temos  de  agoa.  Vos  sois  o  que  tirastes  agoa  da  pedra,  quando 
c  tiverao  sede  os  de  Israel ;  acodinos  tambem  agora.  E  dizendo  isto, 
c  derramava  tantas  lagrimas  que  cairao  no  chao,  donde  saio   logo 


548  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

<  huma  fonte  de  agoa  mul  sabrosa ;  pello  que  deu  g^a^as  a  Deos 
c  e  chamou  sua  gente  dizendo  que  achara  agoa,  e  beberao  todos, 
€  sem  saber  que  era  milagrosa. 

€  O  outro  dia  pella  menhaa  partirao  dali,  e  proseguindo  seu 
«  caminho  chegarSo  em  pas  a  sua  terra  Zorere,  onde  os  recebeo 
«  Egziharea  com  muita  alegria  por  ver  que  seu  filho  era  ia  diacono  ; 
«  e  Zaga  ^a  Ab  Ihe  contou  o  que  o  Patriarcha  Ihe  dissera,  e  tudo  o 
«  que  Ihe  sucedeo  no  caminho,  e  ella  deu  gra^as  a  Deos  por  tantas 
«  maravilhas. 
6.Fe9aSeon,8pre-  «  Crescendo   mais  Fe^a  Seon,  exercitouse  em  capar,   cavalgar 

tis  nuptiis,  ad  Abu-  i  .  •  r       t_  r  •   ^         j     ^. 

nam  ae  confert,  qui    *  ®"^  cavalo  e  tirar  com  frecha,  no  que  foj  tam  destro,  que  nunca 
eum  sacerdotem  in-   «  tirava  frecha  debalde.  Vendoo  assj  seus  pais,  tratarSo  de  o  casar 

stituit    et    omnibus 

SeoA  pagis  praeficit.    «  com  huma  filha  dos  mais  principaes  da  terra;  mas  disselhes  elle 

«  que  nao  falassem  tal  cousa,  porque  tinha  oflFerecida  sua  pureza 
«  a  Christo.  Com  tudo  nao  desistirao  seus  pajs,  antes  Ihe  trouxe- 
«  rao  a  casa  aquella  donzela  pera  que  casasse  com  ella;  mas  dali 
«  a  pouco  morreo,  e  elle  se  alegrou  por  se  ver  livre  pera  poder 
«  *guardar  pureza;  porque  nao  tinha  postos  seus  pensamentos  nas  f.  261. 
«  cousas  do  mundo,  e  dali  a  pouco  foj  aonde  estava  o  patriarcha 
«  Guerlos,  e  disselhe  que  fizerao  outra  fe  e  outro  custume  da  Igreia 
«  e  que  bautizavao  os  meninos  aiites  de  os  circuncidarem.  Ouvindo 
«  isto  Guerlos  Ihe  deu  a  ben^ao  e  disse :  Porque  tendes  zelo  das 
«  cousas  de  Deos  como  EHas  profeta  de  Israel,  aveis  de  ser  novo 
«  Apostolo  e  derrubareis  os  idolos,  e  serao  langados  fora  todos  os 
«  espiritos  maos  por  vosso  mandado  e  fareis  que  muitos,  deixando 
«  a  adora^ao  dos  demonios,  adorem  a  Christo  N.  S.°S  poUa  graga 
«  do  Espirito  Santo  que  esta  sobre  vos.  E  depoes  o  ordenou  de 
«  missa  e  o  fes  prior  de  todas  as  terras  de  Seoa,  dandolhe  pera 
«  isso  seus  poderes,  e  o  mandou  em  pas  com  honrra  pera  sua  terra. 
«  No  mesmo  tempo  em  que  Fe^a  Seon  estava  em  Amhara  com 
«  Abba  Guerlos,  apareceo  s.  Miguel  a  Egziharea:  Eis  aqui  chegou 
«  o  que  primeiro  vistes.  Este  vosso  filho  he  aquella  coluna  de  lus 
«  que  olhastes,  e  os  passaros  que  estavao  nella  assentados  sao  os 
«  filhos  que  Ihe  hao  de  nacer  no  Spirito  Santo  e  conforme  aos  de- 
«  graos  que  tinha  sera  sua  santidade,  e  nenhum  dos  que  vistes  se 
«  perdera  e  aquelle  tirano  que  vos  cativou  ha  de  ser  muito  bom  chri- 
«  stao  por  sua  doutrina  e  sarara  de  sua  doudice  por  sua  intercessao, 
«  e  os  que  entao  morrerao  resocitarao  por  sua  ora^ao,  e  seri  paj  de 
«  muitos  Santos.  Isto  vos  declarei,  porque  me  amais ;  e  desapareceo. 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  549 

«  Contou  ella  tudo  a  seu  marido  e  derSo  muitas  gra^as  a  Deos,  por 
«  Ihes  dar  tal  filho.  Dali  a  pouco  tempo  chegou  Fe^a  Seon  ia  sacer- 
«  dote  e,  perguntandolhe  a  maj  em  que  dia  Ihe  derao  as  ordens,  con- 
f.26i,v.  «  heceo  que  naquelle  mesmo  Ihe  aparecera  sam  *Miguel,  e  fizerao  logo 
«  grande  festa  e  derao  muitas  esmolas  aos  pobres.  Mas  logo  a  12 
«  de  agosto  descansou  sua  maj  Egziharea  e  aos  1 6  seu  paj  Zaga  Qa 
«  Ab.  A  benijao  destes  dous  velhos  singelos  como  pomba  e  a  ben^ao 
«  de  seu  filho  sabio  seia  comnosco  pera  sempre  dos  sempres  Amen, 

«  Vendose  Fe<?a  Seon  orfao,  chorou  muito  e  ocupavase  em  fazer  ?•  Paremibus  viu 
«  ora^ao  de  noite  e  de  dia  e  lia  os  livros  santos  dos  Apostolos  e  anaos  'Smi  ^tam 
«  compria  com  as  obrigacoes  de  sacerdote ;  e  esteve  sete  annos  na  »*«cularem     agens. 

^  .  .  Apparet  ei   Michael 

«  casa  de  seus  pajs  com  grande  riqueza.  E  indo  hum  dia  ao  campo  arctiangelus,  iubet 
<  a  ca^ar  com  muita  gente  e  apartandose  dos  companheiros,  Ihe  iapere^sed  homincs' 
«  apareceo  s.  Miguel  ao  meio   dia  com   vestido   muito   fermoso,  e  ^*  sacerdotem  decet, 

.  ,-^       ®*  vocari  non  Fe^a 

«  vendoo  o  Santo  caio  como  morto  sobre  seu  rosto;  mas  sam  Mi-  Seon,  sed  TacU  Hai- 
«  cfuel  o  alevantou  e  Ihe  fes  o  sinal  da  crus,  e  logo  ficou  sem  medo  f?,^5^  Chnstus  ipse 

o  '  o  lussa      Archangeli 

«  e  veio  claramente  ao  anjo  e  Ihe  disse :  Quem   sois  vos,   senhor,  confirmat,     eumque 

4.     ^  j         -i    -o  j  T-  •      j      Evangelii       praeco- 

«  que  vos  veio  com  tanta  grandeza?  Respondeo:  Eu  sou  anjo  da  nem  et  apostolum 
«  forga  de  Deos,  que  vos  guardo  sempre,  sem  nunca  me  afastar  de  ^P^idgentesinstituit. 
«  vos;  eu  sou  o  que  tirei  a  Zaga  ga  Ab  do  fundo  da  agoa  por 
«  amor  de  vos;  eu  sou  o  que  livrei  do  cativeiro  a  Egziharea  por 
«  amor  de  vos ;  mas  agora  porque  sojs  ca^ador,  que  este  exercicio 
«  nao  convem  aos  sacerdotes,  senao  aos  seculares  [?].  O  ofiicio  do  sa- 
«  cerdote  he  ensinar  a  f e  e  emmendar  a  gente  do  povo.  Daqui  por 
«  diante  nao  seiais  ca^ador  de  animais,  senao  de  almas  pera  Deos: 
«  elle  vos  da  poder  pera  resocitar  os  mortos,  sarar  os  doentes,  e 
«  lan^ar  fora  os  demonios ;  e  vosso  nome  nao  seia  Fe^a  Seon,  senao 
«  Taquela  Haimanot,  que  quer  dizer  planta  do  Padre,  do  Filho  e 
f.  262.  «  do  Espirito  Santo.  E  dizendo  isto  sam  Migfuel,  se  *lhe  mostrou 
«  Nosso  Senhor  Jesu  Christo  sobre  as  asas  do  anjo  assentado  em 
«  fig^a  de  mancebo  mui  fermoso.  E  vendo  isto  Taquela  Haima- 
«  not  ficou  espantado  e  disselhe  Nosso  Senhor:  Como  estais,  meu 
«  amigo  [?].  Respondeo.  o  Santo :  Quem  sois  vos,  senhor  [?].  E 
«  disse:  Eu  sou  Jesu  Salvador  do  mundo,  que  vos  criei;  eu  sou  o 
«  que  vos  benzi  no  ventre  de  vossa  maj ;  eu  sou  o  que  dei  ben- 
«  ^ao  a  vossa  mao  pera  encherdes  a  casa  de  vossos  pais  de  fa- 
«  rinha  de  trigo,  manteiga  e  as  demais  cousas  no  tempo  da  fome ; 
«  eu  sou  o  que  crucifiquei  o  homem  no  ar  e  o  acoutei  na  minha 
«  ira,  quando  vos  agravou ;   eu  sou  o  que  da  terra  seca  fis  sair  a 


i 


550  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«^fonte  de  agoa,  quando  tinhais  sede  e  me  pedistes ;  eu  sou  o  que 

«  vos  dei  virtude  e  forga  ate  oje,  e  vos  hei  de  dar  muita  mais  daqui 

«  por  diante.  E  dizendo  isto  o  benzeo  e  bafeiou  tres  veses  em  seu 

<  rosto,  e  disse :  Recebei  o  Espirito  Santo :  o  que   amarrardes  na 

«  terra  seia  amarrado  no  ceo,  e  o  que  soltardes  na  terra  seia  solto 

«  no  ceo :  quem  ouve  a  vos  ouve  a  mim.  Este  poder  dei  primeiro 

€  aos  Apostolos  e  delles  veio  ao  Bispo ;  e  elle  vos  deu  poder  pera 

«  amarrar  e  soltar,  pera  plantar  e  arrancar.  Isto  que  vos  fis  nao  he 

«  pera  que  deixeis  a  palavra  do  Bispo,  senSlo  pera  mostrar  o  amor 

«  que  vos  tenho.  Eis  aqui,  vos  dei  mando  e  nome  novo  poUa  boca 

«  de  9am  Miguel  pera  vos  mandar  a  hum  povo  novo  onde  nao  che- 

«  garSio  meus  apostolos  santos ;  e  vos  nao  sois  menor  que  elles  em 

«  nenhuma  obra,  porque  vos  fis  novo  Apostolo,  pera  que  chameis 

«  todos  os  homens  a  mjm ;  e  Miguel  meu  anjo  seia  em  tudo  vossa 

«  aiuda  e  nao  se  afaste   nunca  de  vos,  e  eu  estarei   sempre  com- 

«  vosco  toda  vossa  vida.  E  dizendo  isto  Ihe  deu  pas  e  sobio  pera 

«  o  ceo,  olhando  o  santo  Taquela  Haimandt  ate  que  des*apareceo  f.262,v. 

«  de  seus  olhos;  e  o  Santo  se  deitou  em  terra  e  benzeo  a  Deos  di- 

«  zendo :  Seia  bento  o  nome  do  Senhor  no  ceo  e  na  terra ;  que  me 

«  deu  tanta  gra^a,  que  nao  convinha  a  mim   peccador;  e  daquelle 

«  dia  foj  cheo  de  Espirito  Santo  e  virtude. 

«  Acabado  isto,  se  iuntou  com  seus  companheiros  e  Ihes  disse 
«  que  era  bem  tomar  pera  casa,  porque  era  tarde.  Elles  vendo  a 
«  lus  de  seu  rosto,  tiverao  medo  e  disserao :  Como  avemos  de  ir 
«  a  nossas  casas  sem  ca^ar  nada[?].  Disse  o  Santo:  Vamos;  que 
«  daqui  pordiante  nfto  nos  convem  ca^ar  animais  do  deserto  senao 
«  de  casa,  que  sao  as  ovelhas  perdidas ;  mas  elles  nao  entenderao 
«  que  falava  das  almas  dos  homens  e  nao  Ihes  descobrio  a  visao; 
«  e  indo  pera  casa  diziao  huns  aos  outros :  Vistes  o  rosto  deste 
«  homem  ?  Elle  se  afastou  de  nos  as  tres  horas  e  nao  o  vimos  ate 
«  as  nove;  e  trazia  tanta  claridade  que  nao  podiamos  olhar  pera 
«  elle.  Nao  sabemos  que  foj.  E  nosso  padre  Taquela  Haimanot 
«  passou  a  noite  alegrandose  com  o  Spirito  Santo  que  estava  so- 
«  bre  elle,  e  em  amanhecendo  come^ou  a  iuntar  o  fato  de  sua  casa 
«  e  em  8  dias  o  repartio  aos  pobres,  as  viuvas  e  orfaos;  o  que 
«  vendo  a  gente  da  terra  e  seus  parentes,  se  iuntarao  e  Ihe  disse- 
«  rao,  porque  perdia  todo  seu  fato  de  hnma  ves.  Respondeo  que 
«  nao  o  perdia,  senao  que  o  acrescentava,  pera  que  Ihe  fosse  he- 
«  ran^a,  e  disselhes:  Sabeis  meu  nome?  Responderao  que  bem  sa- 


1 


LIVRO  II,  CAPITQLO  XIX.  55 1 

€  biao  que  era  Fe^a  Seon ;  disse  elle  que  ia  nSo  tinha  aquelle  nome, 
€  porque  o  anjo  do  ceo  Ihe  mandara  que  dali  por  diante  se  cha- 
€  masse  Taquela  Haimandt;  e  ouvindo  elles  isto,  disser£lo  que  era 

<  muito  bom  nome  e  sempre  o  nomearSo  por  elle. 

f.  263.  <  Come^ou   logo  nosso  padre  Taquela  Haimanot  *a  seguir  o      8.Taci&Haiman6t, 

.,jA^,  ^j  r  ^  •  divitiis  in  pauperes 

€  caminho  dos  Apostolos,  e  sem  ter  de  ver  com  fato,  amigos,  nem  distributis  et  reiicto 
«  parentes,  foj  a  pregar  o  Evangelho  e  deixou  sua  casa  aberta  di-  pa*ef»«  domo,  dis- 

currit  per  varias  re- 

«zendo:  Senhor  Jesu  Christo,  eis  aqui,  deixei  minha  casa  aberta,  giones^praedicansfi- 
«  pera  que  me  abrais  o  reino  do  ceo.  Daqui  por  diante  nSo  tenho  commiUorum^oeni- 
«  mais  aiuda   que  a  vossa  pera  minha  fraqueza ;   e  com  isto   saio  tentiam.  Quibus  pro- 

dig^is  populares  Ca- 

«  como  soldado  animoso  dizendo  em  seu  cora^So :  Que  aproveita  tatA,  qui  arbores  ut 
«  ao  homem  se  ganhar  todo  o  mundo  e  perder  sua  alma;  e  lem-  ?"^    habcbant,    a 

^  ^  '  daemonis  obsessione 

«  bravasse   das  palavras  do  Senhor :   O  que  ama   sua  alma  a  per-  liberaverit  et  Chri- 

jt      f      ^  ^-  .  ,  j»j        stianis      adiunzerit, 

<  dera  etc;  e  em  todas  as  partes  que  chegava,  pregava  dizendo:  una  cum  eorum  rege, 
«  Checfou  o  reino  dofsl  ceos ;  crede  no  Evangelho  do  filho  de  Deos:  ^^  nomen  imposuit 

^  *-  -^  °        ,  Bamina  Christ6s. 

«  E  foj  ouvida  sua  nova  em  todas  as  terras,  e  vinhao  a  elle  muitos 
«  homens  e  recebiao  sua  ben^ao,  e  traziao  os  doentes  e  os  botavao 
«  a  seus  pes,  e  elle  os  sarava  com  a  virtude  de  Deos;  e  vendo  a 
«  gente  que  fazia  milagres  no  nome  de  Jesu  Christo  o  seguirao  de 
«  todo  o  cora^ao  e  deixarao  seus  erros  e  forao  inteiros  na  verda- 
«  deira  fe ;  e  ouvindo  que  em  huma  terra,  que  se  chama  Catata, 
«  adoravao  as  arvores  e  as  pedras,  os  passaros  e  animais  bravos 
«  e  o  fogo,  foj  la  com  grande  zelo  e,  comegando  a  insinar,  ouvirao 
«  as  gentes  daquella  terra  o  nome  de  Christo  e  se  enfadarao  muito ; 
«  mas  o  Santo  sofria  com  paciencia,  vendo  que  nao  sabiao  o  que 
«  faziao,  e  pergxmtoulhes  a  quem  adoravao,  e  responderao  que  a 
«  huma  arvore,  porque  nella  Ihes  falavao,  eu  vos  criei,  dizendo,  eu 
«  sou  vosso  Deos.  Disselhes  nosso  Padre  que  quando  fossem  a  ado- 
«  rar,  o  levassem  comsigo,  e  cuidando  elles  que  queria  adorar  seu 
«  Deos,  o  levarao;  e  outro  dia  em  amanhecendo  e  chegando  perto 
«  da  arvore,  gritou  o  demonio,  que  estava  nella,  dizendo :  Porque 
«  me  trouxestes  este  homem  mao,  que  se  chama  Taquela  Haima- 
«  n6t[?].  Perguntarao  entao  ao  Santo  se  era  elle  Taquela  Haimandt, 
f.263,v.  «  que  em  nossa  *terra  nao  ha  tal  nome.  Ficai ;  nao  venhais  com- 
«  nosco,  pera  que  nao  se  enfade  nosso  Deos.  E  o  fizerao  ficar  no 
«  caminho,  e  elles  forao  a  fazer  sua  adora<;ao.  Vendo  isto  Taquela 
«  Haiman6t,  virou  seu  rosto  pera  o  oriente  e  come^ou  a  fazer  ora^ao 
«  dizendo :  Olhai,  Senhor,  a  soberba  do  demonio ;  vede  o  que  fas 
«  a  vossas  criaturais ;  pe^ovos,  Senhor,  que  amarreis  a  este  soberbo 


552  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  com  a  mSlo  de  vosso  servo,  mandando  a  sam  Migxiel  que  me  aiude, 

<  como  me  prometestes,  e  ao  demonio  nSk)  Ihe  deis  licen^a  pera 
«  se  afastar   daquella   arvore,  sem  que  fique  envergonhado  diante 

<  deste  povo  que  tras  tam  enganado,  e  aquella  arvore  venha  pera 
c  mim  com  suas  raizes.  O  Senhor  Jesu  Christo,  vos  sois  minha  fe 

<  e  minha  obra,  mostrai  oie  a  virtude  de  minha  fe,  pera  que  se 
«  manifeste  a  for^a  de  minha  obra  diante  de  todos  estes  que  estao 

<  iuntos. 

<  Acabada  sua  orag^o,  foj  pera  a  arvore  e  disse :  £n  nome  de 

<  meu  Senhor  Jesu  Christo,  a  quem  ey  adoro,  vos  mando  que  saiais 

<  com  vossas  raizes  e  me  sigiiais  trazendo  ao  demonio  que  fala  so- 

<  bre  vos,  pera  que  veiao  os  homens  a  for^a  de  meu  Deos.  E  logo 

<  se  arrancou  a  arvore  com  tam  gfrande  estrondo  como  o  do  torvao 

<  no  meio  do  inverno,  e  foi  pera  o  Santo   dando  com  suas  raizes 

<  nos  que   achava  com  tanta  forga  que  matou  24  e  os  demais  fu- 

<  girao  com  grande  medo;  e  chegando  a  arvore  onde  estava  o  Santo, 

<  gritou  o  demonio   dizendo :    Onde   hei  de  fugfir  de  ti,  o  homem 

<  mao  ?  Xao  te  basta  toda  a  terra  de  Celalgi,  senao  que  venhas  aqui 

<  tambem  pera  me  roubar  meus  servidores?  Entao  deceo  do  ceo 

<  sam  Miguel  com  sua  espada  e  amarrou  ao  demonio  gritando  elle  e 

<  dizendo :  Esconiuro  vos,  Miguel,  per  Deos  que  me  nao  deis  trabalho, 
«  antes  morte.  Deixaime  ir,  que  nunca  mais  chegarei  onde  estiver 

<  este  homem  mao.  Respondeo  sam  Miguel :  Nao  te  hei  de  deixar 

<  *ate  que  se  detenha  Taquela  Haimanot  Entao  gritou  o  demonio  f.  264. 

<  pedindo  ao  Santo  que  esperasse,  que  tinha  que  Ihe  falar.  Detevesse 

<  elle  e  mandou  a  arvore,  que  o  hia  seguindo,  que  se  detivesse,  e 
«  disse  ao  demonio:    Porque   fazes   errar  a  gente  e  Ihe   persuades 

<  que  tu  os  criaste?  Respondeo  elle:  Nao  sabes  que  sou  mentiroso 

<  e  paj  das  mintiras,  e  que  a  todos  os  que  me  dao  credito  falo 
«  mentira,  como  he  meu  custume  [?].  Deixaime  ir,  e  eu  vos  prometo 
«  de  nao  tornar  mais  onde  estiverdes.  Disse  o  Santo :  la  que  enga- 

<  naste  a  gente  desta  terra,  dizelhes  agora:  Eu  primeiro  vos  fis 
«  errar  com  mentiras;  daqui  por  diante  adorai  a  Nosso  Senhor  Jesu 
«  Christo  com  seu  Paj  e  Espirito  Santo.  Respondeo  o  diabo :  Nao 

<  posso  pronunciar  esses  nomes.  Disse  o  Santo :  Se  nao  podes  pro- 
«  nunciar  os  nomes  da  Trindade,  dizelhes :  Adorai  e  servi  o  criador 
«  dos  ceos  e  da  terra,  que  criou  a  vos  e  a  mim.  Disse  entao  o  de- 
«  monio  a  gente  da  terra:  Primeiro  vos  fis  errar  com  mentira;  daqui 
«  por  diante  servi  ao  criador  do  ceo  e  da  terra,  que  criou  a  mim 


1 


LIVRO  II,   CAPITULO   XIX.  553 

c  e  a  vos.  Quem  me  segue  desce  ao  infemo  iuntamente  comigo. 
«  E  dizendo  isto,  o  largou  sam  Miguel  e  fugio  logo  como  hum  pe 
«  de  vento. 

«  Vendo  aquelles  que  estavSo  iuntos  tam  grande  milagre,  se 
«  maravilharSo  muito,  mas  nao  viao  o  anjo,  somente  Taquela  Hai- 
«  man6t,  a  quem  falou  sam  Miguel :  Sede  forte,  que  tudo  aveis  de 
«  vencer  com  a  virtude  de  vosso  Deos;  e  dizendo  isto,  Ihe  deu  pas 
€  e  subio  pera  o  ceo,  e  toda  a  gente  da  terra  veio  pera  nosso  Pa- 
«  dre  e  lan^andose  a  seus  pes  disserao :  O  lus  da  vida,  ensinajnos 
«  o  caminho  da  salva^ao.  Respondeo  Taquela  Haiman6t:  Vinde, 
«  meus  filhos,  seguime,  crede  em  Deos  que  vos  criou ;  e  disserao : 

f.264,v.  €  Sy  cremos  *como  nos  dizeis ;  e  os  bautizou  no  nome  do  Padre  e 
«  do  Filho  e  do  Spirito  Santo;  e  depoes  foj  onde  estavao  os  cor- 
«  pos  dos  que  matou  a  arvore  e  fes  orac^ao  dizendo :  O  Senhor  Jesu 
«  Christo,  que  resocitastes  a  Lazciro  de  4  dias  morto  e  ao  filho  da 
«  viuva  de  Naim,  vos  sois  Deos  dos  fortes  e  resurrei^ao  dos  mor- 
«  tos ;  tudo  podeis ;  mandai  vossa  misericordia  do  ceo  pera  que  se 
«  alevantem  estes  mortos,  e  decendo  o  orvalho  do  ceo  sobre  os 
«  mortos  se  alevantarao  todos  saos  como  antes  e  com  elles  sairao 
«  das  sepulturas  15  homens  que  morrerao  muito  antese  fizerao  re- 
«  verencia  ao  Santo  lan^andose  a  seus  pes.  E  perguntandolhes  elle, 
«  quando  morrerao,  responderao  que  no  tempo  que  reinava  Abraha 
«  e  Azbaha;  e  disselhes  Taquela  Haimanot:  Fostes  bautizados  no 
«  nome  de  Christo  [?],  responderao  que  nao  sabiao  que  cousa  era  bau- 
«  tismo,  nem  conheciao  a  Christo  naquelle  tempo.  Pois  a  quem  ado- 
«  ravais?  disse  o  Santo.  Responderao  que  a  huma  arvore  que  alli 
«  estava  e  nos  falava  dizendo,  que  vos  criei,  e  estando  com  esta 
«  adoragao  morremos  e  nos  levarao  ao  inferno  e  estivemos  no  fogo 
«  que  nunca  se  apaga.  Disselhes  Taquela  Haimanot:  Porque  nao 
«  vos  livrou  o  Deos  que  adoravais  [?J.  Responderao  que  nem  a  sua 
«  cabe^a  podia  livrar.  Disselhes  elle:  Como  viestes  agora  aqui[?], 
«  Responderao  que  por  sua  oracjao  fora  mandada  a  misericordia  de 
«  Deos  sobre  aquelles  mortos,  e  que  tambem  Ihes  alquan^ara  a 
«  elles  que  estavao  debaixo.  Pedimos  vos  agora,  o  Santo  de  Deos, 
«  que  fa^ais  que  nao  tornemos  mais  aquelles  tam  grandes  tormentos 
«  em  que  estavamos.  Maravilhouse  muito  Taquela  Haimanot  ouvindo 
«  isto  e  disse  ao  povo:  Olhai  este  milagre.  Se  eu  vos  falara,  nao 
«  me  ouvereis  de  crer:  eis  aqui  foj  conhecido  vosso  Deos,  que  nem 

f.  265,   «  a  sy  nem  aos  outros  *pode  salvar.  rergnntou  tambem  aos  outros 

C.  Beccaki.  /f#r.  Atih,  Scripi,  occ,  tned.  —  II.  70 


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554  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

e  24  que  resocitarao:  Vos  outros  ondeestivestes?  ResponderSo  que, 

<  quando  suas  almas  sairSo  dos  corpos,  os  levavao  pera  o  fogo  os 
t  anjos  maos,  e  que  elle  viera  em  hum  cavalo  de  fogo  e  pelejara 
«  com  elles,  e  ent9o  decera  do  ceo  sam  Miguel  e  dizendo:  Dai  estas 

<  almas  a  esse  homem,  nos  lai^rElo  logo,  e  vos  nos  trouxestes,  e 

<  agora  estamos  diante  de  vos,  como  nos  vedes.  Declarainos  como 
c  nos  avemos  de  salvar  e  livrar  destes  trabalhos.  Dtsselhes  o  Santo : 
(  Crede  em  Deos  e  bautizaivos  em  seu  nome  peia  que  alquanceis 
«  a  vida  etema.  Responderao  todos:  Cremos  em  Deos;  bautizainos; 

*  e  alevantandose  o  Santo  os  bautizou  em  o  nome  do  Padre,  Filho 
c  e  Espirito  Santo,  e  forao  bautizados  aquelle  dia  hum  cento  dous 
(  mil  e  trezentos  e  45.  Esteve  Taquela  Haimandt  aquelle  dia  bau- 
(  tizando  ate  que  se  queria  por  o  sol,  e  entAo  disse  missa  e  Ihes 
c  deu  a  comunhao. 

(  Acabado  isto,  chamou  TaqueU  Haiman6t  os  15  homens  que 
(  morrerao  primeiro  e  disselhes:  Vos  outros  resucitastes  pera  que 

<  visse  esta  gente  a  virtude  de  meu  Deos :  ide  ^ora  e  dormi  ate 

<  o  dia  da  comum  resurrei<;ao.  Lan^arSose  elles  entao  a  seus  pes 
«  chorando  e  dizendo:  N5o  nos  mandeis  mais,  senhor,  peraaquella 
«  terra  de  tormentos.  Respondeo  Taquela  Haimandt ;  Nao  choreis, 
«  que  daqui  por  diante  nAo  aveis  de  ir  a  terra  de  tormentos  senSo 
«  a  do  descanpo,  porque  todo  o  que  cre  em  Christo  e  he  bautizado 
«  se  salva,  e  o  que  nSo  cre   se  condena,  e  todo  o   que   come    sua 

c  carne  e  bebe  seu  sangue  tera  vida  etema,  *e  dizendo  isto  morrerSo   f 
«  e  os  sepultou  o  santo  e  forao  pera  vida  eteroa  corao  elle  Ihes  disse. 
(  Em  amanhecendo  vierao  a  Taquela  Haiman6t  muitos  povos, 

<  homens  e  molheres,  velhos  e  meninos  pera  ouvir   as   maravilbas 

<  que  Deos  obrava  por  seu  servo  e  disserSo :  Eis  aqui,  cremos  todos 

<  em  o  Deos  que  vos  adorais.  Ouvindo  isto  o  Santo,  deu  muitas 
(  gra^as  a  Deos  e  deceo  com  elles  ao  rio,  que  chamao  Mee^at  e 
(  benzeo  a  agoa  e  os  bautizou  no  nome  do  Padre,  Filho  e  Espirito 
«  Santo,  e  forao  bautizados  naquelle  dia  sesenta  centos  tres  mil  e  49 ; 

*  e  deceo  o  Spirito  Santo  em  forma  de  pomba  branca  sobre  elles,  mas 
(  nao  a  via  mais  que  Taquela  Haiman6t  e  ficarao  com  grande  rcsplan- 
c  dor  os  rostos  dos  que  se  bautizarao. 

<  Como  os  acabou  de  bautizar,  os  come^ou  a  insinar  clatamente 
«  com  fes  Deos  o  ceo  e  a  terra  e  quanto  nela  ha,  e  como  criou  a 

<  Adam  a  sua  imagem  e  semelhan^a,  e  como  foj  lanijado  do  parayso 
(  por  comer  da  fruta  prohibida,  e  como,  porque  depoes  seus  filhos 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX. 


555 


fizerao  muitos  peccados,  os  castigou  Deos  com  o  diluvio,  salvan- 
dose  nSo  mais  que  7  almas,  e  a  seus  descendentes  deu  a  lei  e 
profetas  e  nSlo  guardarSio  bem  sua  lei,  e  depoes  desceo  o  mesmo 
Deos  do  ceo  e  naceo  da  santa  Virgem  Maria,  e  aos  30  annos  foj 
bautizado  por  s.  Jofto  no  Jordflo  e  saindo  ao  deserto  ieiunou  40  dias 
e  40  noites,  e  assim  Ihes  foi  declarando  todos  os  misterios.  Ou- 
vindo  elles  estas  palavras,  Ihes  entrarSio  em  seus  cora(;Oes  como 
o  azeite  em  os  ossos,  e  lan^andose  aos  pes  do  santo,  disserSlo  gra- 
9as  a  Deos  que  nos  deu  a  nos  lus  da  vida  e  deulhes  do  corpo  e 
sangue  do  filho  de  Deos. 

f.  266.  €  Ouvindo  o  principe  da  terra  que  se  cha*mava  DarasguSd  o 

que  tinha  feito  Taquela  Haimandt,  se  agastou  muito,  porque  os 
que  adoravSo  aquella  arvore  Ihe  davao  300  arrateis  de  prata,  e 
contando  ao  Santo  como  o  principe  estava  mui  agfastado,  disse 
a  seus  fieis :  Trazei  machados  e  vinde  comigo ;  e  indo  onde  estava 
a  arvore  que  elle  deixara  em  p6,  mandoulhe  que  caisse  e  logo 
caio,  e  disse  que  a  cortassem  pera  fazer  della  igreia.  Nisto  veio 
o  principe  con^  grande  soberba  e  disse  a  nosso  Padre:  Vos  sois 
o  que  perdeis  nossa  terra?  Respondeo  o  Santo:  Nao  sou  o  que 
a  perco,  antes  se  salva  por  meio  de  hum  servo  pobre.  Disse  o 
principe :  Se  nao  perdeis  minha  terra,  quem  vos  deu  licen^a  pera 
cortar  esta  arvore  e  perder  o  tributo  del  Rei  ?  E  mostravasse  tam 
indignado  que  parecia  querer  ingfulir  ao  Santo,  nem  por  isso  dei- 
xavSLo  aquelles  de  cortar,  e  saltando  huma  racha  Ihe  deu  no  olho 
direito  e  caio  como  doudo  com  grahdes  dores  e  gritou  a  seu  Deos 
dizendo:  Senhor,  eu  nSo  mandei  nem  vim  cortar  a  arvore ;  mas  este 
homem  mao,  que  nSo  he  conhecido,  perdeo  a  terra,  e  quis  tomar 
vosso  mando.  Perdoaime,  Senhor.  Gritou  entao  de  longe  o  demonio 
dizendo:  Derazgued,  Derazgued,  daqui  por  diante  deixai  a  terra  a 
este  homem,  que  eu  nfto  posso  com  elle,  que  he  muito  forte.  Que 
vos  direi  dos  tormentos  que  achei  por  amor  delle  [?] ;  nSo  vos  posso 
salvar  de  sua  mSo,  nem  ainda  a  mim  mesmo.  Oie  vos  digo  de 
verdade  que  o  sirvais  vos  e  vossos  povos,  que  a  mim  nSo  me 
aveis  de  ver  mais.  E  dizendo  isto,  desaparaceo. 

<  Vendo  isto  os  que  estavao  presentes,   ficarao  espantados   e 
disselhes  o  principe:  Eu  creio  no  Deos  deste  homem ;  vos  outros 
«  rogai  que  me  perdoe  a  soberba  que  Ihe  mostrei  e  me  sare  desta 

f.266,v.   «  doen^a.  *Pedirao  elles  muito  ao  Santo  que  o  perdoasse.  Respon- 
deo  elle:  Se  nao  crer  em  Deos  de  todo  seu  cora^ao,  nao  ha  de 


556 


HISTORIA  DE  ETHIOPIA 


9.  Neophytis  Ca- 
tadL  curae  preabyte- 
rorum,  quos  e  Zorftre 
advocaverat,  com- 
missis,  ipse  in  deser- 
tum  secedit,  at  a  Do- 
mino  per  vlsum  ad- 
monitus  ut  incolas 
Dam6t  fidei  christia- 
xiae  praeceptis  im- 
bueret^  eo  se  confert. 
Iter  faciens  per  terras 
SeoA  daemones  eiicit 
e  monte  OifAt  inco- 
lasque  omnes  sacro 
baptismate  abluit. 


safar  de  sua  doen<;a.  Disserao  elles  que  ia  affirmava  que  cria. 
Mandou  entSio  que  o  trouxessem  e  chegando  alevantou  a  vos  di- 
zendo:  Creo  em  vosso  Deos:  servo  de  Deos,  saraime  desta  doen^a. 
Tocoulhe  entao  nosso  Padre  com  a  mSo  no  olho  e  sarou  logo. 
Vendose  o  principe  sSo,  lan^ouse  aos  p6s  do  Santo  e  disse:  De 
verdade  vosso  Deos  he  todo  poderoso;  dizeime  como  me  hei  de 
salvar;  disselhe  o  Santo:  Crede  em  Deos  de  todo  o  cora^ao  e  vos 
e  os  de  vossa  casa  acharSlo  vida  eterna.  Respondeo  o  principe: 
Creio  de  todo  meu  cora^ao.  Disselhe  o  Santo:  Se  credes  intei- 
ramente,  levantaivos  e  cortai  desta  arvore;  o  que  elle  fes  com 
grande  fervor;  e  edificarao  huma  igreia  na  terra  Endeguen  no 
lug^ar  Zateiber,  fazendose  daquella  arvore  todas  as  portas,  janellas, 
columnas  e  tudo  o  mais  que  foj  necessario  pera  a  igreia.  Depoes 
bautizou  Taquela  Haimanot  ao  principe,  a  sua  molher  e  a  toda  sua 
casa  e  a  elle  pos  nome  Bamina  Christos  e  a  sua  molher  Acrocia, 
e  os  que  se  bautizarao  na  terra  Catata  foram  sesenta  e  4  centos 
sinco  mil  e  300  e  87,  porque  de  outras  muitas  terras  vierao  ali 
muitos  polla  fama  dos  milagres  que  fazia  o  Santo  e  se  bautizarao. 
c  Como  se  aiuntou  a  nosso  Padre  tam  grande  multidao  de  gente, 
mandou  recado  aos  sacerdotes  de  sua  terra  Zorere,  dizendo :  Vinde 
a  mim,  porque  tirei  grande  presa  ao  demonio  e  fis  entrar  a  muitos 
na  casa  de  Deos,  e  deseio  que  os  guardeis.  O  que  elles  fizerao 
logo  e  chegando  Ihes  entregou  aquella  igreia,  e  elle  andou  muito 
«  tempo  por  aquella  terra  de  Catata  insinando  a  fe  de  Christo,  lan- 
«  9ando  os  demonios  dos  corpos  e  sarando  os  doentes,  e  chegando 
«  o  tempo  do  jeium,  jeuou  40  dias  e  outros  muitos  jeiuns  sem  comer 
«  mais  que  os  domingos  e  nesses  so  ervas  *do  campo,  sem  fazer  f.  267. 
«  diflFeren^a  das  doces  e  amargosas;  e  como  se  acabava  o  jeium, 
«  tornava  ao  povo  pera  Ihe  insinar  a  fe ;  e  nisto  esteve  3  annos  acom- 
«  panhandoo  sempre  sam  Miguel.  E  estando  huma  ves  no  deserto, 
«  ouvio  huma  vos  do  ceo  que  disse :  Taquela  Haiman6t,  Taquela 
«  Haimanot.  Respondeo  elle:  Eis  aqui  vosso  servo,  porque  co- 
«  nheceo  que  era  palavra  de  Deos,  e  disselhe :  Ide  a  terra  de  Da- 
«  mot,  pera  fazer  vosso  officio  e  neste  deserto  se  edificara  depoes 
«  huma  igreia  grande  por  hum  filho,  que  vos  ha  de  nacer  do  Espirito 
«  Santo,  que  se  chamara  Tadeus. 

«  Acabado  o  jeium,  veio  nosso  Padre  do  deserto  e  aiuntou  toda 
«  a  gente  de  Catata  e  disselhe :  Estai  firmes  na  fe  de  Christo  que  vos 
«  tenho  insinado.  Eu  vou  onde  me  mandou  meu  Deos;  se  elle  for 


'%■■"'<» 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  557 

«  servido,  tornarei  a  vos  outros.  Ouvindo  elles  isto,  comeQarao  a 
«  chorar,  dizendo :  A  quem  deixais  estas  vossas  e  novas  plantas  ? 
c  Quem  nos  dara  de  beber  da  agoa  da  doutrina  da  fe  ?  Que  paj  achare- 
«  mos  como  vos  guardador  da  alma  e  corpo  ?  Respondeo  elle :  Nao 
«  posso  deixar  de  far  o  que  me  manda  meu  Deos ;  nao  vos  intristi<;ais; 
«  estai  em  temor  de  Deos  e  esperai  nelle  e  fora  o  que  deseiardes, 
«  porque  quem  nelle  cre  firmamente  acha  tudo.  Buscai  a  Deos  e 
«  achaloheis,  amajo  de  todo  vosso  cora^ao  e  com  toda  vossa  alma 
«  e  amaivos  huns  aos  outros  como  a  vos  mesmos ;  e  com  isto  vos 
«  conhecerao  como  sois  servos  de  Deos.  Disserao  elles:  Nosso  Pa- 
«  dre,  se  nos  deixais  na  carne,  nao  nos  deixeis  no  spirito,  porque 
«  vos  sois  nosso  encosto  diante  de  Deos.  E  chorando  todos  muito, 
«  se  despedio  e  foi  seu  caminho  sem  querer  aceitar  cousa  nenhuma 
f.267,v.  c  delles,  e  onde  chegou  a  dormir  *aquella  noite  Ihe  aparaceo  Christo 
«  Nosso  S.°'  e  Ihe  disse :  O  meu  amigo  Taquela  Haimanot,  nao  ten- 
«  hais  medo,  porque  ondequer  que  fordes  estarei  sempre  comvosco ; 
«  e  com  isto  desapareceo.  E  proseguindo  seu  caminho  chegou  as  ter- 
«  ras  de  Seoa  onde  pregou  o  santo  Evangelho  e  depoes  desceo  pera 
«  Endeste  e  chegou  a  hum  monte  g^ande,  que  se  chamaOifat  e  subindo 
«  ao  alto  achou  muitos  demonios  com  grandes  gritos,  e  fazendo  o 
«  sinal  da  Crus,  desaparecerao  todos  como  o  fumo  diante  do  vento, 
«  e  o  Santo  passou  toda  a  noite  em  ora^ao. 

«  Como  amanheceo  subio  ao  monte  a  gente  da  terra  levando 
«  vacas  e  muita  sorte  de  comer  e  come^arao  a  offerecer  como  cu- 
«  stumavao;  o  que  vendo  Taquela  Haimanot,  se  acendeo  em  zelo  da 
«  honrra  de  Deos  e  gritou,  nomeando  o  nome  do  Padre  e  do  Filho 
«  e  do  Spirito  Santo,  com  o  que  todos  ficarao  mui  espantados  e 
«  disselhes :  Porque  adorais  aos  demonios  e  deixais  ao  que  criou  os 
«  ceos  e  a  terra  e  quanto  ha  nellas  ?  Responderao  elles  com  grande 
«  medo:  Nunca,  Senhor,  ouvimos  estas  palavras  em  toda  nossa  vida. 
«  Disselhes  nosso  Padre:  Ategora  fizestes  isto,  por  nao  saber;  daqui 
«  por  diante  adorai  a  Deos  pera  que  vos  nao  condeneis.  Respon- 
«  derao  elles :  Se  deixamos  de  adorar  a  nosso  Deos,  mata  nossos 
«  filhos  e  filhas  e  destrue  nossas  terras,  e  por  isto  o  adoramos.  Dis- 
«  selhe  Taquela  Haimanot :  Onde  esta  vosso  Deos  pera  eu  olhar  [?]. 
«  Responderao  elles:  Nao  se  mostra  de  dia,  senao  de  noite.  Dis- 
«  selhes  o  Santo :  De  verdade  se  mostra  nas  trevoas,  porque  abor- 
<  rece  a  lus,  pera  que  nao  se  manifestem  suas  obras,  e  nisto  po- 
«  deis  conhecer  que  todo  elle  he  trevoas.  E  perguntoulhes,   como 


558  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  conheciSlo   quando   vinha  a   elles;   responderao  que   vinha  com 

<  grande   estrondo,  como  *de  torvao,  vestido  de  fogo,  assentado  f.  268. 
€  sobre  hum  lobo  e  outros  muitos  o  seg^iSlo  sobre  lobos  lan<^ndo 

<  fogo  de  suas  bocas.  Disse  o  Santo:  Peior  he  elle  que  seu  ca- 
«  valo !  Esperemos  ate  que  venha.  Se  elle  me  vencer,  eu  o  adora- 
«  rei,  e  se  iiao,  vos  outros  adorareis  a  meu  Deos.  Responderao 
«  que  sy  adorariao,  se  elle  o  vencesse.  E  sendo  ia  muito  tarde,  veio 
«  elle  cavaleiro  em  hum  lobo  com  o  estrondo  acustumado,  e  che- 
€  gando  fes  Taquela  Haimandt  o  sinal  da  crus  e  logo  elle  e  quan- 
«  tos  o  acompanhavao  fugirao  e  dasaparecerao  como  fumo,  dizendo : 
«  Quem  he  este  que  nos  persegue? 

«  Ficarao  todos  os  que  ali  estavao  maravilhados  e  lan^andose 
«  aos  pes  de  nosso  Padre  disserao :  Verdadeiramente  vosso  Deos  he 
«  mais  forte  que  os  fortes;  elle  he  o  que  vence  a  todos.  Mandouos  o 
«  Santo  alevantar  e  disse :  Nao  tenhais  medo :  daqui  por  diante  ado- 
«  raj  a  Deos  Padre  e  seu  Filho  Jesu  Christo  e  ao  Spirito  Santo ; 
«  porque  elle  nao  folga  que  se  per^a  algnm;  e  assim  espera  a  todos 
«  pera  que  fac^ao  penitencia;  nem  quer  que  Ihe  matem  vacas,  nem 
«  cabras,  porque  nao  come  suas  cames,  nem  bebe  sangne  de  ani- 
«  mais.  Adorai  a  elle  de  todo  cora^ao,  porque  he  Deos  de  toda  a 
«  criatura  e  nao  ha  autro  Deos  senao  elle  nos  ceos,  na  terra  e  no 
«  mar;  elle  mata  e  da  vida,  elle  alevanta  e  abaixa.  Crede  neste  Rei 
«  pera  que  acheis  a  vida  etema.  E  estevelhes  pregando  ate  que 
«  amanheceo.  Disserao  elles:  Se  este  nosso  Deos,  que  vos  vence- 
«  stes,  vier  a  matar  nossos  filhos  e  destruir  nossa  terra,  que  ave- 
«  mos  de  fazer?  Respondeo  oSanto:  Se  crerdes  em  Deos  inteira- 
«  mente,  nao  vos  pode  chegar,  porque  he  muito  fraco.  Ide  e  chamais 
«  a  gente  da  terra,  e  tragao  todos  seus  doentes  *pera  que  veiao  f.268,v. 
«  a  for^a  de  meu  Deos  que  os  sarara.  Forao  elles  com  grande  ale- 
«  gria  e  contarao  o  que  passava  aos  demais  moradores  da  terra,  e 
«  logo  iuntarao  seus  doentes,  que  erao  12  alejiados,  13  alcorcova- 
«  dos,  7  endemoninhados  e  10  cegos,  e  trazendoos  a  nosso  padre 
«  Taquela  Haimanot,  como  chegarao  a  vista,  come^arao  a  g^itar  os 
«  demonios  que  estavao  naquelles  dizendo:  Que  nos  quereis?  porque 
«  nos  perseguis  ?  Nao  basta  que  vos  deixamos  a  terra  de  Calalgfi  e 
«  Catata;  onde  hemos  de  fugir  de  vos?  Deixainos  agora:  nao  nos 
«  deis  trabalho,  e  sairemos  de  nossa  vontade.  Disse  o  Santo  aos  que 
«  traziao  os  doentes:  Chegai  de  pressa.  E  em  chegando,  fugiao  os 
«  demonios,  e  elle  sarou  aos  demais  doentes. 


* 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  559 

<  Vendose  todos  s^os,  se  lan^arao  aos  pes  do  Santo  dizendo:      xo.indediscedens, 
c  Benzeinos,  nosso  Padre.  Respondeo  elle:  Nao  vos  hei  de  dar  ben-  3^4^  ubicum  regem 

<  cao,  sem  vos  bautizar  primeiro  no  nome  de  meu  Deos!  Disserao  venefido    addictum 

'^  contumeltis    affeci»- 

<  todos:  Faremos,  Padre,  quanto  nos  mandardes.  Bautizainos;  e  o  eet,  ab  huius  asseclis 

<  Santo  os  bautizou  no  nome  do  Padre  e  do  Filho  e  do  Espirito  etfama Michaele ar- 

<  Santo,  e  mandou  que  edificassem  huma  igreia,  e  depoes  Ihes  deu  changelo  ad  vitam 

revocatur.   Quo  du- 

<  nella  o  corpo  e  sangue  de  Christo.  £  sam  Miguel  Ihe  aiudava  a  piici  prodigio  nihil 

<  semelhanca  de  diacono ;  e  esteve  com  elles  9  meses  insinandolhes  ™°*""»  ^^*"^  populus 

^  '  ^  in  8ua  superstitione 

<  a  f6,  e  depoes  Ihe  disse  sam  Miguel:  Alevantaivos  e  ide  a  fazer  per8i8teret,adprece8 

<  o  que  vos  mandou  vosso  Deos :  e  ajuntou  elle  entao  a  gente  de  pcntino  terrae  hiatu 

<  terra  e  disse :  Estai  firmes  na  fe  que  vos  insinei  e  amaivos  huns  i®*  ^^  ^^  vene- 

ncis  hau8ti  pereunt. 

<  aos  outros  e  ficai  em  pas,  porque  eu  vou  onde  me  manda   meu 

<  Deos.  Ouvindo  isto  a  gente  da  terra,  chorarao  muito  dizendo :  A 
4  quem  nos  deixais,  nosso  Padre  e  mestre?  E  o  Santo  se  afastou 

<  delles  com  muitas  lagrimas,  e  foj  as  terras  de  Ennaret,  e  derru- 
f.  269,   <  bou  os  idolos  e  psissou  *a  Oirague  e  Catal  e  chegou  a  terra  de 

<  Bilat,  onde  achou  hum  insigne  feiticeiro  a  quem  a  gente  da  terra 

<  alevantara  por  Rei  e  tinha  em  grande  venera^ao,  porque,  quando 

<  Ihes  dizia  que  aviao  de  ter  algum  trabalho  ou  algum  bem,  o  acha- 

<  vao ;  e  subihdo  nosso  Padre  onde  elle  estava  assentado  em  huma 

<  cadeira  dourada,  riquamente  vestido  e  mui  acompanhado,  se  che- 

<  gou  a  elle  e  Ihe  deu   huma  bofetada  e  derrubou  da  cadeira  di- 

<  zendo :  O  enganador,  filho  do  diabo,  porque  fazes  errar  ao  povo 

<  que  Christo  remio  com  seu  sangue  ?  Elle  nao  pode  responder  nada, 

<  antes  ficou  tremendo,  parecendolhe  que  algum  corisco  do  ceo  caira 

<  sobre  elle. 

<  Vendo  os  criados  do  Rei  o  que  fizera  Taquela  Haimanot  ar- 

<  remeterao  e  deraolhe  muitas  bofetadas  ate  que  Ihe  arrebentou  o 

<  sangue  poUos  narizes  e  orelhas,  depoes  Ihe  derao  com  paos  muito 

<  grossos  ate  que  o  matarao  e  botarao  seu  corpo  de  baixo  de  huma 

<  arvore  pera  que  o  comessem  os  lobos:  e  nisto  veio  S.  Miguel  e 

<  disse :  Taquela  Haimanot,  Taquela  Haimanot,  alevantaivos ;  e  ale- 
«  vantouse  o  Santo  como  do  sono  e,  tocandolhe  o  anjo  as  feridas, 
«  ficou  sao :  e  disselhe:  Ide  a  peleiar   com   aquelle   feiticeiro,   que 

<  vos  aveis  de  vencer.  E  assy  foj  o  Santo  com  grande  confianga  e 
«  achouo  outra  ves  assentado  em  sua  cadeira  e  tornoulhe  a  dar  bo- 
«  fetada  e  derrubar  de  sua  cadeira  e  da  queda  quebrou  a  mao,  e  gri- 

<  tando  por  seus  criados,  vierao  e  tomarao  ao  Santo  e  o  acoutarao 
«  com  cadeas  ate  que  apareciao  os  ossos,  e  disserao:  Donde  sois? 


56o 


HISTORIA  DE  ETHIOPIA 


zx.  Vertit  iter  ad 
terras  Dam6t,  cuius 
rex  Motolom6  fidem 
Christi  aversatus  Ta- 
cl&  Haiman6t  bis  ez 
alta  rupe  praecipitem 
deiicit;  atcumcom- 
perisaet  eum  a  Mi- 
chaele  archangelo 
servatum  incolu- 
mem,  fidem  christia- 
nam  cum  universo 
populo  amplectitur. 
Alia  prodigia  ibidem 
patrata. 


«  que  officio  tendes  ?  Nao  vos  matamos  hontem  ?  quem  vos  alevan- 

«  tou?  por  ventura  he  mais  forte  vossa  feiticeria  que  a  nossa?  *Disse  f.269,^ 

<  o  Santo:  De  verdade  he  mais  forte  meu  Deos  que  o  vosso:   eu 

«  nao  sei,  nem  vim  a  fazer   feiticeria,  sen2Lo  a  tirar  a  vossa,   nem 

«  tenho  pera  que  dizer  aos  caens  donde  sou,   antes   os  caens  sSio 

«  melhores  que  vos  outros,  que  conhecem  seus  senhores.  Tomarao 

«  entao  ao  acoutar,  ate  Ihes  despeda^arem  o  corpo  e  morto  o  bo- 

«  tarao  em  huma  lapa.  Mas  tomou  sam  Mig^el  a  o  resucitar  como 

«  primeiro  e  estcve  trabalhando  com  elles  por  40  dias  sem  comer 

«  nem  beber,  mas  nao  pode  fazer  que  entrassem  poUo  caminho  da 

«  verdade. 

«  Passados  40  dias,  vendo  Taquela  Haimandt  a  dureza  de  seus 
«  coragOes,  fes  ora^ao  a  Deos,  dizendo:  Senhor  lesu  Christo,  vos 
«  sois  o  que  me  mandastes  de  minha  terra  a  insinar  os  povos  novos 
«  e  aonde  quer  que  vou  he  por  vosso  mandado.  Agora  cheguei 
«  a  estes  que  vos  nao  conhecem  e  me  fizerao  os  males  que  sabeis. 
«  Julgai,  Senhor,  e  mandai  a  terra  que  os  ingula  com  Datan  e  Abi- 
«  ron ;  mostrai  vossa  forga  sobre  estes.  Acabada  sua  ora^ao,  subio 
«  a  hum  monte,  onde  achou  muitos  feiticeiros  que  oflfereciao  sacri- 
«  ficio  a  seu  Rei,  e  entrando  no  meio  delles,  disse  em  alta  vos : 
«  Mando  a  terra  em  nome  de  meu  Deos,  que  se  abra  e  trague  a 
«  estes  maos ;  e  abriose  logo  e  elles  e  seu  Rei  decenderao  ao  in- 
«  ferao  vivos  e  Taquela  Haimanot  louvou  ao  Senhor  dizendo:  Oje 
«  destes  alegria  a  meu  coragao ;  de  verdade  sois  Deos  dos  Deoses 
«  e  Rei  dos  Reis.  E  depoes  foj  onde  adoravao  os  feiticeiros  e 
«  achou  ali  muitos  idolos  de  ouro  e  prata  e  quebrouos  com  huma 
«  pedra ;  e  ao  outro  dia  polla  menhaa  ouvio  huma  vos  do  ceo  que 
«  dizia:  Nacervos  ha  hum  filho  spiritual  por  nome  Anoreos:  elle 
«  convertera  os  que  aqui  ficao  e  edificara  igreia  neste  luguar. 

«  *Partio  logo  nosso  Padre  Taquela  Haimanot  daquella  terra  f.  270. 
«  e  f o j  a  de  Damot,  onde  derrubou  muitos  idolos,  lan^ou  demonios 
«  e  sarou  doentes,  com  o  que  se  converterao  muitos  e  entre  elles  hum 
«  principe  que  se  chamava  Cafaraudim.  Mas  sabendo  o  Rei  da  terra 
«  o  que  passava,  mandou  que  Ihe  leva^sem  prezos  ao  Santo  e  ao 
«  principe,  e  levandoos  disse  o  principe  ao  Santo:  Este  Rei  ha 
«25  aunos  que  esta  como  doudo  por  causa  de  huma  molher  que  ca- 
«  tivou  da  terra  de  Seoa  com  que  elle  queria  casar  e  pera  isso  a 
«  fez  levar  com  grande  honrra  a  porta  de  seu  idolo,  e  estando  eu 
«  com  grande  multidao  de  gente  olhando,  veio  hum  grande  torvao 


J 


LIVRO  II,   CAPITULO   XIX.  56 1 

«  e  a  levou  pera  o  ceo,  e  muitos  morrerao  de  espanto,  e  el  Rei 
c  ficou  como  doudo  des  daquelle  dia  ate  oie.  Se  vos  o  sarardes, 
€  cuido  que  nos  perdoara,  e  se  nSlo,  mandamos  ha  matar.  Rio  o 
«  Santo  e  disse:  Nao  tenhais  medo,  que  Deos  nos  livrara  da  mao 
«  deste  Rei.  Quanto  daquella  molher,  depoes  vos  falarei,  quando 
«  olhardes  a  gloria  de  Deos.  E  chegando  a  el  Rei  Motolome,  de- 
€  poes  de  muitas  praticas  os  mando  botar  duas  vezes  por  huma  alta 
«  rocha,  e  ambos  os  livrou  S,  Miguel,  e  por  isto  e  outros  muitos 
«  milag^es,  que  o  Senhor  fez  por  amor  de  seu  servo,  se  convertio 
«  el  Rei  e  o  Santo  o  sarou  de  toda  sua  doen^a.  PoUo  que  mandou 
«  el  Rei  lan^ar  pregao  que  todos  deixassem  a  adora^ao  dos  idolos 
«  e  adorassem  ao  Deos  de  Taquela  Haincian6t,  e  que  se  dali  por 
«  diante  alguem  tivesse  idolo  em  sua  casa,  fosse  botado  pollas  ro- 
«  chas  abaixo.  E  bautizandose  el  rei  Motolome,  se  bautizarao  tam- 
«  bem  des  centos  e  douze  mil  e  99,  e  pos  por  nome  a  elle  Fe^a  Seon. 
f.27o,v.  «  Depois  disto,  mandou  el  Rei  fsizer  muitas  *igreias  por  todo 

«  seu  reino,  mas  tinha  duvida  sobre  a  resurrei^ao  dos  mortos,  e 
«  trazendolhe  Taquel^  Haimanot  muitas  rezoes  e  luguares  da  Escri- 
«  tura  pera  Iha  persuadir,  nao  ficou  satisfeito,  dizendo :  Como  pode 
«  ser  que  depoes  de  feito  o  corpo  em  p6,  tome  a  resuscitar?  Agora 
«  faz  quinze  annos  morrerao  aqui  mil  homens  de  meu  exercito  e 
«  300  feiticeiros :  se  os  fizerdes  alevantar,  logo  crerei ;  e  perguntou 
«  o  Santo:  por  que  causa  morrerao  tantos  homens.  Respondeo  el 
«  Rei:  Isto  nao  me  perguntei  se  nao  fazeios  alevantar,  se  quereis 
«  que  crea.  la  que  o  nao  quereis  declarar,  disse  o  Santo,  eu  o  direi. 
«  Cativastes  huma  molher  da  terra  de  Seoa  e  querendo  casar  com 
«  ella  iuntastes  vossa  gente  diante  de  vosso  idolo  pera  a  fazer  ral- 
«  nha,  e  que  adorasse  o  idolo,  e  estando  ella  em  pee  no  meio  de 
«  todos,  veio  como  torvao  do  ceo  e  a  levou  de  vossos  olhos,  e  deste 
«  espanto  morrerao  aquelles  e  vos  ficastes  como  doudo  daquelle  dia 
«  ate  que  eu  vos  sarei.  Disse  el  Rei ;  O  Santo  de  Deos,  quem  vos 
«  declarou  isso?  Respondeo  elle:  Meu  Deos,  que  sabe  todas  as 
«  cousas.  Perguntou  el  Rei  se  sabia  a  terra  daquella  molher ;  re- 
«  spondeo :  Nao  somente  a  terra,  mas  a  ella,  porque  depoes  que  foi 
«  levada  de  vossa  presen^a^  me  pario.  Ficou  el  Rei  maravilhado  e 
«  lan^ouse  a  seus  pes,  fazendolhe  grande  reverencia  e  dizendo: 
«  Eu  cuidava  que  a  levarao  pera  a  ceo.  Depoes  foi  o  Santo  onde 
«  aquelles  morrerao  e  feita  oracjao,  disse  em  alta  vos :  Alevantaivos 
«  com  a  virtude  de  meu  Senhor  lesu  Christo ;  e  sairao  logo  mil  e 

C.  Beccari.  ^tfr.  Ae/Jk.  Hcripl,  occ»  incd,  —  II.  71 


562  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

€  lan^araose  aos  pes  do  Santo  dizendo :  Benzeinos,  Senhor,  que 
c  morremos  por  causa  de  vossa  maj  e  agora  resuscitamos  poUa  vir- 
«  tude  de  vosso  bra^o.  Perg^ntandolhes  o  Santo  onde  estiverSLo, 
«  responderdo  que  nos  tormentos  do  infemo  e  que  des  mil  soes  que 
€  la  entrassem  nSio  poderi^lo  alumiar  a  hum  homem  naquella  trevoa. 
€  Ouvindo  isto  ficarao  todo[s]  com  grande  temor  e  disse  *el  Rei  a  f.  271. 
€  nosso  Padre;  Ay  de  nos,  tudo  isto  nos  espera?  Disselhe  o  Santo: 
«  Credes  agora  a  resurrelQao  dos  mortos  ?  Respondeo  elle :  Que  sy 
«  creo ;  dizeime  o  que  hei  de  fazer  por  nao  ir  aquelles  atormentos ; 
«  respondeo  o  Santo :  Nao  tenhais  medo,  que  daqui  por  diante  nSlo 
«  tendes  condenagao,  porque  quem  cre  no  filho  de  Deos,  alquanga 
«  vida  etema.  £  bautizou  aos  que  resucitarao  e  mandou  que  fos- 
«  sem  por  toda  aquella  terra  pregando  a  resurrei<;ao  dos  mortos. 
xa.  Annum  intc-  «  Esteve  Taquela  Haimanot  nas  terras  de  Dam6t  12  [meses] 

^hTii^e^iussus  di-  *  ®  dilatou  a  fe  de  Christo  ate  o  rio  Gehon,  e  todas  as  terras  vi- 
vinitus  in   patriam   ^  zinhas  a  Damot  crerao  em  Christo  por  sua  doutrina ;  depoes  subio 

revertitur:    postmo-  *^ 

dum  AmharA  versus  «  a  hum  monte  e  jeiunou  40  dias  sem  comer  mais  que  nos  domin- 
chum*obviam  habet  *  S^  algumas  hervas  do  campo,  sem  dififeren^a  das  doces  ou  amar- 
etnovoprodigioeum   «  gosas,  e  sabado  de  Pascoa  a  noite,  sendo  meia  noite,   veo  Chri- 

movet    ut   se  comi- 

tem  sibi  iungat  in  «  sto  N.  S.°',  sam  Miguel  e  Gabriel  e  sua  maj  Maria  e  os  1 2  Apostolos 
^*"  «  e  muitos  Santos  do  ceo,  e  disselhe:  Como  estais,  meu  amigo  Ta- 

«  quela  Haimanot  [?].  A  pas  de  meu  Padre  e  Spirito  Santo  seia 
«  comvosco ;  alegraivos,  porque  vosso  nome  esta  escrito  no  livro  da 
«  vida.  Vim  pera  vos  dar  oie  alegria,  porque  vos  me  alegrastes  com 
c  tantas  almas  que  trouxestes  pera  mim :  todo  aquelle  que  der  pao 
«  ou  ofFerecer  incenso,  ate  hum  pucaro  de  agoa  em  vosso  nome 
«  passe  comvosco  ao  reino  do  ceo,  e  a  todo,  o  que  vos  chamar  em 
«  seu  trabalho,  eu  o  livrarei ;  e  deulhe  huma  erva  e  agoa  de  vida 
«  dizendo:.  Comei  e  bebei;  com  que  se  alegrou  muito  sua  alma  de 
«  maneira  que  Ihe  parecia  nao  ter  jeiunado  nem  hum  dia.  Tambem 
«  Ihe  disse:  Ide  a  terra  Amhara  e  esperai  ali  ate  que  eu  vos  fale, 
«  e  sam  Miguel  estara  com  vosco;  e  beiiouo  na  boca  e  pondo  a 
«  mao  sobre  elle  o  benzeo  e  subio  logo  ao  *ceo.  Disse  Taquela  Hai-  f.27i,v. 
«  manot :  Seia,  Senhor,  bendito  vosso  nome,  que  destes  tanta  gra^a 
«  a  este  vosso  servo. 

«  Acabado  isto,  foj  o  Santo  a  el  rei  Fega  Seon  (que  assi  o 
«  chamou  no  bautismo)  e  disselhe :  Estai  firme  na  fe  de  Christo  e 
«  sede  diligente  em  guardar  as  igreias:  eu  vou  onde  me  mandou 
«  meu  Deos.  Ouvindo  isto,  el  Rei  chorou  muito  e  disse  :  O  Padre 


UVRO  II,  CAPITULO   XIX.  563 

<  nosao»  a  quem  deixais  nossa  terra,  que  livrastes  do  demonio  e 

<  insinastes  a  santa  f6  ?  Respondeo  o  Santo :  Nfio  posso  deixar  o 
€  mandado  de  meu  senhor ;  e  fes  logo  iuntar  os  sacerdotes  que  el 
€  Rei  trouxera  primeiro  cativos  de  sua  terra  e  disselhes :  Guardai 
«  bem  vossa  fe,  e  sede  diligentes  em  olhar  bem  por  estas  ovelhas, 
»  e  ensinailhes  a  verdade  e  temor  de  Deos.  Responderao  elles: 
«  Iremos  com  vosco,  porque  depoes  de  Deos  em  vos  temos  nossa 
«  esperanpa ;  disselhe  o  Santo :  Nsio  podeis  ir;  guardai  minas  ove- 
«  Ihas,  que  esta  he  a  vontade  de  Deos ,  e  com  isto  se  partio,  se- 
«  giiindoo  el  Rei  e  todo  seu  exercito  chorando.  Disselhes  o  Santo : 
«  Tomai,  meus  filhos,  e  nSio  choreis,  que  ainda  que  vos  deixo  na 
«  carne,  nSo  vos  deixarei  no  espirito :  sempre  me  lembrarei  em 
«  minhas  ora^Oes.  Com  isto  se  despedirdo  e  tomarao  pera  suas  ter- 
«  ras  e  o  Santo  indo  seu  caminho  chegou  a  terra  ZorSre,  onde  pri- 
«  meiro  tinha  convertido  muitos,  e  sairaono  a  receber  com  grande 
«  alegria,  e  elle  Ihes  mandou  trazer  os  doentes  que  avia  e  os  sarou 
«  a  todos  fazendo  sobre  elles  o  sinal  da  cms. 

«  Prcseguindo  Taquela  Haimandt  seu  caminho,  encontrou  com 
«  hum  frade  e  perguntoulhe  donde  era  e  pera  onde  hia.  Respondeo 
«  que  era  de  Amhar^,  mas  que  nSio  sabia  onde  hia :  disselhe  o  Santo : 
«  Deos  vous  mandou  a  mim  pera  que  me  guieis  a  vossa  terra ; 
f.  272.  «  tornai  *comigo ;  respondeo  o  frade :  Por  que  cousa  me  avia  de 
«  mandar  Deos  a  vos  ?  Nao  posso  tornar.  E  por  mais  que  Ihe  rogou 
«  o  Santo,  nao  quis,  e  disselhe :  Se  Deos  vos  nao  mandou  a  mim, 
«  ide  embora;  mas  se  vos  mandou,  elle  fa^a  que  nao  possais  pas-p 
«  sar  adiante ;  e  com  isto  se  foi  o  Santo,  e  o  frade  ficou  sem  poder 
«  ir  pera  huma  parte  nem  pera  a  outra ;  pello  que  gritou  dizendo 
«  que  o  esperasse.  Nisto  ouvio  o  Santo  huma  vos  do  ceo  que  disse : 
«  Perdoailhe,  por  que  sem  saber  fes  isso.  Tornou  entao  o  Santo  e 
«  disse  ao  frade :  O  Senhor  nos  perdoou  nossos  peccados.  Lan^ouse 
«  logo  o  frade  a  seus  pes  e  pediolhe  perdao :  o  Santo  o  fes  alevantar 
«  e  forao  falando  nas  cousas  de  Deos;  e  chegando  a  huma  casa, 
«  onde  se  agazalharao,  tinha  o  senhor  della  hum  filho  emdemoni- 
«  nhado  e  rogoulhes  que  fizessem  ora^ao  por  elle,  e  o  frade  pedio 
«  muito  ao  Santo  que  o  sarasse;  pello  que  elle  Ihe  fes  o  sinal  da 
«  cms,  dizendo :  Saie,  espirito  maldito,  polla  virtude  de  meu  senhor 
«  Jesu  Christo  a  quem  eu  adoro ;  e  saio  o  demonio  gritando  como 
«  cao  e  o  menino  ficou  sao  e  seu  paj  vendo  isto  se  lan^ou  aos  pes 
«  do  Santo  e  Ihe  deu  muitos  agradecimentos  e   agazalhou  aquella 


564  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

«  noite   com   g^ande  alegria  e  poUa   menhaa   publicou  o  milagrre ; 

«  pello  que  todos  trouxerao  seus  doentes,  que  forao  39  e  os  puse- 

<L  rao  aos  pes   do   Santo  e  elle  os  sarou,  com  o  que  todos  ficarao 

«  muito  alegres  louvando  a  Deos  que  dera  tam  grande  virtude   a 

«  seu  servo. 

13.  Ad  monaste-  «  Passando  Taquela  Haiman6t  adiante,  Ihe  perguntou  aquelle 

AbbAMichaelyperve-  *  frade  no  cammho,  se  era  homem  ou  anjo,  porque  estava  maravi- 

niimt.  Ibidem  TaclA   ^  Ihado  do  que  Ihe  via  fazer.  Respondeo  o  Santo :  Nao  digais  isso, 

Haiman6t    monasti- 

camvitamperr  an-  «  meu  irmao :  como  ha  de  ser  anjo  huma  pouca  de  cinza[?];  e  fes 
mis^one^^ceteriaque  *  ^^®  iurasse  o  frade  de  nao  falar  a  ninguem  o  que  visse  no  ca- 
virtutibus  et  prodi-  «  minho;  *e  dali  a  pouco  chegarao  a  terra  e  mosteiro  do  frade   e  f.a;?.^- 

giis  inter  ceteros  emi- 

net.  «  perguntaraolhe  os  frades:  Donde  he   este  hospede  que  esta  com 

«  vosco?  parece  anjo  de  Deos!  Quando  o  achastes?  Respondeo : 
«  Hontem  me  aiuntei  com  elle  na  terra  Seoa.  Disserao  elles :  Como 
«  chegastes  aqui  em  dous  dias?  Respondeo  elle  que  nao  sabia,  mas 
«  nao  Ihe  crerao,  porque  era  caminho  de  duas  somanas ;  e  entrando 
«  na  igreia  fizerao  ora^ao  e  dormirao  iuntos  aquella  nojte  e  polla 
«  menhaa  levou  o  frade  ao  Santo  ao  abbade  do  mosteiro,  que  se 
«  chamava  Abba  Michael,  e  como  elle  vio  o  Santo,  ficou  maravi- 
«  Ihado  da  claridade  de  seu  rosto,  e  levantandose  de  sua  cadeira 
«  Ihe  deu  pas  e  fes  assentar  perto  de  sy  e  disse :  Vos  sois  Taquela 
«  Haimanot,  em  quem  foj  louvado  o  Santo  dos  Santos.  Respondeo 
«  o  Santo :  Padre  meu,  quem  vos  disse  o  nome  deste  peccador  [?]. 
«  Disse  Abba  Michael:  O  Espirito  Santo  me  declarou  esta  noite 
«  vosso  nome  e  virtudes:  estai  aqui  comigo  ate  que  vos  chame  o 
«  Senhor  pera  o  que  for  servido. 

«  ComeQou  logo  Taquela  Haimanot  a  imitar  as  obras  daquelles 
«  santos  e  servia  a  todos  ocupandose  em  cousas  trabalhosas  e  hu- 
«  mildes,  trazendo  agoa  e  lenha  as  costas  e  moendo  farinha  com 
«  suas  maos,  com  o  que  descansava  a  todos  seus  irmaos,  e  todos 
«  Ihe  davao  ben^ao ;  e  com  toda  esta  ocupa^ao  rezava  muitos  psal- 
«  mos  e  adorava  cada  dia  a  Deos  inclinando  a  cabega  ate  o  chao  1 750 
«  veses  e  algumas  muitas  mais,  e  jeiuava  toda  a  somana,  com  o  que 
«  veio  a  estar  seco  como  hum  pao.  Desta  maneira  esteve  7  annos, 
«  e  no  fim  delles  trouxerao  hum  homem  emdemoninhado  pera  que 
«  Abba  Michael  o  sarasse,  mas  nao  pode  botar  fora  o  demonio. 
«  Disserao  os  frades  ao  abbade  Michael:  Taquela  Haiman6t  o  sa- 
«  rara,  se  Iho  mandardes  *porque  he  como  anjo  de  Deos  e  a  mui-  f-  »73- 


«  tos  tem  sarados  de.suas  doen^as,  tocandoos;  e  o  frade  que  veio  J 


i 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  565 

€  com  elle  no  caminho  contou  tambem  o  que  vira.  Entao  Abba 
€  Michael  o  fes  chamar,  e  quando  chegou,  derrubou  o  demonio  no 
€  chao  aquelle  homem  e  ficou  tremendo;  e  disselhe  o  Abbade: 
€  Filho,  S£Lrai  este  homem,  porque  Deos  vos  deu  licen^a.  Respondeo 
«  o  Santo :  Como  o  posso  eu  peccador  sarar  [?].  O  Deos,  a  quem 
«  vos  servis,  o  sare  por  vossa  ora^ao;  e  dizendo  isto,  saio  logo  o 
«  demonio  gritando :  Nao  basta  que  vos  deixei  a  terra  Ceoa,  senao 
«  que  ate  Amhara  vindes  a  me  persegiiir?  Onde  hei  de  fupr  de 
«  vos?  Nao  acho  descanso  em  nenhuma  parte;  e  mostrandose  a  todos 
«  em  figura  de  bugio,  desapareceo  desfazendose  como  fumo,  sem 
«  nunca  mais  tornar  aquelle  homem.  E  disse  o  Santo  ao  Abbade: 
«  Este  homem  sarou  por  vossa  ora^ao ;  respondeo  elle :  Nao  foi  por 
«  minha  ora^ao  senao  por  vossa  humildade  e  gra^a  que  vos  foj 
«  dada ;  e  lan^andose  a  seus  pes,  Ihe  pedio  Ihe  declarzisse  o  discurso 
«  de  sua  vida,  e  mandou  aos  irmaos  que  se  afastassem;  e  ficando 
«  s6s,  contou  tudo  sem  esconder  nada.  Ouvindo  isto  Abba  Michael 
«  deu  gragas  a  Deos,  porque  Ihe  trouxera  tal  homem  e  disselhe : 
«  Daqui  por  diante  nao  vos  occupais  em  os  officios  que  tivestes 
«  ategora,  senao  com  vossos  irmaos  na  igreia.  Respondeo  elle :  Nao 
«  hei  de  deixar  meu  officio  ate  saber  a  vontade  de  Deos:  e  «issim 
«  continuou  como  primeiro. 

«  Soubesse  logo  este  milagre  em  todas  as  terras  de  Amhara  e 
«  traziao  todos  seus  doentes  e  botavaoos  a  seus  pes,  e  pondo  elle 
«  a  mao  sobre  elles,  saravao,  do  que  todos  os  frades  se  maravi- 
f.273,v.  «  Ihavao.  Tambem  *morrendo  hum  sobrinho  de  Abba  Michael, 
«  foj  elle  com  os  frades  e  fizerao  grande  pranto  sobre  o  morto, 
«  e  dizendolhe  a  Taquela  Haiman6t  como  morrera  o  sobrinho  do 
«  Abbade,  foj  la  e  chorou  com  elles :  e  disselhe  o  Abbade :  Homem 
«  de  Deos,  se  quiserdes,  podeis  resucitar  este  morto,  segundo  en- 
«  tendo  da  virtude  que  Deos  vos  tem  dada.  Respondeo  o  Santo: 
«  Como  posso  eu  peccador  resucitar  o  morto  ?  Disselhe  o  Abbade : 
«  Nao  digais  isto,  filho,  senao  fazei  oracao  a  Deos,  que  elle  vos 
«  ouvira.  Entao  fes  elle  ora^ao  e  rezou  o  evangelho  e  depoes  gritou 
«  com  grande  vos  dizendo:  Alevantate  em  virtude  de  meu  senhor 
«  Jesu  Christo,  pera  que  veiao  os  homens  sua  forga,  Alevantouse 
«  logo  o  morto  e  lan^ouse  aos  pes  do  Santo,  dizendo:  Perdoaime, 
«  padre,  que  primeiro  vos  abborecia  com  enveia  de  vossos  mila- 
«  gres,  parecendome  que,  como  morresse  nosso  Padre,  avieis  de  en- 
«  trar  em  seu  luguar.  E  agora  me  tirastes  do  inferno  e  me  destes  vida. 


566  HISTORIA  I>£  ETHIOPIA 

«  Disselhe  o  Santo :  Deoa  he  misericordioso  e  noa  perdoa  a  todoa, 

«  maa  nSio  fizestea  bem.  Oa  que  eatavAo  preaentea  ficarSo  mui  ma«* 

«  ravilhados  e  louvarao  a  Deoa;  e  toda  a  gente  da  terra  emgran- 

«  deceo  ao  Santo  e  o  tinha  em  grande  venera^fio. 

x4.  Postdeceman-  «  Vendo  Taquela  Haimanot  aa  honrraa  que  Ihe  faii2lo»  teve 

MiSiiSSl*p««if1n   •  grande  tristeza  e  chorou  muito  e  falando  com  Christo  N.  S.^  dizia: 

insuiam  Haic  in  mc-  «  Senhor,  porque  manifestei  estas  cousas?  porque  me  dem  honra  em 

dio  Ucu  DambiA  et  J^  r.      , 

in  monasterio,   cui   «  vSlo?  Mandaime  agora,  Senhor,  a  outra  parte,  onde  aalve  mmha 
fitmoMchua  Vc*'ui-  *  ^^^^  ^^™  quieta<;ao.  E  dizendo  isto,  Ihe  apareceo  sam  Miguel  e 
busdam  mirabiiibus  «  disse :  Como  estais,  meu  *amigo  Taquela  Haimanot  [?].  Eis  aqui  vos  f.  274. 
mienti  occurrerunt."  <  manda  Deos  que  vades  a  igreia  de  sam  Estevao  primeiro  martir, 

«  que  esta  em  Haic,  e  alli  achareis  hum  homem  santo,  que  se  chama 
«  Abba  Jesus :  elle  vos  pora  o  jugo  da  Religifto ;  vinde,  que  eu  vos 
«  guiarei;  e  dizendo  isto  passou  o  anjo  e  o  Santo  foi  ao  Abbade 
«  Michael  e  disselhe :  Eis  aqui,  forSio  conhecidas  minhas  cousas : 
«  daime  licenga,  padre,  pera  ir  onde  me  manda  Deos,  e  lembraivos 
«  de  mim  em  vossas  ora^oes.  Ouvindo  isto  Abba  Michael  chorou 
«  muito,  dizendo:  Em  que  vos  desagradei,  meu  filho,  ou  em  que 
«  vos  derao  paixSo  vossos  irmaos?  Respondeo  elle:  O  meu  padre 
«  santo,  em  nenhuma  cousa  me  derao  paixSo :  nSo  me  leva  senao  o 
«  mandado  de  Deos.  E  iuntandose  todos  os  frades  Ihe  pedirao  muito 
«  chorando  que  os  nSo  deixasse.  Respondeo  o  Santo:  Perdoaime, 
«  irmaos;  nao  posso  deixar  de  cumprir  o  mandado  de  Deos;  ben- 
«  zeime.  E  disserSo:  Deos  vos  benza  e  endereite  vosso  caminho; 
«  nao  vos  esqucQais  de  nos  em  vossas  ora^oes.  Respondeo  elle :  Que 
«  pode  aproveitar  hum  peccador  a  meus  padres  santos  [?].  S6  vos 
«  digo  que  tenhais  em  tudo  paciencia,  humildade  e  temor  de  Deos» 
«  porque  eststs  tres  cousas  levao  a  vida  etema,  e  gnardaivos  da  en* 
«  veja,  soberba  e  desprezo  do  proximo. 

«  Com  isto  se  despedio  Taquela  Haimandt,  tendo  estado  des 
«  annos  com  elles,  e  como  se  afastou  o  foi  guiando  s.  Miguel  le- 
«  vando  huma  columna  de  lus  diante ;  e  assi  foi  ate  chegar  ao  lu- 
«  guar  onde  o  mandarao,  e  chegando  a  borda  da  alagoa,  em  que 
«  esta  o  mosteiro,  nao  achou  embarca<;ao  pera  entrar  e  fes  ora^ao 
«  a  Deos  e  logo  se  Ihe  mostrou  sam  Miguel  claramente  andando 
«  sobre  a  agoa  e  Ihe  disse:  Vinde,  segiiime;  e  assi  entrou  e  pas- 
«  sarao  ambos  porsiraa  da  agoa  como  *se  fora  seco.  E  entrando  na  f  274,^. 
«  igreia,  passou  o  anjo  ao  Abbade,  que  se  chamava  Abba  Jesus,  e 
«  Ihe  disse :  Eis  aqui,  esta  a  porta  da  igreia  hum  homem  de  Deos ; 


f.  275- 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  567 

fazei  que  entre  e  recebeio  betn  e  dailhe  habito  de  frade;  e  com 
isto  despareceo.  Nisto  entrou  o  porteiro  e  disse  que  estava  hum 
homem  a  porta  da  igreia  e  nSo  sabia  como  passara.  Chamaio, 
disse  o  Abbade,  que  de  Deos  he  sua  vinda.  Veio  e  como  o  vio 
o  Abbade,  ficou  maravilhado  da  lus  de  seu  rosto  e  da  gra^a  que 
nelle  estava,  e  levantandose  da  cadeira,  Ihe  deu  pas  dizendo :  Boa 
seia  vossa  vinda,  homem  de  Deos,  e  depoes  Ihe  pergiintou  como 
e  a  que  viera.  Respondeo  que  viera  por  mandado  de  Deos  pera 
que  Ihe  desse  o  habito,  e  dali  a  pouco  Iho  deu  o  Abbade.  De- 
poes  se  ocupava  em  ora^ao,  em  ler  os  psalmos  e  adorava  a  Deos 
entre  noite  e  dia  tres  centos  e  nove  centos  e  sincoenta  veses  ate 
chegar  a  suar  sangue  como  agoa,  e  jeiuava  toda  a  somana  sem 
comer  mais  que  o  domingo  algumas  ervas  do  campo. 

<  Desta  maneira  esteve  ali  Taquela  Haiman6t  muitos  annos  e 
trabalhava  de  noite  e  de  dia,  lembrandose  do  que  disse  Christo : 
O  que  me  serve  sigame  pera  que  esteia  onde  eu  estou.  E  exer- 
citandose  elle  nestas  cousas,  veio  o  anio  de  Deos  e  levouo  a  huma 
casa  que  resplandecia  mais  que  o  sol,  tam  larga  e  comprida,  que, 
ainda  que  se  iuntara  a  gente  de  todo  o  mundo,  nSo  a  enchera,  e 
tinha  muitas  colunas  de  diversas  cores  e  tam  resplandecentes 
que  tiravao  a  vista  dos  olhos,  e  em  cada  huma  daquellas  colunas 
apareciao  todas  as  outras  como  em  hum  espelho,  e  o  chao  era 
como  vidro  e  o  tecto  resplandecia  como  sol.  E  chegando  ao  meio 
da  casa  ficou  espantado,  porque  vio  tres  cadeiras  e  a  de  meio  era 
mais  grande  e  mais  *fermosa  que  as  outras  e  sobre  ellas  estava 
como  o  Arco  Iris,  e  estava  na  cadeira  do  meio  hum  vestido  de 
lus  com  huma  lingoa  de  fogo  e  sobre  ella  escrito:  AUeluia  ao 
Padre.  Alleluia  ao  Filho,  AUeluia  ao  Spirito  Santo.  E  na  cadeira 
da  mSo  direita  estavSo  7  coroas  diferentes  huma  da  outra.  E 
estando  com  grande  temor  por  ver  aquella  casa,  Ihe  disse  o  anjo : 
Nao  tenhais  medo,  que  eu  sou  mandado  pera  vos  declarar  as  cou- 
sas  desta  casa;  e  logo  se  Ihe  tirou  todo  o  medo  e  perguntou  ao 
€  anjo,  quanta  era  a  g^andeza  daquella  casa  e  quem  morava  nella; 

<  e  respondeo :  Vede  primeiro  o  que  nao  tendes  visto  e  depoes  vos 
«  direi  quem  he  o  senhor;  e  vendo  nas  colunnas  escritos  muitos 
«  nomes,  perguntou  quem  erSo  os  que  alli  estavao  escritos  e  quanto 
«  o  numero  das  colunnas  e  pera  quem  sflo  as  cadeiras.  Respondeo 

<  Ihe  o  anjo:  Esta  casa  he  vossa  e  a  cadeira  do  meio  e  vestido 
«  que  nella  esta  e  as  coroas  sao  vossas  e  nas  cadeiras  da  mfto  di- 


568  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

• 

«  reita  e  esquerda  se   assentarSio   vossos  iilhos,   que  virao   depoes 

<  de  vos.  O  numero  das  colunnas  da  mSio  direita  he  quarenta  e 
€  sinco  centos  e  outras  tantas  da  mSlo  esquerda,  e  os  nomes  que 
«  nellas  estSlo  escritos  s2lo  dos  filhos  que  vos  hao  de  nacer  no  espi- 

<  rito  ate  o  fim  do  mundo.  Respondeo  elle :  Quem  sou  eu  peccador 

<  pera  alquan^ar  tanta  gra^a?  Disselhe  o  anjo :  Deos  da  a  gra^a  a 
«  quem  quer. 

<  Acabado  isto,  levouo  o  anjo  ate  o  ceo  e  fes  que  entrasse  dentro 

<  da  cortina,  e  esteve  em  pe  diante  do  trono  da  Trindade  e  adorou 

<  e  ouvio  huma  vos  do  trono  que  disse :  Taquela  Haimandt,  Taquela 

<  Haimanot,  seia  vossa  parte  com  os  24  meus  sacerdotes.  E  deraolhe 

<  hum  turibolo  de  ouro  como  elles  e  foi  sua  gloria  como  elles,  e 

<  seu  vestido  como  elles,  e  vio  claramente  *a  Deos  na  Trindade  e  f.275.^- 

<  Ihe  disse :  Assim  como  me  amastes  vos  amarei,  e  como  me  hon- 

<  rrastes  vos  honrrarei  e  farei  vosso  nome  alto  e  honrrado.  Por  ver- 

<  dade  vos  digo  que  todo  aquelle  que  crer  em  vossa   ora^do  sera 

<  salvo  por  amor  de  vos,  e  at  todo  aquelle  que  em  vossa  lembran^a 

<  oflFerecer  o  que  puder,  o  farei  grande  no  ceo  e  na  terra,  e  ao  que 

<  achar  alguma  tenta<;ao,  se   chamar   por  vosso  nome,   o   livrarei 

<  della,  e  ao  que  servir  a  vossa  igreia  eu  Ihe  pagarei  com  os  7  meus 

<  archanjos,  e  onde  for  lido  o  livro  de  vossos  milagres  e  chamado 

<  vosso  nome,  alli  sera   pas  e  misericordia  pera  sempre.  Ouvindo 

<  o  Santo  isto,  o  adorou  e  glorificou  e  disse :  Gra^as  a  vos,  Senhor, 

<  que  me  destes  tudo   isto  por  vossa  vontade   e   nao   por  minhas 

<  obras,  e  depoes  o  tornou  o  anjo  onde  primeiro  estava. 
i5.Itenimpo8tde-  <  Com  estas  cousas  se  acendeo  tanto  seu  cora^ao  no  amor  de 

i^tua™^bl*^*le8U8  *  Deos  que  nao  dormia,  e  de  noite  e  de  dia  se  ocupava  em  rezar 
nonsineiacrymiava-   €  os  psalmos  e  ler  os  livros  dos  Profetas   e  Apostolos;  e  estando 

ledicit,    et    montem 

Dam6  in  regno  Tigr6  «  assim,  Ihe  veio  des^io  de  buscar  outras  terras  santas  e  conhecer 
petit;  ibiqueabAbbA   ^  ^  custume  e  perfeicao  de  frade;  e  nisto  resplandeceo  diante  delle 

loanni     cucuUo     et  ^  »    •  x- 

AzquemA  induitur,  «  6  anjo  que  o  guardava  sempre  e  disselhe:  Ide  e  fazei  como  cu- 
vat  qiui  °  oiim  a*  ce^  *  dastes.  Perguntoulhe  Taquela  Haimanot  onde  avia  de  ir,  e  dis- 
leberrimiB    novem    ^  selhe  elle :  Ide  a  terra  de  Ticfre  e  subi  a  hum  monte  que  se  chama 

sancua  ea  m  reg^one  ^ 

patrata  fuerant.  <  Damo,  e  alli  achareis  hum  homem  santo  por  nome  Joanni,  e  de 

<  sua  mao  tomareis  capello  e  Azquema  (e  assim  se  ha  de  por  sempre 

<  em  luguar  de  bentinho)  que  ate  entao  nao  tinha  tomado  mais  que 

<  habito.  Ouvindo  isto,  foj  a  seu  paj  spiritual   e  declaroulhe   seus 

<  deseios  e  o  que  Ihe  dissera  o  anjo;  pello  que  Abba  Jesus  chorou 

<  muito  dizendo :  Porque  me  deixais  ?  Eu  nao  vos  olhava  como  filho, 


LIVRO   II,  CAPITULO   XIX.  569 

€  senao  como  a  paj  honrrado;  mas  ia  que  assi  he,  ide  em  pas  e 
f.  276.  €  tomai  naquelle  mosteiro  capello  *e  azquemi,  e  depois  vos  me  da- 
€  reis  a  mim  e  sereis  meu  Padre.  Esperai  oie,  porque  nflo  ha  ho- 
«  mem  que  vos  passe  a  outra  parte  da  alagoa.  Respondeo  elle :  Nao 
«  ha  homem  maior  que  Deos!  Se  elle  esta  comigo,  nfto  ha  quem 
€  me  possa  impedir  o  caminho,  nem  a  agoa,  nem   outra  cousa;    e 

<  com  isto  quis  ir,  e  o  Abbade  o  acompanhou  ate  a  borda  dagoa, 
«  onde  ia  estava  sam  Miguel  e  disselhe:  Vinde,  seguime;  e  entrarao 
€  poUa  agoa  como  por  seco;  o  que  vendo  Abba  Jesus,  se  maravilhou 

<  muito  e  disse :  Grandes  sao,  Senhor,  vossos  milagres  em  vossos 
f  Santos ;  e  tornou  a  sua  casa  louvando  a  Deos. 

t  Foi  Taquela  Haimanot  seu  caminho,  avendo  estado  ali  des 
«  annos  e  chegou  ao  mosteiro  do  monte  Damo,  que  he  de  hum  da- 
«  quelles  nove  santos  que  vierao  de  Rum  e  Egypto,  reinando  Ala- 
«  mida  filho  de  Saladoba  antes  de  Ja2en.  Aquelles  9  sao  estrellas 
«  de  lus,  que  alumiarao  todas  as  terras.  Alguns  delles  scmeavao 
«  pella  menhaa  e  recolhiao  a  tarde,  outros  traziao  agoa  em  peneiras 
«  sem  se  derramar  e  faziao  outros  muitos  milagres.  E  entrando 
«  Taquela  Haimanot  no  mosteiro,  Ihe  perguntou  o  Abbade  Joanni, 
«  donde  viera,  e  respondeo  que  de  terra  longe;  perguntoulhe  como 
«  se  chamava  e  quem  Ihe  dera  aquelle  vestido  de  frade.  Respondeo 
«  que  seu  nome  era  Taquela  Haimanot,  e  o  vestido  Ihe  dera  Abba 
«  Jesus,  que  morava  na  ilha  de  huma  lagoa.  Disse  Abba  Joanni: 
«  Em  verdade  sois  filho  de  meu  filho,  porque  eu  o  gerei  no  spirito 
«  e  benzeu  hum  capello  e  hum  Azquemi  e  deulho,  e  tomandoo  o 
«  nosso   Padre,  come<;ou   a  fazer   os   milagres   daquelles  9  santos, 

■ 

«  como  se  comegara  a  ser  novigo  sem  saber  fazer  milag^es,  e  pro- 
f.276,v.  «  fetizava  muito  antes  o  que  avia  de  ser  e  assim  era  *semelhante 
«  aos  anjos  em  sua  gloria,  aos  profetas  no  espirito  e  aos  martires 
«  por  ser  lan^ado  pollas  rochas  e  a  todos  aquelles  com  quem  tratava 
«  se  acomodava  e  trazia  ao  caminho  da  salva^ao. 

«  Esteve  TaquelS.  Haimanot  naquelle  mosteiro  12  annos,  e  no  16.  Inde  post  duo- 
«  fim  delles  Ihe  apareceo  o  anjo  de  Deos  e  se  \stc\  Ihe  disse :  Sai  daqui  deST^i^ta^aupcrum 
«  e  visitai  todos  os  mosteiros  da  terra  de  Tigre  e  os  santos  do  de-  monita   invisit  «lia 

^     xnonasteria.  Ad  oram 

«  serto,  porque  nelles  acharais  proveito;  e  indo  logo  a  Abba  Joanni,  Maris  Rubri  appui- 
«  referiolhe  o  que  Ihe  disse  o  anjo.  Respondeo  elle :  Primeiro  vie-  f^^nf*^^m*Jtif*e*t 
«  stes  aqui  por   mandado   do   anjo,  agora   tambem   ide,   Deos   seia  Hierosolymas  tendit 

r.  t_j^  j.jj  i_  i_      sepulcrum      Domini 

«  comvosco ;  e  foio  acompanhando  ate  a  decida  da  rocha,  que  he  veneraturus.  In  Ae- 
«  tam  alta  que  he  necessario  trinta  covados  de  corda  pera  chegar  **iiop**™  reversus  et 

C.  BeccARl.  Ker.  Aeth,  Scripi*  occ,  ined.  —  II.  72 


570  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

pluribus  monaste-  «  ao  chSio,  e  ficando  o  Abbade  e  os  frades  em  sima,  come^ou 
ab  ipso  nomen  ha-  *  nosso  Padre  a  decer  poUa  corda  e  quebrandose  ella,  Ihe  derao 
bent,  eztractis,  mo-   ^  g^ig  ^^  ^  f^;  voando  seis  leiToas,  e  vendo  isto  os  frades,  torna- 

nastenum  DambiA  "^     ^  ° 

repetit  ibique  cucul-  «  rSo  a  seu  mosteiro  louvando  a  Deos.  E  nosso  Padre  entrou  no 
^>k  lesuB^imponit.   *  deserto  Oali,  onde  achou  muitos  frades  santos,  e  iuntandose  todos 

«  Ihe  disserSo:  Pera  que  viestes  aqui,  sendo  muito  mais  honrrado 
«  que  nos  [?].  Respondeo  o  Santo :  Nao  digais  isso,  meus  padres,  que 
«  vos  outros  sois  muito  mais  que  eu.  Disserao  elles;  En  verdade 
<  que  nao  vimos  homem,  a  quem  se  Ihe  desse  tanta  gTa<;:a  na  terra 
«  como  a  vos.  Muitos  santos  hao  de  nacer  de  vos  e  aveis  de  ser 
«  pai  de  muitos  povos.  Respondeo  o  Santo :  Facasse  a  vontade  de 
«  meu  Deos ;  e  esteve  com  elles  45  dias  jeiuando,  e  depoes  se  des- 
«  pedio  e  foi  ao  mosteiro  Haoazen  e  pedio  aos  velhos  que  ali  esta- 
«  vao  sua  ben^ao,  e  responderao :  Nao  nos  convem  benzer  a  homem, 
«  que  foi  bento  poUa  mao  de  Deos ;  mais  vos  nos  benzei  com  vossa 
«  mao  santa,  que  a  isto  vos  mandou  o  Senhor.  E  tanto  o  impor- 
«  tunarao  que  ihes  lan^ou  sua  ben^ao,  e  tomando  tambem  sua  ben^ao 
«  se  despedio. 

«  *Partindo  dali  foj  visitando  outros  mosteiros  e  sarando  mui-  f.  277. 
«  tos  doentes  ate  chegar  ao  mar  Ertera  (scilicet  Mar  Roxo)  e  nao 
«  achando  nao  em  que  passar,  fes  ora^ao  e  apareceolhe  o  anjo  sam  Mi- 
«  guel  como  custumava  indo  sobre  a  agoa,  e  seguindoo  elle  pas- 
c  sarao  ambos  em  huma  hora  e  chegando  a  outra  banda  achou  o 
«  «anto  hum  homem  morto  e  benzeo  dizendo :  O  morto,  se  es  christao, 
«  levantate  no  nome  de  meu  senhor  Jesu  Christo,  cuia  crus  eu  levo. 
«  E  alevantouse  logo  o  morto  como  de  sonho  e  disse :  Sou  christao 
«  do  povo  de  Syon  e  adoro  a  Deos ;  minha  morte  foj  por  falta  de 
«  agoa  indo  a  Hierusalem.  Disse  o  Santo :  Se  ides  a  Jerusalem,  se- 
«  guime,  e  foi  com  elle  ate  chegar  ao  supulchro  de  Jerusalem,  sendo 
«  Patriarcha  de  Alexandria  Abba  Michael,  e  foj  a  elle  e  feslhe 
«  reverencia,  e  disselhe  elle:  Boa  seia  vossa  vinda,  homem  de  Deos 
«  Taquela  Haimanot.  Respondeo  o  Santo:  Benzeime,  Padre,  que 
«  vim  a  tomar  vossa  ben^ao.  Quem  vos  disse  meu  nome?  Disse 
«  elle:  O  anjo  mo  declarou  oie;  e  deulhe  ben^ao  dizendo:  Seiais 
«  bento  na  bengao  de  meus  pajs  Apostolos  e  na  ben^ao  de  meus 
«  pais  os  Patriarchas,  que  estiverao  na  cadeira  de  Marcos ;  e  beijoulhe 
«  o  Santo  as  maos  e  os  pes,  e  o  Patriarcha  a  elle  na  cabe^a  e  dis- 
«  selhe  que  tornasse  a  sua  terra,  que  avia  de  ser  paj  de  muitos 
«  frades  e  que  muitas  igreias  se  edificariao  em  seu  nome.  Respondeo 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  57  I 

«  o  Santo :  Nao  vim  pera  tornar,  senSo  pera  morrer  em  vossas  maos. 
«  Disselhe  o  Patriarcha:  Tomai,  porque  aquella  parte  vos  tem 
«  Deos  guardada.  Respondeo  elle :  Seia,  farei  o  que  me  mandardes, 
«  poes  sois  meu  paj  debaixo  de  Deos ;  e  despedindose  delle  visitou 
f.277,v.  «  todos  os  luguares  *santos  e  depoes  foi  ao  deserto  Cih6t  e  Azquetez 
«  e  tirou  a  ben^ao  dos  monges  que  ali  moravSo. 

«  Estando  Taquela  Haimandt  com  aquelles  santos,  Ihe  apareceo 
«  o  anjo  de  Deos  e  Ihe  disse:  Que  dizeis,  Taquela  Haimanot;  re- 
«  spondeo:  Quero  estar  aqui.  Disselhe  o  anjo:  Nao  he  esta  vossa 
«  parte,  ide  a  terra  de  Ethiopia  e  dai  o  habito  de  frade  aos  que 
«  volo  pedirem,  porque  nao  virao  a  vos  senao  os  escolhidos  pera 
«  o  ceo.  Pello  que  se  tomou  pera  Ethiopia,  trazendo  consigo  aquelle 
«  homem  que  resucitou ;  e  chegando  a  Tigre  terra  de  Ethiopia,  dissc 
«  aquelle  homem  ao  Santo :  Padre,  daime  habito  de  frade,  que  de- 
«  termino  servir  a  Deos.  Respondeolhe  nosso  Padre:  Podereisvos 
«  com  os  trabalhos  dos  Santos[?].  Disse  elle:  Vosso  Deos,  que  pode 
«  tudo,  me  dara  for^as ;  pollo  que  Ihe  deu  o  habito  e  Ihe  pos  nome 
«  Araiacagahu,  e  perseverou  sempre  com  muita  santidade.  Depoes 
«  deu  o  habito  a  muitos  e  edificou  muitos  mosteiros  na  terra  de  Tigre, 
«  que  ate  oie  se  chamao  de  seu  nome ;  e  dali  foi  outras  duas  vezcs 
«  visitar  os  luguares  santos  a  Jemsalem,  e  na  ultima  Ihe  disse  o  pa- 
«  triarcha  Abba  Michael,  que  nao  tornasse  mais,  senao  quc  assentasse 
«  em  algum  luguar  do  deserto,  pello  que  vindo  a  Tig^e  subio  ao 
«  mosteiro  do  monte  Damo  e  tomou  a  bengao  do  Abbade  Joanni  e 
«  dali  foi  a  hum  monte,  que  se  chama  Cantorar,  onde  ieiuou  40  dias, 
«  e  determinou  estar  ali,  porque  a  terra  era  deserta;  mas  apare- 
«  ceolhe  o  anjo  de  Deos:  Que  cuidais,  Taquela  Haiman6t[?].  Esta 
«  parte  nao  he  vossa:  depoes  morarao  aqui  muitos  filhos  vossos. 
«  Ide  a  Abba  Jesus  e  fazei  o  que  vos  disser. 

«  O  dia  seguinte  muito  cedo  foi  como  o  anjo  Ihe  mandou  e 
«  chegando  a  borda  da  alagoa,  nao  achou  embarca^ao  e  passou  por 
«  sima  da  agoa,  chegou  a  Abba  Jesus,  que  se  alegrou  muito  de  o 
f.  278.  «  ver,  e  Ihe  *perguntou  quem  Ihe  dera  capello  e  Azquema.  Respondeo 
«  que  Abba  Joanni  do  monte  Damo.  Disse  elle :  Poes  daime  a  mim 
«  capello  e  Azquema,  porque  deseio  recebelos  de  vossas  santas  maos ; 
«  e  Taquela  Haimanot  Iho  deu.  por  Ihe  ter  mandado  o  Anjo  que 
«  fizesse  o  que  elle  Ihe  dizesse.  E  assi  a  serie  de  nossos  Santos  he 
«  esta:  A  Abba  Antonio  deu  habito  de  frade  o  anjo  sam  Mig^el. 
«  Abba  Antonio  deu  o  habito  a  Abba   Machario,  Abba  Machario 


572  HISTORIA.   DE   ETHIOPIA 

*  o  deu  a  Abba  Pacomio,  Abba  Pacomio  o  deu  a  Abba  Aragaoi ; 
I  este  veio  a  Ethiopia  e  deu  habito  a  Abba  ChristQs  bezana ;  este 

<  o  deu  o  Abba  Mascal  moa,  e  este  o  deu  a  Abba  Joanni,  e  este 

<  o  deu  a  Abba  Jesus  e  a  Abba  Taquela  Haimandt  e  depoes  Taquela 
1  HaimanSt  deu  capello  e  azquema  a  Abba  Jesus  como  dissemos. 

i;.  In  AmharA  re-  .  Despediose  Taquela  Haimanot  de  Abba  Jesus  e  foi  a  terra 

Dadi  serpentem  mi-   "  ^e  AmharS,  e  chegando  a  Arabiha  achou  ali  hiim  monte  alto,  que 

raem«Knnuiiiiiis,qui   ,  gg  chama  Dada,  onde  subio  com  seu  discipolo  Araicairahu  e  achou 

ab  incolis   utl   Deus  ^  * 

habebatur,  sIkdo cru-   «  huma  serpente  niuito  graode,  e  abrindo  ella  a  boca  quis  ingnlir 

^gi^prinM^egi^  *  ^°  Santo,  mas  elle  fes  o  sinal  da  Crus  e  ella  se  fes  em  tres  pe- 

nismultiqaedeplebe,  t,  dacos ;  e  mandou  a  seu  discipolo  que  medisse  sua  compridao  e 
fidem  Cbnati  ample-  .  j  t, 

cnmctuT.  SeoA  denuo  *  achou  que  era  de   175  covados.    Depoes   veio  a  gente   da   terra, 

n^ini^Miimii  ™ae^  *  ^^^  adorava  aquella  serpente  e  achando  a  nosso  padre  fazendo 
mones  compeacit  et  *  orai^ao  Ihe  disserao :  como  subira  alli  e  se  botara  fora  a  serpente 
aibi  «b  Abuna  obJa-   *  que  elles  adoravao;  respondeo,  que  subira  polla  vontade  de  Deos 

tam   recuaat.    Plura   ^  ^       ^  j^g^  botara  fora  a  serpente,  senSo  que  a  matara  com  a  vir- 

alia  Bigna  ab  eo  pa-  ^  r  ■  -i 

ttata.  4  tude  de  Deos,  que  seu  discipolo  Iha  mostraria.  Forao  todos  com 

«  elle  e  ficarao  maravilhados  e  perguntarao  ao  discipolo  como  a 
t  matarao.  Respondeo  que  seu  mestre  fizera  o  sinal  da  santa  rnis 
«  e  logo  morrera ;  com  o  que  tiverao  grande  medo  e  forao  ao  Rei 
«  da  terra  e  Ihe  disserao  que  estava  no  monte  hum  frade  mui  fer- 
j  moso  *e  que  matara  a  serpente  que  adoravao.  Foi  el  Rei  com  ( 
a  elles  e  chegando  disse  a  nosso  Padre  de  longe:  Homem  de  Deos, 
»  daime  Iiceni;a  pera  chegar.  Respondeo  o  Santo :  Vinde ;  e  che- 
«  gando  Ihe  fes  reverencia  e  pedio  que  Ihe  ]an<;asse  sua  bengao. 
«  Disse  o  Santo :  Nao  vos  hei  de  benzer,  sem  saber  que  fe  tendes. 

*  Respondeo  elle ;  Tenho  nome  de  christao,  mas  adorava  esta  ser- 
«  pente,  e  ouvindo  romo  a  matastes  com  o  sinal  da  crus,  entendi 
«  que  Deos  esta  com  vosco,  e  por  isso  vim  pera  fazer  o  que  me 
«  mandardes.  Disse  o  Santo :  Quando  deixardes  de  adorar  ao  de- 
«  monio  e  fordes  bautizado  no  nome  de  meu  Deos,  entao  vos  ben- 

•  zerei.  Respondeo  elle:  Bautizaime.  Padre,  e  daime  bencao.  Desceo 
1  entao  o  Santo  ao  rio  Zoha  e  benzendo  a  agoa  o  bautizou  a  elle 
«  e  a  tres  mil  homens,  afora  molheres  e  meninos,  e  deulhes  a  co- 
t  munhao  e  mandou  que  fizessem  igreia  sobre  o  monte  onde  matou 
»  a  serpente,  a  honrra  dos  4  Evangelistas,  que  esta  ategora. 

«  Estando  aqui  Taquela  Haimanot  ouvio  huma  vos  do  ceo  que 
«  Ihe  disse :  Taquela  Haimanot,  ide  a  terra  Ceoa.  porque  ficarao 
t  poucos  dos  fieis  que  ali  aiuntastes,  visitaios  e  ensinai  a  fe  como 


I 


LIVRO  II,  CAPITULO  XIX.  573 

<  prinieiro,  e  ali  sera  vosso  sepulchro,  e  vossos  filhos  se  multipli- 
€  carSlo  como  as  areas  do  mar  e  estrellas  do  ceo,  e  ediiicarseha 
€  em  vosso  nome  hum  mosteiro  como  Hierusalem,  e  vosso  nome 
«  sera  ouvido  em  toda  a  terra.  Chamou  entao  o  Santo  toda  a 
«  gente  da  terra  e  disselhe:  Eu  vou  onde  me  manda  meu  Deos. 
«  Guardai  seus  mandamentos,  pera  que  acheis  bem  na  alma  e  corpo, 
«  e  meu  filho  Araecagahu  seia  vosso  paj  em  meu  lugnar.  Ouvindo 
«  elles  isto  chorarao  muito  e  seu  discipolo  Ihe  pedio  com  muitas 
«  lagrimas  que  o  levasse  consigo;  mas  disselhe  o  Santo:  Por  man- 
«  dado  de  Deos  vos  deixo.  Esta  he  vossa  parte  pera  sempre :  e  dei- 

f.  279.  «  xoulhe  sua  '*'crus  e  seu  baculo,  dizendo  que  avia  de  ser  paj  de 
«  muitos  religiosos  e  com  isto  se  despedio  de  todos  e  endereitou  seu 
«  caminho  pera  Ceoa,  e  por  todas  as  partes  que  passava  ensinava  a 
«  f e  e  dizia :  Fazei  penitencia,  porque  se  chega  o  reino  do  ceo ;  be- 
«  maventurados  os  que  crem  no  filho  de  Deos,  bemaventurados  os 
«  que  chorao  seus  peccados,  porque  elles  serSlo  salvos  dos  tormentos. 
«  E  ouvindo  sua  palavra,  se  bautizarao  muitos.  E  chegando  o  Santo 
«  a  Ceoa,  deu  o  habito  de  frade  a  16,  e  entre  elles  a  hum  seu 
«  primo  filho  de  hum  irmao  de  seu  paj.  Depoes  indo  com  hum  seu 
«  dicipolo  ao  longo  de  huma  alogoa,  saio  della  hum  espirito  ma- 
«  lino  e  come^ou  a  atormentar  seu  discipolo ;  fes  entao  nosso  Padre 
«  o  sinal  da  crus  dizendo ;  Sae,  espirito  mao,  de  meu  filho ;  e  fugio 
«  logo  delle,  e  querendose  tomar  a  meter  na  agoa,  fes  o  santo  o 
«  sinal  da  crus  e  ficou  na  borda  sem  poder  entrar.  Chegou  nosso 
«  Padre  e  pegando  delle  disse :  Porque  vos  atrevestes  a  entrar  em 
«  meu  filho[?].  Como  vos  chamais?  Respondeo:  Porque  me  parecia 
«  que  ereis  como  os  outros  homens :  meu  nome  he  Bahara  Alcam. 
«  Perguntoulhe  nosso  Padre  se  queria  ir  com  elle,  ou  ficar  onde  pri- 
«  meiro  estava;  respondeo:  Como  fizestes  o  sinal  da  crus,  perdi  meu 
«  poder;  ia  nao  posso  entrar  onde  estava.  Levouo  entao  consigo 
«  Taquela  Haimanot  e  circuncidouo  e  levandoo  a  huma  ig^eia  Ihe 
«  pos  por  nome  Christos  hareio  (scilicet  Christo  o  escolheo)  e  de- 
«  poes  de  ser\'ir  alli  algum  tempo,  Ihe  deu  habito  de  frade  e  foi 
«  amado  de  Deos  toda  sua  vida  ate  que  morreo  e  entrou  no  reino 
«  dos  ceos. 

f.279,v.  «  *Pouco  tempo  depoes  veio  a  Ethiopia  o  Abuna  Joao,  e  man- 

«  dou  chamar  a  Taquela  Haiman6t,  e  o  queria  fazer  Bispo  e  entre- 
«  garlhe  a  metade  de  Ethiopia;  mas  elle  nao  quis  dizendo  que  a 
«  hum  homem   peccador   como  elle   nao  convinha  tal   dignidade  e 


574  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  depoes  de  estar  tres  somanas,  tomou  a  bengao  do  Abuna  e  tomou 

«  a  sua  casa,  e  convertendo   a  hum  filho   de   hum   feiticeiro   teve 

«  grande  paixSlo  o  paj  e  aiuntou   muitos  feiticeiros  e  vierSo   pera 

«  matar  ao  Santo  huns  gritando  como   ussos  e  outros  como   leoes 

«  e  como  caes ;  mas  saindo  o  santo  entrou  no  meio  delles  e  disse 

«  em  alta  vos:  Em  o  nome  de  Deos  a  quem  adoro  mando  que  vse 

«  abra  a  terra  e  engula  a  estes   obradores  de  maldade;  e  logo  se 

«  abrio  e  os  ingulio.  O  que  se  devulgou  em  toda  a  terra  de  Ceoa 

«  e  receberao  sua  doutrina   com  muito   amor   ate  a  terra  de  Gue- 

«  rarea.  Tambem  vierao  a  sua  porta  muitos  demonios  gritando.  com 

«  que  tiverao  grande  medo  seus  discipolos,  e  saio  o  Santo  e  fes  o 

«  sinal  da  crus  e  fugirao  dizendo:   Envergonhastes  nos;  e  estando 

«  depoes  em  ora^ao,  veio  a  elle  huma  serpente  de  dous  cornos  e  o 

«  quis  ingulir,   mas  fazendo  o  sinal  da  crus,  se  abrio  poUo  meo  e 

«  ficou  ali  morta.  Chamou  logo  a  seus  discipolos  e  mandou  que  a 

«  medissem,  e  tinha   setenta   covados,  e  afirmou  a  seus  discipolos 

«  que  Christo  Ihe  mandara  que  Ihes  dissesse  que  todo  aquelleque 

«  matasse  serpente  em  5*  feira  ou  em  domingo  Ihe  seriao  perdoados 

«  os  peccados  de  40  annos. 

«  Estando  doente  hum  principe,  a  quem  nosso  Padre  tinha  con- 

«  vertido,  e  chegando  a  hora  da  *morte,  disse :  Veio  a  meu  padre    f.  280. 

«  Taquela  Haimanot  e  vos  outros  nao  o  vedes.  Gra^as  a  Deos  que 

«  mo  mostrou;  e  morreo  logo,  estando  entao  nosso  Padre  longe  dali. 

«  Tambem  testemunhao  muitos  santos  que  visita  a  seus  filhos  na  hora 

«  da  morte;  e  todas  as  almas  que  chamao  por  elle,  seiao  devotos 

«  ou  peccadores,  vao  a  elle,   porque  a  do  iusto  nao  entra  em  sua 

«  heranga   ate  chegar  a  elle,  e  como  o  ve  grita   aquella   alma  di- 

«  zendo :  Meu  Padre,  meu   Padre,  e  elle  risponde :   Eis  aqui  vosso 

«  padre,  e  entao  chega  a  elle  e  depoes  entra  em  sua  heran^a ;  nem 

«  e  alma  do  peccador  levao  ao  inferno  sem  chegar  primeiro  a  nosso 

«  Padre,  e  quando  chega  grita  dizendo:  Meu  Padre,  meu  Padre,  e 

«  como   elle  a  ve,  se   acha  alguma  boa  obra,  como  chamar  pollos 

«  Padres  antigos  ou  por  elle,  roga  a  seu  Deos,   conforme  ao  con^ 

«  seito  que  tem  e  a  fas  ir  a  vida  eterna. 

18.   Ingravcscente  «  Sendo  ia  velho  Taquela  Haimanot  e  nao  podendo  andar  de 

iam  aetate,  insolitu-       ,  .        .      .         j  r.  .  r  -, 

dinem  concedit,  ubi   *  huma  parte  a  outra  insmando  a  le,  como  custumava,  les  no  de- 

parvula  inclusus  ca-   ^  serto  huma  casinha  tam  baixa  e  estreita,    que  nao  bastava  mais 
sa,  incredibiJes  cor-  ^ 

porisafflictationessi-   «  que  pera  poder  estar  em  pe,  e  pos  na  parede  8  pregos  de  ferro 
tandem°confectuir   *  ^^^  ^®  pontas  muito,  agudas  pera  a  banda  de  dentro,  de  maneira 


t.. 


IJVRO  II,   CAPITULO   XIX.  575 

«  que  duas  pontas  Ihe  vinhSlo  a  dar  nas  costas,  duas  nhuma  ilharga  suosque  ad  charita- 
«  e  duas  na  outra  e  duas  no  peito ;  e  assi  esteve  dentro  em  pe  sem  Angelis  in  coelum 
«  se  encostar  a  huma  ou  outra  parte  muitos  annos,  sem  comer  nem  recipltur. 
«  beber  mais  que  os  domingos  algnmas  hervas  e  agoa;  com  o  que 
«  veio  a  Ihe  apodrecer  e  cair  hum  pe,  que  seus  discipolos  tomarao 
«  e  envolverao  em  hum  pano  e  enterrarao  na  igreia  perto  do  altar. 
«  Depoes  esteve  sobre  o  outro  pe  7  annos  e  os  4  nao  bebeo  agoa, 
«  pello  que  veio  a  nao  ter  mais  que  a  pelle  pegada  nos  ossos  Nisto 

f.28o,v.  «  veio  a  elle  N.  Senhor  Jesu  Christo  e  com  elle  nossa  Senhora  *e 
«  quinze  Profetas,  12  Apostolos  e  muitos  Santos  do  ceo  vestidos 
«  de  lus  e  disselhe:  Como  estais,  meu  amigo  Taquela  Haimanot? 
«  Vim  oie  pera  vos  levar  ao  descanso  e  alegria  que  nao  tera  fim. 
«  Digo  vos  de  verdade  que  a  todo  o  que  em  vossa  lembranga  der 
«  esmolas  e  chamar  vosso  nome,  perdoarei,  nao  s6  a  elle,  mas  seus 
«  descendentes  ate  10  gera^oes,  e  ao  que  edificar  igreia  em  vosso 
«  nome  eu  Ihe  edificarei  no  reino  do  ceo,  e  ao  que  escreve  ou  fas 
«  escrever  o  livro  de  vossos  milagres,  crendo,  eu  escreverei  seu 
«  nome  no  livro  da  vida,  e  ao  que  receber  algum  hospede  em  vosso 
«  nome  eu  o  receberei  quando  vier  a  mim ;  e  ao  que  der  de  comer 
«  e  beber  em  vosso  nome  eu  Ihe  darei  de  comer  do  pao  da  vida 
«  e  a  beber  da  fonte  da  sangue  que  saio  de  meu  lado,  e  todo  o 
«  que  fizer  vossa  festa  com  alegria  eu  o  assentarei  comigo  no  iantar 
«  de  mil  annos ;  e  o  que  offerecer  a  igreia  incenso,  vinho  e  azeite, 
«  eu  aceitarei  sua  ora^ao  e  perdoarei  seus  peccados;  e  ao  que  vi- 
«  sitar  vosso  sepulchro,  eu  o  primiarei  como  se  visitase  meu  se- 
«  pulchro  de  Hierusalem.  Respondeo  nosso  Padre :  Gra<;as  vos  dou, 
«  Senhor,  que  me  fizestes  tantas  merces:  nao  sao  por  meus  mere- 
«  cimentos,  senao  por  o  amor  que  tendes  aos  homens.  Onde  man- 
«  dais,  Senhor,  que  seia  enterrado  meu  corpo  ?  Disselhe  o  Salvador : 
«  Aqui  sera  enterrado  ate  57  annos  e  depoes  caira  esta  casa  e  vossos 
«  filhos  edificarao  aqui  pera  huma  banda  hum  grande  mosteiro  em 
«  vosso  nome  e  a  elle  tresladarao  vosso  corpo,  e  eu  serei  guarda  dos 
«  que  ali  estiverao  e  ouvirei  suas  ora<;oes  e  aos  que  morrerem  neste 
«  deserto  de  vossos  filhos  contarei  com  os  martires.  E  dizendo 
«  isto  Ihe  deu  pas  beijandoo  tres  vezes,  e  subio  pera  o  ceo  com 
«  gfrande  gloria. 

f.  281.  €  Mandou  logo  Taquela  Haimanot  aiuntar  todos  *seus  filhos: 

«  Eis  aqui,  chegou  a  festa  das  bodas :  aparelhaivos  pera  ir  com  ve- 
«  stidura  de  boda  e  nao  seiais  como  o  que  nao  vestio  vestidura  de 


576  HISTORIA  PE  ETHIOPIA 

«  boda.  Quem  nao  veste  vestidura  de  boas  obras  nao  ha  de  entrar 
«  na  boda  celestial ;  porque  me  disse  oie  meu  Senhor  Jesu  Christo 
«  que  he  chegado  o  tempo  de  minha  morte  e  que  algxms  de  vos 
«  outros  hao  de  ir  comigo.  Ouvindo  isto  seus  discipolos,  alguns  se 
«  alegrarao,  outros  chorarao  por  se  aver  de  apartar  delles,  e  nosso 
«  Padre  os  exortou  ao  desprezo  do  mundo  e  de  suas  cousas  e  en- 
«  carregou  que  se  amassem  huns  aos  outros,  porque  o  amor  do  espi- 
«  rito  fas  limpa  a  carne  e  alma;  e  que  se  guardassem  isto  seriao 
«  de  verdade  seus  filhos ;  e  ordenou  que  El^a  ficasse  em  seu  luguar 
«  e  Ihes  fosse  pai.  Dizendo  isto,  se  Ihe  agravou  muito  a  doenga  e 
«  a  noite  27  de  agosto  entrou  huma  lus  e  cheiro  tam  grande  e  suave 
«  que  levava  o  cora^ao,  e  apaeceolhe  Christo  nosso  Senhor  com  sua 
«  Maj  e  s.  Miguel  e  sam  Gabriel  e  24  sacerdotes  do  ceo  com  tu- 
«  ribulos  nas  maos  e  muitos  anjos  com  candeas;  e  vendo  nosso 
«  Padre  ao  Salvador,  o  adorou  pondose  de  joelhos  como  se  tivera 
«  saas  ambas  as  pernas.  E  disselhe  o  Salvador :  O  meu  amigo,  todos 
«  vossos  trabalhos  estao  escritos  em  Hierusalem.  E  dizendo  isto 
«  saio  a  alma  do  corpo  de  Taquela  Haimanot  e  a  recebeo  Christo 
«  N.  S.**'  e  disse:  Alma  limpa,  vinde  a  mim;  e  subindo,  cantavao 
«  os  anjos:  Quein  trabalhou  no  mundo  viva  pera  sempre.  Este  he  o 
«  dia,  que  fes  o  Senhor ;  gozemonos  e  alegremonos  nelle.  E  assim 
«  o  levarao  e  entrou  em  sua  heran^a  pera  sempre,  e  deulhe  o  Sal- 
«  vador  a  vestidura  que  o  anjo  Ihe  tinha  mostrado  com  a  lingoa  de 
«  fogo  que  falava  da  divindade,  e  as  sete  coroas,  por  rezao  de  sua 
«  f e  e  outras  virtudes.  Viveo  neste  mundo   103  annos  e  40  dias. 

«  Ficarao  todos  seus  filhos  chorando  e  amortalharao  o  corpo  e 
«  o  enterrarrao  cantando  como  he  custume  dous  sacerdotes ;  e  tres 
«  dias  depoes  morreo  hum  *diacono  primo  de  nosso  Padre  por  nome  f.28i,v. 
«  Amd  Mascal,  e  o  amortalharao  e  levarao  a  enterrar,  e  depoes  de 
«  acabar  o  officio  dos  defuntos  bulio,  e  assim  abriao  a  mortalha  e 
«  perguntarao  que  fora  aquillo.  Respondeo:  Morri,  como  vistes  e 
«  foi  levado  diante  do  Senhor  da  verdade  e  dali  me  levarao  a  nosso 
«  Padre  Taquela  Haimanot  e  vio  com  tanta  gloria  que  a  nao  pode 
«  declarar  lingoa  humana ;  e  sua  coroa  resplandecia  mais  que  o  sol 
«  sete  veses  e  mandoume  que  vos  disesse:  El^a  venha  a  mim  c 
«  Phelipe  fique  em  seu  luguar,  porque  em  seu  tempo  se  manife- 
«  starao  em  toda  a  terra  minhas  cousas.  E  dizendo  isto  tornou  a 
«  sair  a  alma  de  seu  corpo,  e  o  enterrarao,  e  dali  a  tres  meses 
«  morreo  Elga,  e  seus   discipolos  puserao  em   seu   luguar  a  nosso 


LIVRO   II,  CAPITULO  XIX.  577 

«  padre  Phelipe,  como  Ihes  tinha  mandado,  e  nelle  se  mostrou  a 
«  graga  de  Taquela  Haimandt,  porque  delle  sairao  1 4  pastores,  que 
«  manifestarao  e  fizerao  fjfuardar  a  fe. 

»  A  ora^ao  de  nosso  Padre  Taquela  Haimanot  mestre  honrrado 
«  nos  livre  da  forpa  do  inimigo  e  das  cousas  roins  em  todo  o  tempo 
«  e  em  todas  as  horas.  Amen  ». 

Ate  aqui  sSo  palavras  da  Historia  de  Taquela  Haimanot,  em  xg.  Sententia  Au- 
que  nao  faltao  coussis  apocrifas,  como  as  ha  em  muitas  de  suas  hi-  ctom^istortim^eam 
storias ;  e  se  elle   foj   santo,   como   tem  por   muito  certo  todos   os  *ca*«re  fabulis  et  er- 

,  ronbus,  uti  ferc  om- 

Ethiopes,  bem  se  ve  que  Ihe  acrescentarao  algumas  piores  pera  nes  Aethiopum  libri, 
acreditarem  seus  erros,  como  sao  que  quando  se  foi  a  ordenar  de  ^^^  cxemplis  pro- 
missa,  disse  ao  Patriarcha  Guerlos  que  fizerao  outra  fe  e  outro  cu- 
stume  da  igreia  bautizando  os  meninos  antes  de  os  circuncidarem 
e  que  o  Patriarcha  Ihe  deu  bengao  e  disse :  «  Porque  tendes  zelo  de 
cousas  de  Deos  como  Elias  profeta  de  Israel,  aveis  de  ser  novo 
apostolo  » ;  e  depoes  que  o  ordenou  de  missa,  o  fes  prior  de  todas 
as  terras  de  Ceoa  e  Ihe  deu  pera  isso  seus  poderes.  Isto  parece  que 
acrescentarao  pera  acreditarem  a  circuncisao,  a  que  os  mais  delles 
f.  282.  estao  sobre  maneira  aferrados,  e  pera  *que  a  gente  popular  nao 
deixe  de  se  circuncidar,  poes  aquelle,  a  quem  todos  tem  por  grande 
santo,  dis  que  he  fazer  outra  fe  bautizar  os  meninos,  sem  os  cir- 
cuncidar.  Tambem  aquella  fabulosa  patranha,  que,  indo  pcrto  de 
huma  alagoa,  saio  della  hum  demonio  e,  entrando  em  seu  discipolo, 
o  comeQou  a  tormentar,  o  que  vendo  Taquela  Haiman6t,  fes  o  si- 
nal  da  Crus,  com  que  logo  fugio  o  demonio,  e  querendose  meter 
na  agoa,  tornou  a  fazer  o  sinal  da  Cruz  e  ficou  na  borda  sem  poder 
entrar,  e  chegando  Ihe  perguntou  se  queria  ir  com  elle,  ou  ficar 
onde  primeiro  ;  e  respondeo  :  «  Como  fizestes  o  sinal  da  crus,  perdi 
meu  poder :  ia  nao  posso  entrar  onde  primeiro  »  ;  e  assi  o  levou  Ta- 
quela  Haimanot  e  o  circuncidou,  e  depoes  de  servir  algum  tempo, 
Ihe  deu  habito,  e  quando  morreo  foi  ao  ceo.  A  isto  me  respondeo 
hum  frade  dos  de  Taquela  Haimanot  que  o  que  estava  na  alagoa 
nao  era  demonio,  senao  homem  feiticeiro  e  por  arte  do  diabo  mo- 
rava  dentro  da  agoa ;  mas  o  nome  que  Ihe  da  a  Historia,  que  [he] 
Ganen,  nao  quer  dizer  senao  espirito  maligno;  e  se  nao  fora  tal, 
mal  podia  entrar  no  discipolo  de  Taquela  Haimanot,  nem  dizer 
elle  :  «  Sai,  espirito  mao,  de  meu  filho  »,  como  alli  se  conta. 

Nao  he  de  maravilhar  que  acrescentassem  isto,  porque  muitas 
veses  o  fazem  em  seus  livros,  pera  depoes   provai    seus   erros ;    e 

C  Beccari.  ^*r.  s4e/A,  Seript»  occ*  tned.    —  II.  73 


578  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

ainda  nos  santos  Concilios,  e  quando  no  livro  dos  Santos  achSlo 
palavras  contra  elles,  as  tirSo,  como  fizerao  no  mosteiro  de  Ag^um 
do  reino  de  Tigre,  que,  porque  o  padre  patriarcha  Andre  de  Oviedo 
tirou  daquelles  livros  algumas  autoridades,  com  que  refutava  seus 
erros,  se  aiuntarSlo  muitos  frades  e  rasparSLo  tudo  aquillo  que  Ihes  pa- 
recia  que  erao  contra  elles.  E  pouco  depoes  que  eu  vim  fui  ver  aquelles 
livros  pera  o  mesmo  effeito  que  o  padre  Patriarcha,  e  hum  frade 
meu  amigo  me  contou  isto  e  me  mostrou  em  muitas  partes  raspado ; 
que,  como  os  livros  sao  de  purgaminho,  facilmente  o  fazem.  Tambem 
depoes  que  eu  aqui  estou  *em  hum  livro,  que  chamao  Haimanot  f.282,^ 
Abbo,  que  quer  dizer  <  fe  dos  Padres  »,  e  tem  grande  autoridade 
entre  elles,  estava  que  o  Espirito  Santo  procede  do  Padre  e  do 
Filho,  e  rasparao  esta  palavra  «  e  do  Filho  »,  e  no  Concilio  Niceno 
acrescentarao  <  Procede  do  Padre  e  nao  do  Filho  »  e  muitos  delles 
defendem  isto  pertinazmente. 


CAPITULO   XX. 

Em  que  se  trata  do  mosteiro  que  chamao 

D6bra  Libands. 


Muito  celebres  conventos  de  grossas  rendas  e  grande  numero 
de  frades  ouve  antigamente  em  Ethiopia,  mas  poUos  estragos  que 
nella  fizerao  os  Mouros,  em  tempo  de  hum  capitSlo  que  veio  do  reino       i.  Praecipua  mo- 
Adel,  que  chamavao  Granhe,  a  quem  matarSo  os  Portug^eses  que   J^^t^V^u^ctoHs 
qua  entrarao  com  dom  Christovao  da  Gama  o  anno  de  1541,  como  «rant:  Biz4n,  AbbA 

^  Quariin4,  DagA,  Ca- 

dissemos  no  fim  do  pnmeiro  livro,  e  pella  destrui^ao  que  depoes  nA,  Debra  Maryam, 
fizerao  huns  gentios,  que  chamao  Galas,  que  tem  tomado  grande  q^^  ettiatempore 
parte  do  imperio,  muitos  mosteiros  ficarao  de  tudo  acabados  e  ou-  GrAnh  neque  opibus, 

,.  ,  .        ,  1,         /*  nequc    monachorum 

tros  tam  perdidos,  que  em  respeito  do  que  antes  erao  nao  Ihes  ficou  numeroaequeflome- 
ia  quasi  mais  que  o  nome.  Os  que  ainda  tem  algum  sao,  o  de  Bi-  ^i^V  «^  pnscis  tem- 
san  da  familia  de  Abba  Stateus,  que  esta  no  reino  de  Tigre,  hum 
dia  de  caminho  do  porto  de  Ma^ua,  e,  sinco  ou  seis  dias  de  caminho 
dali  polla  terra  dentro,  o  que  chamao  de  Abba  Guerima,  e  como 
2  legoas  e  meia  deste  outro  de  Ag^um  de  frades  de  Abba  Taquela 
Haimanot.  Estes  mosteiros  ainda  nao  tem  a  3^*  parte  dos  frades 
que  antes  tinhao  ;  e  na  alagoa  de  Dambia  entre  outras  ilhas  estao  3, 
que  se  chamao  Daga,  Cana  e  Debra  Mariam,  e  em  cada  huma  del- 
las  seu  mosteiro  tambem  de  Abba  Taquela  Haimanot;  e  no  reino 
de  Gojam  hum,  que  se  chama  Dima  e  perto  deste  outro  dos  da  fa- 
f.  283.  milia  de  Abba  Stateus,  *que  chamao  Debra  Ore,  e  outro  Calalo.  Os 
demais,  que  sao  muitos,  deixo  por  nao  terem  tanto  nome,  e  porque 


58o  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

nao  pretendo  tratar  senSlo  do  mosteiro  de  Debra  Libanos  e  do  de 
AUeluia,  de  que  fa[la]remos  adiante,  por  serem  os  mais  famosos  que 
ouve  nunca  em  Ethiopia. 
a.   At   prmcipem  Debra  Libanos  (que  entre  todos  os  mosteiros  deste  imperio  teve 

locum  obtinebant  ...  v  ..  .    •         j       t  -t 

monasteria  Libands  sempre  o  primeiro  luguar)  quer  dizer  «  mosteiro  do  Libano  », 
et  AUeid.  Ethimoio-  porque  Deber  quer  dizer  njosteiro,  ainda  que  tambem  significa 
claratur.  Libands  si-  moute,  e  assim  ao  monte  Tabor  chamSo  Debra  Tabor,  e  ao  monte 
m^tere^oxiisaUo^  Olivete  Debra  Ceit;  antes  alguns  tem  pera  sy  que  Deber  pro- 
extructum  fuit  ab  priamente    significa    monte,    mas    porque    ordinariamente    edificao 

AbbA    Exechiaa,     57  _^,  .  ^   .  ^  j         .  .  u 

annos  ab  obitu  Ta-  em  Ethiopia  os  mosteiros  nos  montes,  daqui  veio  a  chamarem 
in  E^Mia  ei'  *^***^!  tambem  ao  mosteiro  Deber,  e  quando  querem  dizer  o  mosteiro 
viae  asservantur.  de  tal  parte  acrescentao  esta  letra  «  a  »  e  dizem  Debra,  como 
omniamonasteriare-  quer  que  seia  Debra  Libanos  he  o  mesmo  que  mosteiro  do  Libano. 
gionis,  ex  multis  ca-  -£sik  situado  na  chapada  de  huma  serra  grande  e  forte  do  reino  da 

sulis  rotundis,  quae  ^  ^ 

mediam  habent  Ec-  Xaoa  e,  segnndo  affirmao  agora  os  frades  delle,  o  edificou  hum  frade 

por  nome  Ezechias  57  annos  depoes  da  morte  de  Abba  Taquela  Hai- 
manot ;  o  que  tambem  testifica  sua  historia,  porque  no  fim  della  se  dis 
que,  estando  pera  morrer,  Ihe  apareceo  Christo  N.  S.°'  e  elle  Ihe  per- 
guntou  onde  mandava  que  se  enterrasse  seu  corpo  e  que  Ihe  disse  o 
Salvador:  «  Aqui  sera  enterrado  ate  57  annos  e  depoes  desto  tempo 
caira  esta  casa  e  vossos  filhos  edificarao  aqui  pera  huma  banda  hum 
grande  mosteiro  em  vosso  nome  e  a  elle  tresladarao  vosso  corpo, 
e  eu  serei  guarda  dos  que  ali  estiverem  ».  E  dizem  os  frades  que  as- 
sim  foi  e  que  depoes  hum  Emperador  *fes  a  igreia  muito  maior  por  ^.283,^. 
ser  sepultura  de  Taquela  Haimanot.  Mas  o  edificio  deste  mosteiro 
nao  he  como  o  dos  mosteiros  de  nossaEuropa;  porque  cada  frade 
vive  em  casa  sobre  sy  e  ordinariamente  as  casas  sao  mui  pequenas, 
redondas  e  cubertas  de  palha,  de  modo  que  fica  mosteiro  da  feicjao 
de  huma  aldea;  e  assim  sao  todos  os  demais  mosteiros  de  Ethiopia; 
mas  alguns  tem  ^erca  aroda  e  della  pera  dentro  nao  podiao  an- 
tigamente  entrar  molheres  ;  mas  agora  em  poucos  mosteiros  se 
guarda  isto. 
3.    Qui    numerus  Do  numero  dbs  frades,  que  avia  antigamente  naquelle  mosteiro, 

olim  incoluerit  ex  ^^^  falao  suas  historias,  nem  elles  sabem  dar  rezao,  somente  me 
sola    traditione    re-  disserao  alcfuns  velhos  e  o  que  agora  he  como  seu  Geral,  que  pri- 

sciri  potest ;  tempore  °    .  .  . 

Auctoris  non  erant  meiro  avia  naquella  comarca  muitos  mosteiros  soieitos  a  este,  e  que 

amplius     quam    40.  r     ^        ^      j.    ^  a.  ■»  *i 

Non  redditus  sed  ^^  irades  de  todos  estes  senao  10  mil  ou  mais:  porem  o  numero 
arva  ipsa  inter  mo-  certo  dos  que  estavao  dentro  da   serca  do  mosteiro  nao  o   sabiao. 

nachos  abAbbate  -txat.a.i 

distribuuntur.     Mo-   Por  onde  parece  que  quando  dizem  que  Debra  Libanos  tmha  nove 


LIVRO   II,   CAPITULO   XX.  581 

ou  des  mil  frades,  nSlo  se  entende  que  todos  estes  morassem  dentro.  nachorum  propin- 

...  ,  Qui  quid  iure  haere- 

da  cerca  do  mosteiro,  senao  que  contavao  tambem  os  que  estavSo  2ita^a  acquircre  va- 
nos  mosteiros  que  aroda  delle  Ihe  erao  soieitos.  Nem  quanta  renda  icant. 
tinha  sabem  agora,  somente  dizem  que  Ihe  derao  os  Emperadores 
muito  boas  e  largas  terras  e  dellas  tomava  o  Abbade  do  mosteiro 
certa  por^ao  e  as  demais  repartia  pollos  frades,  de  maneira  que 
cada  hum  sabia  quais  erao  suas  terras  e  as  fazia  lavrar  e  recolhia 
o  mantimento  em  sua  casa  e  dali  comia  e  vestia  e  gastava  no  que 
Ihe  parecia  bem ;  mas  que  aos  mancebos,  em  quanto  o  Abbade  Ihes 
f.  284.  nao  sinalava  terras,  elle  Ihes  dava  de  comer  em  sua  *casa  a  todos 
iuntos  em  huma  mesa  e  elle  em  outra,  mas  atravessada  entre  am- 
bas  huma  cortina  de  maneira  que  nao  viao  comer  ao  Abbade.  Este 
mesmo  modo  guardao  todos  agora ;  e  quando  morre  hum  frade,  se 
deixou  algum  fato  que  elle  ganhou  por  escrever  ou  ensinar  mini- 
nos  ou  por  outra  via,  que  nao  seia  do  que  renderao  as  terras  que 
comia  do  mosteiro,  o  herdao  seus  parentes,  e  as  terras  com  o  de- 
mais  tomao  ao  mosteiro ;  porem,  se  o  frade  deixou  filhos  (como 
muitas  veses  socede)  e  algnm  delles  quer  ser  frade,  este  leva  as 
terras  e  o  demais  fato  que  pertencia  ao  mosteiro. 

Quantos  frades  residao  agora  em  Debra  Libanos  nao  querem 
declarar,  nao  dizem  mais  de  que  poucos ;  so  hum  disse  que  seriao 
40,  e  se  ouver  tantos  sera  muito,  porque  aquellas  terras  estao  ia 
quasi  desertas  pollas  correrias,  que  continuamente  fazem  os  Galas, 
que  entrao  por  ellas  todas  as  vezes  que  querem,  sem  resistencia 
nenhuma,  e  matao  quantos  achao  ;  pollo  que  os  frades  se  vierao 
pera  o  reino  de  Gojam  e  pera  outras  partes,  sem  ficarem  naquelle 
mosteiro  mais  que  40,  e  pode  ser  que  menos,  e  estes  por  ser  aquella 
a  sepultura  de  seu  fundador  e  luguar  forte,  que  de  outra  maneira 
ia  la  nao  estivera  hum. 

Deste  mosteiro  Debra  Libanos  trata  diflFusamente  frei  Luis  de      4.  Refenmtur  so- 
Urreta  po  cap.  3  do  livro  que  intitulou  Historia  de  la  sagrada  Or-  ^^^  monasterium  et 
d€  des  Predicadores  en  lo  remotos  reinos  de  la  Ethiopia;  e  na   pa-  P^^cis  refutantur. 
gina  35  o  chama  Plurimanos  e  dis  que  o  fundou  Taquela  Haimanot 
pera  os  Ethiopes  que  tinhao  professado  a  religiao  de  S.  Domingos 
f.284,v.  asima  do  gran  *lago  Cafates  donde  nace  o  Nilo  entre  a  lagoa  e  os 
montes  da  Lua  no  reino  de  Malemba,  terra  tam  fertil  que  o  Preste 
Joao  edificou  perto  do  mosteiro  huma  cidade  imperial  pera  seu  assento, 
averia  30  annos  quando  elle  escreveo,  que  foi  no  de  161 1;  e  que  a 
chamou  Zambra,  e  que  o  mosteiro  he  tam  grande  e  sua  architectura 


582  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

de  maneira  que  tem  mais  de  80  dormitorios  e  em  cada  hum  1 20,  1 50 
e  nalguns  200  celas,  e  no  cabo  delles  esta  a  igreia  mor  e  no  outro 
cabo  o  refeitorio,  mas  em  cada  hum  igreia  propria  e  casa  de  No- 
vi^os.  De  dormitorio  a  dormitorio  ha  sua  crasta,  porque  todo  e 
edificio  he  em  quartos  baixos.  Cada  pano  he  de  mais  de  500  passos 
e  de  roda  tem  duas  milhas.  Os  dormitorios  tem  sua  cerca  com  que 
se  fechao  de  noite  e  de  hum  ao  outro  nSo  podem  ir  sem  licenQa. 
Ha  portaria  comum  de  todo  o  convento  e  tem  serca  que  o  devide  dos 
hortos  e  iardins.  No  refeitorio  estao  as  mesas  como  nos  nossos  e 
tem  de  comprido  mais  que  duas  milhas;  ha  des  pulpitos,  onde  lem 
10  lectores  sem  que  se  impidao  huns  aos  outros,  e  todos  ouvem 
muito  bem.  De  tres  a  tres  mesas  ha  seu  partidor  e  ianella  que  saie 
a  cozinha,  na  qual  ha  cozinheiros  sinalados  pera  cada  tres  mesas 
e  seus  servidores  sinalados  pera  ellas ;  e  assim  todos  come^ao  iuntos 
e  acabao  iuntos  o  comer;  e  nos  dias  da  somana  vai  ao  choro  da 
igreia  mor  do  convento  hum  dormitorio  hum  dia,  e  outro  dormi- 
torio  outro  dia  por  ordem,  e  os  demais  dormitorios  cada  hum  acode 
a  igreia  propria  de  seu  dormitorio ;  mais  os  domingos  e  festas  todos 
iuntos  *vao  ao  choro  mor  e  ha  lugnar  bastante.  A  igreia  tem  mais  f.  285. 
de  600  passos  de  comprido  e  conforme  a  compridao  he  a  largura  e 
altura.  Dentro  das  sercas  do  convento  ha  todos  os  officios  necessarios 
ao  servi^o  da  casa,  como  alfaiates,  Qapateiros,  tejeloes,  carpinteiros, 
ferreiros,  pedreiros  e  lavradores. 

Ate  aqui  sao  palavras  do  Autor,  mas  tudo  he  huma  mera  ficQao 
tragada  em  seu  entendimento  ou  no  do  que  o  informou.  Porque  no 
convento  Debra  Libanos  nem  em  outro  de  Ethiopia  ha  tal  modo  de 
edificio,  nem  repartimento  de  dormitorios,  como  elle  pinta,  senao 
casinhas  redondas,  huma  afastada  de  outras,  como  assima  dissemos ; 
nem  se  aiuntao  a  comer  em  hum  refeitorio ;  cada  hum  come  em  sua 
casa,  e  aos  mancebos,  que  sustenta  o  Abbade,  em  quanto  nao  Ihes  da 
terras,  ainda  qne  comem  iuntos,  nao  Ihes  lem  a  mesa,  nem  sabem 
que  cousa  he  pulpito,  que  nem  nas  igreias  o  tem;  porque  nunca 
pregao,  e  se  algum  frade  fala  alg^ma  cousa  a  modo  de  pratica, 
assentasse  em  hum  banquinho  e  ainda  isto  rarissimamente  o  fazem. 
Nem  fundou  o  mosteiro  Abba  Taquela  Haimanot,  senao  outro 
frade  por  nome  Ezechias,  57  annos  depoes  da  sua  morte ;  nem 
foi  pera  frades  da  Ordem  do  glorioso  S.  Domingos,  porque,  como 
provamos  assima  no  cap.  17,  nem  ha  oie  nas  terras  do  Preste 
Joao  frades  de  *sam  Domingos,  nem  memoria   de  que  os  ouvesse   ^.285,^. 


LIVRO  II,   CAPITULO   XX.  583 

nunca;  nem  o  mosteiio  esta  fundado  perto  da  lagoa  por  onde 
passa  o  rio  Nilo  (que  elle  nSio  nace  de  lagoa,  como  dissemos  no 
cap.  26  do  primeiro  livro),  senSo  alguns  8  dias  de  caminho  desta 
alagoa.  Nem  em  quantas  terras  senhorea  o  Preste  JoSo  ha  reino  que 
se  chama  Malemba,  nem  tal  cidade  de  Zambra,  como  tambem  mo- 
stramos  no  fim  do  cap.  20  do  primeiro  livro.  E  pera  que  declare- 
mos  tudo  em  huma  palavra,  quasi  nenhuma  de  quantas  escreve  sobre 
as  cousas  deste  mosteiro  Debra  Libanos  diz  com  a  verdade  do  que 
antigamente  ouve  nem  oie  ha. 


CAPITULO   XXI.  (I) 


Da  funda^ao  do  convento  da  Alleluia. 


Depoes  do  convento  Debra  Libanos,  que,  como  temos  dito,  he  «•  Monasterium, 
de  frades  de  Abba  Taquela  Haimanot,  o  mais  famoso  em  numero  Hallel6,  situm  est  in 
de  frades  que  ouve  antiguamente  em  Ethiopia  foi  Debra  Hallelo,   ^s^o   Tigrt   super 

*  verticem  montis  pro- 

que  quer  dizer  «  mosteiro  da  AUeluia  »,  de  frades  de  Abba  Stateus,  pe  flumen  MarAb  et 

1  r  1  •  •      •    •      j  o  incolitur  a  monachis 

de  quem  falamos  assima  no  principio  do  cap.  i8.  ^^^^  Statftus.  Tem- 

Esta  este  mosteiro  no  reino  de   Tigre   em   huma   serra   muito  po^e   Auctoris,    qui 

illud    invisit,    vetus 

alta  perto  do  rio  Marab ;  tudo  arroda  sao  serras  altas  e  montuosas,  scclesia  et  casae  nu- 
e  os  valles  tam  quentes  e   doentios   que   nSo  se  atreve  a  cfente   a  ««'oCoodirutaemo- 

^  ^  °  nachi  vero  ad  decem 

morar  nelles  senao  nos  altos,  e  dali  decem  aos  lavrar.  Tambem  la-  numerabantur. 
vrao  nas  serras  em  algumas  partes  que  o  sitio  da  luguar. 

No  mais  alto  daquella  serra  esta  o  mosteiro,  cuios  edificios 
antigos  forao  como  os  que  assima  dissemos  de  Debra  Libanos,  ca- 
f.  286.  sinhas  redondas  afastadas  *huma  de  outra.  Eu  as  fui  a  ver,  porque 
nao  esta  mais  que  hum  dia  de  caminho  de  nossa  igreia  de  Fremona, 
e  quasi  todas  estao  caidas ;  pareceme  que  seriao  como  seis  centas. 
A  igreia  antigua,  que  era  dedicada  a  Nossa  Senhora,  ia  ha  muitos 
tempos  que  tambem  esta  caida.  Medi  o  vao  della,  porque  ainda  apa- 
recem  os  alicerces,  e  tirha  132  palmos  dc  cumprido  e  105  de  largo. 
Dentro  deste  circuito  fizerao  outra  muito  pequena,  mas  bastante 
pera  os  frades  de  agora,  porque  ali  nao  residem  mais  que  10,  e  ss- 

(i)  In  codice  ms.  legitur  XXII,  sed  evidenter  error  irrepsit. 
C.  Beccasi.  Her.  Aeih,  Scripi*  occ,  ined.  —  II.  74 


586  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

gundo  elles  me  affirmarSLo,  estarSLo  20  nos  mosteiros  e  igreias  soieitas 
a  este  convento.  Pergunteilhes  quantos  frades  estavao  ali  antigua- 
mente :  responderao  que  nem  o  declaravSlo  seus  livros,  nem  elles  0 
sabiSLo,  mas  que  sempre  ouvirSo  dizer  que  erao  muitos.  Mostraraome 
hum  livro  antigo  que  tratava  das  cousas  daquelle  mosteiro  e,  onde 
fala  de  seu  fundador,  dis  desta  maneira. 
a.  Narratur  brevi-  «  Abba  Samuel  natural  de  Maraba  em  Tamben  (esta  he  huma 

tervitaAbbASaxnuel,  •      •      ^  •         ji      «^»      Avr*ji>«      t       ji        a-li         a^a 

quimonasteriumere-   *  provmcia  do  remo  de  Tigre)  foi  dicipolo  de  Abba  Antonz,  que 
xerat,  ex  quodam  li-   ^  estava  em  Maedaro  (isto  he  no  meio  de  Tigre)  no  mosteiro  Amba 

bro,  quem  Auctor  a  ^  " 

monachis  commoda-   «  Tambuc  e  ali  fes  grandes   penitencias.   De   dia  trabalhava   e  de 
tum    a  uit.  ^  noite  estava   metido   em  huma   pouca  de  agoa  com  huma  pedra 

«  as  costas;  tomava  muitas  diciplinas  e  sempre  trazia  cilicio;  e  de- 
<  poes  de  estar  ali  muito  tempo,  pedio  licerKja  a  seu  mestre  e  se 
«  meteo  s6  poUos  desertos,  onde  achou  hum  liao  todo  branco  que 
«  com  rosto  alegre  o  foi  guiando  poUos  matos  *ate  chegar  a  huma  (M.y 
«  serra  alta,  onde  desapareceo  e  querendo  elle  passar  adiante  a  ver 
«  se  achava  algum  sitio  melhor,  Ihe  disse  Deos  que  tornasse  e  ali 
«  fizesse  seu  assento  e  edificasse  igreia,  porque  o  avia  de  fazer  paj 
«  de  muitos  santos,  e  dali  a  pouco  se  Ihe  forao  iuntando  muitos  de 
«  divcrsas  partes  e  Ihes  deu  regra  e  modo  de  viver,  e  o  primeiro 
«  que  Ihes  encomendou  muito  foi  o  silencio,  depoes  a  uniao  entre 
«  sy,  que  fossem  como  membros  de  hum  mesmo  corpo,  que  se  aiudao 
«  huns  aos  outros,  e  nao  se  queixa  o  pe  porque  o  nao  fizerao  ca- 
«  be^a.  Dcpoes  destribuio  os  officios  e  fes  huma  igreia  em  que  tia- 
«  balharao  todos  com  grande  fervor  e  deva^ao. 

«  Huma  2^  feira,  depoes  de  pascoa  de  Resurei^ao,  se  meteo 
«  em  hum  aposento,  onde  esteve  em  pe  encostado  a  huma  parede 
«  fazendo  ora^ao  sem  comer  nem  beber  50  dias  ate  o  Spirito  Santo, 
«  e  chegando  hum  seu  discipolo  aquelle  dia,  Ihe  disse  que  fosse  a 
«  igreia.  Respondeo  que  nao  podia,  que  o  levasse  polla  mao,  e  fa- 
«  zendoo  elle  assim,  achou  que  os  vestidos  das  costas  estavao  co- 
«  midos  de  bichos  e  as  carnes  ate  os  ossos.  Vendo  isto,  come<;ou 
«  a  chorar  alto,  e  disselhe  que  se  calasse,  e  dali  a  pouco  o  vio 
«  sao  e  mandoulhe  que  nao  descobrisse  aquillo  ate  depoes  de  sua 
«  morte  ».  Outras  muitas  maravilhas  conta  alli  delle.  E  depoes  dis 
assim.  «  Sabendo  que  se  Ihe  chegava  a  hora  da  morte,  perguntou 
«  a  Christo  N.  S.""^  que  faria  a  seus  discipolos,  e  respondeolhe  que 
«  Ihes  desse  ben^^ao,  que  ia  era  tempo  de  ir  pera  elle,  e  assim 
«  deu  muitas  ben^oes  aos   que  estavao  presentes,  e  logo  *adoeceo  f'-^' 


LIVRO   II,   CAPITULO   XXI.  587 

«  e  mandou  que  viessem  os  absentes.  Depoes  Ihe  apareceo  hum 
«  anjo,  e  Ihe  disse  que  sinalasse  outro  em  seu  lugnar,  e  feslhcs 
«  huma  pratica  em  que  Ihes  encomendou  as  cousas  que  deseiava  que 
«  giiardassem,  e  Ihes  sinalou  por  mestre  a  Za  Jesus,  e  em  dizendo 
«  isto  espirou.  E  decerao  muitos  anjos  em  compania  de  Nossa  Senhora 
«  a  receber  sua  alma  e  David  hia  diante  della  cantando  :  •  Pretiosa 
«  in  cospectu  Domini  nostri  mors  Sanctorum  eius  '  ». 

Mais  adiante  dis  o  livro ;  que  Abba  Antonz  mestre  deste  Abba 
Samuel  mostrou  de  longe  a  seus  discipolos  esta  serra  que  aparecia 
com  magestade,  e  Ihes  disse  que  seu  nome  era  Hallelo  e  Ihes  pro- 
fetizou  tudo  o  que  depoes  socedeo. 

Isto  he  o  que  eu  achei  naquelle  mosteiro,  mas  depoes  de  al- 
gum  tempo  quis  que  Ihes  fosse  a  perguntar  de  novo  hum  homem 
da  terra,  de  quem  me  fiava,  e  disseraolhe  que  o  numero  dos  frades 
que  avia  antiguamente  o  nao  sabiao,  mas  que  ouvirao  dizer  que  ao 
redor  da  igreia  antigua  estavao  1230  casas  de  frades.  Outros  dis- 
serao  que  4000;  e  que  as  igreias  soieitas  a  este  mosteiro  erao  91  ; 
e  que  avia  doze  frades  que  ouviao  as  demandas  e  visitavao  em  lu- 
guar  do  Abbade;  e  que  quando  hum  destes  visitava  as  terras,  o 
acompanhavao  mil  frades,  e  quando  o  Abbade  hia  com  algum  ne- 
gocio  ao  Emperador,  o  acompanhavao  1 50  frades  de  mula  com  al- 
bornozes;  mas  que  a  renda  que  tinhao  nao  se  sabe,  porque  a  cada 
frade  davao  certas  terras  de  que  comia  e  gastava  em  suas  ne- 
cessidades. 
f.287,v.  *Frei  Luis   de   Urreta  na  Historia  Eihiopica  que   fes  de   sua      3.  iterum   alia 

sagrada  Religiao  no  cap.  4  dis  que  fundou  este  convento  da  AUe-  crrwT^^hoc  monaatc- 
luja  fr.  Bertolameu  de  Tivoli  natural  de  Italia,  frade  da  Ordem  de  «um  refutantur. 
s.  Domingos.  A  causa  foi  que,  consagrandoo  em  Roma  em  Bispo, 
deraolhe  o  titulo  de  huma  cidade  chamada  Dangala  na  Nubia, 
a  qual  provincia  confina  com  Ethiopia  da  parte  do  Norte,  e  por  se- 
rem  estes  Nobis  antiguamente  christaos  e  naquelle  tempo  aver  la 
algum  rasto  da  fe  e  religiao  christaa,  determinou  como  bom  pastor 
acodir  a  suas  ovelhas,  e  assim  se  partio  de  Roma  o  anno  de  1330. 
Em  tanto  no  tempo  que  o  santo  Taquela  Haimanot  edificava  o  con- 
vento  de  Plurimanos,  levou  em  sua  companhia  dous  religiosos  sa- 
cerdotes  e  dous  irmaos  leigos  de  sua  mesma  ordem,  e  chegando  a 
Hierusalem  visitarao  os  santos  lugnares  e  dali  passarao  a  Nubia, 
onde  elle  e  seus  companheiros  converterao  muitos  infieis  mouros  e 
gentios,  e  reduzirao  innumeraveis  christaos.  Vendo  o  santo   Bispo 


588  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

tam  copiosos  frutos,  determinou  edificar  hum  convento  da  Ordem, 
que  servisse  de  seminario  de  Pregadores  apostolicos,  que  doutri- 
nassem  aquelles  povos.  Mas  nSo  achando  na  Nubia  sitio  a  propo- 
sito,  por  ser  esteril  e  falta  de  agoa,  particularmente  onde  elle  re- 
sidia,  foi  a  ver  hum  sumptuoso  templo  que  estava  perto  dentro  de 
Ethiopia  no  reino  de  Tigre  Mohon,  do  qual  era  fama  pubblica  e 
ti  adi^ao  recebida  que  o  edificou  a  rainha  *Sabba,  quando  tomou  de  f.  2h^. 
Jerusalem,  e  he  tra^ado  em  figura  de  crus  em  significapao  do  mi- 
sterio  da  Santa  Crus  que  Deos  Ihe  revelou. 

A  terra  onde  estava  este  templo  era  fructifera  e  vigosa,  cheia 
de  arvoredos  fermosissimos  e  de  esmaltes  e  artificiosas  la^adas  de 
rios  e  fontes,  poUo  que  Ihe  agradou  muito  ao  bom  prelado,  e  assim 
mandou  hum  dos  sacerdotes,  que  se  chamava  Florencia,  com  hum  dos 
irmaos  ao  Preste  Joao,  que  era  Phehpe  8,  e  pediolhe  de  merce 
aquelle  templo  e  o  termo  necessario  pera  a  funda^ao  do  convento.  0 
Preste  Joao  com  grande  amor  e  vontade  Ihe  deu  o  templo  e  quanta 
terra  fosse  necessaria,  nao  s6  pera  a  casa  senao  pera  os  jardins,  hortos 
e  sementeiras  pera  sua  sustenta^ao  e  mandou  que  se  Ihe  pagassem 
todos  os  gastos  do  edificio,  porque  teve  por  grande  misericordia  de 
Deos,  que  quisessem  edificar  mosteiro  em  seu  senhorio,  vendo  que 
erao  frades  Dominicos,  aos  quais  de  tempos  passados  tinhao  muita 
devagao  em  Ethiopia ;  acuderaolhes  tambem  os  Religiosos  de  Plu- 
rimanos  como  irmaos  e  filhos  do  grande  Padre  sam  Domingos;  e 
em  particular  Ihes  foi  unico  padroeiro  s.  Taquela  Haimanot. 

Com  tam  bom  despacho  folgou  muito  o  Bispo  e  come^ando  elle 
por  sua  mao  a  abrir  os  alicerces  do  mosteiro,  se  ouvirao  no  ar  vozes 
angelicas  que  com  suave  armonia  cantavao  Alleluja,  Alleluja,  e  por 
este  tam  protentoso  milagre  Ihe  ficou  o  nome  de  Alleluja. 

Estara  do  convento  de  Plurimanos  mais  de  700  *legoas,  porque  U^^-^- 
no  meio  delles  esta  quasi  toda  Ethiopia,  e  tem  este  convento  7000  re- 
ligiosos,  e  sua  cerca  nove  milhas  de  roda,  e  a  fora  do  convento 
principal  estao  tambem  dentro  della  outros  seis,  cada  hum  de  mil 
e  mais  religiosos  com  todas  suas  officinas  e  edificios  necessarios, 
igreias,  crastas,  dormitorios,  refeitorios,  cozinhas  e  as  demais  cousas 
que  se  requerem,  e  em  cada  convento  ha  prior  e  superior  e  os  de- 
mais  officiais. 

As  festas  de  s.  Domingos  vao  todos  os  conventos  em  pricisao 
a  igreia  da  AUeluia,  onde  cantao  os  officios  divinos  e  depoes  cada 
comunidade  se  torna  a  seu  convento.  Os  dias  que  nao  sao  de  festa 


LIVRO   II,   CAPITULO   XXI.  589 

cada  convento  por  sua  ordem  canta  hum  dia  as  horas  canonicas  na 
igreia  da  Alleluja,  ficando  os  outros  mosteiros  em  suas  proprias 
igreias.  Alguns  dias  comem  todos  iuntos  em  hum  refeitorio  que  tem 
pera  isso  mui  grande  da  mesma  sorte  desposto  que  o  do  con- 
vento  Plurimanos.  Dentro  da  serca  do  convento  de  Alleluia  ha 
muitos  bosques  e  muitos  despovoados,  onde  avera  mais  de  100  her- 
midas  com  frades  hermitaes  ao  modo  dos  do  conventos  de  Plurimanos. 

Dis  mais  o  Autor  pag.  68,  que  do  convento  da  AUeluia  e  de 
Plurimanos  fazem  os  frades  cada  anno  missoes  a  reinos  de  Mouros 
e  gentios  e  tambem  da  Ethiopia,  e  que  o  seguinte  dia  depoes  da 
festa  de  todos  os  Santos  nomeao  os  Priores  os  que  hao  de  ir,  e 
dizem  a  que  reino  e  cidade  e  a  companhia  que  cada  hum  ha  de 
levar  e  acustumao  de  ser  os  nomeados  mil  e  quinhentos  e  2  mil. 
f.  289.  *Os  do  convento  da  Alleluia  vao  a  Nnbia  ao  reino  de  Borno  e  a 
outros  reinos  ate  o  Cairo  e  os  Arabios.  Os  do  convento  de  Pluri- 
manos  vao  pregando  por  todos  os  reinos  de  Congo,  Angola,  Anzi- 
cana,  Baramas  e  as  muitas  provincias  que  ha  no  cabo  de  Boa  Espe- 
ran^a  ate  os  montes  da  Lua,  que  he  no  reino  de  Monomotapa, 
Maitagazo,  Sofala,  Arneta,  Tibut,  Sibit  e  outras  muitas  provincias, 
e  tambem  pellos  reinos  que  estao  pella  costa  do  Oceano  Oriental 
ate  o  Mar  Roxo,  que  sao  ao  pe  de  mil  legoas. 

Durao  estas  missoes  7  mezes  e  muitos  abrazados  com  o  zelo 
da  honrra  de  Deos  e  bem  do  proximo  estao  annos  na  missao,  pas- 
sando  ate  as  Indias  orientais  e  chegando  ao  reino  de  Siam,  Pegu, 
e  ao  gram  reino  da  China,  e  sao  mais  de  3000  legoas  de  ca- 
minho.  O  que  confirma  pag.  73,  dizendo  que  nos  papeis  que  tra- 
duzia  estava  escrito  que  no  convento  de  Plurimanos  se  achavao 
escrituras  antigas,  que  referiao  que  pelos  annos  de  1390  ouve  frades 
Dominicos  que  forao  pregando  ate  a  China  e  que  alli  forao  marti- 
rizados  pellos  gentios. 

Tambem  dis  pag.  88  que  achou  escrito  em  huma  relagao  que 
se  deu  a  sanctidadc  de  Gregorio  13,  que  no  mes  de  novembro  do 
f.289,v.  anno  de  1580  estava  na  pracja  *principal  da  cidade  de  Meca  grande 
multidao  de  mouros  ouvindo  a  hum  seu  que  Ihes  pregava,  e  que 
a  sacjao  chegarao  alli  dous  frades  Dominicos  do  convento  da  Al- 
leluia,  que  hiao  pregando  e  comprindo  a  obediencia  de  sua  missao; 
e  vendo  aquella  gente  que  ouvia  tantos  disparates  e  a  perdigao  de 
tantas  almas,  animados  com  o  esfor^o  que  o  amor  divino  Ihes  dava, 
romperao  por  entre  a  gente  com  suas  cruses  nas  maos  e  desmen- 


590  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

tindo  ao  infernal  Alfaqui  desenganavao  a  todos  do  erro  em  que 
estavao  a  que  se  hiao  ao  inferno.  Acodirao  outros  muitos  Alfaques  e 
amotinarao  a  gente  contra  os  religiosos  e  assim  os  prenderao  e  le- 
vavao  com  grande  grita  ao  carcere ;  mas  achandose  ali  mais  de  dous 
mil  mercadores  dos  reinos  de  Africa  dos  que  acustumao  asse  [szc~\ 
aposentar  no  convento  da  AUeluia,  a  quem  os  padres  daquella  santa 
casa  tinhao  obrigado  com  boas  obras  passando  por  ella,  e  conhe- 
cendo  que  erao  do  convento  da  AUeluia,  arremeterao  por  entre  a 
gente  com  mao  armada  e  tirarao  os  religiosos  e  levarao  a  seu  bairro 
que  he  cercado,  e  alli  os  defenderao,  dizendo  que  aquelles  religiosos 
erao  da  AUeluia,  onde  hospedavao  os  mercadores  que  ali  estavao, 
sem  a  qual  ospedajem  e  religiosas  esmolas  era  impossivel  chegar 
as  mercadorias  a  cidade  de  Meca.  Com  isto  e  outras  rezoes  iulgou 
*o  Xeque  ou  governador  poUa  quieta^ao  de  todos  que  fossem  logo  f.  290. 
da  cidade  desterrados,  e  assim  o  fizerao,  dandolhes  os  mercadores 
gente  que  os  guardassem  ate  que  estivessem  fora  de  perigo. 

Ate  aqui  sao  palavras  do  Autor,  em  que  nao  ha  cousa  que  nao 
seia  mera  fabula;  porque  primeiramente  nao  fundou  o  convento  da 
AUeluia  fr.  Bertolameu  de  Tivoli  natural  de  Italia,  senao  Abba  Sa- 
muel  natural  do  reino  de  Tigre,  como  assima  vimos ;  nem  o  con- 
vento  he  de  frades  de  Abba  Taquela  Haimanot,  se  nao  de  Abba 
Stateus ;  nem  no  tempo  que  frei  Bertolameu  partio  de  Roma,  que 
dis  foj  no  anno  de  1330  e  tantos,  edificava  Abba  Taquela  Haima- 
not  o  convento  de  Debra  Libanos,  a  que  elle  chama  Plurimanos, 
poes,  como  vimos  no  fim  do  cap.  precedente,  nao  o  edificou  senao 
o  outro  frade,  que  se  chamava  Ezechias,  57  annos  depoes  de  morrer 
Taquela  Haimanot;  nem  o  templo  estava  edificado  em  crus,  como 
assima  vimos,  nem  podia  dar  terras  pera  o  convento  o  Preste  Joao 
Phelipe  8,  porque,  segundo  me  affirmou  o  emperador  Seltan  Qagued, 
nunca  ouve  qua  Emperador  deste  nome;  nem  se  chama  convento 
da  Alleluja,  senao  pollo  que  affirma  sua  historia  que  disse  Abba 
Antonz  a  seus  dicipolos.  E  ia  ha  annos  que  nao  resi*dem  neste  con-  f.29o,v 
vento  mais  de  10  frades,  e  nao  sete  mil,  como  elle  dis;  nem  do 
numero  certo  dos  que  avia  antigamente  ha  oie  memoria,  porque 
nem  suas  historias  o  declarao,  nem  os  mesmos  frades  sabem  dizer 
mais  que  o  que  assima  referimos. 

Os  edificios  do  mosteiro  tambem  pintou  como  quis,  porque  nunca 
ouve  tais  repartimentos,  senao  casinhas  redondas,  afastada  huma  de 
outra  commo  dissemos. 


LIVRO  II,  CAPITULO   XXI.  59 1 

Tambem  he  falso  o  que  dis  das  missoes  que  fazem  cada  anno 
os  frades  destes  conventos  as  provincias  que  nomea,  porque  nSo 
somente  nSlo  forflo  la  nunca,  mas  nem  o  nome  dellas  sabem.  E  se- 
gundo  me  aflBrmou  o  emperador  Seltan  Qagued,  nunca  passarflo  do 
reino  de  Narea  de  que  falamos  assima;  e  dali  ao  cabo  de  Boa  Espe- 
ran^a,  onde  elle  os  fas  chegar,  ha  matos  e  desertos  infinitos  habi- 
tados  de  fieras  que  se  nSo  podem  passar.  Quanto  agora  nem  huma 
legoa  de  sua  casa  irSo  a  confessar  se  nSo  acharem  premio.  So  hum 
frade  vi  que  andava  entre  huns  gentios,  que  estao  no  reino  de 
Gojam,  insinando;  e  por  isso,  como  cousa  rara,  Ihe  faziSio  [su']  muitas 
honrras  e  favores  o  emperador  Zadenguil;  mas  depoes  deixou  o 
habito  e  andava  em  hum  fermoso  cavalo  muito  bem  vestido  de  se- 
cular,  e  disse  diante  dc  mim  a  huns  homens  grandes,  que  comendo 
f.  291.  *e  bebendo  nSo  se  podia  estar  sem  molher. 

Aqui  tambem  poem  o  Autor  os  montes  da  Lua  no  reino  de 
Monomotapa,  e  porque  JoSlo  Botero  os  pos  no  mesmo  reino,  dis 
elle  na  pag.  298  do  primeiro  tomo  que  devia  de  desvariar  com  al- 
guma  febre;  e  alli  e  na  pag.  246  os  poem  em  Gojam  e  affirma  que 
delles  nace  o  rio  Nilo.  Ao  que  dis,  que  nos  papeis  que  truduzia 
estava,  que  no  convento  de  Plurimanos  avia  escrituras  antigas,  que 
referiao  como  frades  Dominicos  forSo  a  pregar  ate  a  China,  re- 
spondo  que  os  frades  daquelle  convento  nao  sabem  dar  rezao  de  tais 
escrituras,  nem  que  ouvesse  nunca  em  Ethiopia  frades  de  sam  Do- 
mingos.  como  ia  dissemos.  Nem  he  niuito  que  achasse  naquelles 
papeis  esta  patranha,  poes,  come  affirma  pag.  8,  tambem  estavao 
assinados  pollo  mestre  de  Novicjos  do  convento  da  Alleluia  fr.  Mar- 
cos  natural  de  Floren^a  e  frei  Miguel  de  Monrrojo  e  frei  Matheu 
Caravajal  do  mesmo  convento  filhos  de  Hespanhoes,  e  toda  via, 
como  vimos  no  cap.  i7,nunca  ouve  alli  tais  frades.  Quanto  ao  que 
dis  que  achou  na  rela^ao,  que  se  deu  a  santidade  de  Gregorio  13, 
que  dous  frades  de  s.  Domingos  do  convento  da  Alleluia  entrarao 
em  Meca  e  desmentirao  ao  Faqui  etc,  la  em  Roma  saberao  desta 
Rela^ao.  O  que  eu  ouvi  a  muitos  mouros,  estando  cativo  8  dias 
de  caminho  dentro  das  portas  do  estreito  de  Meca,  he  que  naquella 
cidade  nao  deixao  entrar  christao  de  nenhuma  maneira  e  esta  posta 
f.29i,v.  *pena  de  morte,  e  se  entra  algum  incubertamente  e  o  achao,  o 
matao  sem  nenhuma  remissao ;  por  onde  mal  aviao  de  deixar  entrar 
frades  com  seus  habitos  e  cruses  nas  maos,  e  se  toda  via  quiserem 
affirmar   que   aquelles   entrarao  e  que  a  informacao  he   certa,   re- 


592  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

spondo  que  ao  menos  duas  cousas  achamos  qua  patentemente  fal- 
sas:  huma  que  fossem  frades  de  sam  Domingos  do  convento  da 
Alleluia,  porque  nelle  nunca  ouve  frades  de  sam  Domingos ;  outra 
que  os  mercadores  mouros  que  dos  reinos  da  Africa  vao  a  Meca 
passem  pollo  convento  da  AUeluja,  e  se  agazalhem  ali.  Nem  pode 
ser  maior  disparate  que  este,  como  o  veremos.  He  verdade  que 
destes  mosteiros  vao  os  frades  em  romaria  a  Hierusalem  e  alguns 
passao  dali  a  Roma,  mas  em  missOes  a  pregar,  como  elle  dis,  nao 
ha  tal  cousa. 

Do  modo  com  que  agazalhao  aos  mercadores  no  convento  da 
Alleluia  trata  o  Autor  difusamente  pag.  6i,  e  dis  que  este  con- 
vento  he  a  chave  quasi  de  toda  Africa,porque  todos  os  que  vienen 
ao  poente  della  pera  contratar  no  Cairo  e  nas  Arabias  e  todos  os 
Mouros  que  vao  a  casa  de  Meca  e  os  mercadores  de  Monicongo, 
Borno,  Biafara  e  outros  muitos  reinos,  que  ali  nomea,  ate  os  de 
Fez,  Marrocos  e  os  da  gran  Libia  inferior  nao  podem  caminhar  a 
Egypto  nem  ao  grao  Cairo,  nem  visitar  a  casa  de  Meca,  sem  passar 
pello  convento  da  Alleluia;  porque  o  demais  *he  inhabitavel.  Entre  f-  292. 
mercadores  e  passageiros  e  gente  de  servi^o  serao  10  mil  homens 
os  que  vao  e  levarao  carregados  4^5  mil  camelos  6  mil  machos, 
3  mil  jumentos.  Antes  de  chegar  ao  convento  da  Alleluia  pasao 
mais  de  20  iornadas  sem  achar  gota  de  agoa,  e  depoes  do  convento 
atravessao  quasi  outras  tantas  sem  ella,  e  assim  Ihes  he  for^ado 
deteremse  ali;  e  os  religiosos  os  recebem  com  muita  charidade  e 
dao  estrebarias  pera  todas  suas  azemalas  e  comida  pera  ellas  de 
datiles,  cevada  e  outros  graOs  e  a  elles  hospedao  em  hospedarias, 
que  pera  isso  tem  de  grande  capacidade,  e  Ihes  dao  camas  e  comida 
de  pao,  came,  arros  e  fruta;  e  com  todo  o  demais  necessario,  e 
aos  que  vem  doentes,  os  levao  ao  hospital.  E  isto  sem  enteresse  al- 
gum.  Todos  estes  mercadores  e  passageiros  sao  mouros  ou  Judeus 
ou  gentios  e  estao  ali  4  ou  6  dias,  onde  se  provem  de  agoa  e  das 
cousas  necessarias  pera  sua  sustenta^ao,  e  tudo  se  Ihes  da  de  graga, 
mas  sompre  elles  dao  aos  religiosos  das  mercancias  que  trazem  e 
Ihes  tem  muita  devagao  e  chamao  santos  e  a  s.  Domingos  respei- 
tao  muito,  porque  vem  que  os  Religiosos  o  reverenciao  chamandoo 
Padre,  e  em  quanto  ali  estao,  Ihes  pregao  e  insinao,  com  o  que  muitos 
delles  se  convertem  a  fe  de  Christo. 

Isto  he  em  suma  o  que  ali  dis  frei  Luis  de  Urreta ;  mas  nao 
pode   ser   fabula  *mais  fabulosa;    porque    nem   passa,  nem  passou   f.292,v, 


LIVRO   II,  CAPITULO   XXI.  593 

nunca  tal  cafila  de  mercadores  poUo  convento  da  Alleluia,  como 
affirmSo  os  mesmos  frades  e  eu  de  19  annos  a  esta  parte  posso 
testemunhar  que  nem  vi,  nem  ouvi  tal  cousa,  com  estar  parte  deste 
tempo  na  residencia  que  temos  hum  dia  de  caminho  deste  mosteiro, 
nem  ali  ha  sinal  de  tais  estrebarias  e  agazalhados,  nem  em  todas 
aquellas  terras  ha  huma  palmeira,  quanto  mais  tanta  abundancia  de 
datiles  que  os  dessem  as  azemolas,  antes  por  grande  presente  os 
trazem  os  mouros  ao  Emperador  de  Arabia  e  algumas  outras  par- 
tes;  e  muito  menos  se  acha  arros,  porque  o  nao  ha  em  quantas 
terras  senhorea  o  Emperador.  Ja  hospital  onde  metessem  os  doentes 
mouros  e  Judeus  da  quella  cafila  mal  o  poderao  ter,  poes  nem  ainda 
pera  os  christaos  o  ha  em  toda  esta  Ethiopia;  nem  sao  tao  faltas 
de  agoa,  como  elle  dis,  as  terras  arroda  do  mosteiro,  que  por  qual- 
quer  parte  que  se  va  a  elle  em  bem  de  legoas  nao  se  achara  hum 
dia  de  caminho  sem  agoa,  senao  for  vindo  do  reino  que  chamao 
Dequin ;  mas  deixando  tudo  isso,  que  maior  disparate  pode  ser  que 
affirmar  que  pera  irem  ao  Cairo  e  a  Meca,  os  mercadores  das  Ara- 
bias,  de  Monicongo,  Borno,  de  Fez,  Marrocos  e  da  Libia  Ihes  seia 
forcjado  de  toda  a  maneira  passar  pollo  convento  da  Alleluia,  por- 
f.  293.  que  aviao  de  rodear  muitas  centenas  *de  legoas  e  passar  por  grandes 
desertos  e  vastissimosm  atos[?J.  E  pera  que  o  leitor  milhor  veia  isto, 
declararei  em  que  parte  do  reino  de  Tigre  esta  o  convento,  demar- 
candoo  por  algum  porto  do  Mar  Roxo ;  que  pera  falar  iustamente 
por  graos,  nem  qua  temos  instrumentos  pera  poder  tomar  a  altura, 
nem  cousa  em  que  o  ver.  E  o  porto  que  vem  mais  a  proposito  he 
o  de  Ma^ua,  que  comummente  chamao  Dalec,  porque  a  alfandega 
de  Magua  estava  antiguamente  em  outra  ilha  que  se  chama  Dalec. 
Vindo  poes  do  porto  de  Magua  pera  o  convento  da  AUeluia,  se  ca- 
minha  quasi  ao  Oessudueste,  se  falaremos  como  os  mareantes,  que 
he  muito  mais  pera  a  bando  [sic]  de  occidente,  que  peraadosul; 
e  se  caminharem  bem,  chegarao  em  quatro  dias  e  se  davagar,  em 
sinco.  Quanto  o  reino  que  elle  ehama  Borno,  conforme  ao  que  dis 
em  quantas  partes  fala  delle,  nao  pode  ser,  senao  o  que  qua  chamao 
Dequin,  e  aos  naturais  delle  Bal6us,  e  este  reino  fica  muito  mais  perto 
do  Cairo  que  o  convento  da  AUeluia,  de  maneira  que  quem  vem 
de  Borno  pera  este  convento,  nao  vai  pera  o  Cairo,  antes  se  afasta 
delle  e  torna  pera  tras ;  por  onde  em  tudo  quanto  aqui  dis  o  autor 
se  enganou  muito. 


C.  Beccari.  /\er.  Aeih,  Scrt^f,  occ,  ined,  —  II.  75 


CAPITULO  XXII. 

£m  que  se  declara  quam  sem  fundamento  contou  frei 
Luis  de  Urreta  entre  os  Santos  de  sua  sagrada  Re- 
ligiao  os  frades  de  Ethiopia,  cuias  vidas  refere  no 
segundo  Tomo. 

f.293,v.  *0  que  principalmente  pretende  frei  Luis  de  Urreta  no  2°  Tomo       i.  Compendio  rc- 

de  sua  Historia  Ethiopica,  he  mostrar  que  a  Religiao  do  glorioso  1^^^  ^ctonim 


ae- 


s.  Domingos   tem  muitos  e  prodigiosos   santos  nas  terras  que   se-  ^iopum  ex  ordine 

8.  Dominici  ab  Ur- 

nhorea  o  Preste  JoSo :  e  assim,  come^ando  a  tratar  de  suas  vida[s  j  reu  confictas,  eas- 

na  pag.    129,  dis:  «  Trahido   nos   ha  la  coriente  y  discurso  de  la  biUas*™»?  amYndal 

«  Historia  a  lo  que  tanto  deseava,  que  es  escrivir  las  heroicas  vidas  ^^  paucis  demon- 

«  e  prodigiosas  maravilhas  de  aquellos  ilustres  y  gloriosos  Santos 

«  divinos  fenizes  de  la  Ethiopia,  soles  que  hermosean  y  alumbran  ol 

«  cielo   estrelado  de  la   Religion   del  glorioso   Padre  s.  Domingo. 

«  Solo  a  esto  fin  corria  esta  prolixa  narracion ;  a  solo  este  blanco 

«  mirava  ».  E  na  pag.  105  affirma  che  s6  nesta  terra  de  Ethiopia 

ha  mais  martires  que  em  todo  o  restante  da  Religiao  de  s.  Domin- 

gos ;  com  serem  os  que  ha  tido  muitos  milhares,  e  ainda  mais  quo 

todas  as  Religioes  iuntas,  pera  que  os  maxtires  dos  dous  conventos 

Debra  Libanos  e  da  Alleluia  chegao  ao  numero  de  trezentos  mil.  Mas 

pera  que  se  veia  claro  quam  sem  fundamento  poem  entre  os  Santos 

de  sua  sagrada  religiao  os  frades  destes  conventos,  que  elle  cano- 

niza  por  tais,  referirei  aqui  brevemente  algumas  cousas  dcis  muitas 

que  conta  delles,   deixando   a  vida   de   Abba  Taquela   Haimanot, 

por  que  elle  come^a,  porque  a  pusemos  assima  no  capitulo  19. 


596  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

2.  vita  beati   fn  Come^ando  poes  por  fr.  Phelipe,  cuja  vida  poem  no  cap.  lo, 

scipuf^TaclA  Hail  ^is  delle  pag.  169,  que  he  santo   martir  e  filho  de  hum  Rei  cha- 
man6t,  xnuncrc  su-  mado  Glariacos   em   Ethiopia  e  que  como  chegou  *aos  annos  de  f-  294- 

premi  fidci   inquisi- 

toris  insignitus,   ct  descri^So  o  levarSo  seus  paes  el  Rei  e  a  Rainha  com  grande  acom- 
Hs^^^uT^*^  miracu-  panhamento  ao  convento  de  Debra  Libanos,  que  elle  chama  Pluri- 

manos,  pera  que  recebesse  o  habito  de  s.  Domingos  e  que  Iho 
deu  o  santo  padre  Taquela  Haimanot  com  grande  contentamento, 
conhecendo  por  espirito  profetico  os  grandes  thesouros  que  a  divina 
misericordia  tinha  guardados  naquelle  menino,  e  que  aos  16  annos 
de  sua  idade,  depoes  de  alguns  de  noviciado,  fes  profissSlo  nas  mSlos 
do  prelado  o  santo  Taquela  Haimanot  com  grandes  afFectos  de  de- 
va^ao  e  a  seu  tempo  recebeo  as  ordens  da  mao  do  Patriarcha  de 
Ethiopia  chamado  Jacobo  e  disse  a  primeira  missa  no  convento 
Debra  Libanos,  e  quando  alevantou  o  ss."**  Sacramento,  o  virao 
todos  subir  no  ar  mais  de  dous  covados  e  estar  o  corpo  suspenso 
em  alto;  o  que  elle  nao  advertio  nem  soube  ate  que  o  Prior  Iho 
disse,  perguntandolhe  o  caso;  e  depoes  quando  avia  de  dizer  missa 
(da  maneira  que  a  seu  mestre  Taquela  Haimanot)  decia  hum  anjo 
a  Ihe  ministrar  e  aiudar  a  ella,  trazendolhe  do  ceo  o  pao  e  o  vinho, 
que  avia  de  consagrar  e  assistia  todo  o  tempo  que  durava  aquelle 
santo  sacrificio.  E  mais  adiante  pag.  179  dis:  Este  glorioso  santo  foi 
sinalado  com  o  sinal  santo  da  Crus  por  dous  dedos  de  Christo  na 
morte  do  santo  Taquela  Haimanot,  e  Ihe  socedeo  no  priorado  e 
iuntamente  no  ofiicio  e  dignidade  de  inquisidor  apostolico,  como  o 
foj  Taquela  Haimanot,  e  o  sao  todos  os  priores  do  convento  Debra 
Libanos  e  o  de  Alleluia.  *Sendo  ia  inquisidor,  socedeo  que  hum  Rei  f.294,v. 
christao,  cuio  reino  estava  perto  do  convento  Debra  Libanos,  soieito 
ao  Preste  Joao,  casou  publicamente  com  duas  molheres  e  vivia  com 
ellas,  sendo  escandolo  publico  a  toda  Ethiopia.  Acodio  o  santo  in- 
quisidor  a  isto  e  iuntandose  com  o  Patriarcha  e  alguns  religiosos 
em  huma  igreia,  o  mandou  chamar  e  o  reprehendeo  e  amea^ou  com 
excomunhOes  e  que  faria  que  o  Preste  Joao  o  privasse  do  reino,  se 
nao  deixasse  a  manceba  e  ficasse  com  a  legitima  molher;  e  nao 
aproveitando  nada  isto,  o  excomungou  depoes  na  igreia,  apagando 
candeas  e  tangendo  campainhas  e  mandando  dar  noticia  disto  ao 
povo.  Emfadouse  tanto  disto  el  Rei,  que  aiuntou  logo  a  gente  de 
seu  paQo  e  com  grande  ira  foi  a  igreia,  onde  estava  o  conselho 
da  Inquicigao,  e  comecjando  as  cutiladas,  fugio  o  Patriarcha  e  o  In- 
quisidor  com  seus  religiosos  saindo  algims  feridos,  e  foraose  pera 


\ 


LIVRO  II,    CAPITULO  XXII.  597 

outro  reino ;  mas  nao  Ihe  faltou  ao  Inquisidor  modo  pei  a  fazer  fixar 
a  excomunhao  del  Rei  nas  igreias  e  lug^ares  publicos  de  sua  corte ; 
e  nem  isto  bastou  pera  que  nao  perseverasse  em  seu  peccado  tres 
annos,  com  o  castigar  Deos  nao  dando  chuva  em  todo  este  tempo 
naquelle   reino.  Pello  que  S.  Phelipe   iuntou  hum  g^ande  exercito 
dos   luguares   soieitos   a   Debra   Libanos  com  intento  de  Ihe  fazer 
guerra  como  a  scismatico.  Vendo  el  Rei  que  hia  com  tam  grande 
f.  295.  exercito  e  emxergando  em  seus  vassalos  que  nao  Ihe  aviao  *de  aiu- 
dar,  mandou  embaixador  ao  santo  Inquisidor  dizendo,  que  se  escu- 
sassem   as   mortes   que  de  for^ado  avia  de  aver  na  giierra  e   que 
iulgasse  o  Preste  Joao,  que  elle  estaria  polla  sentencja.  Veio  nisto 
o  Inquisidor  e  foj  ao  Preste  Joao  e  el  Rei  mandou  seu  procurador, 
que  era  hum  frade  apostata,  e  ouvindo  o  Preste  Joao  a  hum  e  ao 
outro,  deu  senten^a,  mandando  a  el  Rei,  que  logo  deixasse  a  2*  mo- 
Iher,  com  que  estava  amancebado.  Castigou  dali  a  pouco  Deos  ao 
frade  procurador  del  Rei,  cobrindoo  de  lepra  e  morreo  comido  de 
bichos ;  o  que  vendo  o  povo  e  conhecendo  que  era  castigo  de  Deos, 
se  come^ou  a  amotinar  contra  el  Rei  e  negarlhe  a  obediencia ;  poUo 
que  el  Rei  dissimulando  mandou  dizer  ao  Inquisidor  que  fosse  pera 
o  absolver  e  quietar  seu  reino  e  que  faria  o  que  Ihe  mandasse.  Pa- 
receolhe  ao  santo  Inquisidor  que  falava  de  cora^ao  e  assim  foi  com 
seus  companheiros ;  mas  como  chegou  a  el  Rei,  mandou  despir  ao 
santo  e  que  o  amarrassem  a  huma  columna  e  que  o  acoutassem;  o 
que  fizerao  seus  criados,  de  maneira  que  ficou  como  morto  e  por 
tal  o  entregarao  a  seus  frades  para  que  o  enterrassem.  Mas  levan- 
doo  a  Debra  Libanos  quis  Deos  que  tornou  e  convaleceo.  Sabendo 
isto  el  Rei  scismatico,  foj  com  soldados  ao  convento  e  achando  a 
todos   desapercebidos,  entrou   em   busca  do  Santo,  e  achandoo   na 
igreia  prostrado  diante  do  ss.™**  Sacramento  encomendando  sua  alma 
ao  Senhor,  mandou  que  assim  como  estava  o  matassem  as  panca- 
f.295,v.   das;  *e  no   ponto   que   saio   sua   alma  do  corpo,  se  ouvirao  no  ar 
doces  musicas  e  suaves  cantigas.  Foj  seu  martirio  a  4  de  novembro, 
e  neste  dia  se  celebra  sua  festa  em  toda  Ethiopia. 

Estas  e  outras  cousas  dis  o  autor  naquelle  capitulo,  que  deixo  3.  De  beato  patre 
por  nao  cansar  ao  leitor,  no  que  nao  fas  a  proposito,  e  poUa  mesma  nasticam  vitomMoI 
rezao  nao  referirei  mais  que  em  summa  o  que  difusamente  fala  dos  f«w«a  «^*>  TaclA 
demais  frades  de  Debra  Libanos.  b\is,  supemis  visis 

No  cap.  1 1  trata  o  autor  de  Elija  e  dis  que  foi  Inquisidor  e  "^*  «^^"^^^"  <^i»~«^- 
natural  da  famosa  cidade  de  Saba,  filho  de  Reis  soieitos  ao  Preste 


598  mSTOKIA   DE   ETHIOPIA 

Joao,  e  que  sendo  de  lo  annos  pedio  o  habito  ao  santo  Taquela 
Haimanot,  e  Iho  derao  com  grande  gosto,  porque  Ihes  constava 
que  erao  chamamentos  divinos,  e  chegando  aos  annos,  em  que  avia 
de  receber  o  caracter  sacerdotal,  se  tinha  por  tam  indigno  de  tao 
alta  dignidade,  que  foj  necessario  que  o  santo  Taquela  Haimanot 
Ihe  mandasse  por  obediencia  que  se  ordenasse  e  depoes  antes  de  dizer 
a  primeira  missa,  pedio  licenga  pera  se  ir  aparelhar  ao  Ermo,  onde 
esteve  40  dias  com  suas  nojtes  sem  comer  nem  beber,  posto  sempre 
em  fervorosa  ora^ao,  na  qual  foj  levado  em  espirito  ao  ceo,  onde 
vio  e  ouvio  cousas  misteriosas ;  e  estando  em  seu  rapto  la  no 
ceo,  celebrou  sua  primeira  missa  cantando  os  anjos  e  servindo  de 
ministros  e  padrinhos  os  24  velhos  tam  celebrados  no  Apocalipsis, 
vestidos  de  branco  com  coroas  de  ouro  nas  cabegas  e  harpas  nas 
maos  com  suaves  perfumes.  Tambem  *o  santo  prior  Taquela  Hai-  f.  296. 
manot  foi  no  mesmo  tempo  arrebatado  ao  ceo  e  se  achou  presente 
a  missa  nova  e  gozou  daquella  musica  e  suavidade.  Depoes  o  mandou 
chamar  o  Prior  e  perguntandolhe  onde  tinha  estado,  nao  se  atrevia 
a  descobrir  as  merces  que  N.  Senhor  Ihe  tinha  feito,  ate  que  o 
santo  Prior  Ihe  disse,  como  se  tinha  achado  presente  no  ceo  a  sua 
missa  nova,  mas  que  com  tudo  isso  queria  que  a  cantasse  no  con- 
vento  o  dia  seguinte  e  que  desse  a  comunhao  a  todos  os  religiosos 
conforme  ao  custume  de  Ethiopia,  e  chegada  a  hora  se  revestio  e 
querendo  o  samchristao  aparelhar  as  hostias  e  o  vinho,  disse  elle : 
Nao  he  necessaria  esta  diligencia  que  por  outros  serao  mais  dig^a- 
mente  providas.  E  logo  apareceo  visivelmente  diante  de  todos  o 
archanjo  s.  Gabriel,  que  trouxe  hostias  pera  todos  os  que  aviao 
de  comungar  de  pao  mui  branco,  e  iuntamente  vinho;  e  nao  s6 
aquella  ves  fes  isto  o  anjo.  senao  sempre  que  o  santo  El<^a  avia 
de  celebrar.  Quando  alevantou  o  ss."**  Sacramento,  se  alevantou  no 
ar  sinco  covados  com  admira^ao  de  s.  Clara  e  os  mais  que  estavao 
presentes,  e  nao  s6  nesta  missa,  mas  em  outras  muitas  Ihe  socedeo 
o  mesmo. 

Depoes  do  glorioso  martirio  de  s.  Phelipe  foi  feito  prior  de 
Debra  Libanos  e  foi  este  santo  hum  dos  que  Christo  N.  S.**^  sinalou 
com  seus  dedos  na  testa  com  o  sinal  da  santissima  crus  em  pro- 
nostico  de  que  avia  de  ser  Prior;  o  qual  cargo  governou  40  annos 
e  era  tam  grande  sua  sanctidade  *que  o  Preste  Joao  o  escolheo  por  f.29^ 
seu  confessor  e  fes  tam  bem  seu  officio  e  com  tanta  satisfa^SLo  de 
toda  Etiopia  e  gosto  do  Emperador,  que  de  entao  ate  estes   tem- 


LIVRO  II,   CAPITULO   XXII.  599 

pos  ordinario  he  confessaremse  os  Prestes  JoSes  com  os  frades  de 
Debra  Libanos.  Forao  muitos  os  milagres  que  obrou  em  sua  vida, 
e  vendose  ia  velho  e  cansado,  huma  noite  da  assump^Slo  da  Vir- 
gem  sacratissima,  estando  em  ora^ao,  pedio  a  Deos  com  muitas  la- 
grimas  o  levasse  pera  sy,  e  estando  nesta  fervorosa  peti^ao,  Ihe 
apareceo  Nossa  Senhora  e  Ihe  disse  que  se  alegrasse  que  daquelle 
dia  a  hum  anno  deixaria  esta  miseravel  vida,  subindo  a  gozar  da 
gloria  do  ceo.  Com  esta  nova  ficou  elle  mui  alegre  e  gastou  aquelle 
anno  em  ora^ao  e  contempla^ao  e,  chegada  a  hora  derradeira  de 
sua  perigrina^ao,  estando  os  religiosos  iuntos,  Ihes  fes  huma  pra- 
tica  animandoos  ao  servicjo  de  Deos  e  a  guarda  de  sua  religiao,  e 
tendo  recebidos  com  muita  deva^ao  os  sacramentos  da  igreia,  dia 
da  assump^ao  de  Nossa  Senhora,  acabou  sua  sanctissima  vida,  e 
puserao  seu  santo  corpo  em  huma  caixa  de  ouro  guamecida  de 
pedras  riquissimas  iunto  ao  glorioso  s.  Phelipe  e  santo  Taquela 
Haimanot.  Morreo  aos  annos  de  nossa  redemgao  1416,  sendo  de 
idade  de  70  e  tantos,  avendo  sido  prior  de  Debra  Libanos  40. 
f.  297.  E  no  cap,   12  refere  frei  Luis  de  Urreta  *a  vida  de  Abba  Sa-      ^.DcAbbASamucl 

,,,  r-*»j  ^i-  rjj  j  suprcmo  fidci  inqui- 

muel  e  tambem  o  fas  mquisidor  apostolico  e  frade  da  sagrada  re-  sjtorc  mira  narran- 

ligiao  de  s.  Domingos  e  dis  que  foi  natural  de  huma  cidade  chamada  *"^- 

Esumin  soieita  ao  Preste  Joao   em  Ethiopia.  Seu  paj  se  chamava 

Estevao,  e  sua  maj    Isabel,  os  mais  illustres  daquella  cidade.  Aos 

18  annos  de  sua  idade  recebeo  o  habito  da  ordem  dos  Pregadores 

no  convento   Debra   Libanos,  e  acabado  o  anno   do  noviciado   fes 

profissao  e  resplandeceo   com  muitas  e  grandes  virtudes  e  obrou 

por  elle  Deos  muitos  milagres.  Estava  huma  ves  assentado  ao  longo 

de  hum  caudaloso  rio  dos  muitos  que  nacem  da  grande  lagoa  Ca- 

fates,  os  quais  crecem  como  o  Nilo  e  lendo  pollo   evangelho   de 

sam  Joao  com  o  ruido  das  agoas  adormeceo  e  estando  dormindo, 

cresceo  o  rio,  como  o  custumao  fazer  todos  os  que  saiem  daquella 

alagoa;  sairao   as   agoas  dos    limites   ordinarios   e   entrando   polla 

terra  cobrirao  todos  aquelles  campos  por  todas  as  bandas  e  o  Santo 

ficou  cercado  de  agoa  muito  alta,  ficando  feito  como  hum  aposento, 

servindo  as  agoas  de  paredes  de  cristal  mais  firmas  que  se  forao 

diamaes,  e  esteve  ali  ate  que  tornou  a  vazar  a   enchente,   sem   se 

molhar  seu  vestido,  nem  o  livro. 

Depoes  de  estar  alguns  annos  em  companhia  dos  demais   re- 
ligiosos   em   Debra   Libanos,   pedio   hcen^a   a   seu  prelado  e  com 
^fj;!  hum  companheiro  que  o  quis  seguir  se  foi  a   hum  ermo  mui   afa- 

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6oo  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

stado,  onde  viverao  em  covas  40  annos,  comendo  ervsts  cruas  huma 
ves  ao  dia  e  bebendo  agoa,  *e  cada  dia  por  espa^o  de  3  horas  f.^gr^. 
estava  arrebatado  em  espirito  no  ceo  em  companhia  dos  anjos,  e 
hum  dos  24  velhos  de  que  fas  men^Slo  s.  Joao  no  Apocalipsis  Ihe 
dava  a  santa  comunhao  da  Eucharistia.  Socedeo  huma  ves  que 
cresceo  a  grande  lagoa  Cafates,  como  acustuma,  e  saio  com  tam 
grande  impito  de  seus  limites  ordinarios,  que  com  estar  o  Santo 
algfumas  legoas  afastado  della,  o  alquan^ou  e  derrubou  huma  ca- 
pella  que  ali  tinha  feita,  e  elle  se  recolheo  a  luguares  seguros, 
cm  que  se  livrou  da  braveza  e  diluvio  da  agoa  que  tudo  levava. 
Depoes  de  recolhidas  as  agoas  achou  o  Santo  a  capella  derru- 
bada  e  a  alampada  perdida,  e  foi  a  buscar  outra  a  huma  cidade 
chamada  Belasa,  e  pera  ir  a  ella  era  necessario  atravessar  hum 
lago  de  10  milhas  de  largo,  e  fctzendo  o  sinal  da  Crus  entrou  na 
alagoa  e  caminhou  sobre  as  agoas  como  se  fora  terra  firme.  Tam- 
bem  quando  hia  por  aquelles  desertos  e  se  achava  cansado,  chamava 
ao  tigre,  ao  leao,  ao  elefante  e  renocerote,  e  obedecendo  acodiSo  a 
seu  mandado  e  sobia  sobre  elles,  como  se  forao  mansos  iumentos, 
e  proseguia  seu  caminho;  e  se  chegava  a  algum  rio  dos  muitos 
que  ha  pollos  montes  da  lua,  chamava  hum  elefante  ou  renoce- 
rote  e  sobre  elles  passava  o  rio. 

Aos  40  annos  de  sua  vida  eremitica,  Ihe  apareceo  hum  anjo 
e  Ihe  mandou  da  parte  de  Deos,  que  deixasse  o  deserto  e  fosse 
*pregar  a  sua  terra,  porque  tinha  necessidade  de  seu  insino.  Obe-  f-  298. 
deceo  logo  o  santo  Padre  e  chegando  la,  fes  gfrande  fruto  com 
sua  prega^ao,  e  correo  de  maneira  a  fama  de  sua  santidade  que 
se  Ihe  aiuntarao  muitos,  deseiando  imitar  seu  modo  de  vida,  pollo 
que  Ihe  foj  necessario  hum  convento  na  cidade  de  Essumin,  onde 
deu  o  habito  do  glorioso  Padre  sam  Domingos  a  mais  de  400  no- 
vi^os.  Depoes,  morrendo  o  Prior  de  Debra  Libanos,  o  elegerao  a 
elle,  e  assim  Ihe  foi  for^ado  ir  la,  e  foj  recebido  como  hum  ver- 
dadeiro  retrato  de  seu  glorioso  padre  s.  Domingos  e  governou 
sanctissimamente  aquelle  convento  ate  que  cheo  de  annos,  que 
chegou  quasi  aos  80,  aos  12  de  dezembro  de  1430,  trocou  esta  vida 
mortal  poUa  immortal  e  bemaventurada. 
5.  Vita  ct  marty-  No    cap.   17   poem  a  vida   e  martirio  de  hum   santo,  que  elle 

rium  bcati  TaclA  Va-      ,  ^-i^^r^  jj-t-  tvtt 

yg^^  chama  iacla   varet  e  ouvera  de  dezir  laquela   Haureat,  que  quer 

dizer  «  planta  dos  Apostolos  »  ;  e  diz  que  foi  natural  da  cidade  de  Saba; 
sua  maj  se  chamou  Jlena  irmaa  do  Preste  Joao,  e  seu  paj  foj  grande 


LIVRO  II,  CAPIXaLO  XXII.  6oi 

principe.  E  sendo  de  8  annos  se  foj  a  Debra  Libanos  e  pedio  o 
habito  da  sagrada  religiao  de  s.  Domingos,  e  os  religiosos,  por  ter 
noticia  delle,  Iho  derao,  avendo  que  era  singular  favor  de  Deos  e 
merce  do  ceo  darlhes  aquelle  menino ;  e  logo  comeijou  a  fazer  huma 
vida  angelica;  e  chegado  aos  annos  de  receber  o  santo  sacerdocio, 

f.298,v.  foj  necessario  mandarlho  por  obe*diencia,  porque  nao  se  tinha  por 
digno  de  tam  inefavel  dignidade;  e  depoes  de  ter  vivido  no  con- 
vento  algxins  annos  com  grande  santidade  e  avendo  feito  muitos 
milagres,  determinou  pedir  licenga  a  seus  prelados  pera  ir  a  morar 
no  deserto,  e  alquan^ada,  fes  nelle  grandes  penitencias  e  recebeo 
grandes  favores  de  Christo  Nosso  Senhor,  e  entre  outros  hum  foj 
que,  em  quanto  esteve  naquelle  deserto,  cada  dia  vinha  hum  anjo 
e  pondo  ao  santo  sobre  huma  nuvem  branca  e  transparente,  era 
levado  a  Hierusalem,  onde  com  grande  deva^ao  visitava  aquelles 
higuares  santos,  onde  se  obrou  nossa  reden^ao;  e  com  a  mesma 
nuvem  tomava  a  sua  irmida,  por  espago  de  mais  de  900  legoas 
de  caminho. 

Chegandoselhe  o  termo  ditoso  de  tam  santa  vida,  Ihe  apareceo 
Christo  N.  S.°^  e  Ihe  disse  que  saisse  daquelle  deserto  e  fosse  pregar 
a  hum  reino  ali  visinho,  dandolhe  novas  que  nelle  seria  martirizado 
e  que  por  meio  do  martirio  iria  a  gozar  da  gloria.  Foi  elle  logo  a 
comprir  o  mandado  divino  e,  entrando  naquelle  reino,  pregou  com 
grande  fervor  a  doutrina  evangelica  e  converteo  muitos  a  santa  fe. 
E  estando  hum  dia  do  nacimento  de  Christo  dizendo  missa,  como 
acabou  de  consagrar,  chegou  a  Rainha  daquelle  reino  e  tomando  o 
calix,  lavou  os  cabellos  e  testa  com  o  precioso  sangue  de  Christo 
N.  S.°^  Vendo  o  Santo  hum  atrevimento  tam  sacrilego,  aceso  com 
zelo  divino  poUa  honrra  e  reverencia  do  sangue  de   Christo,   Ihe 

f.  299.  cortou  *com  humas  tesouras  os  cabelos  e  raspou  a  fronte  ate  Ihe 
sair  o  sangue.  Saio  a  Rainha  chorando  e  fazendo  grandes  extremos 
e  assim  emsangoentada  como  estava  se  presentou  diante  del  Rei 
seu  marido,  que  era  homem  mui  colerico  e  arremessado,  o  qual, 
vendoa  daquella  maneira,  foi  logo  com  grande  ira  a  igreia  onde 
estava  o  Santo,  e  depoes  de  o  deshonrrar  com  palavras  iniuriosas  e 
descomedidas,  mandou  aos  de  sua  guarda  que  o  matassem,  e  assim 
logo  com  espadas,  alabardas  e  partezanas  o  fizerao  em  peda^os, 
estando  o  Santo  de  ioelhos  em  ora^ao  dizendo:  «  In  manus  tuas, 
Domine  etc.  ».  Em  espirando,  se  ouvirao  no  ar  doces  cantigas  de 
anjos  e  tambem  vierao  anjos  visivelmente  e  em  riquos  copos  rece- 

C.  DECCAJti    Rer.  Aeik,  Seri^i.  occ,  ined.  —  II,  76 


6o2  HISTORIA   DE   ETHIOPIA 

ber3o  o  sangue  que  corria  de  suas  feridas.  £  acabando  de  espirar, 
virSo  todos  que  se  levantou  seu  corpo  e  foj  levado  pollo  ar  em 
milos  de  anjos  por  muitas  legoas  ao  convento  de  Debra  Libanos, 
onde  os  mesmos  anjos  o  puserao  em  honrrada  sepultura  em  que  se 
fizerao  muitos  mil^res,  e  cada  anno  dia  de  Natal,  em  que  foi  seu 
martirio,  desce  hum  anjo  visivelmente  em  figura  humana,  e  poem 
no  refeitorio  lo  cidras  fermosissimas  diante  dos  religiosos,  os  quais 
dividem  em  meudas  partes  e  se  repartem  pollos  do  piovo,  e  o  Preste 
JoSo  quasi  cada  anno  se  acha  presente  a  este  milagre ;  e  refere  Se- 
rafino  Rozi  que  Ihe  iurou  hum  frade  de  Ethiopia  que  se  achara 
presente  muitas  vezes  a  este  milagre  e  que  vira  decer  as  cidras  e 
comera  dellas. 

*XaO  quis  Deos  que  ficasse  muito  tempo  sem  castigo  a  maldade  Um- 
daquelle  Rej,  antes  logo  tornando  pera  sua  casa  com  toda  sua  guarda 
e  seus  intimos  amigos,  estando  o  ar  claro  e  o  ceo  sereno,  subita- 
mente  se  toldou  com  nuvens  mui  escuras  e  cometjou  a  chover  com 
grande  impito  e  com  espantosos  torvSes  e  relampagos  e  cairio 
muitos  corrisccs,  que  matarao  ao  sacrilego  Rei  e  a  todo  seu  cruel 
acompanhamento,  ficando  seus  miseraveis  corpos  abrasados  e  feitos 
em  cinza  e  suas  almas  nos  tormentos  eternos. 
6.  De   a,  Aiidrea  Xo    cap.    14   poem   a   vida   de   s.  Andre    martir   e    inquisidor 

martyre.''  '    apostolico   frade  da  ordem   dos  Pregadores  e  dis  que  sua   maj  foi 

irmaa  do  Preste  JnHo  e  seu  paj  hum  principe  dos  mais  illustres  d( 
Ethiopia  e  que  chegando  a  idade  de  zo  annos,  foi  ao  convento  Debr< 
Libanos,  sendo  prior  o  santo  martir  Phelipe  e  de  suas  m3os  recebet 
o  habito  do  glorioso  padre  s,  Domingos,  e  logo  come^ou  com  muitat 
e  fervorosas  penitencias ;  e  nos  30  annos  de  sua  idade  foi  promovid< 
ao  santo  sacerdocio,  o  qual  officio  exercitou  com  tanta  pureza  f 
fervor  de  espirito  que  muitas  vezes  celebrando  o  virSo  alevantadc 
da  terra  milagrosamente  e  outras  muitas  vezes  o  rodeavao  anjos  eit 
quanto  dizia  missa  e  hum  delles  o  servia  aiudandoo  no  altar  t 
aparelhando  a  hostia  e  vinho  que  avia  de  consegrar.  Achouse  pre^ 
sente  a  morte  do  glorioso  padre  frei  E\c/1,  e  diante  de  muitos  Ih* 
fes  o  sinal  da  Crus  na  testa,  dizendo  que  avia  de  ser  prior  daquelh 
convento,  e  foj  assim,  porque  socedeo  no  priorado  ao  santo  Samuel 
e  fes  muitos  milagres.  *Huma  ves,  dizendo  missa  conventual,  st 
alevantou  no  ar  a  vista  de  todos  e  esteve  tanto  que  veio  muita  gentt 
a  novidade  do  milagre  e  depoes  deceo  e  acabou  a  missa,  e  era 
tam  grande  a  calma  que  todos  estavao  afligidos  com  a  grande  sed( 


LIVRO  II,   CAPITULO   XXII.  603 

que  padeciao,  poUo  que  o  Santo  mandou  trazer  a  agoa  que  tinhao 
aparelhada  pera  a  bebida  dos  religiosos,  e  langando  sobre  os  calOes 
a  beuQao,  se  multiplicou  de  maneira  que  nao  s6  bastou  pera  os  que 
ali  estavao,  mas  sobejou  pera  todos  os  religiosos,  e  o  que  mais  he, 
que  se  mudou  a  agoa  milagrosamente  em  precioso  vinho,  com  o 
que  todos  derao  grapas  a  Deos  que  assim  acode  a  seus  servos. 

Em  hum  reino  dos  de  Ethiopia  governava  hum  Rei,  christao 
de  nome  somente,  por  que  publicamente  vivia  e  estava  casado  com 
duas  molheres,  e  como  o  glorioso  padre  frei  Andre  era  prior,  socedia 
no  officio  santo  de  inquisidor  apostolico ;  pello  que  foi  onde  estava 
aquelle  Rei  e  o  reprehendeo  com  amor  pera  que  deixasse  aquella 
vida  infemal  com  que  escandelizava  todo  seu  reino;  mas  el  Rei 
nao  fes  caso  daquellas  amorosas  amoesta^Oes  e  vendo  o  santo  in- 
quisidor  sua  obstina^ao,  o  comegou  a  reprehender  com  severidade 
ameacjandoo  com  a  iustiga  divina  e  com  a  obriga^ao  de  seu  officio ; 
porem  como  este  vicio  libidinozo  se  encrudele^a  mais  quando  mais 
Ihe  vao  a  mao,  el  Rei  furioso  mandou  a  hum  de  sua  guarda  que 
logo  ali  matasse  o  santo  Padre ;  mas  no  ponto  que  o  atrevido  soldado 
levantou  o  bra^o  com  a  espa(]|i  nua  pera  ferir  ao  Santo,  Ihe  caio 
f.3oo,v.  no  chao  o  bra^o  cortado  e  o  triste  *com  este  castigo  se  lan^ou  aos 
pes  do  Santo  e  com  muitas  lagrimas  Ihe  pedio  perdao  de  sua  culpa, 
rogando  que  Ihe  tornasse  seu  bra^o.  Movido  o  santo  Padre  das 
lagrimas,  tomou  o  bra^o  do  chao  e  fazendo  o  sinal  da  Crus  o  pos 
em  seu  luguar  e  ficou  como  se  nao  fora  cortado ;  mas  nem  com  este 
tam  grande  milagre  tornou  em  sy,  o  malaventurado  Rei,  antes  man- 
dou  a  outro  soldado,  que  logo  Ihe  tirasse  a  vida;  o  que  elle  fes  fe- 
rindo  com  huma  espada  ao  Santo  na  cabe^a  de  maneira  que  Iha 
abrio  em  duas  partes  e  nomeando  o  docissimo  nome  de  Jesus,  deu 
sua  alma  ao  Senhor  e  com  ser  a  ferida  tam  cruel,  nao  caio  ne- 
mhuma  gota  de  sangue  na  terra,  porque  os  anjos  o  recolherao  e 
embalsamarao   o  corpo  do  Santo  com  preciosos  unguentos. 

Nao  deixou  o  Senhor  clamar  em  vao  o  sangue  de  seu  martir, 
sem  tomar  o  castigo,  que  o  Rei  tiranno  merecia  por  suas  culpas, 
porque,  sentandose  elle  em  sua  cadeira  real,  como  ferido  do  ceo 
caio  desatentadamente  no  chao,  e  ficando  com  a  cabecja  fixa  no  chao 
e  os  pes  pera  sima,  esteve  assim  muito  tempo  sem  poder  mudar  a 
postura,  por  mais  que  o  procurava ;  pollo  que  parece  que  os  demo- 
nios  o  tinhao  daquella  maneira.  Finalmente  acabou  sua  miseravel 
vida  com  grandes  vozes  e  infemais  angustias. 


604  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

7.Des.linauquae  No  cap.  15  trata  de  huma  molher,  a  quem  chama  Jmata,  funda- 

Roxna  in  Aethiopiam     .  .      .  .    »        t     r     •  -ni  •■•  ^*  r-- 

venit    cum    novcm  ^^^^  ^®  *^""^  mosteiro  de  ireiras  por  nome  Bedenagh ;  e  dis  que  101 
sanctis,  ibique  mo-  beata  da  terceira  ordem  de  sam  Domincfos,  e  que  saio  de  Roma  em 

nasterium       monia-  ^ 

lium   tertii    ordinis  companhia  daquelles  8  religiosos  santos,  que  caminharSo  a  Ethiopia, 
^Sf  -SS  como  asstaa  »  dlsse.  ChaMar^n.  os  Ethiope,  .J„a...,  que  ,„er   t.  30.. 
tradidit.  dizer  «  serva  de  Deos  »,  e  por  ser  tam  grande  a  openiao,  que  todos 

tinhao  de  sua  santidade,  derSlo  a  todas  as  freiras  por  nome  appel- 
lativo  Imatas,  assim  como  em  Hespanha  e  Italia  as  chamSlo  sorores. 
O  mosteiro  de  freiras  chamado  Bedenagli,  que  fundou,  esta  entre  a 
gram  lagoa  Cafates  e  os  montes  da  Lua,  pouco  mais  de  hum  quarto 
de  legoa  do  convento  Debra  Libanos,  onde  se  recolheo  com  50  don- 
zellas  filhas  de  gente  principal,  que  receberao  o  santo  habito  de 
freiras  dominicanas,  e  este  numero  perseverou  no  mosteiro  ate  sua 
ditosa  morte ;  e  logo  foi  elegida  em  prioressa  do  mosteiro  a  gloriosa 
Zemedemarea,  que  quer  dizer  c  Clara  »,  em  tempo  da  qual.  com  aiuda 
de  seu  padre  spiritual  o  santo  Taquela  Haimonot,  cresceo  o  mosteiro 
ate  numero  de  300  freiras,  e  depoes  da  morte  de  Taquela  Haimanot, 
socedendolhe  no  priorato  s.  Phelipe  martir,  com  sua  aiuda,  chegou 
o  numero  das  freiras  a  sinco  mil,  e  persevera  ate  o  dia  de  oje  o 
mesmo  numero.  Estao  os  dormitorios,  refeitorio  e  choro  a  traga  do 
convento  Debra  Libanos  e  se  governa  da  mesma  maneira,  e  assi  he 
facil  de  entender  como  huma  prioressa  pode  governar  tam  grande 
numero  de  religiosas.  As  professas  e  veladas  vestem  habitos  brancos 
e  pretos  e  toucats  brancas  de  algodam  e  sobre  ellas  hum  veo  preto, 
que  Ihes  cobre  o  rosto  ate  os  peitos  e  espaldas.  Antiguamente  nao 
tinhao  clausura,  senao  que  saiao  de  casa,  *mas  agora  a  guardao  ^.30^^. 
com  muita  pontualidade  por  mandado  do  Geral  da  ordem  dos  Pre- 
gadores,  o  mestre  frei  Vicente  Justiniano. 

As  novi^as  saiem  fora  a  vender  o  que  fazem  as  religiosas  no 
convento,  porque  humas  tecem  veos  e  toucas,  outras  tafetas,  cor- 
dillates  e  anascotes  e  fazem  grande  trato  disto,  e  as  toucas  e  veos 
sao  mui  estimados  dos  Turcos  e  Mouros,  e  ainda  os  Turcos  os  prezao 
por  seus  turbantes  e  assim  os  levao  em  mercadoria  ao  Cairo  e 
Alexandria.  Sao  estas  religiosas  de  tam  santo  exemplo,  que  nunca 
em  Ethiopia  se  ouvio  cousa  de  offenssa  de  Deos,  nem  ha  socedido 
escandalo  nenhum,  que  he  mais  de  estimar,  daquellas  boas  religiosas. 
Em  tomando  o  veo  nao  falao  com  nimguem,  ainda  que  seiao  parentes, 
nem  os  seculares  Ihes  podem  ver  o  rosto,  e  assim  nao  tem  locutorios, 
e  em  suas  igreias  so  entrao  molheres. 


LIVRO  II,   CAPITULO   XXII.  605 

Ate  aqui  sSo  palavras  de  frei  Louis  de  Urreta,  em  que,  como 
temos  visto,  suppoem  por  cousa  muito  certa  e  averiguada  que  estes 
frades  s^o  da  sagrada  religiao  de  s.  Domingos;  mas  enganouse 
muito,  porque  assim  isto,  como  tudo  o  mais  que  dis  delles,  he  to- 
talmente  falso;  poes,  como  temos  dito  por  vezes  e  provamos  assima 
no  cap.  17,  Abba  Taquela  Haimanot,  que  (como  elle  mesmo  aqui 
affirma)  Ihes  deu  o  habito,  nSo  foi  frade  de  s.  Domingos,  nem  o 
que  dis,  que  frei  Phelipe  socedeo  no  priorado  a  Taquela  Haimanot, 
f.  302.  he  assim,  porque  nSo  Ihe  socedeo  senao  El<;a,  *e  este  nao  foi  prior 
40  annos,  como  o  autor  dis,  senSio  3  meses,  como  se  refere  no  fim 
da  historia  de  Taquela  Haimandt,  e  depoes  foi  prior  frei  Phelipe. 
Nem  estes  forao  Inquisidores  Apostolicos,  nem  outro  nenhum  prior, 
porque  nunca  ouve  em  Ethiopia  Inquisi^ao,  nem  sabem  que  cousa 
he,  e  assim  cada  hum  fala  como  quer  nas  cousas  da  fe,  e  cada  dia 
vem  com  novas  heregias,  sem  aver  prelado  que  acuda  a  isso ;  nem 
o  Emperador  pode  com  elles,  ainda  que  a  nossa  instancia  trabalha 
por  tirar  seus  erros  e  introduzir  nossa  santa  fe.  Do  que  se  ve  quam 
fabulosa  cousa  seia  o  que  dis  de  frei  Phelipe,  que  por  ter  officio 
de  Inquisidor  e  nao  Ihe  querer  obedecer  hum  Rei,  que  actualmente 
estava  casado  com  duas  molheres,  iuntou  hum  grosso  exercito  dos 
luguares  soieitos  a  Debra  Libanos,  onde  elle  era  prior  e  foi  contra 
elle,  nem  ia  Ihe  fora  bem  notado,  se  iuntara  tal  exercito,  porque 
isso  nao  Ihe  pertencia  a  elle,  senao  ao  Emperador. 

Quanto  aos  milagres  que  conta  destes  frades,  nenhum  pude 
achar  no  Flos  Sanctorum  de  Ethiopia,  a  que  elles  chamao  Cenque- 
^ar,  mas  disseraome  que  avia  livro  particular  em  que  se  tratava 
dos  discipolos  de  Taquela  Haimanot;  e  este  nao  pude  aver,  pello  que 
f.302,v.  nao  refiro  aqui  nada  delles ,  s6  digo  que  se  a  todos  os  que  *o  autor 
conta  se  Ihe  deve  dar  o  credito  que  a  alguns  delles  nenhum  tem, 
antes  sao  patentemente  fabulosos,  como  aquelle  que  dis  de  Abba 
Samuel,  que  estando  assentado  ao  longo  de  hum  rio,  dos  muitos 
que  nacem  da  alagoa  Cafates,  os  quais  crescem  como  o  Nilo,  e  que 
lendo  poUo  evangelho  de  s.  Joao,  adormeceo,  e  cresceo  o  rio,  como 
fazem  todos  os  que  saiem  daquella  lagoa,  e  sairao  tanto  as  agoas 
de  seus  limites,  que  cobrirao  os  campos,  e  o  Santo  ficou  no  meio 
como  em  hum  aposento,  servindo  as  agoas  de  paredes,  e  esteve  ali 
ate  se  tornar  a  recolher  a  agoa  sem  se  molhar  seu  vestido  nem  o 
livro.  Esta  he  fabulosa  patranha,  porque  da  lagoa  que  elle  chama 
Cafates  (que  nao  a  chamao  senao  Bahar,  que  quer  dizer  mar)  nao 


6o6  HISTORIA   DE   ETHIIOPA 

nace  rio  nenhum,  s6  o  Nilo  a  travessa  por  huma  ilharga,  como  dis- 
semos  no  cap.  26  do  primeiro  livro,  e  nem  ainda  o  Nilo  cresce  tam 
subitamente  em  quanto  vai  pollas  terras  do  Preste  Joao  {como  alle 
ima^na),  antes  tarda  muito  tempo  em  encher,  e  depoes  que  esta 
de  todo  cheio,  nSo  espraia  nada,  porque  sempre  fas  seu  curso  por 
entre  serras  ou  partes  muito  fundas. 

Tambem  he  patentemente  falso  o  que  dis  que  cresceo  huma 
ves  tanto  a  lagoa  Cafates,  como  custuma  e  saio  com  grande  impito 
de  seus  limites  ordlnarios  que,  com  estar  o  Santo  Samuel  algumas 
legoas  afastado  della,  o  alquani;ou  e  derrubou  huma  capella  que 
tinha  feita  e  elle  se  a*colheo  a  luguares  seguros,  em  que  se  livrou  f-  303- 
das  agoas.  Nao  podia  pintar  o  autor  a  este  proposito  milhor  pa- 
tranha,  porque  a  enchente  desta  lagoa  nSo  he  como  a  maree  do 
oceano,  que  em  algumas  partes  enche  com  grande  impito  e  alaga 
muita  terra,  antes  vai  enchendo  muito  devagar  cada  dia  hum  pouc:), 
e  isto  ainda  depoes  de  bem  entrado  o  inverno,  e  depoes  que  de  todo 
acaba  de  encher,  por  nenhuma  parte  espraia  tanto  que  nao  possa 
hum  homem  quasi  chegar  tirando  huma  pedra  com  a  mSo  e  quando 
vai  vazando,  he  tam  devagar  que  cada  dia  se  enxerga  muito  pouco, 
de  maneira  que  nao  he  como  o  mar  oceano,  que  pella  parte  de 
nossas  terras  enche  e  vaza  em  doze  horas,  senao  que  do  principio 
de  julho  comenga  a  crescer  ate  outubro,  e  dali  por  diante  vai  va- 
zando  muito  devagar.  Por  onde  mal  podia  a  enchente  da  atagoa 
denibar  a  capella  de  Abba  Samuel,  estando  afastada  algumas  legoas 
della.  Deixo  o  que  afirma  que,  quando  hia  pellos  desertos  e  se  achava 
cansado,  chamava  [a^o  tigre,  ao  leao,  ao  elefante  e  rinocerote,  e  subia 
sobre  elles,  que  disto  podcra  o  leitor  crer  o  que  quiser ;  porque  qua 
facilmente  inventao  estes  contos;  e  pouco  tempo  ha  que  hum  frade, 
que  avia  annos  que  andava  no  deserto,  disse  no  reino  de  Tigre,  que 
Ihe  pertencia  o  imperio  e  que  o  Imperador  nSo  Ihe  podia  fazer  rosto, 
porque  ate  os  leOes  Ihe  obe*deciao  e  la  no  deserto  subia  sobre  elles  f.3 
pera  ir  de  huma  parte  a  outra.  Com  isto  se  Ihe  aiuntou  muita  gente 
e  hia  ia  entrando  por  Tigre  como  se  fora  senhor  delle,  mas  saindo 
hum  homem,  que  nem  ainda  era  capitSo,  o  prendeo  e  levarSo  ao 
Emperador,  e  elle  Ihe  mandou  cortar  as  orelhas  e  nartzes,  e  agora 
anda  por  ahi  sem  ninguem  fazer  caso  delle. 

Semelhante  a  estes  contos  he  o  que  refer  de  Abba  Taquela 
Haureat,  que  em  honrra  sua  todos  os  annos,  dia  do  Natal,  em  que 
foi  seu  martirio,  dece  hum  anjo  visivelmente  em  figura  humana  e 


LIVRO  II,  CAPITULO  XXII.  607 

poem  no  refeitorio  de  Debra  Libands  diante  dos  religiosos  10  cidras 
muito  fermosas,  que  se  repartem  pollos  do  povo.  Porque  nSo  achei 
quem  me  soubesse  dar  rezao  de  tais  cidras,  com  perguntar  a  algtins 
frades  da  mesma  religiao  e  entre  elles  a  hum  que  se  chama  Abba 
Marca,  de  grande  nome  entre  elles,  e  me  affirmou  que  tinha  80  annos 
e  que  se  criara  de  minino  em  Debra  Libanos,  e  que  nunca  vira  tais 
cidras ;  e  o  capitao,  que  ategora  pouco  ha  o  foi  dos  Portugueses  e 
se  chama  JoSo  Gabriel,  homem  de  muito  ser,  me  disse  que,  sendo 
pequeno,  estivera  tres  annos  continuos  naquelle  mosteiro  aprendendo 
os  livros  de  Ethiopia,  e  que  nunca  vira  tal  cousa,  nem  ategora  que 
he  de  idade  de  70  annos  ouvira  falar  nella  a  ntnguem,  com  andar 
ordinariamente  no  pacjo  dos  Emperadores;  nem  elles  chegSo  aquelle 

f.  304-  mosteiro  em  muitos  *annos,  quanto  mais  cada  anno ;  nem  depoes 
que  eu  entrei  em  Ethiopia,  que  foi  no  anno  de  1603,  foi  la  nenhum 
de  3  que  neste  tempo  ouve.  Por  onde  o  que  iurou  o  frade  de  Ethiopia 
a  frei  Serafino  Rosi,  que  se  achara  presente  muitas  vezes  a  este 
milagre,  foi  tam  certo  como  o  que  frei  Luis  de  Urreta  affirma 
pag.  56  do  primeiro  tomo,  que  Ihe  iurou  asseveradamente  e  com 
muitas  exageragOes  sobre  cousas  sagrradas  JoSo  Balthesar  natural 
de  Ethiopia,  que  no  monte  de  Amhara  tem  guardado  em  huma 
arca  de  ouro  hum  peda^o  das  taboas  que  estavSo  escritas  com  o 
dedo  de  Deos  e  quebrou  Moyses  por  causa  da  idolatria  do  povo, 
e  que  elle  o  vira  e  tivera  muitas  vezes  em  suas  maos ;  o  que  (como 
declaramos  compridamente  no  fim  do  cap.  3  do  1°  livro)  he  fabu- 
losa  patranha;  porque  nunca  ouve  tal  cousa  em  Ethiopia,  antes  o[s] 
letrados  della  affirmSo  tambem  que  nao  ficou  memoria  das  taboas 
que  quebrou  Moyses.  Do  que  se  mostra  claramente  quam  pouco  cre- 
dito  se  deve  dar  a  seus  iuramentos. 

Sobre  o  que  o  autor  dis  daquella  molher  Imata  fundadora  das 
freiras  de  Ethiopia  nao  temos  pera  que  nos  deter ;  poes  se  ve  tam 
claro  ser  fabula  que  viesse  de  Roma  tal  molher,  do  que  assima  pro- 
vamos  no  cap.  17,  que  nem  ha,  nem  ouve  nunca  nas  terras  que 
senhorea  o  Preste  Joao  religiao  de  sam  Domingos,  e  que  os  frades, 

f.304,v.  com  quem  elle  dis  que  veio  de  Roma  *aquella  molher,  forao  mais 
de  300  annos  antes  que  nacesse  o  glorioso  Padre  s.  Domingos.  O  nome 
Imata,  que  nao  ha  de  ser  senao  Amata,  que  quer  dizer  serva,  nao  he  co- 
mum  as  freiras,  porque  ordinarlamente  ficao  com  o  nome  do  bautismo 
em  que  la  muitas  molheres  chamao  Amata  Christos,  «  serva  de  Chri- 
sto  » ,  Amata  Michael,  «  serva  de  Miguel  » .  E  depoes  nao  sao  freiras 


6o8  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

senao  casadas ;  nem  ha  tal  modo  de  refeitorio  e  choro,  como  pinta 
frei  Luis,  nem  trazem  veo  que  Ihes  chegna  aos  peitos,  nem  guardao 
oje  clausura,  nem  a  guardarao  nunca:  cada  huma  vai  por  onde  quer, 
porque  seu  modo  mais  he  de  beatas  que  de  freiras,  e  se  guardarao 
a  honestidade  de  beatas,  fora  grande  bem :  mas  nSo  he  assi ;  antes 
muitas  dellas  vivem  de  maneira,  que  dizem  os  seculares  que  depoes 
que  se  fazem  freiras  tem  mais  mundo  que  se  o  tiSlo  forSlo ;  e  comum- 
mente  se  fazem  freirsus  depoes  de  viuvas  e  ficEo  em  sua  casa  como 
antes ;  e  ainda  que  seiao  donzellas  e  queirSlo  recolhimento,  nao  ha 
outro  mais  que  estarem  perto  de  algum  mosteiro  de  frades  em  suas 
casinhas  afastada  huma  de  outra,  e  vSlo  a  suavontadeonde  Ihes  parece. 

Quanto  aos  tafetas  etc,  que  dis  que  tecem,  he  fabula,  porque 
em  Ethiopia  nao  ha  seda,  nem  sabem  como  se  tece  o  tafeta;  a  laa 
he  muito  pouca  e  grosseira  e  nSlo  a  sabem  lavrar  e  assim  nao  fazem 
della  se  nao  humas  mantas  muito  peiores  que  as  com  que  se  co- 
brem  nas  nossas  terras  os  cavalos.  Algodao  ha  em  abundancia,  mas 
nem  disso  sabem  fazer  as  toucas  e  veos  que  o  autor  dis  *que  f.  305- 
levao  aos  Turcos,  antes  por  seus  portos  vem  qua  da  India  as  tou- 
cas,  \^os  e  roupa  fina  que  em  Ethiopia  se  gasta. 

Tambem  trata  no  cap.  1 8  da  imperatrix  Helena  e  dis  que  casou 
com  o  emperador  Alexandre  2° e  foj  mai  do  emperador  Naum  e  avo  do 
Preste  Joao  David,  e  que  foi  depoes  religiosa  da  3*  ordem  da  penitencia 
do  glorioso  Padre  s.  Domingos,  e  que  assim  como  santa  Helena  he 
honrra  e  gloria  de  toda  a  igreia  catholica,  a  benta  Helena  he  honrra 
da  igreia  de  Ethiopia  e  gloria  da  ordem  dos  Pregadores  e  singular 
fermosura  do  estado  santo  das  religiosas  que  chamao  beatas.  Nisto 
teve  tambem  frei  Luis  falta  de  informa^ao,  porque  a  imperatrix  He- 
lena  nao  foi  molher  do  imperador  Alexandre  2^,  que  em  Ethiopia  nio 
ouve  dous  Alexandres,  nem  casou  senao  com  o  emperador  Naod,  e 
nunca  pario,  que,  ainda  que  David  foi  filho  do  imperador  Naod,  nfto 
o  era  da  imperatrix  Helena,  senao  bastardo,  e  porque  ella  o  criou  por 
nao  ter  filhos,  por  isso  pode  ser  que  os  que  nao  sabiao  dissessem  que 
era  seu  filho,  ou  que  ella  por  honrra  o  chamasse  assim.  Nem  ella  podia 
ser  religiosa  da  3^  ordem  de  s.  Domingos,  poes,  como  temos  dito,  qua 
nao  o  conhecem,  nem  tem  noticia  das.cousas  de  sua  sagrada  religiao 
e  assim  tudo  quanto  dis  no  cap.  20  de  como  se  fundou  em  Ethiopia*a  £.305,^. 
confraria  do  santo  Rosario  e  que  oie  em  dia  ha  muitas  e  perseverao 
com  muita  grandeza,  todo  he  fabula,  porque  nem  ha,  nem  ouve 
nunca  confraria  do  Rosario  nestas  partes,  nem  sabem  que  cousa  he. 


CAPITULO  XXIII. 

Em  que  se  declara  se  ouve  alguns  Emperadores  santos 

em   Ethiopia. 


Muito  longe  estava  eu  de  gastar  tempo   nesta  materia   e   can-       x.  luxta  historiam 

1    .^  ^  ,  r     •    T     .      1     TT       .  •*>    Urreta    conscri- 

sar  ao  leitor  com  cousas  tam  escusad^is,  se  frei  Luis  de  Urreta  me  ptam,  septem  nume- 
nao  obriffara,  canonizaiido  por  santos  sete  Emperadores  de  Ethiopia,  ""J*^'  Impcratores, 

JT  X-         q^j   ^^   Aethiopibus 

de  quem  trata  no  cap.  3  do  livro  3°  de  seu  i®  tomo.  e  dis  que  sao,  ut  sancti  coluntur, 
sam  Phelipe  1«  Preste  JoSo  christao,  o  santo  emperador  Joao,  outro  i^l^^eJduo^^iSiiip^ 
Joao  o  santo,  sam  Phelipe  septimo,  o  emperador   santo   Elesbaao,   P'*'  ^^*»  Elesbaan, 

Abraham  et  LalibelA. 

santo  Abraham  Preste  Joao,  o  glorioso  Lalibela  emperador.  Mas 
porque  passando  eu  em  silencio  o  que  dis  destes  Emperadores,  nao 
cuide  alguem  que  tudo  he  certo,  me  pareceo  referir  brevemente  o 
que  delles  tras,  e  depoes  declarar  o   que   contao   os   de    Ethiopia. 

Falando  poes  o  autor  do  Preste  Joao  Phelipe,  dis  que,  quando  a-  Refertur  vita 
a  rainha  Candace  bautizou  no  monte  Amhara  os  principes  que  ali  conficu. 
estavao  da  casa  e  sangue  de  David,  o  mais  velho  se  chamava  Za- 
charias,  e  no  beautismo  se  quis  chamar  Phelipe  em  memoria  do 
glorioso  s.  Phelipe  que  bautizou  ao  Eunucho,  e  que  deste  santo 
f.  306.  Emperador  (em  que  renunciou  *o  imperio  a  rainha  Candace  e  se  reco- 
Iheo  em  hum  mosteiro)  dizem  as  historias  de  Ethiopia  que  foi  grande 
defensor  e  pregador  da  fe  christaa,  porque  igualmente  era  Empe- 
rador  e  Apostolo.  Forao   innumeraveis   as   igreias   que   edificou   e 

C.  Beccari.  /ier.  Aeth,  Script»  oce,  ined.    —  II.  ^^ 


6lO  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

muito  grandes  as  rendas  com  que  as  dotou.  Dizem  que  o  honrrou 
Deos  com  milagres  em  vida  e  em  morte ;  que  poes  elle  com  tanto 
cuidado  procurou  o  servigo  de  Deos,  claro  he  que  o  mesmo  Deos 
avia  de  procurar  sua  honrra.  Guardou  toda  sua  vida  a  inteireza  da 
virgindade  e  esta  enterrado  no  monte  Amhara,  no  templo  do  Spi- 
rito  Santo,  onde  se  enterrao  os  Emperadores  de  Ethiopia,  e  ali  he 
honrrado  e  reverenciado  por  santo. 

3.  Vita  loannis  I  Do  Santo  emperador  Joao. 

phrasiae.  ^  Depoes  da  santa  morte  do  emperador  Phelipe,  como  nao  deixou 

«  filhos,  por  aver  guardado  sempre  castidade  virginal,  Ihe  socedeo 
c  seu  irmao  JoSo,  ao  qual  na  Ethiopia  tem  por  santo,  e  foi  hum  dos 
«  principes.  que  no  monte  Amhara  bautizou  a  rainha  Candace  e  o 
«  santo  Eunucho,  e  cha[ma]ndose  Daniel,  quis  em  seu  bautismo  no- 
«  mearse  JoSo.  Foi  sanctissimo  varSo  e  em  tudo  procurou  imitar  o 
«  exemplo  que  Ihe  deixara  seu  santo  irmao  e  predecessor ;  procuruo 
«  com  todas  suas  forgas  dilatar  a  fe  catholica  e  confirmarla  em  todos 
«  *seus  reinos,  desterrando  qualquer  rasto  e  reliquias  de  idolatria.  f.306.' 
«  Edificou  igreias  mui  sumptuosas  e  em  tudo  procurou  seguir  o  ca- 
«  minho  das  virtudes  de  seu  santo  irmao.  Quisera  guardar  castidade 
«  como  elle,  mas  obrigouo  o  conselho  e  todo  o  imperio  a  que  casasse, 
«  porque  avia  mui  poucos  da  casa  de  David,  e  assim  Ihe  buscarao  mo- 
«  Iher  conveniente,  de  quem  teve  7  filhos  e  duas  filhas,  e  no  santo 
«  matrimonio  fes  huma  vida  angelica  de  maneira  que  o  tem  em  Ethio- 
«  pia  e  sempre  o  hao  tido  por  santo,  ainda  que  como  cousas  tam 
«  antigas  nao  dao  mais  noticia  delle  as  historias  ethiopicas. 

«  Huma  das  ifantes  filhas  do  imperador  Joao  se  chamava  Eu- 
«  frasia  e  guardou  virgindade  toda  sua  vida  e  muitos  annos  esteve 
«  no  deserto  em  huma  cova,  fazendo  grandes  penitencias  e  tratando 
«  s6  com  Deos  e  com  os  anjos,  sem  que  olhos  humanos  a  vissem. 
«  Na  cova,  onde  fes  penitencia  esta  oie  edificada  huma  igreia  de  seu 
«  nome  e  Ihe  tem  grande  deva^ao.  Desta  santa  Eufrasia  fas  meni^ao 
c  o  Martirologio  Romano  a  1 7  de  margo  e  ainda  que  diz  que  foi  da 
«  Thebaida,  he  por  estar  perto  da  Ethiopia,  mas  na  verdade  foi  filha 
«  do  emperedor  de  Ethiopia. 

4.  De  aiio  loanne  Dos  santos  emperadores  da  Ethiopia  Joao  o  Santo  e  Phelipe  7*^. 

1  ippo       .  ^  Estes  dous  Emperadores  viverao  no  tempo  de  sam    Basilio, 

«  que  foi  pollos  annos  do  nacimento  de  Christo  de  330  ate  80.  Forao 
«  sanctissimos  principes  e  dos  mais  famosos  que  teve  a  Ethiopia. 
«  Joao  o  Santo  (que  este  nome  Ihe  dao  os  Ethiopes  por  sua  heroica 


LIVRO  II,  CAPITULO  XXIII.  6X1 

f.  307.   «  santitade  *e  por  diferencialo  de  outros  Emperadores  que  se  cha- 
«  marSo  Joaes)  foi  tam  zeloso  da  fe  catholica,  que  vendo  que  em 

<  seu  tempo  se  alevantara  aquella  blasfema  heregia  de  Arrio,  que 
«  negava  a  equalidade  das  divinas  pessoas  fazendo  ao  Filho  menor 
«  que  o  Padre,  instituio  huma  ordem  militar  de  cavaleiros  comen- 
«  dadores  de  baixo  do  nome  de  santo  Antao  Abbade  e  escreveo  a  seu 
«  gprande  amigo  sam  Basilio  que  Ihe  mandasse  os  Institutos  e  Constitui- 
«  95es,  o  que  fes  com  muita  vontade  o  glorioso  Santo,  e  os  cavaleiros 
«  os  gnardao  ate  o  dia  de  oie.  O  fim  desta  rehgiao  militar  foi  naquelles 
«  tempos  peleiar  contra  os  Arrianos  e  guardar  a  Ethiopia  de  tao 
«  blasfema  heregia  e  foi  meio  tam  importante  que  com  entrar  esta 
«  heregia  quetsi  por  todo  o  mundo,  nao  pode  coyitaminar  a  Ethiopia, 
«  estando  tam  perto  de  Egypto,  onde  foi  sua  inven^ao.  Edeficou 
«  este  santo  Emperador  muitas  igreias  com  a  invoca<;ao  da  Santis- 
«  sima  Trindade  e  fes  muitas  leis  pera  o  bom  governo  de  Ethiopia, 

<  que  se  guardao  ate  oie.  Morreo  sanctissimamente  nomeando  o  doce 
«  nome  da  Sanctissima  Trindade  como  asserrimo  defenssor  de  sua 
«  f e  e  pureza,  e  illustrouo  Deos  com  muitos  milagres. 

«  A  este  emperador  Joao  o  Santo  socedeo  Phelipe  7°  no  nu- 
«  mero  do[s]  que  tiverao  este  nome,  tido  em  toda  Ethiopia  por 
f-307,v.  «  santo  e  bemaventurado,  e  como  Ihe  socedeo  no  estado,  *lhe  her- 
«  dou  suas  heroicas  virtudes  e  santo  zelo  assim  no  que  pertencia  a 
«  fe,  como  no  tocante  ao  bom  governo  de  seus  reinos.  Dilatou  muito 
«  a  ordem  militar  dos  cavaleiros  de  santo  Antao,  deulhes  previle- 
«  gios  e  rendas,  so  porque  se  ocupassem  em  peleiar  contra  os  Ar- 
«  rianos;  fes  muitas  leis  pera  o  governo  das  cidades  tam  santas  e 
«  boas,  que  ate  oie  os  Emperadores,  quando  os  coroao,  iurao  de  as 
«  guardar,  e  em  todas  as  cidades  do  imperio  tem  escritas  estas  leis 
«  em  huma  taboa  e  fixadas  no  meio  das  pragas,  pera  que  as  saibao 
«  todos  e  os  juizes  e  governadores  iulgao  por  ellas.  Foj  principe 
«  mui  exemplax,  pai  e  emparo  de  todos ;  e  cheo  de  virtudes  partio 
€  contente  desta  vida  pera  a  gloria.  Forao  enterrados  estes  dous 
«  Emperadores  no  templo  do  Espirito  Santo  do  monte  Amliara, 
«  onde  sao  venerados  por  santos  ». 

Do  santo  Elesbaam  emperador  da  Ethiopia.  5.  Dc  sancto  Eic- 

«  No  tempo  do  emperador  Justino  conta  Simao   Metaphrastes  j^^^  Mcuphrastcn. 
«  na  historia  de  santo  Aretas  martir  e  Nicephoro,  que  hum  Rei  dos 
«  Homeritas,  que  he  na  Arabia,  chamado  Dunaam  iudeu  de  lei  e 
«  crencja  com  todos  os  seus  iuntando  grande  exercito  de  Judeus  e 


biz  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

*  gentios  pos  serco  a  huma  cidade  de  chrisUlos  chamada  Negra  na 
t  Arabia  Felis,  e  ainda  que  a  teve  sercada  muito  tempo,  os  cbri- 

»  staos  se  defenderao  aiiimosamente  e,  vendo   que  por  for^a  *nao  (.  j 
t.  podia   sair   com   a   empresa,  alevantou  o  serco  e  fes  amizade,   e 
t  depoes  com  engano  entrou  na  cidade,  e  os  seus  se  forSo  metendo 

*  dissimuladamente,  e  depoes  comeijou  a  persuadir  aos  christaos  que 
<  se  fizessem  judeus,  e  nSo  querendo  elles  receber  seu  maldito  con- 
»  selho,  mandou  aos  seus  que  distruissem  a  cidade  e  assim  fes  mar- 
t  tires  a  quantos  nella  achou. 

t  Esta  crueldade  e  trai<;ao  do  perfido  judeu  veio  a  noticia  do 
1  Preste  Joao  Elesbaam,  que  era  tambem  rei  e  senhor  daquella  ci- 
c  (iade  e  de  muita  parte  de  Arabia,  e  pera  vingar  tam  grande  mal- 

*  dade,  iuntou  copioso  exercito  de  Ethiopcs  e  Arahios  todos  chri- 
c  staos  e  foi  a  buscar  ao  judeu  Dunaam  e  dandolhe  batalha,  com 
t  facilidade  o  venceo  e  matou  todos  os  seus  e  a  elle  fizerao  em 
t  peda^os  em  pago  de  suas  crueldades.  O  santo  emperador  Ele- 
t  sbaam  e  [stc]  reconhecendo  aver  sido  de  Deos  aquella  victoria, 
«  nao  se  mostrou  desconhecido,  antes  pregoando  as  misericordias 

*  de  Deos  mandou  sua  coroa  imperial  a  Hierusalem  pera  o  santo 
«  sepulchro  de  Jesu  Christo,  e  renunciando  o  imperio,  se  fes  eccle- 

*  siastico,  e  ordenado  de  missa,  se  vestio  de  cilicio  mui  aspero, 
s  vivendo  em  huma  cova  escura  e  espantosa,  onde  esteve  toda  sua 

*  vida   sem   que  o  visse   homem   vivente.    Fes  incrlvel  penitencia, 

*  nao  comendo  mais  que  ervas  cruas,  onde  Deos  o  descobrio  com 

*  muitas  obras  milagrosas.  Temno  por  muito  grande  Santo  em  Ethio- 
«  pia,  e  no  luguar  e  cova,  onde  fes  penitencia,  ainda  que  *asperii 

c  simo  e  quasi  inhabitavel,  se  edificou  huma  sumptuosa  igreia 
«  invocaijSo  deste  Santo,  a  que  tem  grande  deva^So,  como  o  mosti 
ii  o  muito  concurso  da  gente  e  a  frequencia  da  santa  comunh3o  qu 
«  nella  recebem.  Fas  men^ao  deste  Santo  o  Martirologio  Roman 
«  a  22  de  outubro  e  o  Metaphrastes  a  24  ». 

Da  milagrosa  vida  do  santo  Abraham  Preste  Joao  de  Fthiopii 
<  Na  provincia  de  Ancona,  que  he  hum  certo  senhorio  de  Ethi( 
s  pia,  ha  huma  serra  que  tera  duas  legoas  de  subida  tao  aspera 
I  ingrime  que  he  necessario  pera  subir  pegarse  em  cordas  que  esta 
i  amarradas  e  he  tao  trabalhoso  o  caminho,  que  he  necessario  mais  d 
I  meio  dia  pera  chegar  a  sima.  No  alto  est4  huraa  cova  e  nella  hum 
s  igreia  mui  grande  como  cathedral  com  tres  naves  muito  bem  feitas 
c  suas  capellas  e  altares.  Estao  nella  mais  de  duzentos  clerigos  e  h 


LIVRO  II,  CAPITULO  XXIII.  613 

«  muito  riqua ;  chamasse  Imbra  Christos  que  quer  dizer,  c  caminho  de 
«  Christo  » .  Nesta  igreia  estao  duas  casinhas  cavadas  na  mesma  pe- 
«  dra  em  qne  fes  penitencia  o  santo  Abraham,  e  elle  mandou  fazer 
«  aquella  igreia.  Referese  nas  historias  de  Ethiopia  que  este  Preste 
«  Joao  foi  sacerdote  e  que  se  recolheo  na  cova,  que  esta  nesta  igreia, 
«  em  que  esteve  40  annos  escondido,  e  disse  missa  cada  dia,  e  pera 
«  a  dizer  Ihe  traziSo  os  anjos  pSo  e  vinho,  e  oie  no  altar  maior 
«  desta  igreia  esta  pintado  este  Emperador  vestido  de  roupas   sa- 

f.  309.  «  cerdotais  *como  pera  dizer  missa,  e  huma  mao  que  saie  por  huma 
«  ianella  com  pao  e  outra  por  outra  ilharga  com  huma  galheta,  si- 
«  gnificando  o  milagre  que  dissemos.  Disse  mais  que,  em  quanto  foi 
«  Preste  Joao  na  Ethiopia,  nao  tomou  tributos  nem  dereitos  a  seus 
«  vassalos,  e  se  Ihe  presentavao  alguma  cousa,  a  repartia  aos  pobres, 
«  sustentandose  elle  de  algnmas  terras  que  lavrava.  Fes  grande  e 
«  rigurosa  penitencia  naquella  cova  e  por  quarenta  annos  nao  comeo 
«  senao  de  8  em  8  dias  huma  so  ves  aos  domingos,  trazendo  sem- 
«  pre  cilicio.  Foi  tal  a  fama  que  das  heroicas  virtudes  deste  santo 
«  Imperador  correo  poUo  mundo,  que  hum  patriarcha  de  Alexan- 
«  dria  veio  ate  Ethiopia  s6  pera  o  ver  e  morreo  na  mesma  igreia. 
.  «  Finalmente  o  santo  Abraham  foi  a  receber  da  liberal  mao  de  Deos 
«  o  premio  de  seus  trabalhos  e  em  sua  morte  o  honrrou  Deos  com 
«  muitos  milagres.  Foj  enterrado  na  mesma  igreia  em  hum  sepul- 
«  chro,  que  esta  no  meio  della,  alto  4  degraos,  e  noutro  sepulchro 
«  a  mao  direita  alevantado  3  degraos  esta  enterrado  o  Patriarcha  que 
«  veio  de  Alexandria,  e  a  mao  esquerda  em  outro  sepulchro  huma 
«  filha  do  santo  emperador  Abraham,  que  seguio  a  penitencia  de 
«  seu  paj  e  he  tida  por  santa  em  toda  Ethiopia  ». 

Do  glorioso  Lalibela  emperador  da  Ethiopia.  7.ltcmdcLalibclA. 

«  Por  ser  tam  milagrosa  a  santa  vida,  nacimento  e  *morte  deste 

f-309,v.  «  bemaventurado  Preste  Joao,  o  chamarao  Lalibela,  que  quer  dizer 
«  *  milagre  do  mundo ',  porque  toda  sua  vida,  suas  obras,  suas  vir- 
«  tudes  forao  milagrosas,  e  seus  milagres  muitos  e  maravilhosos. 
«  Referem  delle  as  historias  de  Ethiopia  que  no  ponto  que  naceo, 
«  vierao  innumeraveis  abelhas  e  o  cobrirao  de  p6s  a  cabe^a,  sem 
«  que  se  visse  parte  descuberta  do  menino,  e  a  gente  que  assistia  ao 
«  parto,  maravilhada  de  cousa  tam  milagrosa,  nao  se  atreveo  a  tocar 
«  ate  ver  em  que  parava.  As  abelhas,  sem  Ihe  fazer  mal  algum,  o 
«  limparao  da  immundicia  e  sangue  com  que  saio  do  ventre  da  maj, 
«  e  deixandoo  limpo,  voarao  pera  o  ceo,  sem  que  as  vissem  mais ; 


6 14  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

«  que  foi  hieroglifico  de  g^andes  misterios,  porque  pera  descobrir 
«  o  ceo,  que  se  avi^o  de  achar  no  santo  Lalibela,  quis  usar  destes 
«  annuncios. 

«  Guardou  este  santo  Emperador  castidade  toda  sua  vida,  que 
«  forao  80  annos,  permanecendo  sempre  virgem,  e  assim  na  hora 
«  de  sua  morte  se  partio  desta  vida  com  a  aureola  da  virgindade 
«  pera  receber  o  premio  do  summo  remunerador.  Esta  pureza  e 
€  limpeza  pronosticavSo  as  abelhas  que  o  cobrirao  em  nacendo, 
«  porque  a  abelha,  como  nota  santo  Epiphanio,  he  simbolo  da  lim- 
«  peza  e  castidade.  Tambem  forSo  as  abelhas  simbolo  de  huns  ho- 
«  mens  engenhosos,  amigos  de  obras  e  de  fazer  edificios,  poUa  tra<^a 
«  tam  misteriosa  com  que  lavrao  seus  favos  ;  assim  o  foi  o  santo 
«  imperador  Lalibela,  muito  cuidadoso  do  culto  divino  e  o  mais 
«  amigo  de  edificar  igreias  e  casas  de  ora^ao.  Elle  foi  o  que  com 
«  incriveis  gastos  fes  aquelles  *milagrosos  templos  feitos  todos  de  f.  3>o- 
«  huma  s6  pedra,  dos  quais  fizemos  men<;ao  no  livro  2**,  que  sao 
«  huma  das  mores  maravilhas,  que  ha  tido  o  mundo ;  e  esta  ali  en- 
«  terrado  na  igreia,  que  chamao  Golgota.  Em  fim  riquo  de  virtudes 
«  se  partio  desta  vida  e  deu  sua  alma  nas  maos  daquelle  senhor, 
«  que  Iha  emprestou  ate  entao.  As  historias  ethiopicas  dizem  que 
«  o  honrrou  Deos  com  muitos  milagres  e  seu  santo  corpo  he  tido 
«  em  grande  venera^ao  e  vai  a  elle  muita  gente  em  romaria,  por 
«  ser  tido  de  todos  por  grande  Santo  ». 
8.    Commentitias  Isto  he  o  que  frei  Luis  de  Urreta  conta  destes,  a  quem  bautiza 

demonstrat  *  Auctor  P^^  Prestes  Joaes  Emperadores  de  Ethiopia.  Mas,  como  se  pode  ver 
tum  ex  historiis,  tum  jjos  cathalogos,  que  pusemos  no  cap.  5  do  primeiro  livro,  s6  Lali- 

praesertim  ex   testi- 

monio  Imperatoris  bela  foi  emperador  de  Ethiopia,  e  dos  demais  nao  ha  memoria 
fratris  Ccfa  Chris^^  nenhuma.  E  assim  perguntando  a  muitos  velhos,  bem  vistos  na^  histo- 
qui  opinabantur  nul-  rias  de  Ethiopia,  me  disserao  que  nao  sabiao  que  ouvesse  tais  Impe- 
bus  Aethiopiae  san-  radores,  tirando  Lalibela;  e  pera  me  satisfazer  mais,  cheguei  a  per- 
ctitate    vitae    emi-  gruntar  ao  imperador  Seltan  Cacfued,  que  oie  vive  e  me  disse  diante 

cuisse,    quia   omnes    °  ^  r   o         »  ^ 

libidini  deditos  fuis-  de  muitos  senhores,  que  nenhum  de  seus  antepassados  tivera  tal  nome, 

e  que  Lalibela  nao  era  dos  da  casa  real,  a  quem  pertencia  o  im- 
perio,  senao  descendente  de  hum  tiranno  por  nome  Zagoe,  de  quem 
tambem  se  fas  men^ao  nos  catalogos  dos  Imperadores.  Perguntei 
tambem  se  ouve  algum  Imperador  sancto  em  Ethiopia,  e  respondeo 
hum  dos  grandes  rindo,  que  nenhum.  Disse  o  Imperador :  Como  a 
*viao  de  ser  sanctos  morrendo  com  3^4  mancebas  a  ilharga[?] ;  e  ti^^^- 
sobre  isto  falou   bom  peda^o  da  devasidao  que  avia   antigamente. 


I 


LIVRO  II,  CAPITULO   XXIII.  615 

e  depoes  me  disse  Eraz  Cella  Christos  irmao  do  Imperador:  Por 
modestia  disse  meu  Senhor,  que  os  Imperadores  passados  morrerao 
com  3^4  mancebas  a  ilharga;  que  bem  podera  dizer  20,  porque 
nao  Ihes  faltavao.  Isto  era  antigamente  tao  usado  e  publico,  que 
demais  da  Emperatrix  tinhao  sempre  duas  molheres  como  proprias 
(a  fora  de  outras  mancebsis)  em  suas  casas,  huma  a  mao  direita  do 
paQo  e  outra  a  ezquerda,  e  a  esta  chamavao  Balteguera,  que  quer 
dizer  «  Dona  da  mao  izquerda».  So  o  emperador  David,  que  depoes 
se  chamou  Onag  (^agued,  dizem  que  nao  tinha  estas  mancebas.  E  ia 
pode  ser  que  o  que  informou  a  frei  Luis  de  Urreta,  a  quem  elle 
nomea  Joao  Balthesar,  fosse  parente  de  algxima  destas,  que  chamavao 
Balteguera  e  por  honrra  se  quisesse  chamar  Joao  Balteguera,  e  frei 
Luis  de  Urreta  entenderia  Joao  Balthesar,  porque,  como  me  disse 
o  Imperador,  a  primeira  ves  que  eu  o  nomeei  diante  delle,  nao  he 
este  nome  de  Ethiopia. 

O  que  temos  dito  bastava  pera  que  o  leitor  entendera  bem 
quam  fabulosas  sao  as  cousas  que  aqui  dis  frei  Luis  de  Urreta,  poes 
nas  terras  que  governa  o  Preste  Joao  nao  ouve  nunca  tais  Empe- 
radores  eccepto  Lalibela;  com  tudo,  pera  que  o  veia  mais  clara- 
mente,  ha  de  saber  que  o  que  affirma  do  primeiro  destes  Empera- 
f.  311.  dores  Phelipe,  que  a  rainha  Candace  *o  bautizou  no  monte  Amhara 
e  renunciou  nelle  o  imperio,  he  patentemente  falso ;  porque,  como 
dissemos  no'fim  do  cap.  7  do  primeiro  livro,  os  primeiros  que  se 
come<;arao  a  meter  naquelle  monte,  que  se  chama  Guixen,  forao 
pellos  annos  de  1295,  e  a  rainha  Candace  foi  no  tempo  dos  Apostolos. 

No  que  dis  mais  adiante  de  s.**  Eufrasia,  milhor  Ihe  fora  segfuir 
o  Martirologio  Romano,  que  dis  que  foi  da  Thebaida,  poes  em  esta 
Ethiopia  nao  ouve  tal  imperador  Joao,  cuia  filha  dis  que  foi. 

Tambem  he  falso  o  que  diz  do  Imperador,  a  quem  elle  chama 
Joao  o  Santo,  que  instituio  huma  ordem  militar  de  cavalleiros  co- 
mendadores,  que  peleiassem  contra  os  Arrianos,  porque^  como  mo- 
stramos  no  cap.  17  deste  2°  livro,  nao  ha,  nem  ouve  nunca  em 
Ethiopia  tal  ordem  de  cavalleiros;  nem  n^s  pra^as  estao  escritas 
em  taboas  as  leis  que  dis  fes  o  emperador  Phelipe  7°  e  nao  as 
podia  fazer,  pois  nao  ouve  nunca  tal  Imperador. 

Tambem,  se  fora  certo  o  que  dis  do  Preste  Joao  Abraham,  que 
mandou  fazer  huma  igreia  catredal,  onde  estao  mais  de  200  cleri- 
gos,  e  a  fama  de  suas  heroicas  virtudes  veio  hum  patriarcha  de 
Alexandria,  e  ambos  se  enterrarao  naquella  igreia,  muitos  aviao  de 


6l6  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

saber  isto ;  e  toda  via  dizem  todos  que  nem  ouvirao  tais  cousas,  nem 
que  ouvesse  nunca  tal  Imperador  em  Ethiopia. 
g.  Etiam  ca  quae  De  tudo  quanto  frei  Louis  tras  destes  Imperadores,  o  que  podia 

ab  Urreta  narraxitur  ,  . 

de  LalibeiA  fabulis  P^recer  mais  verisimel  he  *o  que  dis  do  emperador  Lalibela ;  mas  f.3ii,v. 
permixta    esse    de-  quasi  tudo  tambem  he  fabula,  porque  nem  as  historias  de  Ethiopia 

monstratur ;  de  eius-  »  x-     t  r- 

dem  vero  imperato-  referem  que  quando  naceo  o  cobrirao  abelhas,  nem  gnardou  vir- 
dubitare  licet :  fama  S^^^^^^  todS'  sua  vida,  porque,  como  todos  dizem,  foi  casado  e  teve 
sanctitatis  inter  Ae-  dous  filhos,   sua  molher  se   chamava  Mascal   QuebrS  e  os  filhos 

thiopes    nil    probat  .     a         -kt  /-.       * 

cum  multi  habeantur  Emera  Chnstos  e  Naacuto  va  Ab,  nem  sua  santidade  ha  muita  cer- 
ut  aancti,  qui  homi-  ^^       antes  me  disse  o  imperador  Seltan  Cacfued,  que  nao  era  santo, 

nes  ommno  perversi  ^  v  &         »  n  » 

fuerunt.  que  s6  a  gente   ignorante   falava   nisso.   Prova  bem    fraca:    que  a 

muitos  venerao  em  Ethiopia  por  santos  que  forao  muito  maos  e 
acabarao  como  viverao.  No  reino  de  Tigre,  na  terra  que  chamao 
Adecorro,  esta  huma  sepultura  de  hum  homem,  que  se  chamava 
Isac,  de  grande  romagem  e  concurso  de  gente  popular,  porque  o 
tem  por  santo,  sendo  assim  que  esteve  naquelle  reino  alevantado 
contra  os  Imperadores  mais  de  20  annos  comendo  as  rendas  delle; 
e  indo  la  com  exercito  o  imperador  Adamas  Qagued,  chamou  os 
Turcos  de  Ma^ua  e  Ihe  deu  com  elles  batalha  em  campo  e  o  de- 
sbaratou  e  assim  levarao  os  Turcos  grandes  despojos  e  muitos  chri- 
staos   cativos;   e  depoes   de  alguns  annos   foi  o  imperador   Malac  | 

Qagued  sobre  elle  com  grosso  exercito,  e  tambem  tornou  a  trazer  J 

Turcos,  mas  dando  batalha,  foi  elle  desbaratado  e  saio  mui  ferido 
della,  e  vendo  que  nao  podia  escapar  dos  que  andavao  correndo  o 
campo,  disse  a  alguns  que  com  elle  estavao,  que  Ihe  cortassem  a  ca- 
be^a  *e  a  enterrassem  e  langassem  nova  que  fugira  e  com  isto  po-  f-  3"- 
deriao  comer  aquelle  reino  algum  tempo ;  o  que  elles  nao  quizerao 
fazer ;  e  assim,  chegando  dali  a  pouco  os  do  Imperador,  o  matarao 
e  Ihe  levarao  a  cabe^a ;  e  com  viver  e  morrer  desta  maneira,  o  tera 
por  grande  santo  a  gente  daquella  terra,  porque  dizem  que  fazia 
muitas  esmolas.  Por  tais  tem  tambem  muitos  o  abuna  Simao  e  a 
Julios,  que  morrerao  da  maneira  que  dissemos  assima  no  cap.  5. 
Pollo  que  nao  he  muito  que  tenhao  tambem  por  santo  ao  impe- 
rador  Lalibela,  que  fes  as  igreias  de  que  tratamos  no  cap.  15  deste 
2"^  livro.  E  pera  que  se  veia  quam  differentemente  contao  sua  vida 
os  livros  de  Ethiopia  do  que  no  seu  a  refere  frei  Luis  de  Urreta, 
a  porei  aqui  da  maneira  que  nelles  a  achei. 
10.  Quid  de  Lali-  Vida  do  imperador  Lalibela  como  a  contao  os  livros  de  Ethiopia, 

beia  narret  Sinass£-  ^  ,      .      ,        ,  ,  ,  ,. 

rium  Aethiopicum.  «  Aos   17  de  junho  descansou  o  bemaventurado  e  nmpo  e  olha- 


LIVRO  II,  CAPITULO  XXIII.  617 

«  dor  dos  misterios  do  ceo  Lalibela  imperador  de  Ethiopia.  Quando 
«  naceo  este  Santo,  o  criarSlo  seus  pais  em  temor  de  Deos,  e  che- 
«  gando  a  ser  mancebo,  o  vio  o  Imperador  seu  irmao  que  crescia  e 
«  que  avia  de  possuir  seu  imperio  e  estar  sobre  sua  cadeira.  Entrou 
«  nelle  enveja  e  mandouo  chamar,  e  quando  yejo,  o  fez  estar  em 
f.3i2,v.  «  pe  diante  delle  e  buscan*do  achaques,  mandou  que  Ihe  dessem 
«  muitos  acoutes  das  6  horas  da  menhfta  ate  as  8  ou  nove ;  depoes 
«  o  mandou  trazer  e  vendoo  se  maravilhou  muito  elle  e  toda  sua 
«  gente,  porque  nenhuma  cousa  Ihe  chegara,  qne  o  livrara  o  anjo 
«  de  Deos ;  e  assim  Ihe  disse  o  Imperador :  Perdoaime,  meu  irmao, 
«  o  que  fis  contra  vos,  e  fizerao  pas  e  amizade.  E  vio  Deos  seu 
«  tormento  daquelle  dia  e  Ihe  deu  o  imperio,  e  estando  nelle  cuidou 
«  em  que  agradaria  a  Deos  e  fes  muitas  esmolas  aos  pobres;  e 
«  vendo  Deos  a  fortaleza  de  seu  amor,  Ihe  apareceo  o  anjo  do  Se- 
«  nhor  em  sonhos  e  mostroulhe  como  avia  de  fazer  as  10  igreias 
«  de  difFerente  maneira;  e  fes  como  Deos  Ihe  mostrou,  e  quando 
«  acabou  de  edificar  aquellas  igreias,  fes  possuir  o  imperio  a  seu 
«  irmao  e  assim  descansou  em  pas  ». 

Ate  aqui  sSo  palavras  do  livro  que  conta  a  vida  deste  Impe- 
rador,  e  nao  dis  cousa  nenhuma  mais,  e  se  fora  certo  o  que  refere 
frei  Luis  de  Urreta,  nao  o  ouvera  de  deixar.  Nem  ainda  ao  que 
conta  este  livro  se  pode  dar  credito,  poUas  muitas  mentiras  que 
nelle  estao,  entre  as  quais,  falando  da  circuncisao  de  Christo  N.  S.°^ 
dis  que  a  Virgem  Nossa  Senhora  rogou  a  s.  Joseph  que  Ihe  trou- 
xesse  hum  homem  sabio,  que  circuncidase  o  menino,  e  quando  o 
trouxe,  teve  Christo  N.  S.°'  huma  comprida  pratica  com  elle  e  ul- 
timamente   levantou   os   olhos  ao   ceo,  e  falando   com   seu   eterno 

« 

Padre  disse:  O  Padre,  daime  a  circuncisao  que  destes  a  Abraham, 
Isac  e  Jacob  primeiro,  sem  mao  de  homem ;  e  entao  apareceo  cir- 
f.  313  cun*cidado  sem  mao  de  homem,  e  foi  sua  circuncisao  sem  se  saber 
e  mostrou  sua  sabedoria  em  que  nao  se  cortasse  causa  alguma  de 
sua  came  na  circuncisao. 

De  tudo  o  que  dis  (stc)  frei  Luis  de  Urreta  affirma  destes  Im-      n.  Quae  de  Ele- 

.  ,    ,  r  '^         n  '  r  sbaaxi  narrant  aucto- 

peradores,  so  huma  cousa  me  fes  reparar  muito  e  foi  o  que  retere  ^^  graeci,  libri  Ae- 
do  imperador  Elesbaam,  por  rezao  dos  autores  que  cita,  e  porque  thiopumtribuuntim- 

peratori  Caleb. 

o  cardeal  Cesar  Baronio  em  seu  7°  tomo  dis  que  no  anno  de  522 
reinava  em  Ethiopia  na  cidade  real  de  Auxume  (que  parece  sera 
a  mesma  que  agora  qua  chamao  Aggum)  el  rei  Elesbaan,  e  conta 
como  venceo   ao  judeu,  e  que  em   reconhecimento    da  merce  que 

C.  Beccari.  Jier.  A^ik,  Scripi,  occ.  ined.    —  II.  78 


6l8  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Deos  Ihe  fizera  em  Ihe  dar  tam  grande  vitoria,  mandou  sua  coroa 
a  Hierusalem,  e  saindo  de  noite  de  sua  cidade,  se  foj  a  hum  mo- 
steiro  de  religiosos,  que  estava  em  hum  monte,  e  metendose  em 
huma  casinha  pequena,  esteve  nella  muitos  annos,  fazendo  grandes 
penitencias  ate  que  passou  desta  vida.  Por  isto  e  porque  o  Marti- 
rologio  Romano  de  Gregorio  1 3°  fas  men^ao  deste  Rei  de  Ethiopia 
Elesbaan  a  27  de  outubro,  perguntei  com  diligencia  aos  frades  ve- 
Ihos,  que  podiSlo  dar  milhor  rezao  disto,  e  todos  convem  em  que 
nSo  ouve  nunca  nestas  terras  Rej  que  tivesse  tal  nome,  mas  que  em 
huma  povoacao  do  reino  de  Tig^e,  que  chamSo  Ag^um,  que  primeiro 
foi  cidade  muito  grande,  reinara  antiguamente  hum  Rei  que  se 
chamava  Caleb,  de  quem  seus  livros  contavao  a  mesma  historia,  que 
os  autores  *assima  citados  atribuem  a  Elesbaan.  Pello  que  pro-  '313,^. 
curei  aver  este  livro,  e  achouse  em  hum  mosteiro  muito  antigo  que 
esta  no  mesmo  luguar  de  Ag^um  e  falando  del  rei  Caleb  dis  desta 
maneira. 
la.  Refert  Axictor  c  Morto  Tacena  rei  de  Ag^um,  reinou  seu  filho  Caleb,  homem 

zta  librum,  quem  in   *  sabio  e  forte  e  de  verdadeira  fe.   A  este  mandou   recado  Timo- 
perantiquo  monaste-  ^  theos   papa  de  Egypto  e  Alexandria   sobre  a  gente  de  Nagran, 

rio  prope  Azum  Au- 

ctor  invenit.  c  que  matou  aquelle  Judeu  tirano   por  nome  Finaias,   pedindo  que 

«  fosse  logo  aiudar  aquelles  christaos.  E  mandando  primeiro  10  mil 
«  e  500  soldados  de  Ethiopia  bem  armados,  morrerao  de  sede  no 
«  caminho ;  e  como  el  Rei  teve  esta  nova  tam  triste,  foi  disfra^ado  [sic] 
«  a  hum  homem  santo,  que  se  chamava  abba  Pantaleao,  e  chegando 
«  beijou  por  deva^ao  a  parede  e  Ihe  pedio  com  lagrimas,  que  ro- 
«  gasse  a  Xosso  Senhor  por  elle,  e  que  Ihe  dissesse  o  que  Ihe  pa-  I 

«  recia  que  Ihe  avia  de  soceder,  e  deulhe  conta  dos  soldados  que  ■ 

«  Ihe  morrerao.  Disselhe  entao  o  Santo  que  fosse  em  pas,  que  avia 
«  de  vencer  os  inimigos  dos  christaos  e  que  o  morrerem  os  soldados 
«  fora  obra  do  demonio;  que  fosse  confiadamente,  que  avia  de  plantar  1 

«  la  igreia  e  insinar  a  fe  de  Christo  e  depoes  tomar  a  sua  casa  a  • 

«  salvamento.  Alegrouse  el  Rei  muito  com  isto,  tomando  aquellas  J 

«  palavras  como  de  Deos,  e  recebendo  sua  ben^ao,  deu  a  hum  seu  l 

«  discipolo   hum  prezente   de   incenso  e  dentro  10   on^as  de  ouro  f 

■ 

«  escondidas;  e  chegando  o  discipolo  com  isto,  Ihe  disse  o  Santo: 

«  Pera  que  o  tomastes?  Nao  *sabeis  que  esta  dentro  ouro?  Deixai,   f.  314. 

«  deixai.  E  virandose  pera  el  Rei,  Ihe  disse,  porque  cometera  aquella 

«  culpa[?].  O  evangelho  dis:   Dainos  o  pao  de  cada  dia.   Peraque 

«  destes  tanto  ouro?    Nos  nao   queremos  ser   riquos:   dai  isto   aos 


t 


LIVRO  II,  CAPITULO    XXIII.  6 1 9 

«  pobres  e  ficarvos  ha  guardado  no  ceo.  Ide  que  as  ora^oes  de 
«  Timotheos  papa  de  Alexandria  e  as  lagrimas  de  Justino  vos  acom- 
«  panharSo.  Tambem  o  sacrificio  dos  martires  de  Nagran,  que  ia 
«  chegou  ao  ceo,  ira  em  vossa  companhia  e  Deos  vos  daira  vitoria. 

«  Partio  el  Rei  com  muita  confianga  em  Deos  e  nenhuma  em 
«  suas  for^as,  nem  nas  de  seus  soldados;  o  que  sabendo  o  Judeu, 
«  fes  alg^mas  cadeas  de  ferro  muito  grandes,  pera  impedir  a  pas- 
«  sagem  de  suas  naos  que  erSio  171,  das  quais  103  erSlo  grandes. 
«  E  chegando  el  Rei  ao  luguar  e  nSlo  podendo  passar  as  naos,  Ihe 
«  apareceo  hum  homem  como  hermitao,  de  rosto  branco,  fermoso 
c  e  resplandecente,  e  Ihe  fes  sinal  com  a  mSlo,  que  passasem  polla 
«  mSLo  direita  (esta  visSlo  nSio  vio  o  inimigo) ;  e  chegando  la  el  Rei 
«  com  1 1  naos,  as  foi  guiando  aquelle  hermit£lo.  Nisto  mandou  o 
«  Judeu  muita  gente  pera  impedir  o  passo  as  naos,  mas  el  Rei  deu 
«  nelles  e  os  matou  e  queimou  suas  cascis  e  foi  assolando  quanto 
«  achava  no  caminho  ate  chegar  onde  estava  o  Judeu,  a  quem  ca- 
«  tivou.  De  tudo  isto  nSlo  sabia  nada  a  outra  parte  da  armada  del 
«  Rei,  que  teve  muitos  trabalhos  e  fomes ;  pollo  que  os  della  fizerao 
«  oragao  a  Deos,  e  teve  por  bem  de  os  ouvir  e  mostroulhes  aquelle 
«  frade,  o  qual  tomou  com  huma  mao  o  cabo  de  hum  cavalo  dos 
«  inimigos  e  com  a  outra  Ihe  deu  huma  ferida.  Entao  fugirao  os 
«  imigos  de  Christo,  e  os  de  Ethiopia  forao  dando  nelles  e  matando 
«  muitos,  ate  que  chegarao  onde  estava  el  Rei,  e  ficando  os  do 
«  Judeu  no  meio,  el  Rei  matou  muitos  mais  do  que  os  outros  ti» 
«  nhao  morto. 

«  Acabado  isto,  se  iuntarao  todos  e  contarao  o  que  Ihes  tinha 
f-3i4»v.  «  socedido  assim  no  mar  como  na  terra,  *e  como  el  Rei  tomou  a 
«  Finaas,  e  disse  el  Rei  como  hum  frade  fizera  sinal  a  elle  e  a 
«  suas  naos  e  dando  com  hum  pe  naquellas  cadeas,  as  quebrara  e 
«  passava  primeiro  sua  nao  e  depoes  as  outras  10  e  que  o  frade 
«  andava  sobre  as  agoas  como  se  fora  terra  firme,  e  acrescentou  el 
«  Rei  que  Ihe  parecia  que  aquelle  frade  era  o  que  estava  na  ca- 
«  sinha  de  sua  terra  e  que  elle  o  guiara  ate  o  luguar  do  Judeu, 
«  e  que  o  mesmo  frade  o  prendera  e  Iho  entregara  pera  que  o 
«  guardase  ate  que  se  plantasse  a  igreia  e  la  degolalo.  Disse  hum 
«  dos  principaes  del  Rei,  que  vindo  hum  vento  contrario,  aquelle 
«  frade  o  fes  deter  com  seu  bordao.  Outro  disse  que  se  quebrara 
«  huma  nao  e  que  fazendo  aquelle  frade  o  sinal  da  Crus,  ficou  outra 
«  ves  inteira ;  e  todos  disserao  que  tomando  aquelle   frade  o  cabo 


6zo 


HISTORIA   DE   ETHIOPIA 


13.      Addit      alia 
quaedAm     n    iradi- 
e;  descriptio  «pe- 


c  de  hum   cavalo   dos   imigos,    Ihe  deu  huma   ferida   em  modo  de 

<  cras,  e  logo  fugirao  os  tmigos.  Derao  entao  todos  muitas  gra^as 

<  a  Deos,  que  Ihes  fes  todas  estas  merces  polla  oraQSo  do  frade 
t  daquella  casinha  ». 

Ate  aqui  sao  palavras  do  livro,  que  se  guarda  no  mosteiro  de 
Ag^um,  e  nSo  prosigue  a  historia,  nem  declara  como  acabou  este 

cuB,  quo  Bc  collegit  rei  Caleb.  Mas  dizem  que  em  outros   livros  se  refere  tudo   o   que 

C«leb,  itizU  e«  quae    .         ,  ... 

Auctor  propriia  ocu-  fes  depoes  da  vitona,  que  eu  nSo  pude  achar  ategora.  Mas  af- 
usurpani.  firmoume  hum  frade  velho,  que  sabe  bem  de  historias,  que,  depoes 

daquella  vitoria,  mandara  sua  coroa  a  Hierusalem  em  reconheci- 
mento  de  quanto  alquan<;ara  por  singular  merce  do  ceo,  e  dando 
o  reino  a  hura  seu  filho,  se  metera  elle  em  huma  cova,  onde  fes 
grande  penitencia  ate  morrer.  Quanto  sua  sepultura,  esta  iunto  a 
Ag^um  feita  ao  picao  em  huma  rocha,  cuia  figura  he  esta. 


Tudo  iato  esu  aberto  e  ate  i 
do  cmzeiro  tem  i  J  covados  de  c 
e  quatro  de  lar^. 


Este  espaco  he  de 
.      locovadosdeeom- 
K       prido    e    sels   de 

1 

1 

0' 
1 

i 

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Ss 
S  " 

sl 

m 

Destas  portas  ate 
a  que  aqui  esta  fe-  S 
chadaEiolOcova-J  ■ 
dos  de  comprido  e  q 
4  de  latgo. 

^     Este  espa^o  he  de 
g*     locovadosdecom- 
1      prido  e  4  de  Urgo. 

INDEX   CAPITUM 

LIBRI   I   ET   II 


CUM   EORUNDEM   SUMMA&IIS 


[LIVRO   1] 


Capitulo  I.  —  Em  que  se  trata  da  situofam  e  de  quantos  e  quais 
sejam  os  reynos  e  provincias  da  parte  de  Ethiopia,  que  senhorea 
o  Emperador  que  chamam  Preste  Joam    ....     pag.  13-24 

Summarium.  —  i.  Cur  utatur  denominatione  Preste  Joam.  Errores  Urretae  geo- 
graphici  iDnumeri.  Auctor  describet  omnia  ex  propria  ezperientia.  Distantias  locorum 
metiuntur  incolae  per  dies  itineris;  Auctor  reducet  ad  leucas,  p.  13.  —  2.  Aethiopia  proprie 
dicta  extenditur  inter  tropicos  per  500  leucas  longitudinis  a  FocSi  usque  ad  Bahar  Gamo 
et  per  300  leucas  latitudinis  ab  Haz6  usque  ad  Ombare^.  Graves  errores  veterum  scrip- 
torum  et  recentiorum,  p.  14.  —  3.  Nomina  35  Regnoium  e  18  Provinciarum  iuxta  elen- 
chum  auctori  traditum  a  Secretario  imperatoris  Seltan  Sagad.  Errores  aliorum  scriptorum 
refelluntur,  p.  15.  —  4.  Forma  corporis,  color  ac  vestitus  Aethiopum  varia  iuxta  regiones, 
vires  corporis  robustae,  p.  16.  —  5.  Quoad  vires  intellectus  aequant  Europaeos;  vitia  dissi- 
mulant ;  veniam  pro  offensis  acceptis  non  recusant;  graviora  negotia  non  per  se,  sed  per  ter- 
tias  personas  tractant,  p.  17.  —  6.  Quomodo  sese  invicem  salutent,  p.  17.  —  7.  Denuo  de  ve- 
stibus  nobilium  et  plebis,  p.  17.  —  8.  Linguae  et  nationes :  Christiani,  Mahumedani,  Judaei 
et  Gentiles.  Confutatur  assertio  Urretae  de  eiectione  ludaeorum  et  Mahumedanorum,  p.  18. 
—  9.  Falsa  assertio  Urretae  monasterium  Alleluia  esse  Dominicanorum.  £x  serie  impe- 
ratorum  a  Na6d  ad  Atan&f  Sag&d  coUigitur  Alexandrum  III  numquam  extitisse,  p.  19.  — 
10.  Fabulae  qnae  de  isto  imperatore  Alexandro  III  protulit  Urreta:  perperam  etiam 
Fr.  Alvarez  asserit  sub  Alexandro  (Escander)  Lusitanos  Aethiopiam  fuisse  primum  in- 
gressos,  p.  20.  —  11.  Incolae  Aethiopiae,  licet  diversis  nomininibus  distincti  pro  diversis 


62  2  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

tribubus,  quanim  praecipua  Amhara,  comuni  vocabulo  Habex  vocantur :  falsa  interpretatio 
huius  nominis  ab  Urreta  tradita,  p.  21.  —  12.  Falsum  est  regnum  Aethiopiae  numquam 
sub  extera  potestate  fuisse.  Nam  Mahumedani  sub  Granh  potiti  sunt  Aethiopia  fere  uni- 
versa,  p.  22.  —  13.  Gallae  qui  sint  populi,  et  quomodo  a  tempore  OnHg  Sagad  Aethiopiam 
invaserint,  p.  22.  —  14.  Falsum  item  Aethiopiam  semper  a  legitimis  imperatoribus  fuisse 
gubematam.  Dynastia  Zagud  usurpavit  imperium  per  340  annos,  p.  23. 

Capitulo  II.  —  Em  que  se  trata  da  gerofam  dos  Emperadores  de 
Ethiopia,  comefando  da  reynha  Sabba pag.  25-32 

Sommarium.  —  i.  De  regina  Saba;  cur  de  ea  Auctor  loquatur,  p.  25.  —  2.  Varia 
eiusdem  nomina  et  ratio  illorum,  p.  2b.  —  3.  Incipit  historia  de  regina  Saba  iuxta  codices 
Axumiticos.  Tamerin  mercator  aethiops  pergit  ad  Salomonem;  admiratur  sapientiam  et 
divitias  illius,  p.  26.  —  4.  Mercator  revertitur  domum;  narrat  quae  viderat  reginae  Saba, 
quae  statuit  invisere  Salomonem,  p.  27.  —  5.  Regina  Saba  pervenit  lenisalem  et  moratur 
ibi :  admiratur  sapientiam  et  divitias  Salomonis,  p.  28.  —'  6^  Verba  Reginae  ad  Salomonem, 
p.  28.  —  7.  Responsio  Salomonis,  p.  29.  —  8.  ExactU.  *J  mensibus,  Regina  vult  abire. 
Salomon  eam  invitat  ad  coenam,  p.  30.  —  9.  £t  postea  cum  ea  rem  habet,  annulum 
tradit  et  divitiis  cumulatam  dimittit,  p.  31.  —  10.  Post  reditum  Regina  parit  filium  ex 
Salomone,  p.  31.  —  11.  Quaedam  Auctoris  adnotationes  ad  supradictam  historiam,  p.  32. 

Capitulo  III.  —  Em  que  se  declara  como  Menilehec  Jilho  da  reynha 
Sabba  foi  a  Jerusalem  a  ver  seu  pay  Salomam    .     pag.  33-49 

Summarium.  —  i.  Varia  nomina  filii  Sabae  et  Salomonis.  Unde  mos  Imperatorum 
mutandi  nomen  quum  ad  regimen  evehuntur,  p.  33.  —  2.  Instante  Menilehec,  Regina 
eum  mittit  ad  Salomonem  una  cum  Tamerin  mercatore,  p.  33.  —  3.  Menilehdc  pervenit 
Gazam,  unde  eum  Salomon  missis  donis  ad  se  venire  iubet,  p.  34  —  4.  Eum  Salomon 
recipit  cum  magno  favore  et  coram  omnibus  ut  suum  filium  recognoscit,  p.  35.  —  5.  Verba 
Tamerin  ad  Salomonem.  Hic  vult  suadere  Menilehdc  ut  apud  se  maneat,  sed  frustra,  p.  35. 
-^  6.  Ungitur,  praecipiente  Salomone,  a  sacerdotibus  in  regem  Aethiopiae  et  in  lege 
Mosaica  instruitur,  p.  36.  —  7.  Destinantur  primogeniti  Primorum  Israel  ad  esercenda 
praecipua  officia  in  regia  domo  Aethiopiae,  p.  37.  —  8.  Hi,  suadente  Azaria,  consiiium 
incunt  asportandi  secum  Arcam  Testamenti,  p.  37.  —  9.  lussu  Angeli,  qui  apparuit 
Azariae,  et  assentiente  Salomone,  sacrificium  fit  coram  Arca,  p.  38.  —  10.  Azarias  cum 
fratribus,  praeeunte  Angelo,  furantur  Arcam  et  domi  abscondunt,  p.  39.  —  11.  Menilehte 
iter  arripitcumsuis  trahentibus  Arcam ;  fletus  populi ;  benedictio  et  monita  Salomonis,  p.  39. 
—  12.  Promissio  Menilehdc  Sadoc  sacerdoti ;  prodigia  in  itinere,  p.  40.  —  13.  Salomon, 
detecto  furto  Arcae  Dei,  persequitur  Aethiopes;  sed  frustra,  p.  41.  —  14.  Menileh^c  per- 
venit  in  Aethiopiam;  regina  Maqueda  cum  universo  populo  recipit  filium  et  Arcam  Dei 
et  hanc  collocat  in  urbe  regni  principe  scil.  Debra  Maquedil,  p.  42  —  15.  Regina  cu- 
mulat  donis  filium,  eum  ungere  facit  ab  Azaria  in  regem,  principibus  et  populo  plauden- 
tibus,  qui  uni  Deo  Israel  cultum  in  posterum  praestant,  p.  43.  —  ib.  Observationes 
Auctoris  ad  historiam  Menileh^c,  quam  fabulosam  ex  parte  esse  ostendit,  p.  44.  — 
17.  Novae  et  nunquam  in  Aethiopia  auditae  fabulae  Urretae  circa  Arcam  Testamenti 
et  tabulas  legis  Moysis,  p.  45.  —  18.  Falsum  est  ex  monasterio  de  Alleluia  videri 
montes  Amharae,  p.  47.  —  19.  Legatio  loannis  Balthesar  ad  regem  Persidis  commen- 
titia,  p.  48.  -^  20.  Quid  probabiliter  veri  subsit  iu  fabulis  a  Balthesar  narratis.  ludaeus 
quidam  vocatus  a  MaUc  Sagad  ut  legeret  inscriptiones  Axumiticas,  p.  48.  —  21.  Nomen 
aethiopicum  Tabdt  duplicem  significationem  habet.  Inde  error  vel  fraus  Balthesar,  p.  49. 


INDEX  CAPITUM   LIBRI   I   ET  II.  623 

Capitulo  IV.  —  Em  que  se  trata  dos  officiaes  que  el  rey  Salomam 
deii  a  seu  filJio  David  pera  servifo  de  sua  casa^  e  dos  qtie  a^ora 
tem  0  Preste  Joam pag,  51-59 

Sttmmftrium.  i.  Loquendo  de  variis  oflficiis,  Auctor  expHcabit  ea  non  modo  iuzta 
libros  Aetliiopum,  sed  etiam  iuxta  prazim  suo  tempore  vigentem,  p.  51.  —  2.  Quid  si- 
gnificet  et  quodnam  sit  officium  Behdt  U&ddd ;  tempore  auctoris  Erftz  vocabatur  et  imus 
tantum  potiebatur  eo  titulo  et  officio,  p.  52.  —  3.  Quid  fuerint  duo  Hedi^g  Er&z  et  duo 
Gueita.  Quid  Uzta  Axftz  et  J&nderebdch  Azazdch.  De  officio  ecclesiastico  Acabe  E^ftt 
et  Quez-Hac6,  p.  52.  —  4.  De  aliis  officiis  scil.:  Er&z  balderaba,  Guciti  balderabft,  Man- 
gu6st  B4it,  Mar^d  Bdit,  Janbeldu,  AicenfA,  Egu^r  Zacord,  Janacanfi  Umbardch,  Jantac&l, 
JanderabS,  Jamxalami,  Tecftcanfich,  BaldebanS,  Bel^taguasagusft,  BaUmecah&f  et  Begft- 
m&ch,  p.  53.  —  5.  De  iis  officialibus  qui  vocantur  Ddb  Ambe^ft,  Derft  Moftmoai,  Beit 
An^ft,  Beztegr^,  Botrag^t  Z&yeyahax,  Beita  Gu^ber,  Cuam6ch,  Bala-C^m,  Beita  Hsliz  et 
de  muliere  dicta  Ite  Agr6d,  cuius  officium  est  punire  ignominiose  qui  fugiunt  tempore 
pugnae,  p.  54.  —  6.  De  duobus  officiis  recenter  introductis  scil.  Talah&c  Balatin6ch 
Gueitd  et  Tecacfln  Balatindch  Gueitfi.  Ephebi  honorarii  in  tres  classes  divisi  iuxta  aulas 
ubi  inserviunt,  quae  vocantur  Amba^A  B^it,  Zefan  B6it  et  Faraz  B^it  Antiquitus  erant 
30,  nunc  eorum  numerus  indeterminatus.  Cur  hi  soli  adstent  diu  noctuque  coram  Rege, 
p.  54.  —  7.  Quid  in  unaquaque  e  tribus  aulis  agatur,  p.  55.  —  8.  Antiquitus  reges  Ae- 
thiopiae  nequibant  videri  nisi  a  30  ephebis  qui  eis  inserviebant,  p.  56.  —  9.  Sub  quibus 
Imperatoribus  illae  caeremoniae  fuerint  sublatae,  p.  56  —  10.  Errores  Urretae  in  hac 
materia  refutantur,  p.  57.  —  11.  Aliae  fictiones  Urretae  circa  officiales  domus  regiac,  p.  58. 

Capitulo  V.  —  Em  que  se  poem  dous  Caialogos  dos  Emperadores 
de  Ethiopia  e  sc  trata  dos  nomens  comuns  que  tem  .     pag.  61-73 

Summarium.  i.  Cur  iuxta  Auctorem  differant  inter  se  duocatalogi  Imperatorum.  Libri 
aethiopici  scatent  erroribus  ex  amanuensium  culpa,p.  6r.  —  2.  Primus  catalogus  qui  enu- 
merat  94  Imperatores,  p.  62.  —  3.  Alter  catalogus  qui  enumerat  165  Imperatores,  p.  64.  — 
4.  Quaedam  adnotationes  Auctoris.  Quid  mali  patraverit  Zara  Jacob,  et  quid  de  eo  sen- 
scrit  Susneos,  67.  —  5.  Sevcritas  immo  et  crudelitas  Zara  Jacob  iuxta  libros  aethio- 
picos,  p.  67.  '-  6.  Referuntur  alia  gesta  Zara  Jacob  ex  iisdem  libris,  p.  68.  —  7.  Alia 
nomina,  quibus  reges  Aethiopiae  vocantur  scil.  NegOz  et  Negu^a  Nagazt  za  Ethiopia, 
Acegue,  Jan  Coi,  Delbe  Jan,  Belfll  Coi,  Jan  Belfil,  explicantur,  p.  69.  —  8.  Error  Ur- 
retae  circa  nomen  Beldigian,  quod  dicit  esse  commune  omnibus  Imperatoribus  Aethio- 
piae,  p.  70.  —  9.  Beldigian  non  est  nomen  aethiopicum,  neque  comiptio  Belul  Jan,  quo 
nunquam  utuntur  Abissini  ad  designandos  Imperatores.  Hi  numquam  fiunt  sacerdotes,  bene 
autem  diaconi  et  cur,  p.  71.  —  10.  Exquiritur  origo  appellationis  Presbyteri  loannis. 
Error  philologicus,  p.  72.  —  11.  Error  historicus,  p.  72. 

Capitulo  VI.  —  De  Guixfn  Ambd  onde  se  guardam  os  descendentes 
dos  Empcradorcs  antiguos pag.  74-85 

Summarium.  i.  Auctor  describet  Guixen  Amb^  ex  relationibus  trium  testium  de  visu 
fide  dignorum,  p.  74.  —  2.  Commenta  risu  digna  Urretae  circa  Guix^n  Ambal,  p.  76.  — 
3.  Auctor  describit  situm  monnis  Amba  Guix^n,  pauperes  casas  et  duas  ecclesias,  quae  in  cius 
cacumine  inveniuntur,  p.  80.  ~  4.  Arbores  ibidem  paucae,  e  fructiferis  nullae,  una  medicina- 
lis;  e  leguminibus  crescit  solum  hordeum  et  faba,  p.  81.  —  5.  Ex  animalibus  sylvestribus 
Bolummodo  simiae,  serpentes  ct  cuiiiculi;   e   domesticis  oves   et   caprae,  82.  —  6.   Unde 


624  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

exploditur  fabulosa  descriptio  Urretae,  p.  82.-7.  Quae  de  fertilitate  regni  Amhard 
Balthesar  retulit  perperazn  Urreta  transtulit  ad  montem  Guixdm,  quem  ipse  montem 
Amara  appellat,  p.  83. —  8.  Canes  in  Aethiopia  non  rari,  ut  Urreta  dixit,  sed  innumeri.  Item 
non  Alexander,  sed  Naod  ultimus  imperator  eductus  ab  Ambd  GuixSn,  p.  84.  —  9.  Fran- 
ciscus  Alvarez  quoque  erravit  circa  Guixdn  Amb^  propter  imperitiam  linguae  aethio- 
picae,  p.  85. 

Capitulo  VII,  —  Em  que  se  trata  das  duas  igrejas  e  mosteiros  que 
ha  em  Guixen  Ambd pag.  87-92 

Summarium.  i.  Antiquitus  Aethiopes  more  aliorum  gentilium  supra  vertices  mon- 
tium  idolis  sacrificare  soliti:  quod  etiam  nunc  Agdus  praestant,  p.  87.  —  2.  Eventus  mira- 
bilis  cuiusdam  clerici  cum  quodam  circulatore  Agaus,  p.  88.  —  3.  Ad  toUendam  memoriam 
idoli  Darhd  aedificat  Lalibald  in  vertice  Guixdn  templum  Deo  Patri  et  aliud  B.  Vir- 
gini,  p.  88.  —  4.  Na6d  et  Ondg  Sagad  ex  voto  reaedificant  in  ampliorem  formam  primum 
templum,  quod  a  Granh  postea  igne  combustum  est,  p.  89.  —  5.  De  monachis  et  clericis 
qui  custodiunt  ambas  Ecclesias,  p.  90.  —  6.  Referuntur  ea  quae  Urreta  somniavit  circa 
originem  et  structuram  istarum  ecclesiarum  et  confutantur,  p.  90« 

Capitulo  VIII.  —  Em  que  se  trata  da  livraria  de  Guixen  Ambd, 

pag.  93-98 

Summarium.  i.  Cur  Auctor  refutet  ea,  quae  commentus  est  Urreta  circa  biblic- 
thecam  existentem  in  Guix€n  Amba,  p.  93.  —  2.  Descriptio  bibliothecae  ab  Urreta 
facta,  p.  93.  —  3.  Antiquitus  ad  summum  200  volumina  mss.  prope  Ecclesiam  Dei  Patris 
servabantui :  sed  post  incendium  tempore  invasionis  Granh  non  amplius  quam  viginti 
volmnina  modo  asservantur  ibi,  p.  95.  —  4.  Reliquae  fabulae  Urretae  circa  bibliothecam 
refutantur,  p.  96.  —  5.  Falsum  est  pontificem  Gregorium  XIII  misisse  Roma  duos  doctos 
viros  ad  faciendum  catalogum  illius  bibliothecae,  item  monachos  custodes  esse  200.  Hi 
non  sunt  nisi   14  pro  utraque  ecclesia  et  clerici  30,  p.  98. 

Capitulo  IX.  —  Em  que  se  mostra  que  nenhum  thesouro  teve  nunca 
o  Preste  Joam  guardado  em  Guixcn  Ambd.     .     .     pag.  99-110 

Summarium.  i.  Fabulae  Urretae  de  incredibili  quantitate  auri,  quae  asservatur  in 
Amba  Guix^n,  collecta  a  tempore  reginae  Saba,  p.  99.  —  2.  De  nummis  aureis  et  ar- 
genteis,  p.  loi.  —  3.  De  lapidibus  pretiosis  absque  numero,  p.  loi.  —  4.  De  quodam 
pretioso  lepide  mirae  magnitudinis  et  operis  singularis,  p.  102.  —  5.  Auctor  deridet  Ur- 
retam  fabularum  inventorem,  p.  103.  —  6.  Dcmonstrat  Reges  Aethiopiae  nunquam  ha- 
buisse  neque  tunc  temporis  habere  thesauros  reconditos  in  Ambd  Giiixdn.  Selt&n  Sagad, 
defectu  pecuniae,  vendidit  aliquot  catcnas  aureas,  p.  104.  —  7.  Quid  dixerint  Auctori  duo 
illi  principes,  qui  longo  tempore  morati  fuemnt  in  Amba  Guix6n:  quid  ipse  Seltdn  Sagad, 
p.  105.  —  8.  De  lapidibus  pretiosis  non  est  memoria  in  Ethiopia.  Seltan  Sagad  pro  suo 
diademate  falsos  lapides  pretiosos  ex  India  acquisivit  In  mensa  Imperatoris  Auctor  nun- 
quam  vidit  aurum,  neque  argentum,  p.  106.  —  9.  Etruriae  Duces,  iuxta  affirmationem 
Seltan  Sagad,  ante  annum  161 1  nunquam  epistolas  miseruut  ad  Reges  Aethiopiae  mul> 
toque  minus  legatos,  p.  107.  —  10.  Perperam  ab  Urreta  allegatur  auctoritas  Francisci 
Alvarez  et  Petri  de  Covilham,  p.  107.  —  11.  Helena  imperatrix  in  sua  epistola  ad  Regem 
Lusitaniae  hyperbolice  loquuta  est  de  divitiis  Regum  Aethiopiae,  p.  108.  —  12.  Quid  sit 
veri  in  eo  quod  aflfirmat  Urreta  de  nummis  excusis  ab  Alexandro:  Auctor  loquitur  ex 
propria  experientia,  p.  109. 


INDEX  CAPirUM   LIBRI   I   ET  II.  625 

Capitulo  X.  —  Em  que  se  declara  a  causa  porque  se  camefaram  a 
meter  os  Jilhos  dos  Emperadores  em  Guixin  Ambd  ;  ate  que  Em- 
perador  durou  este  costume  e  como  se  guardam  agora  os  descen" 
dentes  de  CLquelles  primeiros pag.  1 11-120 

Sumauirium.  i.  Filius  imperatoris  Iciinu  Amlac  fuit  primus  qui  fratres  suos  in 
Amb£  Guix6n  custodiendos  misit,  p.  iii.  —  2.  £x  eo  tempore  usque  ad  Nadd  viguit  ille 
mos.  Filii  Imperatorum  poterant  nubere,  illis  dabatur  cibus  et  potus  abundanter,  sed 
pecunia  parca.  Mancipiis  utebantur  ad  servitia,  commercium  cum  nobilibus  et  hominibus 
liberis  illis  vetitum,  p.  112.  —  3.  A  militibus  armatis  custodiebantur.  Duo  homines  no- 
biles,  vocati  Acahii  Ambd  et  XobhSr  Jan  Cirfir,  eorum  curam  gerebant,  immo  eis  impe- 
rabant.  Exeroplum  notabile  severitatis,  p.  113.  —  4.  Zara  Jacob  ignominiose  tractat  omnes 
pertinentes  ad  faroiliam  imperatoris  Hezb  In&nh.  B^da  Maridm  eos  restituit  in  pristinum 
statum.  Sed  illi  rebellant.  B£da  Maridm  per  fraudem  expugnat  Ambi  Guixdn  et  80 
ex  fiUis  Imperatoruro  capite  plectit,  p.  114.  —  5.  Na6d,  ultirous  qui  ad  imperium 
fuerit  evectus  ex  Ambd  Guixdn,  prohibuit  ne  sui  filii  eodem  custodirentur,  et  ex  eo  tem- 
pore,  scil.  a  114  annis,  vetus  consuetudo  cessavit,  p.  115.  —  6.  Prognati  tamen  veterum 
Imperatorum  adhuc  in  Amba  Guixdn,  in  liberiori  licet  custodia,  relicti.  Tempore  Auctoris, 
scil.  anno  1616,  ad  200  numerabatur,  inclusis  uxoribus  et  filiis,  p.  115.  —  7.  Quae  retulit 
Auctor  circa  Ambd  Guixdn  scivit  a  Selt&n  Sag&d  et  a  quibusdam  Principibus,  qui  longo 
tempore  in  ea  Ambd  morati  sunt.  Errores  Urretae  et  Alvarez  circa  originem  consuetu- 
dinis  praedictae,  p.  116.  —  8.  Ex  dictis  supra  refutantur,  p.  116.  —  9.  Alia  commenta 
Urretae  risu  digna,  p.  117.  —  10.  Iterura  alia,  p.  118.  —  11.  Breviter  refutantur,  p.  119. 
—  12  Falsum  denique  mulieres  nullas  subiisse  imquam  Ambd  GuixSn,  p.  220. 


Capitulo  XI.  —  Em  que  se  trata  do  modo  que  tinham  antigua- 
mente  em  Ethiopia  em  eligir  Emperador,  escolhendo  hum  dos 
Principes  de  Guixin  Ambd,  e  do  qtie  agora  se  zisa.    pag.  1 2 1 -i  3 1 

Summarium.  Referuntur  fabulae  Urretae  circa  electionem  Imperatorum  eiusdemque 
caeremonias,  p.  121.  —  2.  Iterum  alia  comroenta  Urretae,  p.  124.  —  3.  Electio  Impera- 
torum  numquam  habita  est  in  Guixen  Ambd,  neque  eam  praecessit  ieiunium,  p.  125.  — 
4.  Numquam  Reges  alii  interfuerunt  electioni,  neque  Archiepiscopi  et  Episcopi,  quia  unus 
Episcopus  in  tota  Aethiopia,  qui  non  est  nec  unquam  fuit  Patriarcha,  p.  126.  —  5.  Im- 
peiatores  praeferunt  Crucem  non  ut  sceptrum  sed  ut  insigne  diaconatus,  p.  127.  —  6.  Neque 
iurant  se  quatuor  prima  concilia  una  cum  Florentino  observaturos.  Contumeliae  quae  ^ 
contra  Calcedonense  leguntur  in  libro,  qui  inscribitur  Mazaqucbt  Haimanot  et  alia  contra 
s.  Leonem  papara  in  alio  libro  dicto  Hairaan6t  Abb6,  p.  127.  —  7.  Quam  mal»;  sentiant 
Aethiopes  de  concilio  Ephesino  demonstrat  Guerreiro,  p.  128.  —  8.  Quae  narrat  Auctor 
circa  electionem  habuit  ab  ipso  Seltdn  Sagiid,  abAbba  Marca  et  aliis  fide  dignis.  In 
libris  aethiopicis  nulla  de  hac  re  mentio.  Electores,  qui  ct  Gubernatores  tempore  vaca- 
tionis,  novem,  scil. :  2  Behfit  Oaded,  2  Uzta  Azax,  2  Hedug  Eraz,  2  Goita,  et  i  Acabivat. 
Qui  ferebat  nuncium  electionis  vocabatur  Jdn  (Jarar,  p.  129.  —  9.  Receptio,  unctio 
et  proclamatio  neo  electi  in  regem  fiebant  a  4  e  primoribus  ecclesiasticis,  p.  130.  — 
10.    Praedictac  caeremoniae  locum  habuerunt  usque  ad  Naod,  p.  131. 

C.  Bbccari.  J^er,  AeiA»  Script.  occ»  ined.  —  II.  79 


626  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

Capitulo  XII.  —  Das  ceremonias  que  usam  em  Ethiopia  em  a 
roofam  do  Emperador pag.  133-1 

Summarium.  1.  Soleninis  uDctio  et  coronalio  Iniperatoniin  Gt  ab  immeiDOTBbili 
ecclcsia  urbis  Axum,  p.  133. —  1.  Nomina  digDitaluni,  i]use  iuxta  libruni  caeremol 
rum  coronatioDis,  adesse  debent  caeremonUe,  et  quid  unaquaeque  praestet,  p.  133. 
3.  De  caeremoDiis,  quae  praecedunl  coroDationem.  Imperator  interrogatur  a  pueila  qi 
□am  sit;  responsio;  ovaCiones  populi.  Imperator  auntm  spaTgit :  quinain  illad  colligi 
p.  134.  —  4.  Domestica  et  sylTestria  sDiinalia  ab  incoiis  circumstaatium  regionum  o 
runtur  vivemia;  monachi  psalmos  et  hymnos  cantant;  populus  flores  spargil  super  tl] 
num  legis,  p.  135.  —  5.  Anle  ihronum  ofTeitui  regi  in  vasis  aureis  lac  et  vinum  ei  me 
in  aigenteis  aqiia  et  vinum  de  vite:  inde  ungitur  a  clericis  senioribus;  pergit  ad  or 
dum  ia  ecclesiam:  accipit  ab  Abuna  et  singulis  rleiicis  et  a  piimoribus  regni  beae 
ctionem;  denuo  ipse  benedicit  onjnibm  et  revertitur  dcimiim,  p  135.  —  6.  Cur  Auc 
noQ  potuit  interease  corouationi  Seltin  SagSd:  caeremonias  tunc  habitas  refert  ei  infom 
tioae  lohannis  Gabriel  lutitani,  qui  nti  dui  lusitaDae  cohortis  et  amicus  Impeiatoris  interfi 
p.  i;(i.  —  7.  DeM^riptio  caeremoniae,  (]uae  non  valde  distat  ab  ea  superius  allaia  ei  libris 
clesiae  Aium,  p.  137.  —  8.  Tempore  Auctoris  non  eiistebant  amplius  illae  catliedrae 
petra,  de  quibus  lil  mentio  in  libTis  aethiopicis  et  iri  Hhtoria  Fiancisci  Alvare^,  p.  139. 

pro  ecclesia  palnim,  p.  139.  —  10.  Indc  aggreditur  cum  suo  eiercitu  reiielle»  tigrens 
quoram  dui  tamen  cum  pauds  fuga  salutem  iDvenit,  p.  140.  —  11.  Ei  dictis  supra 
coronatione  sequitur  descriptioncm  Urretae  fabulosam  esse,  p.   141. 

Capitulo  XIII.  —  Rm  que  se  trata  do  modo  com  que  0  Emperad 
de  Ethiopia  ouve  os  officios  divinos  , ,   ....     pag.  143-1, 

Summarium.  1.  Vetus  coasueludo,  iuita  quam  nemo  poterat  aspicere  vultum  I 
peratoris,  iam  iode  a  tcmpore  Fraacisci  Alvarez  abolita,  p.  143.  —  2.  Quonam  appara 
iusta  Alvarei,  imperator  Onig  SagSd  se  cocfeiebat  ad  audieodam  missam,  p.  I44. 
3.  Quomodo  iient  Imperatores  ad  audiendam  missam  lempoie  Auctoria,  p;  145.  —  4.  1 
scriptio  cathedrae  Imperatoiis  in  ecclesi.i  et  pompae  in  reditu.  Descriptio  sellae  im; 
rialis  in  regio  tcatorio,  p.  145.  —  5.  Descriptio  pompae  qua  Ataaaf  Sngld  se  conti 
ad  audiendam  missam  in  ecclesia  catholicomm  ab  Auctore  celebratam,  p.  146,  —  6.  ] 
stum  Inventionis  s.  Crucis  desciiptum  ab  Uireta  commeatitium,  immo  ignotum  b; 
Acthiopes.  qui  t.-imen  m.igno  apparatu  celebiant  festum  Ei.iltationis  eiusdem.  p.  147. 
r.  Falsa  descriptio  festi  in  dominica  Palmarum  ab  Uireta  tiadita,  p.  148.  —  8.  Qu; 
absonum  sit  quod  lefert  Urieta  circa  festum  ss.  Sacrameati  ia  Aethiopia  celebr.ntum 
mandalo  pontlticis  Pautt  III,  p.  149.  —  9.  In  Aetbiopia  nullae  domus  cum  fenesliis,  > 
tnntum  paivac  casae  cum  solo  pede.  Nulla  n 


C.\PITUL0  XIV.  —  Do  aparato  que  leva  0  Emperador  quando  i 
minha  e  da  ordem  com  que  asenta  suas  tendas  .     pag.  151-1 

Summarium.  —  Modus  iter  habendi  Imperatoium  tempore  antiquo,  p.  151. 
:.  Quomodo  sua  itineia  instituerit  AtanAf  Sngad,  iuita  descriptionem  Alvarez,  p.  151. 
3.  Quid  in  suo  vestitu  tempore  itineiis  immutaverit  Sellan  Sagdd,  p.  151.  —  4.  Auc 
dcscribit  fuse  el  de  visu  modum  iier  haliendi   Scllan  SagSd  tempore  belli.  Eieicitus 


INDEX  CAPITUM  LIBRI   I   ET  II.  627 

quatuor  acies  distinctus:  primae  praeest  Imperator,  secundae  Fit  Aorari,  tertiae  Cdnhe 
Azm&ch,  quartae  Guer&  Azmach,  p.  153.  —  5.  Quomodo  Selt^n  Sagid  iter  faciat  tem- 
pore  pacis.  Exercitus,  licet  numero  et  armis  validus,  saepissime  vincitur  ob  defectum  di- 
sciplinae  et  ordinis,  p.  157.  —  6.  Describitur  modus  castrametandi,  p.  158. 


Capitulo  XV.  —  Em  que  se  declara  se  o  Preste  Joam  contrae  sem- 
pre  matrimonio  com  algumas  dasfamilias  dos  tres  Reys  Magos,  ou 
com  a  senhora  que  milhor  Ihe  parece  em  seu  imperio,    pag .  161-166 

Summarium.  —  i.  Fabulae  Urretae  circa  mulieres  quas  ducunt  uxores  Reges  Ae- 
thiopiae,  p.  161.  —  2.  Mogorum,  qui  adoraverunt  Christum,  nulla  memoria  in  Aethio- 
pia.  Imperatores  semper  nupserunt  et  nubunt  nunc  cui  volunt,  p.  163.  —  3.  Exempla 
recentia,  p.  164.  —  4.  Refutatur  alia  fabula  Urretae  risu  digna.  Aethiopes  solent,  sicut 
et  Mahnmedani,  varia  emblemata  in  brachiis  et  alibi  sibi  imprimere  elegantiae  causa,  p.  164. 
—  5.  Mulieres,  etiam  e  nobilioribus,  equitare  solent  in  mulis,  non  in  equis,  multoque 
minus  in  elephantis,  qui  in  Aethiopia  sunt  omnes  sylvestres,  p.  165.  —  6.  Descriptio 
caeremoniae  nupttarum  Imperatoris,  p.  165.  •»  7.  Post  nuptias,  statuto  die,  solemniter 
imponitur  Imperatrici  nomen  Itegud,  cuius  interpretationem  fnistra  Auctor  inquisivit,  p.  1 66. 


Capitulo  XVI.  —  Em  qtie  se  trata  dos  juices  que  tem  0  Preste 
Joam,  do  modo  de  proceder  em  a  justifa  e  do  castigo  que  dam 
aos  delinquentes pag.   167-178 

Summarium.  —  i.  ludices  supremi  Azaxdch  et  minores  Umbar6ch  vocantur  et 
eliguntur  ex  antiquis  familiis  nobilibus:  ludex  aulae  regiae  Far&  dicitur,  p.  167.  — 
2.  Locus  iudicum  in  residentia  Impcratoris.  Unus  est  praeses  in  utroque  tribunali,  p.  168. 

—  3.  ludicia  omnia  etiam  de  gravioribus  delictis  oretenus,  non  scripto,  habentur.  Quid 
sit  Barcafach.  Rei  de  levioribus  dant  vadimonium,  rei  de  gravioribus  vinciuntur  catena: 
omnibus  datur  facultas  sibi  defensorem  eligendi,  p.  168.  —  4.  Modus  procedendi  in  iu- 
didis,  p.  169.  —  5.  Modus  ferendi  sententiam.  ludices,  non  stantes,  uti  retulit  Alvarez, 
sed  sedendo  sententiam  dicunt,  p.  170.  —  6.  Ordo  confirmandi  sententiam  a  tribunali 
supremo  et  ab  Imperatore  quis  fuerit  antiquitus  et  quis  sit  nunc,  p.  171.  —  7.  Dies  as- 
signati  pro  iudiciis  qui  sint.  In  provinciis  servatur  idem  ordo  ac  in  aula  regia,  p.  171. 

—  8.  ludex  loci  pro  unoquoque  pago  vocatur  Xum  et  eligitur  e  qualibet  familia  ab 
ipso  pagi  domino.  Ordo  procedendi  servatus  ab  istis  iudicibus,  p.  172.  —  9.  Poenae  sunt 
exilium,  abscissio  manus,  vel  pedis,  vel  auris,  capitis  obtruncatio,  suspendium.  Homici- 
dae  aliquoties  traduntur  vindictae  familiae  demortui.  Seltan  Sagdd,  rogatus  ab  Auctore, 
ne  in  posterum  hoc  Beret  prohibuit|  p.  172.  —  10.  Antiquitus  rei  etiam  leonibus  obii- 
ciebantur.  Morte  damnati,  sacramentis  Ecclesiae  non  reficiuntur,  p.  173.  —  11.  Mulier 
adultera  mulctatur  pecunia.  Vir  potest  semper  eam  dimittere,  p.  174.  —  12.  Eabulae 
Urretae  circa  iudicia  ex  dictis  refutantur,  p.  174.  —  13.  Ante  Petrum  de  Covilham  nul- 
lus  lusitanus  ingressus  est  in  Aethiopiam.  Imperatores  ante  adventum  Patrum  e  S.  I.  nul- 
lam  notitiam  habuerunt  codicis  legum  lusitanarum.  Atanaf  Sagdd  et  SeltSn  Sagad  illum 
petierunt  a  p.  Paez,  p.  175.  —  14.  Refutatur  calumnia  ab  Urreta  apposita  quibusdam 
mercatoribus  italis,  p.  176.  —  15.  Falso  asseritur  apostatas  in  Aethiopia  leonibus  obiici, 
pactionem  intercedere  inter  Imperatorem  et  Reges  mahumedanos,  hosque  magno  in  pre- 
tio  habere  Patres  Dominicanos  monasterii  de  Alleluia,  p.  177.  —  16.  Falsum  pariter 
hariolas  et  blasphemoa  magnis  affici  poenis,  p.  178. 


628  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Capitulo  XVII.  —  Da  residencia  que  iomam  aos  Ouvidores  do  Em^ 
perador  e  aos  de  setis  Vissorreis pag.  179-184 

Summarium.  —  x.  Refenintur  soinDia  Urretae  circa  relegationem  iudicum  in 
Amba  Guixen  dum  in  eorum  administrationem  inquiritur,  p.  179.  —  2.  Confutantur  prae- 
dicta.  Exponitur  quomodo  in  Aethiopia  agantur  recursus  et  quo  fructu,  p.  182. 

Capitulo  XVIII.  —  Em  que  se  declara  se  ha  em  Ethiopia,  ou  ouvc 
Cofiselho  Latino  pera  se  tratarem  os  negocios  tocantes  a  Europa. 

pag.  185-188  I 

Summarium.   i.  De  Consilio  Latino  nulla  unquam   notitia  in  Aethiopia,  p.   185. 

Capitulo  XIX.  —  Em  que  se  declara  se  0  Preste  Joam  visita  pes^ 
soalmente  as  cidades  de  seu  imperio pag.  189-192 

Summarium.  Commenta  Urretae  circa  visitationem  civitatum  Aethiopiae  qnae  ab 
Imperatore  fiebat,  p.  189.  ~  2.  Quam  longe  sit  hoc  a  vero  demonstratur  et  ex  veteri  con- 
suetudine  Imperatorum  et  ex  iis  quae  recenter  ipse  Auctor  ocnlis  usurpavit,  p.  190.  — 
3.  Quomodo  Imperator  recipiat  et  quibus  donis  curoulet  cognatos  suos  nuptias  contra- 
cturos,  p.  191. 

Capitulo  XX.  —  Em  que  se  trata  das  cidades  de  Ethiopia  e  edificios, 
de  seu  governo,  distingam  de  moradores  e  trajos.    pag.  193-205 

Summarium.  i.  Nullae  in  Aethiopia  urbes:  maxima  casarum  et  tentoriorum  ag- 
glomeratio  circa  residentias  Imperatoiis  et  Viceregum,  quae  non  infrequenter  mutantur. 
Alibi  parvi  pagi  ex  casis  miserrimis,  p.  193.  —  2.  Casae  omnes  tantum  plano  pede  con-  y 

structae,  plerumque  paleis,  alicubi  solario  contectae ;  Selt&n  Sagad  in  regia  domo  ex 
petra  ad  lacum  Dambiense  contignationem  superstruxit  cum  solario  et  superius  cubicu- 
lum  cum  fenestris  ad  speculandum.  Descriptio  eiusdem.  Quomodo  et  quorum  expensis  fiant 
domus  gubematorum,  p.  194.  —  3.  In  quolibet  pago  praeter  Xum  alii  duo  iudices,  quorum 
unus  vocatur  Lebadim ;  quaenam  sint  eorum  partes,  p.  195.  ^  4.  Quonam  ordine  aedificatae 
fuerint  domus  in  nova  urbe,  seu  pago  in  peninsula  lacus  Dambii.  Solus  Auctor  privilegium 
habuit  eligendi  sibi  locum  pio  domo  aedificanda,  p.  IQ5.  —  5.  Fuse  describuntur  vestes  et 
omatus  virorum  nobilium  tempore  Auctoris,  p.196.  —  6.  De  vestibus  et  omamentis  mulie- 
mm  nobilium,  sive  virginum,  sivenuptamm,  p.  197.  -  7.  Vestes  homlaum  et  muliemm  de 
plebe,  p.  198.  —  8.  Quid  commentatus  sit  Urreta  circa  modum  gubemandi  in  Aethiopia, 
p.  199.  —  9.  Refertur  descriptio  Urretae  duamm  urbium  Saba  et  Zambra,  p.  200.  — 
10.  Eadem  fabulis  scatere  demonstratur,  p.  202.  —  Ruinae  quae  prope  Axum  visuntur 
et  traditio  populi  demonstrant  ibi  quondam  urbem  insignem  extitisse,  p.  202.  -  12.  De- 
scriptio  urbis  Gub&i  prope  lacum  Dambia  ab  imperatore  Malac  SagSd  aedificatae,  cuius 
vix  vestigia  Auctor  potuit  detegere.  lacob  sedem  posuit  in  loco  dicto  CogS,  sed  tempore 
Auctoris  Seltan  Sagdd  elegit  sibi  sedem  in  Dancdz,  p.  203.  —  13.  Deridentur  alia  com- 
menta  Urretae  circa  ludos  circenses  et  pompas,  quae  prope  urbem  Zambra  ab  Imperato- 
ribus  instmebantur,  p,  204. 

Capitulo  XXI.  —  Em  qne  se  declara  alguma  cousa  da  naturefa  e 

costtimcs  que  tem  os  vassallos  do  Preste  Joam   .     pag.  207-218  ^ 

Summarium.   i .  Aetiopes  vultu  non  spemendi,  fortes  viribus,  laborum,  sitis,  famis, 
frigoris  patientes.  Animo  plerumque  mites,  iniurias  etiam  gravissimas  remittunt.  Rogati 


INDEX  CAPITUM   LIBRI   I  ET  II.  629 

pro  amore  Dei  et  b.  Virginis  nihil  unquam  dcrBegant,  p.  207.  «-  2.  Libcralitas  omnium 
erga  pauperes.  Magistratutt  dictus  pater  orphanonun,  distribuit  nomine  Imperatoris  in 
viduas  et  orphanos  redditus  qui  vocantur  C0I6,  p.  208.  —  3.  Ecclesiaa  frequentant  om- 
nes,  ibique  devote  et  decenter  officiis  divinis  assistimt:  qui  domi  manent  orant  et  re- 
citant  psalmos;  neque  itinerando  intermittunt  preces  quotidie  dicere,  p.  208.  —  4.  De 
piis  peregrinationibus  et  ieiuniis,  quae  rigide  admodum  servare  solent,  p.  209.  —  5.  Quas 
insuper  tempore  quadragesimae  corporis  afflictationes  sibi  monachi  imponere  soleant,  p.  210. 
^  6.  De  poenitentiis  quas  pro  peccatis  Abuna  et  sacerdotes  imponunt  Confessio  pu- 
blica,  p.  210.  —  7.  Aethiopes  sunt  valde  comites  inter  se:  salutationes,  quas  semper  in 
plurali  usurpant,  sunt;  Ch6r  &lu,  ch^r  cebah^t  la  egziabeh^r,  mininhS  A\^^  bi^dn  ayadl 
et  aliae,  quas  Auctor  interpretatur,  p.  211.  —  8.  Mos  a  nobilibus  et  a  Viceregibus  usur- 
patus  quando  Imperatorem  invisunt,  p.  211.  —  9.  Describitur  sella  seu  thronus  Impera- 
toris,  p.  212.  —  10.  De  suppellectili  domestica  etiam  nobilium.  De  cibis  magis  usitatis. 
Quod  mos  edendi  camem  vaccae  crudam  sit  causa  taeniae  Auctpr  multis  exemplis  de- 
monstrat,  p.  213.  —  11.  Bestias  esui  destinatas  mactant  domi  ibique  pariter  coquunt 
panem.  Potus  communis  cerevisia,  quae  ubique  prostat  venalis;  ditiores  bibunt  vinum  ex 
melle.  Villici  tenentur  suis  sumptibus  cibum  et  potum  parare  nobilibus  iter  agentibus,  p.  213. 

—  12.  Modus  vendendi  et  emendi:  pro  pecunia  Aethiopibus  est  vel  aurum  rude,  vel  sal. 
De  cultu  agrorum;  cumis  nullibi,  p.  214.  —  13.  Quibus  armis  utantur  et  quibus  instru- 
mentis  musicis,  p.  215.  ~  14.  De  iure  haereditatis  in  singulis  familiae  membris.  De  ezpensis 
pro  funere,  p.  215.  —  15.  De  luctu  in  morte  parentum,  mariti  vel  uxoris.  Exempla  re- 
centia  ab  Auctore  oculis  usurpata,  p.  216.  —  16.  £x  dictis  confutantur  novae  fabulae  Ur- 
retie  circa  materiam  praesentem,  p.  217. 

Capitulo  XXII.  —  Em  qtie  se  declara  se  em  Ethiopia  ha  semina' 
rios  e  collegios  pera  insinar  mininos  e  mininas  e  universida- 
des  onde  se  leam  as  ciencias pag.  219-227 

Summarium.  i.  Referuntur  alia  inventa  Urretae  circa  seminaria  pro  adolescentibus 
et  puellis,  p.  219.  —  2.  Item  circa  universitates,  p.  220.  —  3.  Confutantur  praedicta. 
Quomodo  et  a  quibus  doceantur  reapse  pueri,  p.  221.  —  4.  Viri  nobiles  alunt  domi  suae 
monachum,  qui  eorum  filios  doceat  Sed  tales  magistri  inhiant  potius  pecuniae  et  honori- 
bus  quam  discipulorum  profectui,  p.  222.  —  5.  Quae  de  meretricibus  et  spuriis  retulit 
Urreta  ignota  prorsus  Aethiopibus,  p.  223.  —  6.  Confutatur  Urreta  circa  universitates. 
Quid  praestent  medici  in  Aethiopia.  Medentur  omnibus  infirmitatibus  ieiunio;  contra 
taeniam  utuntur  C096,  contra  tumores  carbunculi  succo  arboris  Corpil  vel  Guindd  dictae, 
p.  223.  —  7.  De  duabus  medicinis,  quas  apud  Turcas  usurpari  cum  successu  Auctor  expcr- 
tus  est,  p.  224.  —  8.  Quomodo  clerici  studeant  Conciliis  et  s.  Scripturae,  p.  225.  —  9.  De 
quodam  monacho  eximio  sacrae  Scripturae  interprete  apud  Aethiopes :  referuntur  quaedam 
ipsius  interpretationes  risu  dignae.  QuJd  de  talibus  magistris  senserit  SeltAn  Sagfid,  p.  225. 

—  10.  Quid  Auctor  et  PP.  praestiterint  circa  versiouem  in  aethiopicam  linguam  aliquo- 
nim  s.  Scripturae  interpretum  et  quo  fructu,  p.  227. 

Capitulo  XXIII.  —  Em  que  se  trata  dos  animaes  assi  domesticos 
como  bravos^  que  ha  em  Ethiopia pag.  229-237 

Summarium.  i.  NuIIa  regio  ex  iis  bene  multis  quas  Auctor  peragravit  habet  tot 
genera  et  species  animalium  quot  Aethiopia.  Equi  et  muli,  licet  parvi,  fortes  et  velo- 
ces,  p.  229.  —  2.  Cameli,  asini  et  onagri.  Vaccae  multae  et  optimae,  caprae  et  oves 
paucae,  nec  esui  valde  bonae,   p.  230.  —  3.   Canes   multi   et  fortes   et  ad    venandum 


/ 


630 

aptissimi.  Snnt  etiam  syW 
fcstria  propria  TCgionls  su 
duo  conniB,  p.  !3i.  —  5.  < 
describTintnr  «b  Auctore,  j 
bubali,  elepbantes,  tieres, 
hiBtrices  et  caiies  aarei.  L 
interdiu,  —  8.  Feles  odora 
quaestum  faciant.  Moscut, 
speciebus  ;  maiores  messib' 
agris;  serpentes  plures  mi 
rabulae  circit  Faunam  Aet 
Sag^d  circa  modum,  quo 

Capitulo  XXIV,  - 

SummariiUD.  1.  Avi 
—  2.  Psytlaci;  Passeracea 
dam  exploditur,  p.  141.  - 
p.  241.  —  6.  Strigidae,  p. 
snnt.  Gallus  Pavo  aulltbl 
dom  avis  mirabilis  absque 

Capitulo  XXV.  - 
dade  das  ierras 


limus,  olicubi  frigidiasimu 
ulveo  fluminum;  fodidae  s 
dani;  plumbi  parcitas,  p. 
unno:  triticum,  Iiordeum,  1 
gmfi  et  Tef  Duncupalae,  c 
nibus  utuntor  ad  esum,  se 
ex  olivis  raro.  De  aliis  pi 
J.  De  arboribus  fructifetis 
vitil;  de  gossypio  et  eius 
sylvestribus ;  praecipuae  s[ 
arva  et  omuia  devorant,  p 
fuiantuT  ei  dictis,  p.  251. 
circa  plantas  et  arbores,  p 

Capitulo  XXVI.  - 
causa  de  suas  c; 

Summarlum.  —  Ni' 
binss  Auctor  deteiit  die  21  . 
—  3.  Regio,  quae  cirra  ■ 
lanim,  p.  156.  —  4.  Nilu 
cipit  duos  rivulos  et  flamt 
bid,  unde  post  6  teucas  e1 
usque  ad  Alatl,  ex  cuius 
circumit  regnnm  Gojam   1: 


INDEX  CAPITUM   LIBRI   I   ET  II.  63 1 

Dam6t.  Graditur  dcin  per  regnum  Fazcold  et  Ombared,  ultra  quorum  fines  Auctor  fate- 
tur  se  nequivisse  ulterius  cursum  Nili  investigare,  p.  258.  —  6.  Referuntur  veterum 
scriptorum  et  Urretae  opiniones  de  causis  inundationum  Nili,  p.  258.  —  7.  Eas  falsas 
esse  demonstrat  experientia,  quae  fallere  nequit  sicut  ratiocinatio  a  priori,  p.  259.  — 
8.  Piscium  multae  species  in  Nilo  et  esui  optimae.  De  hippopotamis  et  de  torpedine 
vera  narrantur,  p.  260.  —  9.  Referuntur  commenta  Urretae  de  fontibus  Nili  aliaque 
valde  absona  ad  hoc  flumen  spectantia,  quae  cum  Auctor  retulisset  SeltSn  Sagdd  et  pri- 
moribus  regni,  risum  excitavit,  p.  261. 

Capitulo   XXVII.  —  Dos  rios  Mardb  e   Tacacf  e  do  discurso  de 
suas  correntes pag.  265-271 

Summariuoa.  —  Commenta  Urretae  circa  flumen  Marab,  quod  ipse  perperam  flu- 
men  Nigrum  appellat,  p.  265.  —  2.  Refutantur  commenta.  Flumen  Marab  non  habet 
scatebras  prope  monasterium  de  Alleluia,  sed  alibi;  eo  loci  vertit  ad  occidenten>  et  post 
circiter  50  leucas  influit  in  flumen  Taca^fe  vel,  ut  alii  dicunt,  ultra  decurrit  in  regnum 
Dequin,  p.  268.  —  3.  Saxis  tantummodo  dives  non  auro  vel  lapidibus  pretiosis,  immo 
pauper  aquarum  terras  abhiit  omnino  steriles,  p.  268.  —  4.  Scatebra  fluminis  Marab  et 
eius  decursus  exacte  deacribuntur  ab  Auctore,  p.  269.  —  5.  Quid  retulerit  Auctori  Joam 
Gabriel  circa  flumen  Marab,  p.  270.  —  6.  Cur  in  regno  Dequin  mutet  nomen  et  ulie- 
rius  non  progrediatur,  p.  270.  —  7.  Flumen  Taca^S  e  tribus  scatebris  oritur  in  loco  di- 
cio  Axguagud  regni  Ang6t;  decurrit  primo  occidentem  versus  habens  provincias  Dacana 
et  Oag  ad  septentrionem,  Ebendt  et  Quinfaz  ad  meridiem;  inde  flectit  ad  septentrionem 
medius  infer  Bargal6  et  Cemen  et  inter  Tigrd  et  Zalamt  cum  deserto  AldubS.  Est  valde 
dives  aquarum  et  periculose  trasmittitur,  quia  frequentes  crocodili,  p.  271.  —  3.  Prope 
cius  ripas  arbores  fructiferae  nullae;  pisces  multi.  Influit  in  Nilum  prope  Berb^r,  p.  271. 

Capitulo    XXVIII.   —   Em   que  se  trata  dos  rios  Zebi  e  Haodx 

pag.  273.276 

Summarium.  —  i.  Flumen  Zebe  fontes  habet  in  BoxS  regni  Narea:  fluit  primo 
occidentem  versus,  dein  ad  septentrionem,  circumiens  regnum  Zenyerd,  vergit  inde  nd 
meridiem  abluitque  terras  CoratS.  Variae  apud  Aethiopes  opiniones  de  eius  ulteriori  de- 
cursu  et  in  oceanum  effiuxu,  p.  273.  —  2.  Flumen  Hao&x  scaturit  ad  pedem  montis 
(xecuala,  qui  dividit  regna  Fatag^r  et  Oye  a  regno  Xaoa,  cuius  terras  abluit,  donec  in- 
grediatur  provinciam  Au^&guralS  regni  Adfil,  quod  magna  donat  fertilitate,  p.  274.  — 
3.  Somnia  Urretae  circa  flumina  Zayre  et  Aquilonda,  p.  274.  —  4.  Ex  dictis  refutan- 
tur,  p.  275. 

Capitulo  XXIX.  —  Em  qiie  se  trata  das  principaes  lagoas  que  ha 
em  Ethiopia pag.  211-2^2 

Summarxum.  i.  De  lacubus  Aethiopiae  et  primo  de  lacu  Zodi,  qui  invenitur  in 
regno  Oye  et  7  leucas  distat  a  Zdf  bar;  circuitus  habet  10  leucarum;  in  eius  medio  est 
insula  parva,  ibique  monasterium :  effluit  ex  eo  flumen  Machd.  Prope  hunc  alius  parvus 
lacus  Xacald,  p.  277.  —  2.  De  lacu  Haic  in  regno  Angot,  p.  278.  —  3.  Praecipuus  lacus 
est  Dambisi  BahHr.  Habet  25  leucas  longitudinis,  et  16  latitudinis.  Planities  quae  cir- 
cumstant  valde  fertiles  et  opimae.  Seltan  Sagad  hortus,  arboribus  fructiferis  omnigenis 
consitus,  prope  lacum,  p.  278.  —  4.  Multae  in  medio  lacu  insulae  valde  fertiles;  ex  his 
21  habent  monasteria.  Praecipuae  sunt  Galila,  Dec,  Rema,  Quebran  et  Debra  Antonz, 
p.  278.  —  5.  Describuntur  par>'ac  cymbae  quibus  untuntur  maxiroe  monachi  ut  de  ima 


632  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

in  aliam  insulam  transmittant.  Abunae  anno  161 3  vana  tentamina  in  extruenda  navi 
maiori;  ipse  naufragium  fecit  et  vitam  nando  sexvavit,  p.  279.  •»  6.  Lacus  abundat 
multis  et  ma^is  piscibus  esui  optimis.  Eorum  duae  species,  moribus  omnino  singularibus, 
ab  Auctore  describuntur,  p.  280.  —  7.  De  hippopotamis  aethiopice  Gumaris  dictis.  Gra- 
phice  describuntur,  p.  280.  —  8.  Multi  sunt  ad  ripas  lacus  DambiS,  et  damna  inferunt 
messibus.  Eorumdem  mores,  p.  281.  •»  9.  Deridentur  somnia  Urretae  de  lacubus  Ae- 
thiopiae,  p.  282. 

Capitulo  XXX,  —  Em  que  se  trata  das  rendas  e  tributos  que  pa- 
gam  ao  Prestc  Joam  seus  vassallos pag.  283-291 

SummArium.  i.  Annua  tributa  Imperatoris  sunt:  e  regno  Nared  cruciatorum  au- 
reorum  15  millia;  e  regno  Goj&m  11  millia  et  quingenti ;  e  regno  Tigr^  25  millia  et 
sexcenti ;  ex  aliis  partibus  4  millia,  p.  283.  —  2.  Praeterea  quodlibet  regnum  solvit  tri- 
buta  gossypii,  mellis,  mulorum,  equorum  etc.  Quomodo  de  istis  disponeret  SeltSn  Sagad, 
p.  284.  —  3.  Villici  omnes  soh^unt  quotannis  Imperatori  tributum  quod  vocatur  C0I6 ; 
et  dominis  quintam  partem  omnium  fructuiun  praeter  duas  mensuras  mellis  et  duas  gal- 
linas,  p.  285.  —  4.  Redditus  arvorum  qiuie  propria  sunt  Imperatoris.  Enumerontur  alia 
tributa,  quae  solvuntur  in  portubus  et  in  nundinis.  Edicitur  numerus  vaccarum  quas  una- 
quaeque  provincia  quotannis  praebere  dcbet,  p.  285.  —  5.  Ex  dictis  confutantur  fabulae 
Urretae.  E  quibus  fontibus  Auctor  hauserit  omnia  superius  exposita,  p.  286.  —  6.  Exer- 
citus  ad  summum  numerari  potest  200  millia  militum;  sed  toto  tempore  quo  Auctor 
mansit  in  Aethiopia,  milites  expediti  non  amplius  quam  50  millia  fuerunt,  p.  287.  — 
7.  Alia  commenta  Urretae  et  Francisci  Alvarez,  qui  ab  ipsis  aethiopibus  circa  tributa 
fuit  manifeste  deceptus,  p.  287.  —  8.  Ipse  Saltan  Sagild  valde  deridet  fabulam  Urretae 
de  formicis,  quae  statura  canes  aequarent  etc,  p.  288.  —  9.  Exponuntur  et  refutantur  erro- 
res  geographici  praedicti  scriptoris,  p.  288.  —  10.  Refelluntur  item  alia  commenta  de  vi- 
ctoria  imperatoris  David  contra  Trogloditas,  et  quod  eius  imperio  vectigal  fuerit  regnum 
Monomotapae,  p.  289.  —  11.  Refertur  dein  vera  historia  Fiquit6r  filii  imperatoriis  Da- 
vid,  qui  ante  patrem  suum  in  praelio  occubuit,  p.  290. 

Capitulo  XXXI.  —  Em  qtie  se  comefam  a   referir  algumas  das 
cousas  que  dom  Christoviw  da  Gamafez  em  Ethiopia.  pag.  293-304 

Summarium.  i.  Ea  qune  Auctor  relaturus  est  de  gestis  Christophori  de  Gama 
desup'a  sunt  tum  ex  relatione  cuiusdam  senis,  qui  Chrjstophoro  comes  fuit,  tum  ex 
scriptis  Fernandi  Guerreiro  et  Michaelis  de  Castanhoso,  p.  293.  —  2.  Errores  Urretae 
circa  historiam  praesentem,  p.  294.  —  3.  Breviter  refutantur,  p.  295.  —  4.  Stephanus  de 
(Tama,  gubernator  Indiarum,  movet  cum  classe  lusitana  contra  Turcas,  ad  Mare  Ru- 
brum.  Re  infecta,  cum  rediret,  appulit  Ma^uam,  ibique  legatos  Zabel6  Oangu^l  impe- 
ratricis  Aethiopiae,  auxilium  petentis  conlra  Mahumedanos,  recipit,  et,  consilio  inito  cum 
suis,  fratrem  suum  Christophorum  cum  400  militibus  expeditis  ad  Imperatricem  mittit, 
p.  295.  —  5.  Christophonis  movet  castra  et  per  itinera  difficillima  post  octo  dies  per- 
venit  Debaroa,  ubi  a  Bahar  Nagax,  a  clero  et  populo  magno  gaudio  excipitur,  p.  296.  — 
6.  Nuncios  de  suo  adventu  mittit  duos  c  suis  ad  Imperatricem,  quae  in  rupibus  Dam6 
morabatur.  Ipsa  dcscendit,  invisit  Christophorura,  miratur  arma  et  ordinem  pugnandi,  et 
custodiae  Lusitanorum  se  committit,  p.  297,  —  7.  Ibidem  hiemare  et  ad  praelium  ne- 
cessaria  parare  statuunt.  Claudius  imperator  certior  factus  de  Lusitanorum  adventu,  tran- 
sacta  hieme,  eos  ad  se  venire  quantocius  iul>et.  Christophorus  exploratores  Granh  morte 
punit;  et  regiones  circumstantes,  quae  rebellaverant,  subdit,  p.  298,  —  8.  Lusitani  cum 


INDEX  CAPITUM  LIBRI  I  ET  II.  633 

Imperatrice  iter  aggrediuntur  et  per  asperrimos  montes  secum  trahentes  tormenta  bellica 
post  multas  ambages  perveniunt  in  conspecCum  Ambd  Candt  a  Mahumedanis  forti  manu 
occupatae,  p.  299.  ~  9.  Describitur  locus  natura  et  arte  Aethiopibus  inexpugnabilis, 
p.  300.  "  10.  Christophorus  et  milites  et  tormenta  bellica  in  tres  acies  dispertit  Uno 
tempore  omnes  eminus  pugnam  instituunt:  at,  ad  hostes  fallendos,  se  retrahnnt,  p.  301. 

—  II.  Altera  die  summo  mane  pugnam  instaurant  atque,  hostibus  omnibus  interemptis, 
fortissima  munitione  potiuntur  et  captivas  mulieres  christianas  libertate  donant,  p.  301. 

—  12.  Christophorus,  nnncio  de  victoria  ad  Imperatricem  misso,  templum  Turcarum  in 
ecclesiam  vertit,  ibique  8  Lusitanos,  qui  in  praelio  ceciderant,  sepeliendos,  gratiasque 
solemnes  Deo  agendas  corat,  p.  303.  —  13.  Gnbematorem  Christophonis  certiorem  facit  de 
rebns  a  se  gestis  ab  eoque  bellicum  apparatum  petit,  p.  304. 

Capitulo  XXXII.  —  De  como,  prosiguindo  dom  ChristovHo  seu 
caminho,  veio  em  stia  busca  0  Grdnh  com  grande  exercito,  e  do 
que  com  elle  passou pag.  305-310 

Summariuin.  i.  Viribus  suorum  refectis,  cum  rescisset  ipsum  Gr&nh  cum  exercitu 
adventare,  illico  decertare  statuit.  Loco  opportuniori  delecto  et  per  exploratores  de  hostium 
numero  certior  factus,  eorum  impetum  praestolatur,  p.  305.  —  2.  GrAnh  legatum  ad 
Christophorum  mittit  ut  eum  ad  suas  partes  trahere  studeat;  quid  Christophorus  per 
nuncium  responderit,  p.  307.  —  3.  Gr&nh  parvam  manum  Lusitanorum  undequaque  cir- 
cumdat  eosque  fame  ad  deditionem  compellere  studet.  Christophorus  praelium  incredibili 
audacia  committit :  victoria  diu  anceps ;  tandem  Granh,  gravi  accepto  vulnere,  cum  suo 
exercitu  terga  vertit,  p.  308. 

Capitulo  XXXIII.  —  De  como  dom  Christovam  deo  a  2'  batalha 
ao  Grdnh pag.  311-317 

Summarium*  i .  Secunda  vice  Christophorus  praelium  comroitcit  cum  exercitu  Grdnh, 
multisque  mahumedanis  caesis,  reliquos  cum  suo  duce   in   fugam  coniicit,  p.  311.  — 

2.  Consilio  inito  cum  primoribus  Aethiopiae,  hiemare  statuit  ad  pedes  montis  Ofld  prope 
fines  regni  Angdt  et  in  conspectu  castrorum  Grdnh,  p.  313.  —  3.  Sub  finem  hiemis 
cum  100  e  suis  Lusitanis  noctu  aggreditur  fortissimam  maurorum  munitionem  ad  flumen 
Tacac^,  eaque  superata,  hostes  ad  unum  omnes  caedit  spoliisque  opimis  potitur,  p.  314. 

—  4.  Granh  caedibus  suorum  perterritus  auxiliares  copias  et  tormenta  bellica  a  Turcis 
Arabiae  expetit,  iisque  acceptis,  cum  Lusitanis  committere  parat,  p.  316. 

Capitulo  XXXIV.  —  De  como  o  Grdnh  deo  batalha  a  dom  Christo^ 
vam,  e  do  que  sucedeo.     .     .     .     , pag.  319-326 

Summarium.  i.  Grdnh  prima  luce  cum  omnibus  suis  copiis  Lusitanos  aggreditur. 
Magna  virtute  utrimque  pugnatur,  sed  tandem,  nocte  incumbente,  et  multis  suonim  caesis, 
Lusitani  se  retrahimt.  p.  319.  —  2.  Patriarcha  Bermudez,  Imperatrix  et  maior  Lusitano- 
rum  pars,  tenebris,  sylva  et   asperitate   montis  protecti,  salutem   inveniunt.   p.  321.  — 

3.  At  Christophorus  iam  sauciatus  cum  paucis  e  suis  prope  fontem  ab  hostibus  intercipitur 
et  ad  Granh  adducitur,  qui.  multis  contumeliis  et  suppliciis  athletam  fortissimum  afTectum, 
tandem  sua  ipse  manu  capite  obtruncat,  p.  323.  —  4.  Turcae  propter  mortem  Christophori 
in  iram  conversi,  castra  Granh  fere  omnes  relinquunt.  Perfuga  lusitanus  Imperatrici  narrat 
necem  Christophori.  Prodtgia  subsecuta:  Auctoris  vana  tentamina  pro  recuperandis  eius- 
dem  exuviis,  p.  324.  —  5.  Refertur  probrosa  calumnia  ab  Urreta  imposita  lusitano  nomini 
eaque  ex  dictis  refutatur,  p.  325. 

C.  Beccaki.  Rer.  Aetk.  Scripi,  oce,  ined.  —  11.  80 


634  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

Capitulo  XXXV.  —  De  como  os  Portugueses,  qtie  escaparam  da  ba- 
talha,  se  juntaram  com  a  Emperatriz  e  depois  com  o  Preste 
Joam,  e  deram  batalha  ao  Grdnh P^^-   327—337 

SumiiMirittm.  i.  Lusitani  superstites,  Imperatricem  sequuti,  in  verticem  raontis  natura 
munitissimi  se  coUigunt.  Reliqui  1 2,  per  invia  et  aspera  errantes,  in  hostes  incidiint,  quos 
incredibili  audacia  adoriuntur  et  in  fugam   vertunt;    tandem  ad  suos  salvi   perveniunt, 
p.  327.  —  2.  Luctus  Imperatricis  pro  caede  Christophori  de  Gama.  Viribus  refectis,  120 
Lusitani  Imperatricem  sequuntur  in  Qemen ;  reliqui  50  Ma^uam  veniunt  in  Indias  trans- 
missuri,  p.  328.    —   3.  Claudius  imperator  et  ipse  in  Qemen  venit;  ubi,  collecto  exercitu 
500  equitum  et  8  millium  peditum,  Lusitanorum  suasu,  contra  copias  GriLnh  decertare 
statuit,  p.  329.  —  4.  In  provincia  OagrS  primum  agmen  hostium,  duce  interempto,  profligat 
et  in  fugam  vertit,  p.  330.  —  5.  Inde  magnis  itineribus  ad  Oinadaga  prope  lacom  Dambia 
venit  et  castra  ponit  in  conspectu  castrorum  Gr&nh.  Per  plures  dies  levioribus  praeliis 
hostes  lacessit,  qui,  insidias  moliti,  ducem  e  piimis  Aethiopiun  interficiunt,  p.  331.  — 
6.  Altera  die  praelium  committitur.  Res  diu  manet  in  ancipiti:  at  tandem  ipse  Granh, 
gravi  vulnere  saucius,  capite  plectitur  et  universus  maurorum  exercitus  praecipiti  fuga 
terga  vertlt,  p.  332.  —  7.  Uxor  Granh,  caede  viri  sui  et  maioris  partis  exercitus  cognita, 
cum  paucis  equitibus  fugam  arripit  Aethiopes  victores  casttis  hostium  et  copiosa  praeda 
potiuntur,  p.  333.  —  8.  Quae  hucusque  retulit  accepit  Auctor  a  testibus  de  visu  fide  dignis. 
Quomodo  eadem  narraverit  Urreta,  p.  334.  —  9.  Calumniosa  narratio  pluribus  argumentis 
refutatur,  p.  335. 

Capitulo  XXXVI.  —  De  algumas  cousas  que  sucederam  depois  que 
o  Preste  venceo  ao  Grdnh,  e  das  exequias  que  fez  a  dom  Christovam 
e  aos  demais  Portugueses  que  morreram.  .     .     .     pag".  339-343 

Summarium.  i.  Claudius  ad  lacum  Dambia  instiuit  castra  ibique  a  duce  Calid  accipit 
caput  obtruncatum  Granh ;  sed  suam  sororem  Calid  matrimonio  iungere  recusat,  quia  iste 
Granh  iam  demortuo  caput  abscidit,  p.  339.  —  2.  Lusitani,  qui  Ma^uam  petierant,  rever- 
tuntur  in  Qemdn,  indeque  cum  Imperatrice  ad  Claudium  se  conferunt.  Caput  GrSnh  per 
omnis  Aethiopiae  regna  circumfertur,  p.  340.  —  3.  Claudius  veniam  dat  Eraz  Degana 
aliisque  ducibus,  qui  partes  Granh  fuerat  sequuti.  £x  illis  unus,  qui  particeps  fuerat  ne- 
cis  Christophori  de  Gama,  a  Lusitanis  interimitur,  p.  340.  —  4.  Exacto  iam  prope  hieme, 
Claudius,  plusquam  boo  monachis  undequaque  collectis,  iusta  solemnia  annua  memoriae 
Christophori  persolvit.  Inde,  collecto  exercitu,  per  omnes  Aethiopiae  partes  discurrit,  eas- 
que  suo  imperio  denuo  subiicit,  p.  341.  —  5.  Referuntur  alia  commenta  Urretae  et  ex 
dictis  refutantur,  p.  342. 

Capitulo  XXXVII.  —  De  como  o  emperador  Claudio  escluio  ao 
patriarcha  dom  Joam  Bermudez  e  fez  seu  asento  no  reyno  de 
OyS pag.  345-347 

Summarium.  i.  Rebus  imperii  compositis,  Claudius  fidem  iamdiu  datam  pa- 
triarchae  Bermudez  sese  Pontificis  Romani  obedientiae  submissurum  praestare  renuit  et 
alium  episcopum  ab  Alexandrino  Patriarcha  exposcit,  p.  345.  —  2.  Bermudez,  probrosa 
calumnia  a  monachis,  conscio  Claudio,  expetitus,  terris  Aethiopiae  mala  precatur  et  in 
Indias  revertitur,  p.  346.  —  3.  Claudius  in  loco  dicto  Zef  Bar  regni  Oyfi  sedem  regni 
constituit,  ibique  raagnara  urbem  ex  parvis  casis  more  aethiopico  condidit,  ubi  per  12  an- 
nos  mansit  et  tandem  a  mahumedano  duce  Nur  in  praelio  interfectus  est,  p.  347. 


INDEX   CAPITUM   LIBRI   I   ET  II.  635 


LIVRO  II  DA  HISTORIA  DE  ETHIOPIA* 

EM  QUE  SE  TRATA  DA  FE  QUE  PROFESSAO  O  PRESTE  JOAO  E  SEUS 
VASSALOS,  DOS  RITOS  E  CEREMONIAS  ECCLESIASTICAS  QUE  USAM, 
COM    OUTRAS    COUSAS    TOCANTES    A    ELLAS. 

Capitulo  I.  —  Do  prificipio  qtie  teve  a  f6  e  religiuo  christaa  cjn 
Ethiopia pag.  349-354 

Summarium.  I .  luxta  libros  axumiticos  Aethiopes  fidem  christianam  amplexati  sunt 
tempore  reginae  Candacis,  p.  349.  -  2.  Opiniones  SS.  Patrum  et  theologorum  circa  eu- 
nucum  Candacis,  p.  350.  —  3.  Historia  s.  Frumentii  iuxta  libros  Aethiopum,  p.  351.  — 
4.  De  novem  sanctis  monachis  iuxta  eosdem  libros.  Commenta  Urretae  breviter  refutan- 
tur,  p.  352.  —  5.  Quae  in  sequentibus  capitibus  Auctor  exponet  circa  errores  Aethio- 
pum,  ex  propria  experientia,  ex  eorum  libris  et  ex  disputationibus  cum  monachis  com- 
perta  habuit,  ideoque  fidem  merentur,  p.  354. 

Capitulo  II.  —  Em  qtie  se  declara  como  os  Ethiopes  neguo  proce- 
der  do  Filho  0  Espirito  Santo pag.  355-364 

Summarium.  i.  Licet  Aethiopes  mysterium  Trinitatis  venerentur,  tamen  pertina- 
citer  cum  Graecis  negant  Filium  a  Spiritu  Sancto  procedere,  p.  355.  —  2.  Auctor  per- 
suasit  multis  veritatem  doctrinae  catholicae,  quam  etiam  professi  sunt  Cela  Christ6s  alii- 
que  ex  primoribus,  p.  356.  —  3.  Cela  Christds  aliusque  dux  militum,  fidem  catholicam 
amplexi,  victoriam  insignem  de  Galas  referunt,  p.  357.  —  4.  Imperator  Seltan  Sagad 
favet  catholicae  iidei  et  ipse  etiam  Ichegu^;  sed  hic  nescit  solvere  argumenta  contra  pro- 
ccssionem  Spiritus  Sancti  a  Filio:  ab  Imperatore  advocatur  pater  Paez  ad  disputandum, 
P<  35^'  —  5*  Auctor  probat  veritatem  catholicam  ex  ipso  libro  Haimandt  Abb6,  in  cuius 
recentioribus  exemplaribus  demonstrat  evidenter  verba  «  et  a  Filio  »  abrasa  fuisse,  p.  358. 
—  6.  Probat  idem  ex  Evangelio;  monachi  haeretici  nesciunt  solvere  argumenta  Aucto- 
ris,  p.  360.  —  7.  Inopportuna  percontatio  cuiusdam  viri  principis  et  responsio  Aucto- 
ris,  p.  362.  —  8.  Auctor  privatim  disputat  cum  Abba  Marca  eumque  de  veritate  c.a- 
tholicae  fidei  persuasum  dimittit,  p.  363.  —  9.  Ex  dictis  confutatur  alius  error  histori- 
cus  Urretae,  p.  364. 

Capitulo  III.  —  Em  que  se  referem  os  erros,  qtie  os  Ethiopes  tem 
sobre  a  sacrosanta  humanidade  defesv  Christo  N.  S,  pag.  365-373 

Summarium.  i.\Probatur  Aethiopes  unam  tantum  naturam  in  Christo  profiteri  ex 
ipsis  eorum  libris,  scil.  Haiman6t  Abb6  et  Mazagu^bt  Haiman6t,  p.  365.  —  2.  Coniir- 
matur  ex  disputationibus,  quas  anno  1604  Auctor  habuit  cum  quibusdam  doctis  mona- 
chis  coram  Imperatore  Za  Denguil.  Summa  primae  disputationis,  p.  366.  —  3.  Summa 
alterius  disputationis,  p.  371.  —  4.  Ex  dictis  refelluntur  assertiones  Urretae  de  recta 
doctrina  Aethiopum  circa  Incarnationem,  p.  372. 


636  HISTORIA  DE   ETHIOPIA 

Capitulo  IV.  —  Em  que  se  prosegue  a  prova  de  que  os  Elhiopes 
negtio  duas  nahirezas  etn  Christo  N,  Sj"'  .     .     .     pag.  375-391 

Sumxnarium.  i.  Imperator  Za  Denguil  catholicam  veritatem  amplectitur;  quam  ob 
rem,  a  monachis  commota  plebe,  vita  privatur.  Auctor  suadet  Cela  Christ6s  eiusque  con- 
sobrino  Abeithum  Bela  Christds  duas  esse  in  Christo  naturas,  p.  375.  —  2.  Seltan  Sn- 
gad  favet  monachis  catholicis  et  iubet  haberi  conventum  omnium  doctorum  Aethiopiae 
ad  doctrinam  de  duplici  in  Christo  natura  excutiendam,  p.  376.  —  3.  Disputatio  mo- 
nachorum.  Abba  Marca  catholicus  ad  silentium  redigit  adversarios.  Monachus,  quia  co- 
ram  Imperatore  probrosa  verba  iecerat  contra  Marca,  severe  mulctatur,  p.  376.  —  4.  Alia 
et  acrior  disputatio  cum  ipso  Abima,  qui  cogitur  fateri  duas  naturas.  Seltan  Sagad  dat 
decretum  pro  doctrina  catholica,  p.  378. —  5.  Attamen  Abuna  sacris  interdicit  omnibus 
qui  fidem  Lusitanorum  recepcrint  vel  eorum  templa  frequentaverint.  Imperator  e  contra 
utnimque  liberum  esse  omnibus  decernit,  p.  378.  —  6.  Abuna  fretus  amicitia  Jemana 
Christos  fratris  Imperatoris  anathemate  ferit  proiitentes  duas  iu  Christo  naturas  et  com- 
movet  populum  contra  Imperatorem  et  Cela  ChristAs,  p.  379.  —  "j,  Prorex  Tigrensis  ge- 
ner  Imperatoris  crudeliter  agit  cum  catholicis  ipsasque  Lusitanorum  uxores  bonis  omni- 
bus  spoliat.  Imperator  certior  factus  de  his  ab  Auctore,  irascitur  genero  et  iubet  illico 
reddi  omnia:  promittit  se  suumque  imperium  fidem  catholicam  amplexurum,  p.  380.  — 
8.  Concionem  solemnem  indicit;  per  litteras  mater  eius  et  frater  et  primores  regni  eum 
a  proposito  deterrere  conantur ;  Cela  Christds  gravi  morbo  corripitur,  at  Deo  favente  con- 
valescit,  p.  382.  —  9.  Abuna  convocatis  multis  monachis  coram  Imperatore,  defendit  er- 
rorem  Dioscori,  non  quidem  rationibus,  sed  clamoribus  et  minis,  p.  384.  —  10.  Abuna 
ad  pedes  Cela  Christ6s  provolutus  eum  multis  rogat  ne  a  iide  patrum  sinat  Aethiopiam 
desciscere;  reponit  ille  doctrinam  de  duplici  natura  Christi  esse  fidem  maionim  clare  de- 
mostrari  ex  Evangelio,  conciliis  et  Patribus,  p.  387.  —  11.  Cela  Christos  et  ipsemet  Im- 
perator  vita  periclitantur.  Abuna  cum  suis  monachis  instaurat  disputationcs ;  victus  au- 
ctoritatibus,  non  dat  manus,  sed  instat  pro  servanda  traditione  maiorum.  Imperator  iu- 
bet  ut  omnes  sequantur  fidem  in  libris  expositam,  p.  387.  —  12.  Seltan  Sagad  optima 
ratione  rcdarguit  quemdam  monachum  asserentem  unam  esse  in  Christo  naturam.  Mo- 
nachi  incolentes  insulam  San^  respuimt  donaria  Imperatoris:  hic  vehementer  irascitur, 
sed,  rogatus  a  matre,  graven:  iniuriam  remittit,  p.  389. 

Capitulo  V.  —  De  como  os  Ethiopes  detcrminartto  de  matar  ao  em- 
perador  Celtan  Sagued  e  a  Cela  Christos  seu  irm^x>,  por  dizerem 
qtie  cm  Christo  N,  S.  estao  duas  naturezas  .     .     pag.  393-402 

Summarium.  i.  Monachi,  duce  Abuna  cum  lemana  Christos  fratre  et  lulios  ge- 
nero  Iraperatoris,  de  hoc  ct  Cela  Christos  interficiendis  secreto  coniurant,  p.  393.  — 
2.  Abuna  anathemate  ferit  omnes  qui  catholicis  favent.  Coniurati  ad  aulam  se  confemnt 
armis  clanculum  instructi  et  ab  Imperatore  arroganter  exposcunt  publicam  fidei  suae  de- 
clarationem.  Seltan  Sagad  ambigue  respondet,  p.  394.  —  3.  Duo  primi  duces  exercitus 
et  eunucus  Caflo  coniuratis  iunguntur.  Seltan  Sagad,  specioso  praetextu,  a  Cela  Christos 
separant,  ut  tutius  queant  ambos  trucidare;  at  res  e  voto  non  succedit,  p.  395.  —  3.  Tunc 
lulios  cum  Abuna  contra  Imperatorem  aperte  rebellat  eumque  in  itinere,  a  quadam  ex- 
peditione  cum  paucis  redeuntem,  adoriri  parat,  p.  396.  —  5.  Seltan  Sagad  in  his  angustiis 
consilium  petit  a  p.  Petro  Paez  et,  cognito  proximo  rebellium  adventu,  opportimo  et  ele- 
vato  loco  castra  ponit,  p.  397.  —  6.  lulios,  spretis  precibus  et  lacrymis  suae  uxoris,  acie 
instructa  Imperatorcm  aggreditur.  Huius,  primo  concursu,  dextrum  et  sinistrum  comu 
per  defectionem  a  pugna  desistunt.  lulios,  ceu  victor,  per  medias  acies  Imperatorem  petit. 


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INDEX  CAPITUM   LIBRI   I  ET  II.  637 

at  lapidis  ictu  perculsus,  ab  equo  praeceps  ruit  et  a  gregario  milite  capite  minuitur; 
rebellium  copiae  fugam  arripiunt;  Abuna,  multis  vulneribus  acceptis  et  vestibus  exutus, 
et  ipse  capite  obtruncatur,  p.  399.  —  Cela  Christds,  licet  magnis  itineribus  properaret, 
ad  castra  Imperatoris  pervenit,  disiectis  iam  rebellibus.  Iraperator  Deo  reddit  gratias  pro 
parta  tam  insperato  victoria.  E  coniuratis  aliquos  morte  damnat,  lemana  Christds  di- 
gnitatibus  privat,  reliquis  veniam  dat.  Eunucus  Caflo  iterum  de  Imperatoris  pemicie  co- 
niurat;  sed,  detecta  machinatione,  capite  plectitur,  eiusque  corpus  feris  obiicitur,  p.  400.  — 
8.  £x  dirtis  probatur  quam  temere  asseruerit  Urreta  Aethiopes  omnes  duplicem  in  Christo 
naturam  cum  catholicis  profiteri,  p.  402. 

Capitulo  VI.  —  Em  qtie  se  trata  dos  erros  que  os  Ethiopes  tem 
CLcerca  das  almas  racionaes  .     , pag.  403-408 

Summarium.  i.Aethiopes  circa  animas  rationales  asserunt:  i )  eas  non  creari,  sed 
per  traducem  produci;  2)  eas,  quae  poenis  infemi  fuemnt  ante  Christum  addictae,  a  Christo 
fuisse  liberatas;  3)  Sanctorum  animas,  ante  diem  iudicii  extremum,  visione  Dei  beatifica 
non  frui,  p.  403.  —  2.  Auctor  narrat  se  multoties  coram  Imperatore  primum  errorem 
confutasse  ex  ipsis  Aethiopum  libris,  multosque  iam  doctrinam  de  animaram  creatione 
suscepisse,  p.  404.  —  3.  Idem  se  praestasse  affirmat  circa  alterum  errorem  et  cum  felici 
exitu,  incassum  reclamantibu;i  quibusdam  monachis,  p.  405.  —  4.  Ex  Scripturis  et  Pa- 
tribus  demonstrat  tertiam  Aethiopum  opinionem  errorem  esse:  quod  multi  etiam  e  do- 
ctioribus  concedunt,  p.  408.  —  5.  Quid  Urreta  de  hac  re  perperam  narraverit,  p.  408. 

Capitulo  VII.  —  Em  quc  se  mostra  como  os  Ethiopes  vassalos  do 
Preste  JoVio  de  muitos  tempos  a  esta  parte  sOo  scismaticos  deso- 
bedientes  a  santa  Igreja  Romana pag.  409-417 

Summarium.  i.  Doctiores  inter  Aethiopes  tenent  Aethiopiam  a  tcmpore  Dio- 
scori  obedientiam  Pontifici  Romano  detrectasse,  p.  409.  —  2.  Quam  tenaciter  adhaereant, 
nostro  hoc  tempore,  schismati  Alexandrino  probatur  ex  modo  agendi  Claudii  imperatoris 
cum  catholicis  patriarchis  Bermudez  et  Oviedo,  uti  constat  cx  relationibus  Consalvi  Ro- 
driguez  e  S.  L,  p.  410.  -  3.  ex  litteris  Alphonsi  de  Fran<;a  et  Andreae  de  Oviedo, 
p.  411.  —  4.  et  ex  sententia  lata  ab  eodem  Oviedo  contra  errores  et  schisma  Aethiopum, 
p.  412.  —  5.  Probatur  successores  Claudii,  scilicet  Minas,  Sarsa  Denghfil  et  lacob,  schi- 
smati  Alexandrino  pariter  adhaesisse,  p.  414.  —  6.  Za  Denghel  vero  et  lacob,  quia  vo- 
luerunt  Ecclesiae  Romanae  sese  suumque  imperium  submittere,  imperio  pariter  et  vita 
privati  sunt,  p.  415.  —  7.  Ex  dictis  exploditur  Urretae  commentum  quod  Ecclesia  Ae- 
tiopica  sempcr  Pontifici  Romano  obsequens  fuit  et  nunquam  Alexandrino  schismati  ad- 
dicta,  p.  416. 

Capitulo  VIII.  —  Em  que  se  declara  como  os  Ethiopes  se  circuncidQo, 
guardHo  sabbado  e  outras  ceremonias  judaicas    .     pag.  419-426 

Summarium.  i.Aethiopes,  in  circumcisione  exsequenda,  sunt  tenacissimi.  Auctor, 
publicis  et  privatis  disputationibus,  cam  Christianis  prohibitam  esse  demonstrat,  sed 
parum  proficit,  p.  419.  —  2.  Sabbatum  inter  festos  dies  habent  et  alias  caeremonias  legis 
iudaicae  pnssim  observant  maxime  monachi.  Za  Dengh^l  et  dein  Seltiin  Sagdd  lata  lege 
eas  abrogarunt,  p.  420.  —  3.  Hinc  sequitur  falso  Urretam  asserere  Aethiopes  iudaicas 
superstitiones,  hortatu  Romanomm  Pontificum,  desemisse,  p.  422.  —  4.  Auctor  digreditur 
ad  narrandam  fuse  historiam    cuiusdam  monachi  Za  Christ6s,  qui  se  altemm  Messiam 


638  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

esse  dictitans,  novam  sectam  condidit.  Za  Denghdl,  cum  nollet  resipiscere,  illum  capite 
damnavtt,  p.  423.  —  5.  Eius  asseclae,  eum  ad  vitam  rediisse  asserentes,  rnultos  e  plebe 
ad  suas  partes  traxerunt.  Auctor  et  Abba  Fecdr  Egzi  incassum  laborant  ut  eos  a  suis 
erroribus  revocent.  Tunc  Imperator  rebelles  vi  submittere  iubet.  Ex  his  aliquot,  ,vesano 
aestu  perciti,  ex  altissima  nipe  cum  uxoribus  et  filiis  praecipites  se  dederunt;  reliquf 
numero  488  ex  eadem  rupe  a  militibus  deiciuntur,  p.  424. 

Capitulo  IX.  —  Em  que  se  trata  dos  crros  que  os  Ethiopes  tem 
no  sacramento  santo  do  Baptismo P^-g"-  427-431 

Summarium.  i.  Plerique  inter  Aethiopes  invalide  baptizantur,  quia  sacerdotes 
in  baptismate  non  utuntur  semper  verbis  a  Christo  praescriptis.  Infantes  mares  nonuisi 
post  40  et  faeminae  post  80  dies  baptizantur,  etsi  vita  periclitentur.  Apostatis  conversis 
iteratur  baptisma,  p.  427.  —  2.  Quotannis  in  festo  Epiphaniae  omnes  in  aquis  fluminum 
a  presbyteris   iterum   baptizantur.  Ritus  qui   in   hac   re   passim   usurpantur,  p.  428.  — 

3.  Auctor  publice  et  privatim  demonstrat  ex  N.  T.  sacramentum  Baptismatis  non  posse 
iterari,  sed  pauci  persuadentur,  p.  430.  —  4.  Urreta  proinde  perperam  negavit  iterationero 
Baptismatis  apud  Aethiopes,  p.  431. 

Capitulo  X.  —  Do  santo  sacramento  da   Conjirma^tio  e  Extrema 
Un0o  e  do  da  Penitencia pag.  433~437 

Summarium.  i.  Aethiopes  non  utuntur  sacramentis  Confirmationis  et  Extremae 
Unctionis,  neque  horum  ullibi  in  libris  sacris  Aethiopiae  fit  mentio,  p.  433.  —  2.  De 
Poenitentiae  sacramento  recte  sentiunt,  sed  eo  utuntur  raro.  Peccata  plerique  confitentur 
generice,  vel  per  summa  capita,  neque  a  sacerdotibus  interrogantur.  Fornicationem  et 
usuram  non  habent  ut  peccata,  p.  434.  —  3.  Confessarii  poenas  satisfactorias  imponunt, 
saepissime  leves  pro  gravioribus,  graves,  immo  gravissimas  pro  levioribus  noxis.  AfFeruntur 
exempla.  Formulae  absolutionis  quas  usurpant,  p.  435.  —  4.  Confessio  publica  coraro 
Abuna  est  usitatissima.  Rei  sic  confessi  poenis  corporalibus  publice  afficiuntur,  p.  43^» 
—  5.  Ex  dictis  sequitur  quam  absona  et  a  vero  aliena  sint  quae  Urreta  narravit  de  recto 
usu  et  frequenti  huius  sacramenti  apud  Aethiopes,  p.  437. 

Capitulo  XI.  —  Em  qice  se  trata  do  santissimo  sacramento  da  Eu- 
charistia  c  das  ceremonias  qtie  os  sacerdotes  Ethiopes  usQo  na 
Missa pag.  439-453 

Summarium.  i.  Aethiopes  in  sacramento  Eucharistiae  praesentiam  realem  C\ii\sii 
sub  speciebus  profitentur.  Pane  utuntur  fermentato  et  vino  ex  uvis  passis,  at  aquae  nimiae 
permixtis,  quare  invalida  consacratio  calicis,  p.  439.  —  2.  Sacrum  faciunt  mane,  sed 
diebus  ieiunii  sub  vesperab.  Quibus  vestibus  tamquam  sacris  utantur.  Preces  et  ritus  qui 
praecedunt  sacrificium,  p.  440  —  3.  Saceidos,  comitantibns  semper  diacono  et  subdia- 
cono,  accedit  ad  altare;  ritus  et  preces  ante  lectionem  Epistolae.   i."  oratio,  p.  441.  -" 

4.  Absoluto  Ps.  22,  infunditur  vinum  in  calicem  etc;  2.*  et  3.*  oratio  super  calicem; 
4.°  oratio;  Kyrie-eleison;  5."  oratio  super  populum,  p.  442.  —  5.  6."  oratio  super  panem 
et  vinum;  ;.■  oratio  dum  circa  altare  thus  incenditur.  Ritus  qui  ser>'atur  dum  a  diacono 
et  subdiacono  praeleguntur  populo  Epistolae.  8."  oratio,  p.  443.  —  6.  Sacerdos  assistens 
celebranti  recitat  ex  actis  Apostolorum,  dum  celebrans  breves  fundit  preces,  et  populo 
signo  cmcis  benedicit;  inde  legitur  aliquid  ex  eo  Evangclio  quod  illo  anno  legendum  est. 
Oratio  9.'  pro  Ecclesiae  pace,  p.  444.  —  ;.  Populus  recitat  Credo;  ultima  oratio  qua 
absolvitur  prior  pars  Missae,  quae  semper  eadem  est,  p.  446.   —  8.  Altera  pars  Missae, 


INDEX  CAPHUM   LIBRI  I   ET  II.  639 

qoae  Canoni  Latinorum  correspondet,  per  singula  festa  mutatur.  E  12  missis  quae  ha- 
bentur  in  Lithurgia  aethiopica  Auctor  refert  eam  quae  ab  ApostoHs  nomen  habet  i/  oratio, 
in  qua  continetur  consecratio  utriusque  speciei.  Verba  consecrationis  panis  mutant  sen- 
sum  verborum  Christi,  ideo  iiivalida  consecratio,  p.  446.  —  9.  Orationes  quae  populum 
disponunt  ad  sacram  Synaxim  sumendam.  Preces  funduntur  pro  Patriarcha  Alexandrino 
et  pro  Abuna,  p.  448.  —  10.  Praecinente  sacerdote,  populus  veniam  peccatoriim  precatur. 
Professio  fidei  circa  praesentiam  realem,  p.  449.  —  ii.  Describitur  ritus  quo  sacerdos 
a  diacono  adiutus  distribuit  populo  sacram  Synaxim  sub  utraque  specie,  p.  450.  — 
12.  Sacerdos  manus  abluit,  thure  perfricat  et  deosculandas  praebet  aliis  sacerdotibus  et 
diaconis,  atque  ita  Sacrificium  absolvitur,  p.  451.  —  13.  Superius  dicta  Auctor  desumpsit 
ex  libro  lithurgico  cuiusdam  monasterii.  Quam  absona  sint  quae  scripsit  Urreta  circa 
lithurgiam  aethiopicam  singillatim  ostenditur,  p.  451.  —  14.  Probatur  exemplis  Aethiopes 
ex  ignorantia  accedere  ad  sacram  Synaxim  absque  conditionibus  requisitis,  p.  453. 

Capitulo  XII.  —  Em  que  se  refere  0  que  rezUo  os  sacerdotes  ethiopes 
em  luguar  de  nossas  horas  canonicas    ....     pag.  455-470 

Summarium.  i.  £x  ipsis  monachorum  libris  refcrt  Auctor  preces  omnes  quae 
a  sacerdotibus  Aethiopiae  recitantur  loco  horarum  canonicarum,  quae  apud  Latinos  sunt 
in  usu,  p.  455.  —  Preces  supradictas  monachi  recitant  mane,  sed  Auctor  suspicatur  etiam 
interdiu  et  sub  vesperas  alias  ab  ipsis  preces  recitari.  Quae  retulit  transcripsit  cx  quodam 
libro,  quem  secreto  illi  detulit  quidam  monachus  eius  amicus,  p.  470. 

Capitulo  XIII.  —  Do  sacramento  da  Ordem  e  das  ceremonias  de 
que  tisa  0  Abuna  quando  ordena pag.  471-480 

Summarium.  i.  Ordinibus  sacris  solus  in  Aethiopia  inaugurat  Abuna,  qui  a  Pa- 
triarcha  Alexandrino  instituitur,  et  seligitur  inter  monachos  antonianos  aegyptios,  non 
aethiopes  qui  sunt  Hierosolymis,  ut  scripsit  Urreta,  p.  471.  2.  Abuna,  qui  itinere 
plerumquc  terrestri  ob  Turcarum  metum  in  Aethiopiam  se  confert,  magnis  honoribus 
maxime  ab  Imperatore  cumulatur.  Ad  eius  sustentationem  addicti  redditus  plurium  ex 
opimis  totius  regni  praediis;  ad  haec  omnes,  qui  sacris  ordinibus  inaugurantur,  certam 
pecuniae  (salis)  summam  solvere  tenentur.  Abusus  in  hac  re  ab  Auctore  notantur,  p.  472- 
—  3.  Sacris  ordinibus  tum  minoribus,  tum  maioribus,  sacerdotio  excepto,  plurimi  ini- 
tiantur  simul  unico  ritu.  Verba,  quae  interea  Abuna  profert  arabico  sermone,  Auctor 
numquam  potuit  rescire.  Nomina  aethiopica  septem  ordinum,  p.  473.  -  4.  De  ridiculo 
examine  cui  subiiciuntur,  qui  sacerdotio  sunt  initiandi.  Quoddam  documentum  supinae 
ignorantiae  sacerdotum  Aethiopiae,  p.  474.  —  5.  Ritus  initiationis  describitur.  Verba 
formae  nequit  Auctor  referre,  quia  librum  quo  ritus  continentur,  etiam  interposita  aucto- 
ritate  Ras  Cela  Christos,  habere  prae  manibus  numquam  potuit.  Sacerdotes  non  modo 
omnes  matrimonio  iuncti  sed  etiam  ad  secundas  nuptias,  si  libet,  convolant  nnnuente 
Abuna.  p.  474.  —  6.  De  validitate  ordinum  multi  in  ipsa  Aethiopia  dubitant.  Ratio 
dubitandi :  opinio  patriarchae  Oviedo  et  p.  loannis  Alvarez;  refertur  huius  epistola  ad 
Auctorem  data,  p.  475.  -  7.  Quam  absona  sint  quae  narravit  Urreta  de  clericis  et  sa- 
cerdotibus  Aethiopiae  singillatim  demonstratur,  p.  477. 

Capitulo  XIV.  —  Em  que  se  trata  dos  erros  que  os  Ethiopes  tem 
acerca  do  sacramento  sJ^  do  Matrimonio  e  das  ceremonias  que 
nelle  usuo ,     .     pag.  431-487 

Summarium.  i.  Apud  Aethiopes  divortium  obtinet,  ob  certas  nec  semper  graves 
causas,  ex  sententia  iudicis  civilis  vel  ecclesiastici ;  imnio  saepe,  quin  adeant  iudiccs,  vir, 


640  HISTORIA   DE  ETHIOPIA 

relicta  uxore,  alii  nubit  et  vicissim  uxor,  relicto  viro,  p.  481.  —  2.  Si  adulteriura  inter- 
cedat  omnes  licitura  sibi  esse  divortium  opinantur  ex  prava  interpretatione  verborum 
Christi,  Matth.  5.  Auctor  et  pubiicis  et  privatis  disputationibus  non  Hcere  ex  lege  Christi 
divortiura  docuit,  nec  sine  fructu,  p.  482.  —  3.  Describuntur  ritus  nuptiales  tam  sacri 
quam  civiles  qui  obtinent  quando  vir  est  diaconus,  p.  483.  —  4.  Quo  ritu  celebrentur 
nuptia*;  laicorum  et  praesertim  consanguineorum  Imperatoris,  p.  484.  —  5.  Defuncto  viro, 
uxor  vidua,  ex  prava  consuetudine,  potest  nubere  leviro  suo,  quin  de  hoc  a  sacerdotibus 
reprehendatur,  p.  485.  —  6.  Ritus  nuptiales  a  Francisco  Alvarex  descripti  numquam 
obtinuerunt  in  Aethiopia,  p.  486.  —  7.  Quae  autem  scripsit  Urreta  falsa  sunt  et  fabulis 
scatent,  p.  486. 

Capitulo  XV.  —  Em  que  se  trata  da  fabrica  dos  templos  que  otwe 
antiguamente  e  ha  oie  em  Ethiopia  e  da  reverencia  que  Ihes  tem 

pag.  489-498 

Summarium.  i.  £x  libris  axumiticis,  ex  verbis  Francisci  Alvarez  et  ex  ruderibus 
quae  nunc  extant,  describit  Auctor  templimi  s.  Mariae  a  Sion  prope  Axum,  p.  499.  — 

2.  Aiiquid  de  templo,  quod  olim  visebatur  in  monasterio  de  Alleluia,  p.  490.  —  3.  Auctor 
demonstrat  Fr.  Alvarez  niroium  extollere  templa  aethiopica,  quae  adhuc  hodie  visuntur 
in  provincia  Oror  in  rupibus  saxosis  cxcisa;  tempia  enim,  quae  simili  structura  extant 
in  Indiis  orientalibus,  longe  et  magnitudine  et  elegantia  superant  aethiopica,  p.  490.  — 
4.  £x  Fr.  Alvarez  datur  descriptio  templi  Golgot^,  p.  491.  —  5.  Describitur  templum 
s.  Salvatoris,  p.  491.  —  6.  Item  brevius  templa  Nostrae  Dominae,  Martyrum,  s.  Crucis, 
Emmanuelis  et  s.  Georgii,  p.  492.  —  7.  Quid  de  praedictis  templis  Auctori  retulerint 
ipsi  Aethiopes.  Peregrinationes  superstitiosae  a  monachis  institutae,  p.  493.  —  8.  Templa 
quae  hodie  extant  plerumque  rotunJa,  parva  et  ex  petra  et  luto  constructa:  singulae 
eorum  partes  describuntur,  p.  493.  —  9.  Templorum  curam  habent  plerumque  monachi 
simul  et  clerici  illi  qui  Debteroch  vocantur.  Quibus  ritibus  et  qua  pompa  fiat  consecratio 
altarium,  p.  494.  —  10.  Olim  ante  incursiones  Maurorum  ornamenta  Ecclesiae  et  vasa 
sacra  valde  pretiosiora  fuerunt  ac  modo  sunt,  495.  —  li.  Aethiopes  summam  rc>'erentiam 
templis  adhibent;  omnes,  ad  Imperatorem  usque,  discalceati  illuc  ingrediuntur;  tempore 
saucti  sacrificii  a  risu,  a  locutionibus,  ab  expuendo  abstinent;  insidentes  equo,  si  ante 
ecclesias  transeant,  ad  pedes  desccndunt.  Quales  reverentiae  significutiones  exhibuertt 
Seltdn  Sagdd  ecclesiis  a  Patribus  S.  I.  extructis,  p.  496.  —  12.  Describitur  templum  ab 
Auctore  ad  europaeae  artis  normam  aedificatum,  quodque  Imperator  praetiosis  donariis 
et  praediis  ditavit,  p.  496.  —  13.  Altaria  plerumque  sacris  imaginibus  carent:  picturis 
tamen  bene  multis  parietes  templorum  sunt  ornati.  Quam  absona  de  talibus  picturis  Ur- 
reta  narraverit,  p.  497. 

Capitulo  XVI.  —  Do  estillo  e  ccremonias  que  os  Ethiopes  guarduo  nos 
cnterramentos  e  do  erro  que  tem  acerca  do  Purgatorio.  pag.  499-506 

Summarium.  i.  Describuntur  funebres  ritus  pro  vita  functis  de  plebe:  horum 
corpora  in  ecclesiarum  claustris  htimantur,  p.  499.  —  2.  Exequiarum  pompa  pro  nobi- 
libus ;  ritus  sacri  in  humatione  monachorum ;  superstitio  aliquorura  risu  digna,  p.  500.  — 

3.  Funerum  solemnia  pro  Impcratoribus :  preces  et  eleemosynae  in  pauperes  die  30',  40*, 
et  80"  a  funere;  quomodo  anniversariae  exequiae  peiagantur,  p  501.  —  4.  Priscis  tem- 
poribus  corpoia  Imperatorum  humabantur  intra  septa  Ecclesiarum  Mecana  Selassd  et 
Atione  .Samanam  in  regno  Amhara ;  quae  cum  tempore  Granh  dirutae  et  combustae  fuissent, 
nullus  amplius  locus  certus  pro  humatione  Imperatorum :  notantur  loca  ubi  aliqui  eorum 


INDEX  CAPITUM   LIBRI   I   ET  II.  64 1 

sepulti  fuerunt,  p.  502.  —  5.  Aethiopes,  etsi  pro  defunctis  eleemosynas  et  preces  fundant, 
tamen  eos  admissa  expiare  debere  ncgant.  Prolixa  disputatio  quam  bac  de  re  coram 
Seltdn  Sag&d  Auctor  habuit  cum  quodam  monacho,  p.  502.  ~  5.  Demonstrantur  falsa 
et  risu  digna  quae  scripsit  Urreta  de  funebri  ritu  Aethiopum,  p.  505. 

Capttulo  XVII.  —  Em  que  se  trata  de  algumas  Religides,  que  alguiis 
autores  poem  na  parte  de  Ethiopia,  que  senhorea  o  Preste  /o(lo 

pag.  507-520 

Summarium.  1.  Monasteria  eremitanun  a  s.  Augustino,  de  quibus  multa  narrat 
Urreta,  ignota  prorsus  in  Aethiopia  fuerunt  et  simt,  p.  507,  —  2.  Quae  pariter  idem 
refert  de  sacro  ordine  militari  et  monastico  ab  imperatore  loanne  instituto,  inter  fabulas 
sunt  recensenda,  p.  509.  —  3.  Refert  Auctor  in  summa  historiam  Ordinis  Praedicatorum 
in  Aethiopia  ab  eodem  Urreta  typis  editam  multisque  argumentis  demonstrat,  non  modo 
*nullum  in  Aethiopia  monasterium  PP.  Praedicatorum  suo  tempore  adesse,  sed  etiam 
quoad  praeterita  saecula  ne  uUum  quidem  illorum  vestigium  inveniri,  p.  512. 

Capitulo  XVIII.  —  Em  que  se  declara  quantas  sao  as  Religides 
que  ha  em  Ethiopia  e  quem  tem  por  fundadores^  que  modo  de 
governo  e  vida  e  como  se  h(ix>  com  os  rwvifos     .     pag.  521-530 

Summarium.  i.  Monachorum  duo  tantum  ordines  in  Aethiopia,  quorum  unus 
ab  abba  Tacla  Haimanot  nomen  habet,  alter  ab  abbA  Stat^us,  uterque  tamen  ab  abba 
Arogawi  originem  ducit.  Quoad  vivendi  normas  nihil  prope  difTerunt  inter  se;  at  vero 
perpetuas  lites  habent  de  honoris  gradu,  deque  quorundam  agrorum  possessione,  p.  521. 

—  2.  Cur  Auctor  tam  pauca  narret  de  vita  abba  Stat6us;  huius  coenobia  nullum  supe- 
riorem  generalem  habent,  licet  Abbas  monasterii  Bizan  primum  honoris  gradum  obtineat 
in  aula  regia.  Abbates  eliguntur  a  monachis,  sed  .ib  Imperatore  confirmantur.  Quibus 
ritibus  fiat  electio  et  confirmatio,  p.  522.  —  3.  Coenobia  omnia  abbd  Tacla  Haimanot, 
praeter  proprio  Abbati,  uni  praesidi  generali  subsunt,  qui  Ichegue  vocatur:  hic  coenobia 
invisit  poenasque  contra  sontes  statuit.  Licet  dentur  iudices  ecclesiastici,  tamen  plerumque 
soli  iudices  saeculares  contra  monachos  criminis  reos  sententiam  dicunt,  p.  523.  — 
4.  Nullus  Eremitanim  coetus  separatus  in  Aethiopia,  ut  somniavit  Urreta;  sunt  tamen 
aliquot  in  deserto  coenobia,  quo  se  conferre  possunt  monachi,  si  ipsis  libet.  leiunia  aliaeque 
corporis  afflictationes  eremitae  frequentant  seque  cum  superis  iactant  habere  commercia, 
unde  apud  rudes  in  magno  sunt  pretio;  at  mores  monachonim  plerumque  perditissimi. 
Huius  depravationis  causae  ab  Auctore  assignantur,  p.  525.  —  5.  Antiquitus  monachi 
tyrones  per  7  annos  variis  experimentis  exercebantur.  Ex  quodam  libro,  quem  Auctor 
commodatum  habuit,  describuntur  ritus  multipliccs  initiationis  monasticae.  Vestitus  mo- 
nachonim  est  tunica  talaris  plerumque  coloris  albi,  corio  praecincta  et  cucullus.  Pro- 
vectiores,  tamquam  honoris  insigne,  gestant  Azqucma,  quae  est  stola  quaedam  pergaminea 
parvulis  distincta  crucibus,  e  collo  pendens  et  infra  pectus  aenea  fibula  adstricta,  p.  527. 

—  6.  lidem  ferme  ritus  quando  initiantur  moniales,  iidemque  istarum  mores,  p.  530. 

Capitulo  XIX.  —  Em  que  se  refere  a  historia  de  Abba   Tdqueld 
Ilaimanot  como  a  coTitOo  os  livros  de  Ethiopia .     pag.  531-578 

Summarium.  i.  Refertur  compendio  vita  abba  Tacla  Haimanot  ab  Urreta  con- 
scripta  et  demonstratur  eam  fabulis  et  erroribus  scatere,  p.  531.  —  2.  Narratur  vita  Tacla 
Haiman6t  iuxta  codices  aethiopicos.  Genealogia  ducitur  a  Sadoc  sacerdote  tempore  Sa- 


642  HISTORIA  DE  ETHIOPIA 

lomonis,  p.  537.  —  3.  Parentes  eius  fuerunt  Z&g&  za  Ab  sacerdos  ct  Egzinred,  qui, 
cum  essent  stcriles,  precibus  et  eleemosynis  filium  impetrarunt  et  Michaeli  archangelo  in 
tutelam  tradiderunt,  p.  539.  —  4.  Narrantur  prodigta  et  virtutcs  pueri,  qui  primo  vocatus 
est  Fe^a  Scon,  p.  545.  —  5.  Pater  admonitus  in  somnis  a  Michaele  archnngelo,  ducit 
Feva  Seon,  15  annos  natum,  ad  Abunam  Guerl6s  ut  diaconus  initiaretur;  portenta  suh- 
secuta,  p.  546.  —  6.  Fe^a  Seon,  spretis  nuptiis,  ad  Abunam  se  confert,  qui  eum  sacer- 
dotem  Instituit  ct  omnibus  Seod  pagis  praeficit.  p.  548.  —  7.  Parentibus  vita  functis, 
manet  per  7  annos  domi  vitam  saecularem  agens.  Apparet  ei  Michael  archangelus,  iubet 
illi  non  iam  feras  capere  sed  homines,  ut  sacerdotem  decet,  et  vocari  non  Fe^a  Seon, 
sed  Tacla  Haiman6t.  Christus  ipse  iussa  Archangeli  confirmat,  eumque  Evangelii  prae- 
conem  et  apostolum  apud  gentes  instituit,  p.  549.  —  8.  Tacl&  Haimanot,  divitiis  in 
paupcres  distributis,  et  relicta  paterna  domo,  discurrit  per  varias  regiones,  praedicana 
Bdem  in  Christum  ct  commissorum  poenitcntiam.  Quibus  prodigiis  populares  Catata,  qui 
arbores  ut  Deos  habebant,  a  daemonis  obsessionc  liberaverit  et  christianis  adiunxerit, 
una  cum  eorum  rege,  cui  nomen  im[>osutt  Bamina  Christos,  p.  551.  —  9.  Neophytis  Ca- 
tat^  curae  presbyteronim,  quos  e  Zor^re  advocaverat,  commissis,  ipse  in  descrtum  seredit, 
at  a  Domino  per  visum  admonitus  ut  incolas  Dam6t  fidei  christianae  praeceptis  imbueret, 
co  se  confert.  Iter  faciens  per  terras  SeoA,  daemones  eiicit  e  monte  Oifat  incolasque  omnes 
sacro  baptismatc  abluit,  p.  556.  ~  10.  Inde  discedens,  pervenit  ad  terras  Bilat  ubi,  cum 
rcgem  veneBcio  addictum  contumeliis  affecisset,  ab  huius  asseclis  bis  occiditur,  at  bis 
etiam  a  Michaele  archangelo  ad  vitam  revocatur.  Quo  duplici  prodigio  nihil  motus,  cum 
populus  in  sua  superstitione  persisteret,  ad  preces  Tacla  Haimanot  repentino  terrae  hiatu 
rex  cum  suis  %'eneficis  hausti  pereunt,  p.  559.  —  11.  Vertit  iter  ad  terras  Dam6t,  cuius 
rex  Motolom(^  (idenri  Cbristi  aversatus,  Tacla  Haiman6t  bis  ex  aita  rupe  praecipitem  deiicit; 
at  cum  comperisset  eum  a  Michaele  archangelo  servatum  incolumem,  fidem  cfaristianam 
cum  universo  populo  amplectitur.  Alia  prodigia  ibidem  patrata,  p.  560.  —  12.  Annum 
integrum  inter  Damotes  agit:  inde  iussus  divinitus  in  patiiam  revertitur:  postmodum 
AmharS  versus  iter  arripit.  Monachum  obviam  habet  et  novo  prodigio  eum  movet  ut  se 
comitem  sibi  iungat  in  via,  p.  562.  —  13.  Ad  monasterium,  cui  pracerat  Abbi  Michael, 
perveniunt.  Ibidem  TacIA  Haimanot  monasticam  vitam  per  7  annos  agit  et  animi  de- 
missione  ceterisque  virtutibus  et  prodigiis  inter  ceteros  eminet,  p.  564.  -  14.  Post  decem 
annos,  iussu  archangeli  Michaelis,  pergit  in  insulam  Haic  in  medio  lacu  Dambia  et  in 
monasterio,  cui  praeerat  Abbd  lesus,  fit  monachus.  De  quibusdam  mirabilibus  visis,  quae 
tii  dormienti  occurrerunt,  p.  566.  —  Iterum  post  decem  annos,  divinitus  iussus,  Abb&  lesus 
non  sine  lacrymis  valedicit,  et  montem  D.am6  in  regno  Tigre  petit;  ibique  ab  Abbd 
loanne  cucullo  et  Azquema  induitur,  ac  ea  piodigia  renovat  quae  olim  a  celeberrimis 
novem  sanctis  ea  in  regione  patrata  fuerant,  p  568.  —  16.  Inde  post  duodecim  annos 
discedens  iuxta  superum  monita  invisit  alia  monasteria.  Ad  oram  Maris  Rubri  appulsus, 
sicco  vestigio  fretum  transmittit  et  Hierosolymas  tendit  sepulcrum  Domini  veneraturus. 
In  Aethiopiam  reversus  et  pluribus  monasteriis,  quae  hodiedum  ab  ipso  nomen  habent, 
extructis,  monasterium  Dambia  repetit  ibique  cucullum  et  Azquema  Abba  lesus  imponit, 
P*  57^'  ~  17.  In  Amhara  rcvertitur  et  in  raonte  Dada  serpentem  mirae  magnitudinis, 
qui  ab  incolis  uti  Deus  habebatur,  signo  crucis  occidit;  quo  prodigio,  princeps  regionis 
multique  de  plebe.  fidem  Christi  amplectuntur.  Seoa  denuo  petit,  aegrotos  valetudini  re- 
stituit,  daemones  compescit  et  episcopi  dignitatem  sibi  ab  Abuna  oblatam  recusat.  Plura 
alia  signa  ab  eo  patrata,  p.  572.  —  18.  Ingravescente  iam  aetate,  in  solitudinem  concedit, 
ubi  parvula  inclusus  casa,  incredibilcs  corporis  afiiictationes  sibi  imponit.  Senio  tandem 
confectus,  suosque  ad  chariiatcm  cohortatus  ab  angelis  in  coelum  recipitur,  p,  575.  — 
19.  Sententia  Auctoris  circa  praedictam  historiam :  eam  scatere  fabulis  et  erroribus,  uti 
fere  omnes  Aethiopum  libri,  datis  exemplis  probat,  p.  577. 


I 


INDEX  CAPITUM   LIBRI   I    ET   II.  643 

Capitulo  XX.  —  Em  que  se  trata  do  mosteiro  que  chamao  Dfbra 
Libanos pag.  579-583 

Sammarium.  i.  Praecipua  monasteria  in  Aethiopla  tempore  Auctoris  erant: 
BizSn,  AbM  Guarimil,  Dagfi,  CanS,  D^bra  Maryam,  Dim&,  DSbra  Ord,  Calalo;  etsi  a 
tempore  Granh  neque  opibus,  neque  monachorum  numero  aeque  floruerint,  ac  priscis  tem- 
poribus,  p.  579.  —  2.  At  principem  locum  obtinebant  monasteria  Libanos  et  Allelo. 
Ethimologia  vocis  Ddbra  declaratur.  Libands  situm  est  in  praealto  monte  regionis  X&oa; 
extructum  fuit  ab  Abba  Ezechias,  57  annos  nb  obitii  TacU  Haimanot,  ibique  in  ecclesia 
eius  exuviae  asservantur.  Constat,  uti  cetera  omnia  monasteria  regionis,  ex  multis  casulis 
rotundis,  quae  mediam  habent  Ecclesiam,  p.  580.  —  3.  Qui  numenis  monachorum  illud 
olim  incoluerit  ex  sola  traditione  resciri  potest;  tem})ore  Auctoris  non  erant  amplius  quam  40. 
Non  redditus,  sed  arva  ipsa  inter  monachos  ab  Abbate  distribuuntur.  Monachorum  pro- 
pinqui  quid  iure  haereditatis  acquirere  valeant,  p.  581.  —  4.  Referuntur  somnia  Urretae 
circa  hoc  monasterium  et  paucis  refutantur,  p.  581. 

Capitulo  XXI.  —  Da/undaf(io  do  convento  da  Alleluia  pag.  585-593 

Summarium.  i.  Monasterium,  quod  vocatur  D^bra  Halleld,  situm  est  in  regno 
Tigrg  super  verticem  montis  prope  fiumen  Marab  et  incolitur  a  monachis  Abbd  Statdus. 
Tempore  Auctoris,  qui  illud  invisit,  vetus  ecclesia  et  casae  numero  600  dirutae,  monachi 
vcro  ad  decem  numerabantur,  p.  585.  —  2.  Narratur  breviter  vita  Abbd  S&muel,  qui 
monasterium  erexerat,  ex  quodam  libro,  quem  Auctor  a  monachis  commodatum  habuit, 
p.  586.  —  3.  Iterum  alia  commenta  Urretae  circa  hoc  monasterium  refutantur,  p.  587. 

Capitulo  XXII.  —  Em  que  se  declara  quam  sem  fundamento  contou 
frci  Luis  de  Urreta  entre  os  Sa?ttos  de  sua  sagrada  ReligiUo  os 
frades  deEthiopia,  cuiasvidasrefere  ?io  segundo  Tomo  pag.  595-608 

Summarium.  i.  Compendio  refert  Auctor  vitas  aliquot  sanctorum  aethiopum  ex 
ordine  s.  Dominici  ab  Urreta  confictas,  easque  omnes  inter  fabulas  esse  amandandas 
paucis  demonstrat,  p,  595.  —  2.  Vita  beati  fr.  Philippi,  qui  fuit  discipulus  Tacla  Hai- 
manot,  munere  supremi  fidei  inquisitoris  insignitus,  et  martyrio  ac  miraculis  clarus, 
P*  59^«  —  3*  ^^  beato  patre  El^a,  qui  et  ipse,  monasticam  vitam  professus  sub  Tacla 
Haimanot,  virtutibus,  supernis  visis  et  miraculis  claruit,  p.  597.  —  4.  De  Abba  Samuel 
supremo  fidei  inquisitore  mira  narrantur,  p.  599.  —  5.  Vita  et  martyrium  beati  TacU 
Varet,  p.  600.  —  6.  De  s.  Andrea  fidei  inquisitore  et  martyre,  p.  602.  —  7.  De  s.  Imata, 
quae  Roma  in  Aethiopiam  venit  cum  novem  sanctis,  ibique  monasterium  monialium 
tertii  ordinis  s.  Dominici  extruxit,  regulasque  vivendi  tradidit,  p.  604. 

Capitulo  XXIII.  —  Em  que  se  declara  se  ouve  alguns  Emperadores 
santos  em  Ethiopia pag.  609-620 

Summarium.  i.  luxta  historiam  ab  Urreta  conscriptam,  septem  numerantur  Im- 
peratores,  qui  ab  Aethiopibus  ut  sancti  coluntur,  scilicet:  Philippus  I.,  loannes  duo, 
Philippus  VII,  Elesbaan,  Abraham  et  LalibeU,  p  609.  —  2.  Refertur  vita  Philippi  I. 
ab  Urreta  conficta,  p.  609.  —  3.  Vita  loannis  I  eiusque  filiae  Euphrasiae,  p.  610.  — 
4.  De  alio  loanne  et  de  Philippo  VII,  p.  610.  —  5  De  sancto  Elesbaan  iuxta  Simonem 
Metaphrasten,  p.  bii.  —  6.  De  sancto  Abraham:  vita  et  prodigia,  p.  612.  —  7.  Item 


644  HISTORIA  DE   ETHfOPIA 

de  LalibeU,  p.  613.  —  8.  Commentltias  esse  omnes  istas  vitas  demonstrat  Auctor  tum 
ex  historiis,  tum  praesertim  ex  testimonio  imperatoris  Seltin  SagAd  eiusqfs  fratris  Cela 
Christds,  qui  opinabantur  nullum  ex  Imperatoribus  Aethiopiae  sanctitate  vitae  emicnisse, 
quia  omnes  libidini  deditos  fuisse  constat,  p.  614.  —  9.  Etiam  ea  quae  ab  Uiteta  nar- 
rantur  de  LalibeU  fabulis  permixta  ease  demonstratur ;  de  eiusdem  vero  Imperatoris  san- 
ctitate  valde  dubitare  licet:  fama  sanctitatis  inter  Aethiopes  nil  probat  cum  multi  ha- 
beantur  ut  sancti,  qui  homines  omnino  perversi  fuerunt,  p.  616.  —  10.  Quid  de  LalibeU 
narret  Sinassarium  Aethiopicnm,  p.  916.  —  11  Quae  de  Elesbaan  narrant  aactores  graeci, 
libri  Aethiopum  tribuunt  imperatori  Caleb,  p.  617.  »  1 2.  Refert  Auctor  historiam  Caleb 
iuxta  libnim,  quem  in  perantiquo  monasterio  prope  Axum  invenit,  p.  618.  —  13.  Addii 
alia  quaedam  ez  traditione;  descriptio  specus,  quo  se  collegit  Caleb,  iuxta  ea  quae 
Auctor  propriis  oculis  usurpavit,  p.  620. 


IMPRIMATUR 
Fr.  Albertus  Lepidi  O.  P.  S.  P.  A.  Magister. 

IMPRIMATUR 
loseph  Ceppetelli  Archiep.  Myren.  Vicesgerens.